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Neste artigo, freud discute a noção de consciência em seu projeto de psicologia e suas implicações para a metapsicologia freudiana. Ele propõe que os processos psíquicos inconscientes são processos nervosos e estabelece as condições materiais para a consciência. Freud introduz um terceiro sistema de neurônios, o sistema ω, para explicar a produção das sensações conscientes.
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
Richard Theisen SIMANKE^1 Fátima Siqueira CAROPRESO^2
■ (^) RESUMO: No Projeto de uma psicologia , de 1895, está exposta uma ampla reflexão sobre o conceito de consciência, a qual, embora apresente algumas dificuldades, permite esclarecer como a relação entre a consciência, a repre- sentação e a linguagem era pensada por Freud nesse momento. O objetivo deste artigo é circunscrever o sentido da noção de consciência presente no Projeto de uma psicologia e discutir algumas de suas implicações para o modo como a consciência será abordada nos desenvolvimentos posteriores da metapsicologia freudiana.
■ (^) PALAVRAS-CHAVE: Freud; metapsicologia; representação; consciência; lin- guagem.
No Projeto de uma psicologia – redigido por Freud em 1895, mas pu- blicado apenas em 1950, onze anos após sua morte – vários conceitos freudianos são pela primeira vez esboçados, alguns dos quais não vol- tam a receber tratamento tão sistemático na obra posterior de Freud. Este é o caso do conceito de consciência, que é alvo de uma ampla refle- xão no Projeto... , na verdade, a mais extensa de toda a obra freudiana. O
1 Professor do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências e do PPG em Filosofia da Uni- versidade Federal de São Carlos (UFSCar). Rodovia Washigton Luís, km 235, São Carlos, SP, CEP: 13565-905. E-mail: drts@power.ufscar.br. 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Rodovia Washigton Luís, km 235, São Carlos, SP, CEP: 13565-905. E-mail: fatimacaro- preso@uol.com.br.
objetivo deste artigo é circunscrever o sentido da noção de consciência formulada por Freud em 1895 e comentar algumas das suas implicações para a avaliação de sua abordagem posterior no interior do projeto me- tapsicológico, tal como se encontra formulado em Freud. Tendo isso em vista, as considerações que se seguem constam de: 1) uma exposição ge- ral, ainda que esquemática, das principais noções que compõem a teoria psicológica apresentada por Freud no Projeto... ; 2) uma exposição e dis- cussão da concepção de consciência aí esboçada; 3) alguns comentários, mais exploratórios do que conclusivos, sobre certos desdobramentos dessa concepção no âmbito da reflexão metapsicológica posterior.
É necessário, então, iniciar com uma breve exposição geral das te- ses do Projeto , tendo em vista apenas os objetivos do presente trabalho. A proposta inicial do Projeto é fornecer uma psicologia científico-natu- ralista, segundo a qual os processos psíquicos normais e patológicos se- riam explicados a partir de dois postulados principais: a “quantida- de”(Q) e o “neurônio”(N). Ele desenvolve a idéia de um “aparelho neuronal”, cujo funcionamento e estrutura seriam determinados, ini- cialmente, pelo “princípio de inércia”, isto é, por uma tendência a des- carregar toda a quantidade que alcançasse o aparelho. O objetivo mani- festo é explicar todos os processos psíquicos mecanicamente, mas, em algumas ocasiões, na impossibilidade de cumprir essa meta, Freud re- corre a justificativas biológicas. O primeiro pilar da teoria, a noção de “quantidade”, é definida como algo que diferencia a atividade do repouso e que está submetido à lei geral do movimento. A natureza dessa quantidade não é especifi- cada. Há afirmações, no Projeto ... e em outros textos da mesma época (Freud 1894, por exemplo) que permitem supor que Freud atribuísse uma natureza elétrica à quantidade; esta é a interpretação de Pribram e Gill (s./d.) que neste ponto discordam frontalmente de Strachey (1975). Mas, em outras passagens, Freud parece trabalhar com uma concepção mais hidráulica da quantidade, valendo-se de uma linguagem que está mais próxima, pelo menos metaforicamente, da mecânica dos fluidos, de modo que a questão permanece indecidida. O segundo postulado principal, o “neurônio”, é concebido como a unidade material do siste- ma nervoso. Os neurônios seriam, por hipótese, estruturalmente idênti-
na base material da consciência. Tais sistemas não se diferenciariam uns dos outros devido à estrutura dos neurônios que os compõem – uma vez que Freud trabalha com a hipótese de que todos os neurônios são estruturalmente idênticos –, mas sim devido ao modo distinto de ação da quantidade em cada um deles. Entre os neurônios haveria “barreiras de contato”, as quais ofereceriam uma certa resistência à passagem da excitação de um neurônio para outro, fazendo com que apenas as quan- tidades cuja intensidade fosse superior à da resistência dessas barrei- ras conseguissem passagem. Quando isto ocorresse, a barreira de con- tato seria “facilitada”, fazendo com que numa segunda ocupação dos neurônios correspondentes a resistência encontrada fosse menor. A fa- cilitação diferenciada das barreiras de contato faria com que se consti- tuíssem caminhos preferenciais no interior do aparelho, os quais possi- bilitariam a memória. Mas apenas no sistema ψ as barreiras de contato seriam capazes de oferecer resistência à passagem da excitação; no sis- tema φ, as quantidades recebidas possuiriam intensidade superior à da resistência das barreiras de contato e, por isso, nesse sistema, tais bar- reiras estariam totalmente facilitadas, não exercendo, assim, nenhuma função; o sistema φ seria, por isso, completamente permeável à quanti- dade. Já em ψ – que receberia quantidade exógena via φ –, as ocupa- ções seriam menos intensas, devido ao fato de que a estrutura ramifi- cada de φ faria com que a corrente excitatória se distribuísse por diversos caminhos, passando a ψ em vários pontos. Assim, em vez de ser ocupado muito intensamente em um ponto, o sistema de memória seria ocupado em vários pontos, com uma intensidade menor.^3 A quan- tidade que alcançasse ψ possuiria intensidade inferior à da resistência das barreiras de contato e, por isso, para conseguir passagem, uma mesma barreira teria que ser ocupada a partir de dois ou mais neurôni- os simultaneamente, o que faria com que se constituíssem ali caminhos diferenciados. Um grupo de neurônios ocupados cujas barreiras de con- tato estivessem facilitadas entre si constituiria uma representação. Na ausência da ocupação, a representação continuaria existindo potencial- mente, dado que as facilitações assegurariam a possibilidade de recor- rência do mesmo processo, isto é, assegurariam a possibilidade do res-
3 Aqui teríamos uma primeira explicação, mecânica e topográfica, da relação inversa entre inten- sidade e complexidade que parece se impor na concepção freudiana do aparelho neuronal ou psí- quico. Mais adiante, como se verá, Freud insistirá em que a consciência depende, entre outras coisas, da diminuição da intensidade dos processos no sistema ψ. Pode-se, talvez, inferir daí que ela dependa igualmente de um aumento concomitante da complexidade da organização desses processos.
surgimento da representação. O sistema ψ, no entanto, seria ocupado também a partir do interior do organismo, pois estaria diretamente liga- do a este. O modo de ação da quantidade endógena seria diferente do da exógena e, por esse motivo, Freud é levado a dividir o sistema ψ em dois: “ψ do manto”, que receberia quantidade exógena via φ e “ψ do nú- cleo” que receberia quantidade endógena diretamente do interior do or- ganismo. As quantidades endógenas seriam muito pouco intensas e, para conseguir facilitar as barreiras de contato que separam ψ do manto do interior do organismo, elas teriam que se somar progressivamente. Quando conseguissem ingressar em ψ do núcleo, elas adquiriam ex- pressão psíquica, ou seja, dariam origem a representações.^4 O conjunto de ocupações de ψ do núcleo constituiria a base do “eu”. Este seria o portador do armazenamento de quantidade necessá- rio para a satisfação das necessidades vitais, quantidade esta que seria por ele utilizada para direcionar os processos associativos, de modo que estes alcançassem as condições necessárias para tal satisfação e impe- dissem a produção de desprazer. O eu atuaria através de “ocupações la- terais”, isto é, ocupando os neurônios adjacentes aos ocupados a partir de φ e deslocando, assim, o curso da corrente excitatória. Ele teria aces- so a todas as facilitações de ψ do manto e, por isso, seria composto por uma parte constante – as ocupações do núcleo – e uma parte variável – as ocupações ocasionais do manto, que teriam a finalidade de ali alterar o curso associativo. Segundo Freud, a quantidade do eu estaria em “es- tado ligado”, ou seja, na passagem da excitação de um neurônio para outro, parte dela seria retida no primeiro, de modo que os neurônios permaneceriam permanentemente ocupados. A excitação em estado li- gado, no entanto, só passaria a existir após a inibição do modo de asso- ciação primário, o qual se caracterizaria pelo livre fluxo da quantidad pelos neurônios, sem a retenção de nenhuma parte da excitação. Essa inibição seria condicionada por uma regra biológica – a “defesa primá-
4 Pode haver uma certa controvérsia quanto ao lugar onde se dá a expressão psíquica dos estímu- los somáticos. É claro que a plena expressão psíquica das quantidades endógenas só se dá quan- do os processos do núcleo se associam com as representações de objeto e, depois, com as repre- sentações de palavra que se constituem em ψ do manto. Contudo, entendemos que a primeira e mais originária expressão psíquica do somático se dá já com a ocupação do núcleo, uma vez que ψ é o sistema de representação do aparelho neuronal e ψ do núcleo é, evidentemente, uma parte deste sistema. De certo modo, os processos do núcleo equiparam-se, a nosso ver, ao que Freud depois denominou de representante de pulsão ( Triebrepräsentanz ) – ou, mais precisamente, ao componente representacional do representante de pulsão (o outro componente é o afeto) – tal como estas noções são desenvolvidas nos artigos metapsicológicos.
ção, a ocupação da representação de objeto devido à animação de dese- jo seria muito intensa, de modo que seriam despertados “signos de qua- lidade”,^7 como se se tratasse de uma percepção externa, ou seja, ocorreria uma alucinação. Em conseqüência dessa alucinação, a ação reflexa – no caso, a sucção – seria executada e, nessas condições, pro- vocaria uma frustração. O recém-nascido se encontraria, assim, num es- tado de “desamparo”. Desta forma, para a sobrevivência do indivíduo, seria necessário haver uma alteração nessa tendência primária do pro- cesso associativo de seguir unicamente o caminho mais bem facilitado, de forma que a representação de desejo não fosse mais tão intensamen- te ocupada e, assim, permitisse ao eu diferenciar entre uma rememora- ção e uma percepção e, com isto, evitasse a ocupação das representa- ções de movimento na ausência do objeto na realidade. Em suma, para a sobrevivência do indivíduo seria necessária a substituição do modo primário de funcionamento do aparelho – do “processo primário”, que se caracterizaria pelo fluxo livre da quantidade através dos neurônios – por um modo secundário de funcionamento – pelo “processo secundário”, que se caracterizaria pela retenção de uma parte da quantidade nos neurônios. Freud explica a inibição do processo primário a partir do que ele chama de “primeira regra biológica”, a “defesa primária”, que con- sistiria numa tendência a não ocupar as representações que geram des- prazer. O desprazer decorrente da ocupação de certas representações condicionaria o eu a não mais ocupá-las. Como no ressurgimento da fo- me, após a vivência primária de satisfação, a ocupação muito intensa da representação desejada e das imagens motoras a ela associadas provo- caria uma intensificação do desprazer, a defesa primária faria com que o eu, primeiro, não mais ocupasse as representações de movimento constituídas na vivência de satisfação e, depois, faria com que ele não mais ocupasse a representação de desejo tão intensamente. Assim, os signos de qualidade não seriam mais fornecidos na ausência do objeto na realidade e, então, quando surgissem, eles atuariam como um sinal de que o objeto desejado está presente e de que os movimentos neces- sários para a obtenção da satisfação podem ser executados; o desampa- ro, com isso, seria superado. Desse modo, o condicionamento do eu pela primeira regra biológica conduziria à inibição do processo primário, marcando, assim, a passagem do processo primário para o secundário,
7 Os signos de qualidade é que possibilitariam a consciência de uma representação. Voltaremos a essa questão adiante, na discussão da concepção de consciência presente no Projeto
a qual coincidiria com a substituição da tendência à inércia pela ten- dência à constância. Esta inibição faria com que uma certa quantidade fosse retida no núcleo – isto é, a excitação livre seria ligada – asseguran- do, desta forma, a manutenção da reserva necessária para que o eu pu- desse influenciar os processos associativos, de modo a evitar a produ- ção de desprazer e a propiciar a satisfação das necessidades vitais. Haveria, como foi dito, um terceiro sistema de neurônios – o “siste- ma ω – que estaria relacionado com a consciência. Mas, antes de anali- sarmos as características desse sistema, é necessário ainda esclarecer como a relação da consciência com os demais processos psíquicos é pensada no Projeto.
No Projeto (1950), Freud estende a noção de psíquico em relação à de consciência. No texto “Sobre a concepção das afasias” (1891), ele ha- via mantido a identificação do psíquico ao consciente e nos textos so- bre as neuroses do período entre 1891 e 1895, embora reconheça ser ne- cessário atribuir os sintomas neuróticos a processos inconscientes, ele não chega a afirmar cabalmente que tais processos são de natureza psí- quica. No Projeto , pela primeira vez, a possibilidade de um psíquico in- consciente é claramente aceita:
Temos tratado os processos psíquicos como algo que poderia carecer des- te conhecimento através da consciência, que existe independente de uma tal consciência (...) Se não nos deixarmos desconcertar por isso, segue-se dessa pressuposição que a consciência não proporciona conhecimento nem comple- to, nem confiável dos processos neuronais; estes últimos têm que ser conside- rados, antes de tudo e em toda sua extensão, como inconscientes e têm que ser inferidos como as outras coisas naturais. (Freud, 1895/1950, p. 400)
A consciência é concebida como algo paralelo a apenas uma parte dos processos psíquicos inconscientes. Os processos que ocorressem no sistema ω teriam paralelos conscientes, ao contrário dos demais pro- cessos. Ao comentar a relação da sua teoria da consciência com as de- mais, Freud afirma:
Segundo uma teoria mecanicista avançada, a consciência é um mero acessório dos processos fisiológico-psíquicos, cuja supressão não alteraria
Enquanto a psicologia da consciência nunca saiu daquelas séries lacuna- res, que evidentemente dependem de outra coisa, a concepção segundo a qual o psíquico é em si inconsciente permite configurar a psicologia como uma ciência natural entre as outras. (Freud, 1938, p.156)
Apesar de considerar a consciência como algo paralelo a uma parte dos processos neuronais, Freud tenta, no Projeto , estabelecer as condi- ções materiais da consciência, ou seja, as características dos processos físicos concomitantes a ela, que tornariam inteligível sua possibilidade. Para tanto, ele introduz um terceiro sistema de neurônios – o sistema ω
Freud argumenta que é necessário introduzir um terceiro sistema de neurônios para explicar a produção das sensações ou das qualidades conscientes, porque tais sensações não poderiam se originar em ψ, uma vez que este sistema é responsável pela rememoração, e esta é despro- vida de qualidade; elas também não poderiam se originar em φ, porque se sabe que a consciência está relacionada com os níveis mais elevados do sistema nervoso, e não poderia originar-se no mundo externo, pois neste haveria apenas massas em movimento. Então, é necessário pos- tular um terceiro grupo de neurônios – os quais constituiriam o sistema ω –, cujos estados de excitação seriam responsáveis pela consciência, conclui Freud. Este sistema estaria conectado apenas a ψ; portanto, a ordem dos sistemas seria: φψω. Uma vez que as quantidades em ψ seriam pouco intensas – de modo que apenas a ocupação simultânea de mais de um neurônio fosse capaz de facilitar as barreiras de contato, ou seja, de modo que tal sis- tema permanecesse parcialmente impermeável – e que ω poderia ser ocupado apenas a partir de ψ, a permeabilidade que caracteriza a cons- ciência, isto é, o fato de que o sistema por ela responsável deve, como a percepção, apresentar sempre as mesmas capacidades receptivas, o que tem como condição a ausência de traços permanentes, essa per- meabilidade, enfim, deveria resultar de algo diverso da intensidade da quantidade, pois esta seria ainda menos intensa do que aquela que al- cança ψ e, deste modo, incapaz de facilitar completamente as barreiras de contato. Isso levou Freud a introduzir um novo elemento na teoria:
Vejo apenas uma saída: revisar a suposição fundamental sobre o decurso de Q’η. Até agora considerei este último apenas como transferência de Q’η de um neurônio para outro. Mas ele deve ter ainda um caráter de natureza tempo- ral, pois também aos outros movimentos de massa do mundo externo a mecâ- nica dos físicos atribuiu esta característica temporal. Resumidamente, eu a de- nomino o período. Assim, suporei que toda resistência das barreiras de contato vale apenas para a transferência de Q, mas que o período do movimento neuro- nal se propaga sem inibição em todas as direções, como um processo de indu- ção por assim dizer. (Freud, 1895/1950, p. 402)
Então, os neurônios ω seriam permeáveis ao período, não à quanti- dade, e a isto se deveria a permeabilidade que caracteriza a consciên- cia. Mas apenas o surgimento das qualidades sensoriais dependeria do período; as sensações de prazer e desprazer – que junto com as qualida- des sensoriais formariam a classe das sensações conscientes – resulta- riam diretamente da ocupação de ω por quantidade. Segundo Freud, prazer e desprazer seriam conseqüências, respectivamente, da dimi- nuição e do aumento do nível de quantidade em ω. Haveria um limiar acima do qual a ocupação de ω produziria desprazer e um limiar abaixo do qual ela produziria prazer. Entre esses dois limiares, ω permaneceria sensível ao período:
(...) os neurônios ω, com uma certa [potência de] ocupação, apresentam um ní- vel ótimo para receber o período do movimento neuronal; com uma ocupação mais forte dão como resultado desprazer; com uma mais fraca, prazer, até que a capacidade de recepção desaparece com a falta de ocupação. (Freud, 1895/ 1950, p. 405)
O surgimento das qualidades sensoriais estaria, portanto, relaciona- do ao período. Essa hipótese adotada por Freud, no entanto, apresenta alguns problemas que requerem solução. Se a afecção dos neurônios pelo período consiste na base material da produção de qualidades sen- soriais, por que apenas em ω esta surgiria? Se o período é uma proprie- dade da quantidade e se esta antes de chegar a ω deve passar necessa- riamente por φ e por ψ, por que as sensações conscientes não se originam a partir da ocupação destes sistemas? Freud procura respon- der a essa questão dizendo que o período em ψ é monótono, por isso não haveria ali qualidades sensoriais, uma vez que estas não dependeriam apenas do período, mas das diferenças no período. Ele afirma que essas diferenças no período resultariam do fato dos órgãos sensoriais agirem como filtros, dando passagem apenas para estímulos com períodos es- pecíficos e que tal diferença seria transmitida dos órgãos sensoriais para
Em que consistiria a eliminação de ω? Na descarga de quantidades por meio de movimentos:
Se se apresenta a consciência por meio dos neurônios ω, isto tem várias conseqüências. Estes neurônios têm que ter uma descarga, por pequena que ela possa ser, e tem que existir um caminho para preencher os neurônios ω com Q’η no ínfimo montante necessário. A descarga vai, como todas, para o lado da motilidade, no que se deve assinalar que, na circulação motora, perde-se evi- dentemente todo caráter qualitativo, toda especificidade do período. (Freud, 1895/1950, p.404)
Então, se os signos de qualidade são notícias em ψ da eliminação da excitação ω, eles só poderiam ser representações de movimento e tais representações não se diferenciariam em nada das demais representa- ções de movimento que se constituem em ψ, pois, como Freud mesmo afirma, na via motora a qualidade desapareceria. Dessa forma, se a cons- ciência de uma representação perceptiva depende da ocupação pelo eu dos signos de qualidade a ela correspondentes e se tais signos são re- presentações de movimento, qual seria a função do sistema ω? Freud reconhece a problematicidade dessas idéias formuladas para explicar a base material da consciência e argumenta que isso não repre- senta um impedimento para a continuação da teoria:
Apenas através dessas suposições complicadas e pouco intuitivas foi-me possível, até agora, incluir os fenômenos da consciência na estrutura da psico- logia quantitativa. Não cabe, evidentemente, tentar uma explicação sobre como processos excitatórios nos neurônios ω trazem consigo consciência. Tra- ta-se apenas de fazer corresponder propriedades da consciência conhecidas por nós com processos de alteração paralela nos neurônios ω. Por outro lado, isso não vai mal no detalhe. (Freud, 1895/1950, p. 403)
A atividade consciente, embora restrita em relação à amplitude to- tal do psiquismo, exerceria um papel não desprezível na vida psíquica: “ a supressão da consciência não deixa inalterado o acontecimento psí- quico, mas inclui em si a supressão da contribuição de ω” , diz Freud (1895/1950, p. 404). Os signos de qualidade fornecidos pelo sistema ω é que tornariam possível tanto o acesso aos objetos necessários para a sa- tisfação das necessidades vitais como a fuga dos objetos que geram desprazer, ou seja, tais signos seriam indispensáveis para a sobrevivên- cia do sujeito. Até aqui comentamos apenas o modo como Freud concebe os pro- cessos neuronais relacionados à consciência perceptiva, mas haveria ainda uma segunda forma de consciência intermediada pela lingua- gem, que consideraremos a seguir.
Freud atribui a possibilidade de rememoração de uma representa- ção à associação desta a representações de palavras. Ele argumenta que, uma vez que a consciência depende do despertar de signos de qualidade e que estes últimos provêm de percepções, para que uma re- presentação ocupada pelo eu, e não a partir de φ, se tornasse conscien- te seria necessário que, de alguma forma, ela produzisse uma percep- ção. Ele, então, conclui que um dos componentes da “representação de palavra” – a imagem cinestésica – é que possibilitaria isto. Como os mo- vimentos produzem percepções, a ocupação da imagem cinestésica da palavra levaria à produção de um signo de qualidade e, assim, a “repre- sentação de objeto” a ela associada poderia tornar-se consciente. Freud retoma, no Projeto , os conceitos de “representação de pala- vra” e de “representação de objeto” que haviam sido propostos em “So- bre a concepção das afasias”, de 1891. A representação de palavra, de acordo com o que Freud propusera neste último texto, seria um comple- xo constituído por intrincado processo de associações, no qual estariam presentes quatro elementos: a imagem acústica, a imagem cinestésica da fala – ou glossocinestésica –, a imagem visual e a imagem cinestési- ca da escrita – ou quirocinestésica. A representação de objeto seria também um complexo associativo constituído por diversos tipos de imagens sensoriais. Ao falar sobre esse tipo de representação, Freud re- corre à idéia de Stuart Mill, segundo a qual a representação de um ob- jeto seria um complexo de impressões sensoriais, e a idéia de um objeto no mundo independente de nós seria uma crença resultante da “capa- cidade de expectativa” da mente humana, ou seja, a capacidade de, após ter sensações reais, concebermos que as mesmas sensações pos- sam voltar a ser experienciadas, por nós e por outros, diante de deter- minadas condições e que outras sensações distintas possam ser acres- centadas às demais. Freud propõe que a ligação entre a representação de palavra e a de objeto se daria sempre entre a imagem acústica da pri- meira e, normalmente, a imagem visual da segunda, e propõe também que, ao menos no caso dos substantivos, é a representação de objeto que confere significado à representação de palavra. No Projeto , ao se questionar sobre a possibilidade de uma represen- tação ocupada pelo eu se tornar consciente, Freud retoma esses concei- tos. Ele formula a hipótese de que, quando a ocupação de uma repre- sentação de objeto seguisse para a imagem acústica da palavra, e desta, para sua imagem cinestésica, seria produzida uma percepção, a
seria o estado originário das representações. Com a constituição dessas associações, parte das representações poderia tornar-se consciente, mas provavelmente algumas delas não seriam associadas a palavras, de modo que haveria um grupo de representações que permaneceria “insuscetível de consciência”, utilizando o termo de Breuer (Freud & Breuer, 1895). Outras representações poderiam também permanecer nesse estado, mesmo que chegassem a ser associadas a representações de palavras, devido ao bloqueio ou à interrupção dessa associação. Portanto, haveria três tipos de representações inconscientes: aque- las associadas a representações de palavra, mas cujos signos de quali- dade não fossem ocupados pelo eu ou não fossem despertados; aquelas que nunca foram associadas a representações de palavra; e aquelas cuja associação com a palavra estivesse impedida. No primeiro caso, embora inconscientes, as representações seriam “suscetíveis de consciência”. No segundo e no terceiro casos, elas seriam “insuscetíveis de consciên- cia”. O último seria o caso das representações reprimidas responsáveis pela produção das neuroses. A representação inconsciente que estaria na origem dos sintomas neuróticos seria uma representação de objeto cuja associação com a representação de palavra estivesse bloqueada, para impedir sua rememoração e a conseqüente produção de desprazer dela resultante. Como disse Freud em O Inconsciente : “ A representação não apreendida em palavras(...) fica então para trás, no interior do in- consciente, como algo reprimido ” (1915, p.160). Dessa forma, já no Pro- jeto... está presente a hipótese de que o inconsciente não coincide com o reprimido.^9 As representações reprimidas, isto é, as que tivessem sua associação com a representação de palavra impedida, constituiriam apenas uma parte da totalidade das representações insuscetíveis de consciência, pois aquelas que não chegassem a ser associadas a repre- sentações de palavra também não poderiam tornar-se conscientes. Ha- veria, assim, um grupo de representações que permaneceria insuscetí- vel de consciência, devido ao fato de nunca ter sido associado a
9 No Projeto estão presentes, pelo menos em esboço, uma teoria da dimensão pulsional do psíquico (a representação da estimulação endógena em ψ do núcleo) e uma psicologia dos processos do eu, onde ambos aparecem como originariamente inconscientes, de modo que o inconsciente está longe de coincidir com o reprimido. A tópica exposta em “A interpretação dos sonhos” (1900) ca- racteriza-se por uma ampla restrição da problemática abarcada pelo Projeto , onde, entre outras coisas, a pulsão e o eu deixam de encontrar uma representação explícita no modelo do aparelho psíquico ali proposto. Desde esse ponto de vista, a tópica apresentada em “O eu e o isso” (1923) distingue-se pela retomada e pela reintegração na teoria do aparelho psíquico de pelo menos uma parte das questões postas entre parênteses após o Projeto – a instância pulsional (o isso), o eu e seu desdobramento narcísico (o ideal do eu, que originaria depois o supereu).
representações de palavra, e um outro grupo cujo acesso à palavra exis- tiu um dia, mas encontra-se atualmente impedido. Em suma, segundo a teoria do Projeto , o campo da consciência se- ria restrito em relação ao da memória, e apenas uma parte das represen- tações – aquelas que despertassem signos de qualidade e que tivessem esses signos ocupados pelo eu – se tornariam conscientes. A consciên- cia seria, então, algo que poderia ou não se acrescentar a uma parte das representações. Antes da constituição das associações lingüísticas não haveria possibilidade de rememoração, a não ser de representações de movimento; portanto, até então só haveria consciência imediata, ou se- ja, resultante diretamente das propriedades da percepção. A constitui- ção das representações de palavra traria consigo a possibilidade de uma segunda forma de consciência – uma consciência mediata – isto é, intermediada pelos signos lingüísticos.^10 Como uma parte das repre- sentações de objeto possivelmente não chegaria a ser associada a re- presentações de palavras, poderia haver representações que permane- cessem sempre “insuscetíveis de consciência”. Haveria também a possibilidade de um outro grupo de representações permanecer nesse estado, não por não ter sido associado a representações de palavras, mas por ter seu vínculo com a palavra bloqueado – este seria o caso das representações reprimidas. No Projeto , portanto, o campo das represen- tações insuscetíveis de consciência não coincide com o reprimido. Esse vínculo estabelecido por Freud entre a consciência e a palavra é retomado nos artigos metapsicológicos de 1915 praticamente no mes- mo sentido em que foi proposto em 1895. Embora a tentativa de Freud de explicar as características dos processos materiais correlativos à consciência não tenha obtido pleno êxito, a partir do Projeto é possível compreender como a relação entre a consciência, a representação e a linguagem é pensada por Freud e como, correlativamente, a noção de representação inconsciente ganha espaço e contornos mais definidos em sua teoria.
Quais as questões que se apresentam sobre o sentido da concepção freudiana da consciência tal como se depreende da apresentação de
10 Na carta 52, Freud chama essa consciência intermediada pela palavra de “consciência secun- dária”.
Em suma, a tese de que o sistema dos neurônios ω constitua a sede dos processos conscientes no âmbito do aparelho neuronal parece obstacu- lizar a formulação de uma concepção estritamente funcional da cons- ciência que Freud nitidamente persegue em determinados momentos. De fato, uma concepção desse tipo se firma – a partir de “A interpreta- ção dos sonhos”, por exemplo – à medida que a hipótese do sistema ω se desvanece na teoria. Já na Carta 39 , enviada para Fliess pouco de- pois da redação do Projeto (1.1.1896), o sistema ω aparece como um se- tor de ψ, justamente aquele setor onde a intensidade dos processos ex- citatórios torna-se menos intensa:
Os neurônios ω são aqueles neurônios ψ suscetíveis de uma ocupação quantitativa muito escassa. A coincidência destas quantidades mínimas com a qualidade fielmente transferida a elas desde o órgão terminal é, de novo, a con- dição para a gênese da consciência. (Freud,1896, p. 437, grifos nossos)^13
A idéia de um sistema próprio para os processos conscientes rea- parecerá depois, de forma modificada, como o “sistema percepção- consciência” da tópica psíquica freudiana, mas então a ausência da re- ferência neuronal, pelo menos de forma explícita, permitirá a Freud um considerável grau de omissão quanto à sua estrutura e sua organização, contribuindo para encobrir as dificuldades aqui apontadas. Por outro lado, a distinção freudiana entre uma consciência ime- diata da percepção e uma consciência do pensamento mediada pela linguagem pode prestar-se a alguns mal-entendidos. Quando Freud afirma que, ao contrário do pensamento, a percepção traz consigo a qualidade, tendo portanto um acesso imediato à consciência, trata-se somente de ressaltar que, nesse caso, não é necessária a intervenção de nenhum fator externo à percepção para que ela possa fazer-se conscien- te, enquanto o pensamento, que inicialmente transita apenas entre re- presentações de objeto e imagens de movimento, requer a intervenção da linguagem para tanto. Mas a percepção não é, ela própria, um pro- cesso imediato, no sentido de que aquilo que é apreendido pela cons-
13 Pribram e Gill (s./d., p. 81) consideram que, ainda no Projeto , ω é considerado como uma parte de ψ: “nossa atenção se concentra primeira numa divisão de y que se torna o terceiro tipo de sistema neural descrito no Projeto. A razão imediata para o parcelamento de ψ é a necessidade de um substrato que possa cuidar da qualidade (...)”. Não nos parece, contudo, haver subsídios no texto do Projeto para sustentar essa divisão, a não ser que ψ e ω têm que compartilhar o espaço anatô- mico do córtex cerebral, que é o que os autores parecem ter em mente.
ciência seja um efeito direto ou exclusivo das propriedades do objeto externo, de modo que seja uma espécie de cópia do mesmo que se re- produz na experiência perceptiva. De fato, toda a reflexão freudiana so- bre essas questões, desde seu passo inaugural em Sobre a concepção das afasias , vai na direção contrária dessa idéia, tendo pensado a cons- tituição das representações como resultado de uma série de reorganiza- ções dos processos neurais, que vai da recepção do estímulo sensorial num extremo ao surgimento de um fenômeno psíquico consciente no outro (a formulação do conceito de um inconsciente psíquico no Proje- to ... apenas atribuiu uma natureza mental a algumas etapas intermediá- rias deste processo). Assim, nesse caso,^14 a consciência seria consciên- cia de uma representação em si inconsciente e, quando se trata da percepção, a qualidade que torna essa consciência possível é inerente ao processo e, portanto, pode ser dita “imediata”, mas a formação da re- presentação não é, ela mesma, imediata, no sentido de que não resulta diretamente da impressão externa. Essa perspectiva é reforçada quando, após o Projeto ..., Freud em- preende o desdobramento do sistema ψ numa série de subsistemas de- finidos por diferentes princípios de organização, o que irá culminar no modelo espacialmente orientado de A interpretação dos sonhos. A con- cepção jacksoniana de uma atividade neural estruturada numa série de sistemas e modos de organização hierarquicamente superpostos, que vai do mais arcaico, simples e rígido ao mais evoluído, complexo e fle- xível, é transposta por Freud para a própria organização interna da ati- vidade cortical, ou seja, para aquilo que, do ponto de vista psicológico, pode ser descrito como representação. A partir daí, o processo psíquico deixa definitivamente de ser o concomitante do último elo da cadeia dos processos neurais e passa a ser concebido como, digamos, todo o último andar da estrutura desses processos, divisível, por sua vez, numa seqüência de sistemas que descrevem as formas de organização do material representacional constituídas ao longo do desenvolvimento do indivíduo, progressivamente mais complexas, mais evoluídas (no sentido ontogenético),^15 até que, no extremo dessa arquitetura neurop- sicológica, tornem-se possíveis o pensamento e a percepção conscien-
14 O outro caso seria a consciência das sensações de prazer e desprazer e, mais genericamente, a dos afetos e sentimentos. 15 Para Hughlings Jackson (1884), a estrutura dos centros nervosos estende-se da periferia sensório- motora ao córtex e reflete a evolução filogenética que torna possível processos que vão do puro reflexo, num extremo, ao pensamento consciente, o movimento voluntário e a linguagem pro- posicional, no outro. Jackson emprega a noção de representação ( representation ) – de que Freud