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Análise da Noção de 'Sobrevivências' em Tylor e suas Implicações Sociais, Notas de estudo de Antropologia

Este documento analisa a noção de 'sobrevivências' desenvolvida por edward burnett tylor e sua relação com a noção de 'remanescentes' utilizada pelo legislador brasileiro. O texto explora as tensões sociais geradas pelas tentativas de legisladores de limitar a aplicabilidade do artigo 68 da constituição federal de 1988 aos 'remanescentes das comunidades dos quilombos'. Além disso, o documento discute a ressignificação da noção de 'remanescentes' pelo movimento negro, pelos quilombolas e por antropólogos, sociólogos e historiadores.

O que você vai aprender

  • Quais são as 'ideias matrizes' em torno da noção de 'remanescentes'?
  • Qual é a noção de 'sobrevivências' desenvolvida por Edward Burnett Tylor?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jorginho86
Jorginho86 🇧🇷

4.6

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O CONCEITO DE “SOBREVIVÊNCIA” REVISITADO: AS NUANÇAS
EVOLUCIONISTAS DA NOÇÃO DE “REMANESCENTE DAS
COMUNIDADES DOS QUILOMBOS” NO DEBATE CONSTITUCIONAL1
Emmanuel de Almeida Farias Júnior (DCS/CCSA/UEMA)
Resumo
Este texto propõe uma revisão crítica da literatura evolucionista clássica, tendo em vista
a aplicação da noção de “remanescente” no Artigo 68, dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988. Mas
especificamente, o debate em torno da garantia de direitos territoriais das comunidades
quilombolas designada formalmente como “remanescentes das comunidades de
quilombo”. Para tanto, analiso a noção de “sobrevivências” desenvolvida por Tylor e a
sua aproximação com a de “remanescentes” utilizados pelo legislador, para identificar
realidades empiricamente observáveis do presente. Alguns autores argumentam que o
legislador da constituinte imaginava tratar-se de algumas dezenas, tidas como sujeitos
de direito, tendo em vista que pensavam estar se referindo “sobrevivências” de
“situações sociais” ligadas ao quilombo de Palmares stricto sensu. Tal equívoco
semântico pode ser explicitado, atualmente, pelas tensões sociais ocasionadas pelas
tentativas por parte de legisladores da chamada “bancada ruralista” de colocarem em
pauta, discussões como a do denominado “marco temporal”, ou seja, pretendendo
limitar os efeitos do Artigo 68, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias,
da Constituição Federal de 1988, àqueles “remanescentes das comunidades dos
quilombos” que estavam ocupando o mesmo território entre os anos de 1888 a 1988.
Pretendo, ainda, analisar o movimento de ressignificação da noção de “remanescentes”
pelo movimento negro, pelos quilombolas e por antropólogos, sociólogos e
historiadores, que se afastam dos pressupostos evolucionistas tayloriano de
“sobrevivência”, de “resto” ou “resíduo”, que tinha como “ideia matriz” a noção de
“sobrevivências” de Tylor. A noção de “remanescentes” foi ressignificada, e hoje,
representam mais de quatro mil comunidades espalhadas em quase todos os estados da
federação. Assim, este texto pretende, a realização de uma história social da noção de
“sobrevivências” e seu desdobramento, no texto constitucional e na realidade social
brasileira, onde estas realidades empiricamente observáveis se referem uma
multiplicidade de “processos de territorialização”.
Palavras-chave: quilombo, remanescentes, sobrevivência.
1 Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de
dezembro de 2018, Brasília/DF.
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O CONCEITO DE “SOBREVIVÊNCIA” REVISITADO: AS NUANÇAS

EVOLUCIONISTAS DA NOÇÃO DE “REMANESCENTE DAS

COMUNIDADES DOS QUILOMBOS” NO DEBATE CONSTITUCIONAL

1 Emmanuel de Almeida Farias Júnior (DCS/CCSA/UEMA) Resumo Este texto propõe uma revisão crítica da literatura evolucionista clássica, tendo em vista a aplicação da noção de “remanescente” no Artigo 68, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988. Mas especificamente, o debate em torno da garantia de direitos territoriais das comunidades quilombolas designada formalmente como “remanescentes das comunidades de quilombo”. Para tanto, analiso a noção de “sobrevivências” desenvolvida por Tylor e a sua aproximação com a de “remanescentes” utilizados pelo legislador, para identificar realidades empiricamente observáveis do presente. Alguns autores argumentam que o legislador da constituinte imaginava tratar-se de algumas dezenas, tidas como sujeitos de direito, tendo em vista que pensavam estar se referindo há “sobrevivências” de “situações sociais” ligadas ao quilombo de Palmares stricto sensu. Tal equívoco semântico pode ser explicitado, atualmente, pelas tensões sociais ocasionadas pelas tentativas por parte de legisladores da chamada “bancada ruralista” de colocarem em pauta, discussões como a do denominado “marco temporal”, ou seja, pretendendo limitar os efeitos do Artigo 68, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988, àqueles “remanescentes das comunidades dos quilombos” que estavam ocupando o mesmo território entre os anos de 1888 a 1988. Pretendo, ainda, analisar o movimento de ressignificação da noção de “remanescentes” pelo movimento negro, pelos quilombolas e por antropólogos, sociólogos e historiadores, que se afastam dos pressupostos evolucionistas tayloriano de “sobrevivência”, de “resto” ou “resíduo”, que tinha como “ideia matriz” a noção de “sobrevivências” de Tylor. A noção de “remanescentes” foi ressignificada, e hoje, representam mais de quatro mil comunidades espalhadas em quase todos os estados da federação. Assim, este texto pretende, a realização de uma história social da noção de “sobrevivências” e seu desdobramento, no texto constitucional e na realidade social brasileira, onde estas realidades empiricamente observáveis se referem há uma multiplicidade de “processos de territorialização”. Palavras-chave: quilombo, remanescentes, sobrevivência. (^1) Trabalho apresentado na 31ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 09 e 12 de dezembro de 2018, Brasília/DF.

INTRODUÇÃO

O evolucionismo foi a teoria social que predominou como forma de explicação para a vida natural e social. No campo ainda florescente da antropologia, tal conceito foi utilizado para explicar a humanidade, a “evolução social” e suas diferenças “essenciais”. A formulação mais comum é a de que toda a humanidade estaria ligada por um contínuo que separava as ditas sociedades “primitivas” das “civilizadas”. Morgan é um dos principais representantes da noção de estágios sucessivos do desenvolvimento humano. Para o autor a humanidade caminhava do estágio denominado de selvageria, passando pela barbárie até a civilização. Tal noção ficou conhecida como evolucionismo unilinear. O evolucionismo unilinear “considera as sociedades humanas como um conjunto unitário, submisso a um movimento global” (POIRIER, 1981, p. 35). Segundo Morgan, “as principais instituições da humanidade tiveram origem na selvageria, foram desenvolvidas na barbárie e estão amadurecendo na civilização” (MORGAN, 2009, p.45). Para o autor, era preciso estudar as sociedades ditas “primitivas” antes de seu desaparecimento. Ao contrário dos fósseis que ficam na terra preservados para os futuros estudantes, “o mesmo não acontece com o que sobra das artes, linguagem e instituições indígenas. Elas estão perecendo a cada dia, e tem sido assim por mais de três séculos” (Idem, 2009, p. 46-47) grifo meu. Apesar de Tylor não fixar rigidamente tais épocas do desenvolvimento humano, o autor (2009, p. 69) declara que existia uma uniformidade que permeia a civilização. Essa uniformidade é atribuída à ação uniforme de causas uniformes e que seus graus podem ser vistos como estágios de desenvolvimento ou evolução. Tylor, ainda assim, vai declarar a existência de estágios evolutivos. Esses estágios, no entanto, poderão ser percebidos mesmo nas ditas sociedades “civilizadas”. Tal forma explicativa esteve impregnada no pensamento antropológico vitoriano. Seus efeitos teóricos podem ser sentidos até os dias atuais, podemos citar a corrente neo-evolucionista. Como recorte instrumental, este trabalho vai focar a noção de “sobrevivência” em Tylor. A partir daí analisar sua aplicação em fenômenos recentes na história do Brasil. Pois, parto do princípio de que tal conceito pode ser encontrado no senso comum douto. Neste ponto, gostaria de partilhar das análises de Pinto, para o autor: “as ideias ao percorrerem espaços próximos e distantes, conectando homens e épocas” (PINTO,

períodos fixos de forma rígida. Rosa afirma: “Tylor não foi um evolucionista unilinear” (ROSA, 2010, p. 298). Para Rosa, o trabalho de Tylor é rodeado de cautela. Tylor trabalhava com hipóteses. Ele, diz Rosa, “sugeria essa ideia grosso modo, como um pressuposto genérico de que a humanidade começara sua caminhada numa condição da qual estavam mais próximos, em termos relativos, os povos sem escrita ainda existentes” (idem, 2010, p. 298). O progresso na humanidade, para Tylor não era um progresso coerente. É o que ele mostra no estudo das religiões e do animismo. No entanto, neste ponto, não vejo diferença entre se acreditar ou se formular hipótese de que a humanidade evoluiu de um “ponto primitivo”. É uma questão de qual recurso utilizamos para escrever nossas ideias. Como havia dito antes, este texto, é uma tentativa de aproximar como o conceito de “sobrevivência” tem sido utilizado em tempos recentes da história do Brasil. Não se trata de uma defesa e/ou ataque, ao método utilizado por Tylor. Segundo Rosa, é no estudo do animismo que Tylor consegue demonstrar a incoerência entre ordem e civilização. Tylor demonstra que o desenvolvimento humano não era coerente e que as fases do desenvolvimento dito selvagem podiam ainda ser percebidas na dita humanidade civilizada. Para o Tylor, segundo Rosa, seria relativo a separação entre a selvageria e a civilização: O grande objetivo da Antropologia de Tylor era demonstrar que o homem europeu, e mais genericamente o homem dito civilizado, estava profundamente impregnado de selvajaria. Em analogia com Charles Darwin, que já havia demonstrado à burguesia e aristocracia vitorianas que dentro delas tinham um primata, Edward Tylor queria pôr em evidência a costela culturalmente selvagem dos seus pares (ROSA, 2010, p. 298). Rosa, diz que Fraser, aluno de Tylor, coloca em sua obra Golden bough (1890), “que caminhamos hoje sobre uma fina crosta por baixo da qual se revolve uma matéria selvagem sempre pronta a entrar em erupção” (ROSA, 2010, p. 299). Para Fraser a selvageria está escondida na “civilização civilizada”. Para Tylor, alguns aspectos das religiões “modernas” podiam ser retidos as ditas “civilizações selvagens”, ou mesmo, não passariam de “renascimentos”. Ou seja, poderiam ser encontradas “imagens do passado”. Para Rosa, este fenômeno era a “permanência de ideias pré-históricas, sujeitas a progressivas e variadíssimas adaptações, de ordem moral, filosófica, estética, etc.” (ROSA, 2010, p. 299).

A leitura de Tylor permite compreender o seu empreendimento quanto as formas de pensamento humano. O animismo seria uma dessas formas. Para o autor, o animismo pode ser encontrado no mundo todo. Como eu já tinha mencionado antes, Tylor buscava a aplicação de leis gerais. As diversas formas de animismo podem ser descritas como aqueles “traços selvagens” impregnados nas “civilizações civilizadas”. Rosa, conclui que “é portanto uma ideia preconcebida acreditar que a antropologia evolucionista britânica acentuava as fronteiras entre o mundo selvagem e o mundo civilizado” (ROSA, 2010, p. 299). Deste ponto em diante, gostaria de chamar a atenção para a aplicação do conceito de “sobrevivência” e “renascimento”. São conceitos que foram deslocados de sua época, são ideias que viajaram e alcançaram terras além-mar. Neste sentido, seria difícil mostrar como Tylor elaborou este conceito sem mostrar a discussão por trás dele. SURVIVALS Para Tylor, como foi mostrado, é possível reconhecer nas sociedades ditas “civilizadas” fenômenos ligados ao passado. Tais fenômenos seriam nossa ligação com as sociedades ditas “primitivas”. Neste sentido, ele elaborou os conceitos de “sobrevivência” e “renascimento” para indicar tais fenômenos. No campo religioso foi onde seus resultados foram mais profícuos. Segundo Tylor, é na doutrina e nos ritos da dita “civilização civilizada” “que demonstram a sobrevivência do velho” (TYLOR, 1931, p. 657) no meio do novo. Para Eriksen e Nielsen (2010), a diferença entre Morgan e Tylor, seria que o primeiro estava interessado nas terminologias de parentesco, enquanto Tylor desenvolveu a teoria dos “sobreviventes culturais”. Por outro lado, a partir da leitura de Rosa (2010), percebemos outra diferença fundamental, para Tylor, a divisão escalonária que dividiria a humanidade não seria rígida. Neste ponto, é justamente a teoria dos “sobreviventes culturais” que me interessa. Segundo o próprio Tylor, esta teoria: Trata-se de processos, costumes, opiniões, e assim por diante, que, por forçado hábito, continuaram a existir num novo estado de sociedade diferente daquele no qual tiveram sua origem, e então permanecem como provas e exemplos de uma condição mais antiga de cultura que evoluiu em uma mais recente (TYLOR, 2009, p. 87).

direitos territoriais de povos indígenas e comunidades quilombolas. Sobre estas últimas se convencionou designar de “remanescente das comunidades dos quilombos”. Pelo menos é o que diz o Art. 68 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias): “Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado imitir- lhes os títulos respectivos” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – C.F./88). Na leitura do texto A ciência da cultura, de Tylor, o que chama a atenção é justamente essa aproximação possível. Autores como Almeida (2002), têm analisado criticamente a propositura do legislador presente na C.F./88, quando ao texto final do Art. 68. Para Almeida, a noção de “remanescente” trata-se de uma “opinião” frigorificada, que imaginava ainda pelo longínquo Conselho Ultramarino de 1740, portadores atuais da “primitividade”. Para os legisladores, eles estariam beneficiando com o Art. 68, o “elo perdido”. “Resto”, “resíduo”, “remanescente”, são exemplos de opiniões e ideias próxima da noção de “sobreviventes culturais”. Em uma das discussões sobre a garantia da terra a essas “comunidades”, uma proposta era que se reconhecesse os “sítios detentores de reminiscências históricas”. Ideologicamente, a ideia de “remanescente de quilombo” era restritiva. Pois pensavam os legisladores se tratar de uma “meia dúzia” de situações empiricamente observáveis. O tipo ideal era aquele que no passado foi o Quilombo de Palmares. A ideia de “remanescente” foi forjada em cima dos aspectos culturais, sociais, religiosos, militares e políticos de “sociedades africanas”. No sentido evolucionista do termo. Ou seja, a descrição das “sociedades africanas” como primitivas e atrasadas praticantes de bruxaria, que com frequência andam nus e praticam a caça, a pesca e a agricultura de subsistência. O reconhecimento enquanto “remanescente das comunidades de quilombo” implicou em apresentar à “sociedade brasileira” essa realidade exótica e estranha e de certa forma, atemporal. Para o legislador, os “remanescentes” tinham atravessado a “história do Brasil”, com seus costumes e práticas sociais e religiosas praticamente intocadas condenadas ao desaparecimento. Segundo Silva: É possível que o senso comum imperante entre os congressistas tenha falado mais alto, segundo o qual comunidades negras remanescentes de quilombo remontam ao passado, representam resquícios insignificantes de uma história que deve ser esquecida, são tidas como populações fadadas ao

desaparecimento, ou mesmo inexistentes, talvez minúsculas ou em pouca monta (SILVA, 1997, p. 12-13). Na redemocratização do Brasil, pesquisas feitas sobre a estrutura fundiária brasileira destacavam as condições reais de existência de “comunidades negras rurais”. Examinando as implicações deste processo, segundo Almeida (2002), tem-se que tais agentes sociais foram formalmente considerados num plano de exceções, ou seja, como “situações especiais” na estrutura fundiária. Assim eram classificados pelas agências fundiárias oficiais. Segundo o autor, eram classificadas pelas agências oficiais segundo atributos de primitividade ou exotismo, sendo consideradas absolutamente “marginais”. Implicavam, assim, segundo a ideologia nacional naquele momento, num atraso na estrutura fundiária. Cem anos ou nada! Assim pode ser resumida a compreensão dos legisladores que aprovaram o ART. 68 do ADCT. Segundo alguns textos e emendas constitucionais discutidas, era previsto, que para se ter o direito a terra os “remanescentes” teriam que estar habitando a mesma terra desde 1888 a 1988. A atemporalidade a ocupação territorial pautou o debate quanto a “sobrevivente cultural” referido aos “remanescentes de quilombo”. Se analisarmos nos termos propostos pela teoria evolucionista de Tylor, a alegada atemporalidade de ocupação pelo legislador, seria a prova inquestionável de sua origem do quilombo, que persistiu dentro de uma situação mais nova. “A antiga cultura que evoluiu em uma mais recente” (TYLOR, 2009, p. 87). Da forma como é lida nos debates da constituinte, as comunidades “remanescentes de quilombo” foram interpretadas como uma “unidade social antiga” que persistia dentro dessa “nova civilização brasileira”. E enquanto estrutura fundiária estava condenada a desaparecer, pois estava ligada ao atraso no campo. Formulações teóricas ligavam as práticas da agricultura de subsistência ao “primitivo”, pois alegavam serem formas inadequadas de trabalhar a terra. Tais formulações podem ser encontradas em Wagley (1977) sobre as relações sociais em Gurupá. O referido autor aponta que a solução para o desenvolvimento amazônico seria a utilização das modernas técnicas agrícolas. Posterior a C.F./88, o debate voltou-se para a regulamentação do ART. 68. Pois até o ano de 1994, nenhuma comunidade “remanescente de quilombo” havia sido titulada.

E não mais daquela definição jurídico-formal que criminalizava o quilombo à qual a historiografia ficou presa. Voltando para a questão da aplicabilidade do Art. 68 e do reconhecimento do direito das comunidades “remanescentes de quilombo”. Em maio de 1996, em Bom Jesus da Lapa/Bahia, durante reunião de avaliação do I Encontro Nacional de Quilombos, foi fundada a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas-CONAQ que passou a articular nacionalmente as denominadas “comunidades negras rurais”, tal denominação segundo a interpretação do movimento quilombola, ampliaria as situações concretas que seriam beneficiadas como sujeitos do direito. Segundo levantamentos realizados por antropólogos, historiadores e pela própria CONAQ, as situações designadas como comunidades “quilombolas” ou “comunidades negras rurais” seriam em torno de três mil. O que assustou parlamentares e ruralistas que operavam ainda com a ideia evolucionista de que se tratavam de poucos casos, “sobreviventes” de um passado imemorial, fadados ao desaparecimento. Tal ruptura teve, no entanto, a participação expressiva de antropólogos. A Associação Brasileira de Antropologia foi chamada formalmente para o debate, constituindo o Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, em 1994. De acordo com tal documento: Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere a resíduo ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma que nem sempre foram constituídos a partir de uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados (ABA, 1994). Tal debate dura até o ano de 2003, quando se publica no Diário Oficial da União o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003. A elaboração desse Decreto contou com a intensa participação de antropólogos e dos próprios agentes sociais interessados. Gostaria de mostrar as diferenças teóricas presentes na época. É oportuno colocar, que a defesa do pensamento evolucionista do qual podemos deslocar a noção de “sobrevivência” de Tylor, era partilhada também por antropólogos, sociólogos e historiadores. Do outro lado, podemos perceber aqueles que propunham a ressemantização do termo “remanescente de quilombo” rompendo com as elucubrações evolucionistas utilizadas para frigorificar pessoas e processos culturais. Não pretendi neste momento colocar as ideias em oposição, mas sim, expor o debate.

O que me diz se algo é um fenômeno social ou uma ideia de sobrevivência cultural é o analista, é o antropólogo. O método pressuponha arbitrariamente, isolar o fato. A própria ideia de “sobrevivência” não está na mente das pessoas tal como Tylor a formulou e nem mesmo que foi aplicada pelos seus defensores no debate da constituinte. Ela é, contudo, um debate teórico sem nenhuma ingenuidade. Finalmente, nos debates em torno da noção de “remanescente de quilombo”, era, sobretudo, uma ideia. A partir da qual se estava legislando. É, contudo, este meu argumento. A partir de ideias evolucionistas, mais especificamente, a noção de “sobreviventes culturais” de Tylor, se reconheceu e se legislou sobre realidades concretas que nada ou quase nada tem haver com a ideia de “sobrevivência”. Abrange uma pluralidade de casos e realidades dinâmicas que muitas vezes, nada tem haver com o passado de escravo fugido, como o caso das realidades empiricamente observáveis que reivindicam a identidade enquanto quilombolas por terem colaborado com a captura de escravos fugidos. Ou ainda aquelas que se negaram a fugir. Ou aquelas que se constituíram a muito depois da abolição e elaboraram um “novo” modo de viver que nada tem haver com aquele do passado. Pretendi, contudo, mostrar quais foram as “ideias matrizes” como coloca Pinto, (2006, p. 13-14), em torno da noção de “remanescentes”. Assim, a visão restritiva de “sobrevivências culturais” empregadas as realidades empiricamente observáveis autodefinidas como “remanescentes das comunidades de quilombo”, não produziu o efeito esperado pelos legisladores e grupos sociais que defendiam a aplicação do “marco temporal”. A organização de movimentos sociais e a ressignificação de termos como “quilombo”, “remanescente de quilombos”, organizam as pautas de reivindicação baseadas nas especificidades dos processos sociais aos quais estiveram/ estão envolvidos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as Novas Etnias. In: Quilombos: Identidade Étnica e Territorialidade. Elaine Cantarino O´dwyer (org.). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p.43-81. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais, 1994.