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O BESTIÁRIO FANTÁSTICO DE MURILO RUBIÃO, Resumos de Artes

Ao Deus criador que permitiu à criatura que escrevesse a mais fantástica das ... Esse encantamento de Rubião pelo sobrenatural, encontrado na Bíblia e nas ...

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

PorDoSol
PorDoSol 🇧🇷

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E ARTES - PPGLA
CURSO DE MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS E ARTES
O BESTIÁRIO FANTÁSTICO DE MURILO RUBIÃO
JUSSARA SURIADAKIS DE MELO
Manaus AM
2015
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E ARTES - PPGLA

CURSO DE MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS E ARTES

O BESTIÁRIO FANTÁSTICO DE MURILO RUBIÃO

JUSSARA SURIADAKIS DE MELO

Manaus – AM 2015

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E ARTES

CURSO DE MESTRADO PROFISSIONAL EM LETRAS E ARTES

JUSSARA SURIADAKIS DE MELO

O BESTIÁRIO FANTÁSTICO DE MURILO RUBIÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas, como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras e Artes, linha de pesquisa Representação e Interpretação Literária.

Orientador: Prof. Dr. Allison Marcos Leão da Silva

Manaus – AM 2015

O que há de mais admirável no fantástico é que o fantástico deixou de existir; agora só há a realidade. André Breton

AGRADECIMENTOS

Ao Deus criador que permitiu à criatura que escrevesse a mais fantástica das histórias: a sua própria.

À minha família pelo apoio e compreensão, suportando pacientemente, minha ausência durante esse período de dedicação exclusiva aos meus estudos.

Ao Prof. Dr. Allison Marcos Leão da Silva por suas aulas enriquecedoras, sua ajuda na escolha do tema desta dissertação e por sua orientação e paciência.

À Prof.ª Dr.ª Lileana Mourão Franco de Sá e ao Prof. Dr. Marcos Frederico Krüger Aleixo por me ajudarem com suas valiosas sugestões em meu exame de qualificação e por participarem, depois, da banca de defesa.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Letras e Artes da Universidade do Estado do Amazonas pelas preciosas lições que muito contribuíram para o meu crescimento acadêmico.

Aos colegas de curso pela amizade construída no convívio em sala de aula, quando compartilhamos conhecimentos, experiências e incentivamo-nos, mutuamente, nessa caminhada.

RESUMO

O tema do presente trabalho justifica-se pela necessidade de se pesquisar mais sobre o que foi produzido, no Brasil, no campo da literatura fantástica. Sendo assim, e pela importância de Murilo Rubião, considerado o precursor do gênero fantástico nos contos brasileiros, elegeu-se, como objetivo desta dissertação realizar um estudo do bestiário desse autor mineiro em quatro de seus contos: “O ex-mágico da taberna Minhota”, “Os dragões”, “Teleco, o coelhinho” e “Alfredo”. Este trabalho propõe-se a analisar a presença de bichos, bem como o significado das metamorfoses que ocorrem em alguns desses contos. Com a intenção de compreender melhor o tema abordado, fez-se um breve apanhado dos bestiários a partir de registros bíblicos até aos autores clássicos, medievais e contemporâneos. A tradição dos bestiários tem origem na Antiguidade Clássica com a criação do Physiologus , cujos textos traziam descrições de animais, plantas, pedras e seres imaginários. Na Idade Média, os bestiários eram copiados pelos monges e reescritos à medida que se descobriam novos elementos da fauna, flora e do reino mineral. Alguns autores contemporâneos, inspirados nesses bestiários medievais, também criaram suas coleções de bichos. Porém, a produção de Murilo Rubião, dentro do gênero fantástico, se destaca pela maneira como ele engendra suas histórias, mesclando o real com o imaginário.

PALAVRAS-CHAVE: Murilo Rubião; literatura fantástica; bestiários.

SUMÁRIO

  • INTRODUÇÃO
  • CAPÍTULO 1 – BESTIÁRIOS: DA ANTIGUIDADE A MURILO RUBIÃO
  • 1.1 Desde o princípio, a superioridade do homem sobre os animais
  • 1.2 Dos clássicos aos medievais
  • 1.3 Coleções de animais ou bestiários fantásticos contemporâneos
  • 1.4 Para compreender o fantástico de Murilo Rubião
  • CAPÍTULO 2 – DE HIBRIDEZ E METAMORFOSES
  • 2.1 Bestas apocalípticas e criaturas mitológicas
  • 2.2 Um olhar sobre metamorfoses
  • 2.3 “Como se fosse real”
  • CAPÍTULO 3 – INTERPRETAÇÃO DOS CONTOS
  • 3.1 “O ex-mágico da taberna Minhota”
  • 3.2 “Os dragões”
  • 3.3 “Teleco, o coelhinho”
  • 3.4 “Alfredo”
  • CONSIDERAÇÕES FINAIS
  • REFERÊNCIAS
  • ANEXOS
  • Processo de criação do produto
  • Produto: Os gatos de Olívia

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INTRODUÇÃO

Sou um sujeito que acredita no que está além da rotina. Nunca me espanto com o sobrenatural, com o mágico. Murilo Rubião^1

O presente trabalho objetiva pesquisar o bestiário de Murilo Rubião, investigando a presença significativa de animais em sua obra e buscando a representação deles nos contos em que aparecem e suas similaridades. Para isso foram escolhidos os contos “O ex-mágico da Taberna Minhota”, “Os dragões”, “Teleco, o coelhinho” e “Alfredo” cujos enredos se destacam pela presença de animais em situações as mais insólitas, dentre as quais estão metamorfoses que Rubião soube trabalhar com maestria, o que levou Mário de Andrade (1995) a compará-lo a Franz Kafka. Essas metamorfoses, criadas por Rubião, são outro enfoque desta pesquisa, investigando-se o que representam essas transformações, aparentemente muito naturais, no enredo dos contos murilianos. Questiona-se o porquê dessas metamorfoses nas narrativas de Rubião, buscando-se um sentido para essas mudanças de formas nos animais escolhidos por ele e que função esses animais desempenham dentro dos contos citados. Murilo Eugênio Rubião, autor mineiro, nascido em Carmo de Minas em 1916, é considerado o precursor do fantástico no Brasil através de seus contos; conforme Jorge Schwartz: “Murilo Rubião é o primeiro contista moderno do gênero fantástico nas letras brasileiras” (SCHWARTZ, 1982, p. 99). O fantástico que aparece em suas narrativas difere do fantástico nascido com o romantismo alemão no início do século XIX, pois Rubião retrata o homem moderno inserido no seu cotidiano, cercado pelas novas tecnologias e suas complexidades, as quais esse homem não consegue se adaptar nem entender. Seu primeiro livro foi publicado em 1947 e, tanto tempo depois, sua obra ainda é pouco conhecida no Brasil. No entanto, seus contos foram traduzidos para o inglês, alemão, tcheco e espanhol, e publicados no Canadá, Colômbia, Itália, Polônia e Portugal.

(^1) RUBIÃO, Murilo. O fantástico Murilo Rubião. Entrevista a J. A. de Granville Ponce. In: RUBIÃO, Murilo. O pirotécnico Zacarias. 16. ed. São Paulo: 1993, p. 4.

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No primeiro capítulo desta dissertação faz-se um apanhado histórico da prática do bestiário bíblico a partir de passagens que apontam a posição de inferioridade dos animais em relação ao homem desde o momento da criação. São mencionados animais domésticos e sua utilidade nos ritos sagrados, bem como as bestas híbridas e fantásticas que tanto aparecem no Antigo quanto no Novo Testamento. Autores da Idade Clássica como Homero e Ovídio apresentam, em algumas de suas obras, deuses e animais que se metamorfoseiam e pessoas que são transformadas em animais, mostrando, assim, o fenômeno da transmutação de seres para outras espécies que não as suas. Segue-se um breve relato sobre bestiários da Idade Média com informações sobre o Physiologus , o manuscrito grego que serviu de fonte para a criação dos bestiários medievais. Também estão alistados bestiários de alguns autores contemporâneos como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar que ajudam a compreender o gênero escolhido por Murilo Rubião para criar seus contos. E como base teórica para melhor entender a literatura fantástica, estudos em Tzvetan Todorov e Ítalo Calvino somam-se aos que deram suporte a este trabalho. Jacques Derrida e Charles Darwin ajudam a esclarecer sobre o ser “animal” e os hábitos e emoções dos bichos, considerados irracionais. No segundo capítulo são descritos animais híbridos das Escrituras, observando-se quantos e quais bichos compõem a hibridez desses seres. Em seguida, são citadas metamorfoses criadas por autores de diferentes épocas como Homero, Ovídio, Apuleio, Lautréamont e Franz Kafka, escolhendo-se algumas delas para demonstrar o comportamento de seres humanos metamorfoseados em animais no que diz respeito à perda da compreensão humana e da fala que ocorrem em momentos diferentes. Encerra- se o capítulo com informações sobre o momento histórico em que Murilo Rubião escreveu seus contos e um pouco mais sobre o fantástico em sua obra. No capítulo terceiro faz-se uma releitura dos quatro contos selecionados para esta pesquisa, visando responder as questões levantadas e interpretar de que forma Rubião usou o elemento fantástico envolvendo o seu bestiário. Nesse mundo fantástico muriliano encontram-se animais criados, ao acaso, por um ilusionista vazio de ilusões e onde há animal querendo ser gente, e gente virando bicho pra fugir do próprio homem.

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CAPÍTULO 1

BESTIÁRIOS: DA ANTIGUIDADE A MURILO RUBIÃO

1.1 Desde o princípio, a superioridade do homem sobre os animais

O interesse do homem pelos animais remonta à pré-história, demonstrado nas primeiras manifestações artísticas do homem primitivo, quando deixou registros de animais nas suas pinturas rupestres retratando, principalmente, suas caçadas. Na Bíblia, desde o livro de Gênesis até Apocalipse, são muitas as passagens que citam animais. O bestiário bíblico está presente, especialmente, nos livros do Antigo Testamento, a começar por Gênesis, que narra a criação dos animais como fato ocorrido antes mesmo da criação do homem, a quem coube a tarefa de nomear os primeiros seres criados, demonstrando, assim, a superioridade do homem sobre as bestas: “Havendo, pois, o Senhor Deus formado da terra todos os animais do campo e todas as aves dos céus, trouxe-os ao homem, para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a todos os seres viventes, esse seria o nome deles” (Gênesis, 2.19). Do mesmo modo, no Salmo 8, Davi louva as grandes obras da criação e declara a respeito do homem: “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Salmo, 8.6-8). Assim como nas escrituras, Ovídio também aponta para a superioridade do homem na questão da criação dos seres viventes. No Livro I de Metamorfoses ele escreveu os seguintes versos do poema: O mar aos peixes nítidos é dado, Aves ao ar, quadrúpedes à Terra. A estes animais faltava um ente Dotado de mais alta inteligência, Ente, que a todos legislar pudesse: Eis o homem nasce, e – ou tu, suprema Origem De melhor Natureza, e quanto há nela, Ou tu, pasmoso Artífice, o formaste Pura extração de divinal semente, Ou a Terra ainda nova, inda de fresco Separada dos céus, lhe tinha o germe. [...] As outras criaturas debruçadas Olhando a Terra estão; porém ao homem O Fator conferiu sublime rosto, Erguido para o céu que lhe deu que olhasse (OVÍDIO, 2004, p. 18).

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moscas na quarta, morte de animais na quinta e gafanhotos na oitava. Mas na sexta e na décima pragas os animais também estavam envolvidos: “[...] se tornará em tumores que se arrebentem em úlceras nos homens e nos animais, por toda a região do Egito” (Êxodo, 9.9); “E todo primogênito na terra do Egito morrerá, [...] e todo primogênito dos animais” (Êxodo, 11.5). Outras passagens que reforçam o bestiário bíblico estão nos livros de Daniel e Apocalipse onde são descritos animais híbridos, fantásticos ou imaginários. Daniel narra a visão que teve de quatro animais nada convencionais:

Quatro animais, grandes, diferentes uns dos outros, subiam do mar. O primeiro era como leão e tinha asas de águia; enquanto eu olhava, foram-lhe arrancadas as asas, foi levantado da terra e posto em dois pés, como homem; e lhe foi dada mente de homem. [...] o segundo animal, semelhante a um urso, o qual se levantou sobre um dos seus lados; na boca, entre os dentes, trazia três costelas; [...] e eis aqui outro, semelhante a um leopardo, e tinha nas costas quatro asas de ave; tinha também este animal quatro cabeças, [...] e eis aqui o quarto animal, terrível, espantoso e sobremodo forte, o qual tinha grandes dentes de ferro [...] e tinha dez chifres (Daniel, 7.3-7). Intrigado com a visão dos quatro animais, Daniel chega-se a “um dos que estavam por perto” para saber o significado de tudo aquilo e é informado de que “estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis que se levantarão da terra” (Daniel, 7.17). Essa visão de Daniel deu-se no primeiro ano do reinado de Belsazar em Babilônia. Sobre essa questão e sobre o significado do primeiro animal José Sélio de Andrade explica: A imagem vista era o símbolo nacional da Babilônia: um leão alado e com cabeça de homem. Consta que uma imagem semelhante à descrita aqui podia ser vista em um templo babilônico. A realidade para a qual apontava a visão, justo no início do mandado do último rei (vice-rei) do grande império neo babilônico, era que lhe eram retiradas a coragem e a mobilidade, não ao indivíduo Belsazar particularmente, mas ao império como um todo (ANDRADE, 2004, p. 288). Para o segundo animal, que é semelhante ao urso, Andrade afirma que representaria Ciro, rei da Pérsia, e as costelas na boca do animal representariam cidades e impérios que Ciro tomaria para si. Sobre o terceiro animal, um leopardo com quatro asas de ave e quatro cabeças, Andrade informa que o “leopardo é também um predador, carnívoro, voraz, que embora não tenha a majestade do leão, nem a força do urso, é animal veloz e muito ágil na captura da presa” (Daniel, p. 289). E comparando as asas do leopardo com as asas de águia do primeiro animal, ele acrescenta que “as asas aqui,

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ainda que duplicadas – quatro – não representariam a ideia de mobilidade”.^4 Andrade diz que, ao mencionar quatro asas, Daniel está aplicando uma hipérbole para ilustrar a extensão e o esforço de dominação que caracterizaria o terceiro império. Referindo-se ao terceiro animal, no que diz respeito às suas quatro cabeças, Andrade informa que o número quatro traz a ideia de universalidade, mas que a cabeça sugere domínio, governo. Sobre o quarto animal, diferente dos demais e o mais terrível de todos, não se diz com qual animal ele se assemelha, mas no versículo seguinte Daniel descreve um pouco sobre sua aparência: “Estando eu a observar os chifres, eis que entre eles subiu outro pequeno, diante do qual três dos primeiros chifres foram arrancados; e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem, e uma boca que falava com insolência” (Daniel, 7.8). Um ancião que está presente no sonho de Daniel informa que das dez pontas do quarto animal se levantarão dez reis. Andrade completa: “Os dez chifres representam, nas escrituras, exércitos armados. Dez chifres, então, podem indicar uma grande milícia, que o profeta identifica como sobremodo forte.”^5 Outros quatro animais são apresentados também por João em Apocalipse com as seguintes características: O primeiro ser vivente é semelhante a leão, o segundo, semelhante a novilho, o terceiro tem o rosto como de homem, e o quarto ser vivente é semelhante à águia quando está voando. E os quatro seres viventes, tendo cada um deles, respectivamente, seis asas, estão cheios de olhos, ao redor e por dentro [...] (Apocalipse, 4.7,8).

Sobre esses quatro seres híbridos, Armando Chaves Cohen cita duas interpretações. Uma delas diz que eles “representam toda a criação: os homens, os animais domésticos (boi), os animais selvagens (leão), as aves e os anjos” (COHEN, 2013, p. 101). A outra interpretação diz que “representam a perfeição quadrangular do trabalho de Deus: o leão, domínio majestoso; o novilho, a força divina e sua paciência; a face humana, a ternura e o amor de Deus e sua inteligência; a águia voando, a rapidez e a exatidão nas suas obras” (COHEN, 2013, p. 102). No que se refere aos quatro animais estarem cheios de olhos, Cohen explica que significa “penetração intelectual, vigilância e prudência. Essas criaturas viventes não representam a Igreja nem uma classe especial

(^4) ANDRADE, José Sélio de. Os profetas maiores II. Rio de Janeiro: JUERP, 2004, p. 290. (^5) ANDRADE, loc. cit.

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monstros marinhos, dentre os quais está Cila que devora seis companheiros do herói. Cila é um terrível monstro marinho em forma de mulher cujo corpo tem ao seu redor seis cabeças de cachorros que devoram a todos que passam por perto. Homero assim a descreve: “De doze pés é dotada, disformes bastante eles todos, com seis compridos pescoços, também terminando eles todos por uma horrenda cabeça, com tríplice fila de dentes, fortes e em número grande, onde a lúgubre Morte se aninha” (HOMERO, 2002, p. 212). Além dos seres fantásticos, animais comuns também têm seu registro no poema homérico, como o cachorro de estimação de Odisseu que é o único a reconhecê-lo de imediato quando o herói retorna irreconhecível, à cidade de Ítaca. Sobre essa questão Calvino comenta: “O único reconhecimento imediato e espontâneo vem do cão Argos, como se a continuidade do indivíduo só se manifestasse por meio de sinais perceptíveis para um olhar animal” (CALVINO, 1993, p. 21). O mesmo acontece com a ama de leite que comprova a identidade de Odisseu através de uma cicatriz de garra de javali. Outro poeta clássico é o latino Públio Ovídio Naso cujo poema Metamorfoses, descreve muitas transformações físicas de seres diversos ao longo da obra. São pedras que viram gente, homens e deuses que se transformam em animais, plantas ou minerais. São deuses que se apaixonam pelas ninfas ou por simples mortais. Neste caso Calvino analisa que, muitas vezes, a pretendente recusa e foge do assédio e que “a metamorfose pode acontecer em momentos diversos, como disfarce do sedutor ou como salvação da vítima do assédio ou punição da seduzida por parte de outra divindade enciumada” (CALVINO, 1993, p. 41). Júpiter, por exemplo, o mais poderoso dos deuses, muda de forma, muitas vezes, por conta de seus inúmeros casos amorosos: transforma-se em touro para sequestrar Europa e a transporta em sua garupa através do mar. Em outra ocasião transforma a ninfa Io em novilha para escondê-la de sua esposa Juno. Após tratar da origem da Terra, Ovídio relata o dilúvio que a destruiria, pela vontade dos deuses, mas nesta inundação universal, diferentemente do dilúvio bíblico, nem os animais foram poupados:

O lobo vai nadando entre as ovelhas, Em meio à torrente impetuosa Boiam fulvos leões, manchados tigres, Não vale aos javalis a força enorme, A suma rapidez não vale aos cervos. (OVÍDIO, 2004, p. 28)

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Apenas um casal de humanos sobrevive ao furor das águas e a eles é dada a incumbência de repovoar a Terra, não mais com a ordem original “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra,” (Gênesis, 9.1) dada a Noé e sua esposa após o dilúvio, mas em Ovídio, foi ordenado, pela deusa Têmis, que Deucalião e Pirra lançassem para trás “os ossos de vossa grande mãe” (OVÍDIO, 2004, p. 31). O casal custa a entender que a grande mãe é a Terra e os ossos que eles deveriam lançar são as pedras. Assim fazendo, as pedras que Deucalião atira para trás logo se transformam em homens e as atiradas por Pirra se transformam em mulheres. Quanto à formação dos animais, dá-se pelo aquecimento solar:

Os encharcados e lodosos campos Com o ativo calor se entumeceram, [...] De animais o cultor acha milhares, Uns a nascer, e em parte já formados, [...] Portanto, a fértil mãe terra Do recente dilúvio repassada, E pelo aéreo lume escandecida, Inúmeras espécies foi brotando: Deu ser a algumas com a forma antiga, Noutras enfim criou não vistos monstros (OVÍDIO, 2004, p. 33).

Assim como Ovídio, Lucio Apuleio, também autor da literatura latina, escreveu o seu Metamorfoses , mais conhecido como O asno de ouro ou, ainda, como O burro de ouro que narra as aventuras de Lúcio metamorfoseado em burro por engano ao tentar se transformar em pássaro. Ao ver a feiticeira Panfília se transformar em coruja, depois de utilizar um unguento mágico, ele deseja fazer o mesmo, mas consegue um unguento errado com a escrava de Panfília e o resultado da magia não é o desejado. Em forma de asno, Lucio passa o decorrer da estória em busca de um contrafeitiço para voltar à forma de homem. Zélia de Almeida Cardoso acrescenta sobre a obra de Apuleio:

Embora recheado de passagens dignas de um romance picaresco, nas quais não faltam alegria, espírito e até mesmo algum erotismo, a obra de Apuleio foi considerada por alguns como uma representação alegórica do mito platônico de Fedro: a alma deve morrer para chegar à concepção do divino e sofrer duras provas para elevar-se até deus (sic) (CARDOSO, 1989, p. 122).

Lúcio passa por maus momentos sofrendo castigos físicos na pele de animal e nas mãos de diferentes donos, mas seu retorno à forma humana só acontece com a ajuda da deusa Ísis, esposa de Osíris, que lhe ensina, em sonho, como voltar a seu estado original.