Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

O APÓSTOLO DOS PÉS SANGRENTOS, Esquemas de Religião

O Apóstolo dos Pés Sangrentos. Boanerges Ribeiro. Pg 4 de 81 absorvia-se cada vez mais nas suas orações; e, impelida pela procura da.

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Selecao
Selecao 🇧🇷

5

(3)

219 documentos

1 / 81

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
O Apóstolo dos Pés Sangrentos
Boanerges Ribeiro Pg 1 de 81
Gênero: Biografias
Procedência: Nacional
O
O
A
A
P
PÓ
Ó
S
S
T
T
O
O
L
L
O
O
D
D
O
O
S
S
P
P
É
É
S
S
S
S
A
A
N
N
G
G
R
R
E
E
N
N
T
T
O
O
S
S
Boanerges
Ribeiro
Ano: 1988
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51

Pré-visualização parcial do texto

Baixe O APÓSTOLO DOS PÉS SANGRENTOS e outras Esquemas em PDF para Religião, somente na Docsity!

Gênero: Biografias Procedência: Nacional

O O AAPPÓÓSSTTOOLLOO DDOOSS PPÉÉSS

S SAANNGGRREENNTTOOSS

Boanerges Ribeiro

Ano: 1988

CAPÍTULO 1

A INFLUÊNCIA DO LAR

Em meados do século passado, os siks do Punjab rebelaram-se contra o invasor inglês, e o sangue correu em duas guerras, mas gradativamente os marajás se aproximaram dos oficiais britânicos e a velha autoridade sik começou a ressurgir, até que 3 estados siks se tornaram semi-independentes e os rajás voltaram a exercer suprema autoridade sobre seus súditos.

Deste 3 estados siks, Patiala ou Putiala era o mais importante com cerca de um milhão e meio de habitantes e um imenso território de planícies cultivadas. O país estava dividido em distritos centralizados em determinadas aldeias, de governo hereditário. O distrito que tinha como centro Rampur era governado por Sher Singh e, foi nesta aldeia que, a 3 de setembro de 1889, nasceu-lhe o último filho, que recebeu o nome de Sundar.

A vida em Rampur era tranqüila e patriarca. Como irmão mais velho Sher Singh chefiava não só a sua própria família, mas também a de seu pai já falecido, e alguns dos seus irmãos e sobrinhos residiam com ele no velho solar da família. Outros serviam ao marajá em Patiala e um deles ocupava alto posto na direção do estado.

A influência da civilização ocidental era quase nula. Falavam a língua nacional, praticavam regularmente os atos de culto e as crianças cresciam no respeito aos pais, observando a bela amizade entre marido e mulher e o lugar de honra que a mãe ocupava na casa, como era costume entre os siks. A sonolência da aldeia era apenas sacudida de madrugada pelo apito agudo do comboio de Ludiana que às 5 horas penetrava na estaçãozinha, bufando e cobrindo de vapor quente os passageiros que se erguiam na plataforma onde tinham passado horas à espera, com característico desprezo oriental pelo tempo.

absorvia-se cada vez mais nas suas orações; e, impelida pela procura da paz, chegou mesmo a receber com alegria a visita que uma vez lhe fizeram as mulheres da Missão Presbiteriana que acabava de abrir uma escola em Rampur. Nada ambicionava mais que a carreira religiosa para o filho menor, a quem seu coração se unia pela mais terna amizade.

Esse afeto moldava a alma dócil da criança e, afinal comunicou-lhe a mesma inquietação febril. Certa tarde regressava do bosque e reinava entre ambos um silêncio pesado de pensamentos; o sadu falara longamente da inexcedível paz reservada aos que atingem o absoluto. Como atingir essa paz? Quando a sombra da grande figueira que cobria a entrada da casa de Sher Singh os abrigou, a mãe colocou a mão no ombro do filho: - Tu deves procurar essa paz na tua própria alma e amar a religião. Um dia poderás ser sadu. E na alma do menino, precoce como em geral o são as crianças indianas, principiou a esboçar-se a angustiante luta consigo mesmo - o desespero que antecede a paz.

A influência de Sher Singh sobre o filho menor não foi tão profunda: separavam-nos os temperamentos diversos. Sundar Singh, desde a infância envolvido pela preocupação espiritual, era introverso; o pai era homem prático e pouco dado a especulações, amarrados aos deveres diários de governador do distrito, melhor compreendido pelos dois filhos mais velhos, que preparava para substituí-lo na administração.

Mas sua figura austera e bondosa marcou também a paisagem da infância de Sundar, que anos mais tarde referiu um incidente bem característico das relações então existentes entre pai e filho: Certo dia em que se dirigia ao bazar para comprar doces, o pequeno encontrou-se com uma velhinha esfarrapada que lhe estendeu a mão. Compadecido, fez o que muitas vezes vira a mãe fazer: deu-lhe as moedas que trazia e voltou sem os doces, mas afligia-o a certeza de que aquelas moedinhas não seriam suficientes para remediar as urgentes necessidades da coitada. Vira o vento frio agitar-lhe os farrapos em torno do corpo magro, e gostaria de poder abrigá-la melhor. Procurou o pai, contou a história e perguntou se não seria possível darem à velha 5 rupias para agasalhos. Distraído, Sher Singh respondeu que várias vezes a socorrera, e que agora competia a outros fazê-lo. Mas o filho não se conformava com esta solução. Sabia

onde ficava o dinheiro do pai. Silenciosamente retirou cinco rupias e disparou para o bazar. Mas as moedas queimavam-lhe a mão. Aquilo era roubar, e ele compreendia bem o valor moral da ação praticada. E se o pai descobrisse? Não temia o castigo, mas temia perder a amizade e a confiança da família. Deteve-se. Olhou as moedas, fechou-as novamente na mão e voltou rapidamente. Havia gente perto do cofre. Escondeu o dinheiro e nada disse. Mais tarde o pai notou a falta das rúpias. Falta incompreensível, pois tinha a certeza de havê-las guardado. Procurou melhor - em vão. Perguntou ao pequeno Sundar se as tinha visto e ele respondeu que não. Não era quantia grande e logo Sher Singh se esqueceu do caso.

Anoiteceu e todos se recolheram, após a leitura de um trecho do livro sagrado. Mas o filho mais novo revolvia-se na cama, inquieto. Passou a noite em claro e no dia seguinte, mal a madrugada começou a avermelhar o céu, correu ao lugar onde escondera o dinheiro, retirou-o e foi entregá-lo ao pai, confessando a culpa.

Imediatamente o tormento interior que roía desapareceu, dando lugar a uma tranqüilidade. Que viesse o castigo. Mas Sher Singh apenas o observou, depois de tudo ouvir: - Eu sempre confiei em ti, meu filho, e agora vejo que não me enganava! E estendendo a mão aberta: - Aqui está o dinheiro. Leva-o à mulher.

Podemos imaginar o respeito e a admiração do pequeno pelo pai. Mas era evidente que o pai não estava em condições de compreender as esquisitices do filho. Enquanto os primos e os irmãos maiores brincavam, Sundar absorvia-se na meditação do sentido dos textos sagrados. Aos sete anos sabia todo o Gita de cor. Quando aprendeu a ler, mergulhou nas Escrituras, e era um quadro comovente o daquela criança com menos de 10 anos, que se curvava junto à lâmpada de óleo, lendo, lendo no silêncio da casa adormecida. Quantas vezes Sher Singh acordava pelo meio da noite e ia arrancar o filho do livro: - Ler até tão tarde faz mal.

Mas mal maior lhe fazia o desespero - a ânsia de paz que o devorava. Quando entrando em casa, o sardar procurava o filho menor, era seguro que o encontraria encolhido em algum canto, pensativo, ou com um livro sagrado na mão, esquecido do mundo. Sacudia -o com

penetrava pela via do sofrimento na grande crise que decidiu seu destino: a luta com Cristo.

CAPÍTULO 2

A LUTA COM CRISTO

O espírito de Sundar Singh debatia-se nas trevas e já não havia na terra quem o compreendesse.

Outra grande alma que a Í ndia conheceu, Renée de Benoit, descreve com termos precisos esse estranho aperto de coração que os adolescentes de temperamento e educação religiosa costumam sentir: "Na Convenção de Chexbres foi como se Deus se escondesse e me deixasse entregue a mim mesma e ao mal. Os hinos que ressoavam aos meus ouvidos e a linguagem cristã causavam-me repulsa. A nossa mãe não atinava com o que eu tinha. Não fui jantar naquele dia; soluçava no meu quarto. Oh! Era terrível. Não podia orar..."

Renée de Benoit era filha de Cristãos, dos quais recebera desde a mais tenra infância o conhecimento de Cristo através de informações fornecidas por outrem, mas não o encontrara pessoalmente; de súbito verificava que o que a alma desejava era uma experiência da realidade e não apenas informações a respeito dela.

A lutas desse outro adolescente, Sundar, é mais patética: a alma sente que existe o Caminho, mas não o conhece; anseia por ele, e tateia nas trevas. São dois náufragos entregues ao poder maléfico das ondas. Um vê ao longe a praia e esforça-se por alcançá-la; outro, cego, sente que existe praia, mas não sabe onde e luta com as ondas e com o próprio desespero.

"Nem um instante posso viver sem ti, Senhor. Tenho tudo quando sinto que estás em mim: porque Tu, Senhor, és o meu tesouro. Suspiramos por ti, ó Senhor; temos sede de ti. Somente em ti nosso coração descansa."

Estas palavras dos mestres acenavam com uma paz inexcedível. Mas onde encontrá-la? Nos livros sagrados? Acentuava-se a cada dia a sua tendência de devorador de textos religiosos. Aos 15 anos já conhecia o Granth dos siks, o Corão, e cerca de 52 Upanishads. Ou seria nas boas obras que se encontrava a salvação? Não havia mendigo no distrito que não o procurasse, pois sua fama de caritativo já se espalhara.

Mas cada dia, depois de atravessar todos os tediosos rituais do sikismo e do hinduísmo, de perder horas embebido nos livros e de atender a todos os mendigos, lá se dirigia cabisbaixo e pálido, para o bosque, à procura das sábias palavras do sadu. E cada dia regressava mais vencido, como um tântalo adolescente que nem ao menos visse o lago de água fresca para os lábios febris.

Afinal, depois de te tentar inutilmente acalmar aquela sede assustadora com citações e discursos, o velho santo do bosque confessou- se vencido: - Meu filho, é inútil perderes tempo agora com estas coisas. E, vendo acentuar-se a amargura nos olhos do rapaz: - Mais tarde conseguirás entendê-las. Mais tarde?

Falava-se muito nas práticas sublimes do ioga. Um homem que se assenhoreasse de seus mistérios conheceria o Céu na Terra e entraria imediatamente na posse da salvação. Havia em Rampur um brâmane iogue, e Sundar procurou-o, sujeitando-se ao penoso aprendizado dessa arte de auto-hipnotismo. Chegou ao êxtase. Era uma maravilha. Tudo desaparecia, para dar lugar à veemente sensação de paz e esquecimento. Horas depois - ou seriam minutos? - voltou a si, sob o riso radiante do brâmane, seu mestre. Mas a cabeça pesava e o corpo doía, como se houvesse transportado pesada carga. O mundo era o mesmo e, Sundar Singh era também o mesmo, ainda com mais tristeza e amargura na alma, depois do transe enganador.

Abandonou o ioga. Buscava a Realidade, e não um fogo fátuo. Sher Singh cada dia se preocupava mais com o filho. O rapaz definhava

novo, refrigerante como a brisa nos dias de canícula. Absorveu-se na leitura.

Em certo ponto, todavia, percebeu que havia ali ensinos totalmente contrários às suas crenças; ensinos que poriam por terra a doutrina de sua mãe. Fechou o livro, indignado. Mas o magnetismo de Cristo já o prendia. Voltou à leitura, contrafeito e desejoso de encontrar contradições e erros. Mas tão logo mergulhava no Evangelho, esquecia o mundo, e certa vez, mesmo, um amigo o assustou, tocando-lhe no ombro durante o seu estudo da Bíblia: - Tu não deves ler esse livro. - Por quê? - Por causa do feitiço que nele existe. Tornar-te-ás cristão. Muitos outros começaram a lê- lo e tornaram-se cristãos. Não o leais. E afastou-se.

Deixando o livro, Sundar Singh franziu o sobrolho, perplexo. Haveria então tanto poder nesse livro? Aquele homem não era cristão, mas reconhecia que o livro dos cristãos possuía uma força estranha. E se esse livro o levasse a abandonar sua religião? Atirou a Bíblia para longe, horrorizado, e resolveu não voltar à escola cristã.

O ano letivo terminava e o prático Sher Singh não via motivo para o filho perder os exames. Fez os exames e pediu ao pai que o matriculasse na escola hindu da aldeia próxima. Estava resolvido a não mais lidar com cristãos, nem com o seu livro mágico.

Mas não fora sem conseqüências que passara catorze anos enclausurado em casa ou na penumbra dos templos e do bosque; não tolerou a violência do sol que o castigava asperamente durante os quatro quilômetros do percurso e teve de voltar à escola cristã poucos meses depois.

Desta vez a sua reação foi violenta. Todo o seu ser se revoltava contra os estrangeiros e contra a sua religião. Odiava-os. Zombava da Bíblia.

Por essa época o missionário, disposto a romper o círculo de ferro dos preconceitos que limitavam seu campo de ação, iniciou reuniões de pregação ao ar livre, junto ao bazar.

Certa tarde, quando erguia a Bíblia e citava um texto, um grito escarninho interrompeu-o, seguido de formidável vaia. Insistiu. Uma pedra assobiou sobre a sua cabeça, logo seguida de outras, e o pequeno grupo de cristãos que o acompanhava dispersou-se desanimado. Quando se retirava, ainda sob a vaia desrespeitosa, o pregador surpreendeu-se com a expressão de ódio que incendiava os olhos do filho do sardar.

E desde aquele dia Sundar Singh tornou-se o líder da malta desordeira que tomara a peito varrer os missionários de Rampur. Essa luta era um derivativo para a angústia interior que o roia, e era a reação da alma à verdade que pressentia nova criatura, e necessariamente reduziria a pó o edifício já existente. Sua intuição não o enganava.

E tamanho era o seu horror a Cristo que, quando a sombra do missionário caiu sobre ele, correu para casa e passou toda uma hora lavando-se para se purificar do contágio imundo... Como se isso não bastasse, agarrou a Bíblia, despedaçou-a diante do estupefato Sher Singh, embebeu de petróleo as páginas rasgadas e lançou-lhes fogo. A chama destruiu o livro tão violentamente como as paixões lhe consumiam o ser. O rosto de Sher Singh tornou-se severo. Não aprovava tanto fanatismo e repreendeu o filho. Mas Sundar, fora de si, ainda atirou às labaredas que avermelhavam a silhueta esbelta os outros livros da Escola cristã. E seus olhos brilhavam de forma tão maligna como as línguas vermelho- amareladas que rapidamente lambiam as páginas despedaçadas daqueles volumes malditos.

Era o paroxismo. Depois daquilo, passou a viver como se tivesse veneno nas veias. Afinal, na madrugada do terceiro dia, chegou a uma resolução desesperada. Para ser mais preciso: na madrugada de 18 de dezembro de 1904. "... E assim decidi abandonar tudo e acabar com a vida. Três dias depois de queimar a Bíblia levantei-me às três da manhã, tomei o banho usual e orei: ' Ì Deus - se é que Deus existe - mostra-me o caminho certo ou eu me mato!' Se não encontrasse a paz, poria a cabeça no trilho do caminho de ferro, quando viesse o comboio das cinco horas, e ali morreria. Tinha a impressão de que encontraria sossego na outra vida, se não o encontrasse nesta: E ali fiquei, orando continuamente, sem resposta. Teria mais meia hora de oração, na esperança de paz. s quatro e

pedidos, ameaças e maus tratos não o convenciam, o enfurecido pai chamou os missionários à justiça.

No dia em que a causa foi julgada uma multidão rumorosa se apinhava em torno dos réus e do denunciante, que entremeou a acusação de pragas e invectivas bem sintomáticas de sua própria necessidade de conversão.

O rapaz foi chamado a depor. Não se sabe como, conseguira conservar consigo um exemplar do Novo Testamento; apresentou-se com ele na mão. Vinha pálido e abatido, mas no rosto transparecia a firmeza. Todos os olhos fitaram quando o juiz perguntou se eram verdadeiras as acusações de seu pai. E ele:

  • Não é por causa dos missionários que eu creio em Cristo. Podem soltá-los.

Um arrepio percorreu a assistência. E o jovem, erguendo o Novo Testamento: - É pela leitura deste livro.

O pai cerrou os dentes, pálido de ódio. Absolvidos os missionários, segurou o braço do filho e, sem pronunciar palavra, o levou.

Trancou-o num quarto, em casa. hora da refeição, atirou-lhe alimento como a um animal, sem olhá-lo.

Amargurado, o moço baixou-se e comeu. Minutos depois sentiu no estômago uma dor violenta, como de punhalada, e alguns segundos mais tarde estava morto. O eco desse escandaloso caso ainda não se apagara nas conversações da praça e do bazar, quando novo rumor se ergueu: os meninos da Escola andavam dizendo que o filho do sardar se fizera cristão. Realmente, já não era visto matinalmente na Gurdvara, nem suas tardes eram passadas no bosque, junto ao sábio e santo sadu.

Um dia um remoque mais claro fez corar o filho mais velho de Sher Singh que, ao chegar em casa, pediu ao pai providências. A família se reuniu, pontilhando a queixa de apartes aprovadores. Mas Sher Singh, que vira seu filho queimar a Bíblia um dia para logo depois vir acordá-lo com a notícia de que se fizera cristão, não o tomava a sério. Conhecia o

rapaz: voluntarioso e ressentido, embirraria no cristianismo se o aborrecessem, mas logo o esqueceria se não dessem importância. - Deixem-no em paz. Se ninguém se incomodar, logo esta loucura também passa.

Mas os outros não queriam saber de tolerância. tarde, quando Sundar se assentou para a refeição, silenciosamente se ergueram, deixando-o só diante do pesaroso pai. Para não expulsar a família toda, teve de tomar o prato e ir comer fora, como um pária. Quando terminou, ergueu-se no quarto, buscando o Novo Testamento e na oração forças para a tormenta que pressentia.

O ambiente familiar tornava-se cada dia mais carregado. Afinal Sher Singh resolveu enfrentar a situação e procurou o filho. Expôs-lhe seus aborrecimentos. Se Sundar continuasse obstinado no seu cristianismo, ele acabaria perdendo o respeito do Distrito. Afinal, era sardar, e se em sua própria casa se manifestava a apostasia, com que autoridade imporia ao povo acatamento aos princípios e costumes siks? Não somente ele, mas toda a família já sofria a teima de Sundar. Pois então ele não podia dirigir seu fervor religioso para outro lado, se lhe era mesmo impossível abandonar esse fanatismo que manifestava desde a infância? Não tinham eles sua divindade? Não tinham livros sagrados? Não viviam tão bem com a religião de seus antepassados? Para que, agora, esse estranho capricho? O cristianismo era religião de estrangeiros - dos estrangeiros que oprimiam a Í ndia.

Falava com calma e gravidade, como se o filho menor fosse um adulto que lhe merecesse todo o respeito e consideração.

E quando o moço respondeu, com firmeza, que não se tratava de mania nova, mas de uma realidade que o dominava e à qual consagraria a vida, fez a derradeira tentativa: bem, pois que se fizesse cristão, se isto lhe agradava. Mas o pai lhe pedia ao menos um obséquio: não lhe enxovalhasse o nome pregando a torto e a direito que tinha nova religião. Seguisse a Cristo em silêncio, em casa. Que necessidade havia de lançar publicamente lama sobre o nome honrado da família?

trancar-se na sala com o irmão; palestraram longamente. O resultado da palestra foi uma súbita melhoria na atitude da família, talvez causada pela evidente simpatia com que o tio tratava aquele maldito cristão.

Essa simpatia chegou ao cúmulo quando o bondoso parente o convidou a passar algumas semanas em sua casa, na capital. Aceitou com prazer, dando graças a Deus pelo descanso que o passeio seria.

Em casa do tio todos o rodearam de simpatia e amizade, e seu coração começou a ligar-se por profundo afeto àquele irmão de seu pai.

Um dia o homem o convidou a descer à adega da casa, onde estava trancada a riqueza da família. Desceram pela escadinha de pedra, escura e íngreme, mal e mal iluminada pela chama vermelha da lanterna. A pesada porta rangeu e os dois entraram na sala úmida e empoeirada, onde as sombras dançavam sinistramente. Deixando no pó as marcas de suas sandálias, o tio se dirigiu ao canto onde ficava a arca; curvou-se, lutou com a fechadura enferrujada e ergueu afinal a tampa, colocando num dos cantos da caixa aberta a lanterna. Sundar aproximou o rosto, curioso. Era um sonho. Centenas de moedas amarelas brilhavam foscamente; barras de ouro maciço; pacotes de papel-moeda. O dono daquele tesouro mergulhou nele as mãos e erguendo-as deixou cair pedras preciosas que cintilavam com brilho misterioso e malévolo.

Depois endireitou-se; ergueu a mão direita e arrancou o turbante que atirou ao pó. Era a maior humilhação possível para um pobre sik. E, fitando nos olhos, o sobrinho assombrado: - Fica conosco, filho. Toda esta riqueza te pertencerá.

Compreendendo o motivo da humilhação de seu tio, Sundar Singh chorou, comovido.

No dia seguinte voltava para Rampur, deixando atrás de si ressentimento e rancor, pela obstinação insultuosa com que se apegava ao seu cristianismo.

A tentativa final foi feita por um cunhado, oficial do Rajá de Nabha. Levou consigo o irmão de sua mulher, na esperança de que o esplendor

da corte, as vestes magníficas, o ambiente de riqueza tão diverso da vida sonolenta da aldeia o fizessem mudar de pensamento.

Por acaso o Rajá veio a saber que em casa de um dos seus servidores estava um rapazinho de descendência nobre, convertido ao cristianismo, e considerou ponto de honra atraí-lo novamente à velha e boa religião do Punjab; mandou chamá-lo.

Maravilhado, Sundar atravessou os jardins, as salas e os corredores do palácio. Aberta com cerimônia uma porta, avançou às tontas e viu-se diante de uma sala imensa, onde um círculo de homens de idade magnificamente trajados se assentava em coxins. Era a Durbar - o senado estadual - presidida pelo próprio Rajá.

Inclinou-se respeitosamente. O Rajá o recebeu com um sorriso e amistosamente o exortou a abandonar a nova religião. Os siks eram povo nobre e guerreiro, respeitado pelos próprios ingleses. Seus feitos de armas eram lembrados com orgulho. Eram Singhs (Leões). Pois então Sundar Singh abandonaria este nome glorioso para adotar o de Sundar- Cão? (Porque para um sik, abandonar sua religião e aceitar a de Cristo equivalia a transformar-se de Leão em Cachorro.)

Os sábios membros da Durbar curvavam respeitosamente as venerandas cabeças, a cada frase.

Modestamente Sundar expôs as razões de sua conversão e reafirmou seu propósito de permanecer crente em Cristo.

Os senadores mordiam os lábios de cólera. Eles sabiam muito bem resolver esses casos e chamar ao respeito rapazolas impertinentes. Com um gesto impaciente de despeito, o Rajá o despediu, e ele acompanhou de volta pelas salas e corredores do palácio o desapontado marido de sua irmã.

Depois disso a tempestade que desde nove meses se acumulava sobre sua cabeça desabou com fragor. Levado de volta a Rampur, ali o esperava Sher Singh que se afastou para que não o tocasse aquele filho infeliz. Deram-lhe comida.

partiu com um arranco; segundos depois Rampur desapareceu, e Sundar Singh compreendeu que estava só no mundo com seu Cristo.

Mergulhou na oração, prendendo com força o Novo Testamento junto ao peito e não sentiu as horas que passavam. Quando abriu os olhos o sol já castigava violentamente a terra. Estaria longe Ludiana? Encontraria ali os missionários que conhecia? Um solavanco violento o arrancou das suas cogitações. Olhou pela janela e viu uma aldeola pobre que timidamente fugia da estação. ROPUR. Ropur? Tinha ouvido dizer que a maior parte dos cristãos de Rampur estava ali. Por quê não os procuraria?

Desceu no momento exato em que o trem partia e perguntou a um camponês se ali havia ministro cristão.

O homem o fitou, desconfiado e apontou vagamente. Tomou o rumo indicado. Uma pontada feriu-lhe o estômago. Seria fome? Não conhecia ainda a linguagem dessa companheira desapiedada. Apressou o passo, indagou novamente e afinal atingiu a casa do pastor indiano. O estômago estava em fogo. Bateu. Ouviu passos. A dor se fazia mais aguda; era como se acabasse de engolir brasas. Contorceu-se de dor.

E o pastor, atônito, teve de carregar para dentro um estranho rapazinho sik de cabelos tosados que vomitava sangue, não conseguia falar e agarrava convulsivamente um Novo Testamento em urdu. Pô-lo na cama e mandou chamar o médico, que ouviu o caso, examinou atentamente a espuma que manchava os cantos da boca do rapaz e moveu a cabeça, desanimado, mencionando um veneno mortal; ao sair prometeu voltar no dia seguinte para o atestado de óbito.

O dia se passou em agonia. Quando as trevas envolveram a aldeia, a esposa do pastor veio assentar-se à cabeceira do enfermo, e ali ficou toda a noite, tentando em vão refrescar-lhe a testa escaldante.

Entre um e outro acesso de delírio Sundar se agarrava à convicção de que devia servir seu Mestre na terra; não podia ainda morrer. Não podia!

A manhã encontrou-o vivo. Nos dias seguintes, fraco e abatido, o cuidado do pastor e de sua esposa não o abandonou.

Afinal, convalescente ainda, retomou o caminho de Ludiana. Quando o trem desapareceu e o pequeno grupo de cristãos se dispôs a regressar à aldeia, o médico tomou também sua resolução: tinha visto a mão de Deus operar: já não podia ser o mesmo homem. Em 1918 ainda estava em plena atividade na Birmânia, como missionário.

Mr. Wherry, diretor da Escola Preparatória Cristã, que os presbiterianos mantinham em Ludiana, dava por quase terminados os trabalhos de 1904. As férias aproximavam-se e no ano seguinte Fife viria substituí-lo, de modo que tratava de deixar tudo em ordem, para facilitar o trabalho do colega.

Por isso não ouviu com agrado a notícia de que à porta havia um adolescente hindu, talvez candidato a matrícula. Em todo caso, mandou-o entrar, disposto a examinar pessoalmente o assunto: não costumava negar oportunidades.

O jovem entrou. Vinha de Ropur, a conselho do pastor da aldeia. E narrou sua história.

Uma hora depois o regente do internato lhe indicava uma cama que devia ocupar.

Desde logo se sentiu isolado entre os colegas. Filhos de pais cristãos, livres das lutas que ele conhecia, os rapazes pouco se preocupavam com problemas espirituais, limitando-se a absorver o ensino e os costumes religiosos. O novato era entre eles uma peça grande demais na engrenagem: incomodava e chamava a atenção. Não queria jogar criquê, não queria praticar atletismo, não queria ir a reuniões sociais, não queria participar da prosa ligeira e nem sempre limpa dos recreios. Queria apenas entocaiar-se no quarto ou sob as árvores da chácara, com aquele eterno Novo Testamento na mão.