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O amor no cinema contemporâneo:, Notas de estudo de Estética

O amor romântico foi largamente utilizado nos filmes de narrativa e estética clássica. A busca e o encontro do verdadeiro amor ilustraram a maioria das ...

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Mauricio_90
Mauricio_90 🇧🇷

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
O amor no cinema contemporâneo:
O construtor de sereias
Patrícia Colmenero Moreira de Alcântara
Fevereiro de 2013
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

O amor no cinema contemporâneo:

O construtor de sereias

Patrícia Colmenero Moreira de Alcântara

- Fevereiro de 2013 –

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

O amor no cinema contemporâneo:

O construtor de sereias

Patrícia Colmenero Moreira de Alcântara

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do grau de Mestre em Comunicação Social pela linha de pesquisa Imagem e Som. Orientador: Prof. Dr. Gustavo de Castro e Silva

- Fevereiro de 2013 –

Agradecimentos

Aos mestres que manifestaram sua sabedoria pelo caminho, levando meu trabalho para a praia, para Europa, para onde estivessem, me oferecendo seu tempo, sua amizade e sua potência: Mike Peixoto e André Costa.

Aos meus alunos, que me provaram que o tema não era só meu, mas de muitos.

Ao meu orientador, Gustavo de Castro, pela confiança e independência, que me permitiram tirar a terceira perna de G.H.

A Susana Dobal, pelo tempo e por me permitir invadir seu grupo de Deleuze, e a Cláudia Busato, por Walter Benjamin e as conversas.

A Fabio Pires, por ter celebrado o amor comigo.

A minha família, que durante a crise dos afetos, se manteve um constante fornecedor de bons encontros.

Aos amigos que sempre estiveram lá e aos que fizeram desse processo algo muito mais cheio de fluxos: Mayra Resende, Amanda Ourofino, Daniela Marinho, Verônica Brandão, Júlia Zamboni, Botão, Ju, Braz, Danny, Gabee, Fabíola, Rose, Núbia Honório... e às eternas Belinha e Deyse.

À Capes pelo suporte. Todos precisam de uma terra para pousar.

Resumo

O amor é um dos assuntos mais recorrentes em todas as formas artísticas. Escritores, artistas e diretores se debruçaram sobre ele, como assunto e como musa. Diante de uma sociedade que abandonou antigos padrões, rompendo com casamentos, inaugurando novas aventuras sexuais e questionando que tipos de relação gostariam de viver, este trabalho investigou o panorama das relações amorosas no cinema contemporâneo. Para tanto, utilizou noções de Gilles Deleuze e partiu da crise da imagem-ação e do rompimento com o cinema narrativo clássico para examinar o cinema atual diante das características da imagem-tempo. Tendo imperado um cinema romântico do happy end até os anos 60, questionamos qual o amor que surgiu a partir desse momento. Os caminhos em busca dessa resposta foram traçados pelos estudos teóricos sobre o amor, os afetos e o cinema e por meio de análise fílmica de quatro filmes principais: “Uma mulher é uma mulher” (1961), de Jean-Luc Godard; “A Bela Junie” (2008), de Christophe Honoré; “Um lugar qualquer” (2010), de Sofia Coppola e “Os sonhadores” (2003), de Bernardo Bertolucci. Palavras-chave: Amor; Cinema Contemporâneo; Deleuze; Afetos; Crise

Sumário

    1. Introdução
    • 1.1 Amores contemporâneos: definições, recortes e problematizações
    • 1.2 O Amor de hoje
    • 1.3 Perambulações: caminhos metodológicos para estudar o amor no cinema atual
    1. Paisagens teóricas
    • 2.1 Afetos em crise no cinema
    • 2.2 Como cristal.......................................................................................................................
    • 2.3 Em busca de uma filosofia da vitalidade
    • 2.4 Um cinema vital.................................................................................................................
    • 2.5 Um cinema desejante........................................................................................................
    • 2.6 O método de criação afetivo: a performance
    1. Um olhar para o amor no cinema
    • 3.1 O amor dos felizes
    • 3.2 O amor dos videntes
    1. Amores contemporâneos: um novo estágio de
  • consciência
    1. Amor em Éter
    1. Sonhos de confluência
    1. Conclusão
    • 7.1 Créditos sobem
    1. Referências Bibliográficas

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1.I INTRODUÇÃO

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meros são peixes acompanhados por peixes menores, que comem restos de comida entre os seus dentes. Os pequenos labros imitam a mesma dança vertical do peixe limpador, o que faz com que os meros também abram a boca para eles. No entanto, os labros, ao invés de limpar seus dentes, irão arrancar pedaços de sua língua.

Os animais criam artifícios para fingir ser o que não são, seduzirem e serem seduzidos, enganarem e serem enganados. Como eles, não queremos viver em um mundo de objetos naturais. Queremos ser encantados, extirpados da vulgaridade das atividades comuns e atirados a “um perigo saliente num mundo atraente” ( ibidem , p.192). O logro encanta os peixes meros, que confundem-se com aparência verdadeira do nado dos labros, “ao passo que a ilusão nos seduz pela sua falsa aparência, uma imagem que não corresponde ao real” ( ibidem , p.187), como as sereias, de grandes bocarras e apetite voraz, fazendo-se de inocentes mulheres-peixe sedutoras para os marinheiros de Ulisses.

Etimologicamente, ‘sereia’ significa prender ou vincular e essa é exatamente a busca de tantos amantes, que, de forma psicanalítica, anseiam pela realização de um amor edípico impossível, ou assim como os peixes meros, apenas querem se entregar a uma ilusão sedutora. Por um motivo ou por outro, as sereias se elevaram dentro do imaginário humano como uma forma de responder à indagação existencial mais profunda: para que existo? A resposta parte de uma impossibilidade de responder. Já que é impossível resolver a inquietação do humano, ao menos podemos fugir e encontrar refúgio e entorpecimento no canto das sereias. Ser seduzido parece ser a única forma de evitar a banalidade de existir.

No fim, a ilusão das sereias só funciona porque todo ser humano anseia por sentir algo extraordinário e ser possuído por um amor apaixonado, que “arranca o indivíduo das atividades mundanas e gera uma propensão às opções radicais e aos sacrifícios” (GIDDENS, 1993, p. 48). O amor passa a ser idealizado, deixa de se relacionar com uma série de contratos sociais para ser elevado a símbolo máximo de felicidade. Os ídolos são necessários, precisa-se de uma referência de força vencedora, algo que represente a superação dos problemas vulgares. Porque não idolatrar o amor, uma porta de saída do cotidiano vazio para uma vivência incrível? Essa relação idealizada com o amor possui uma longa história, em que podemos utilizar como ponto de partida os discursos de “O

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Banquete” de Platão, “grande fonte do mito amoroso no Ocidente” (COSTA, 1998, p.36) e fonte de muitas das ideias românticas, retomadas séculos depois.

Nesta obra, o amor é um grande deus, que inspira a feitura do bem e garante a felicidade. Para Fedro, um dos filósofos que discursam, o amor seria um instrumento moral capaz de construir o “apreço à honra” (PLATÃO, 2003, p.98). Um amante jamais seria capaz de roubar, desertar do exército ou fazer qualquer coisa vergonhosa diante de seu amado, pois “ninguém há tão ruim que o próprio Amor não o torne inspirado para a virtude” ( ibidem, idem ). Agatão reforça a relação entre o amor e o bem, garantindo que o amor só se firma na beleza e, por isso, é capaz de inspirar tantos poetas enamorados. Já Aristófanes, de forma sofisticada, cria os conceitos de alma gêmea e cara-metade, tão utilizados ainda hoje pelos românticos, a partir de uma parábola sobre o mito do andrógino. De acordo com ele, houve um tempo em que existiu o gênero feminino, o masculino e um outro que comungava dos dois, o andrógino. Os andróginos eram muito fortes e acabaram se voltando contra os deuses. Para se vingar, Zeus cortou-os ao meio, para que se tornassem mais fracos e também mais numerosos e úteis para as divindades. Separadas, as metades dão início à narrativa de busca, que entende o amor como um caminho, uma procura labiríntica por esse outro no qual poderemos, finalmente, nos deixar absorver, para viver em unidade. “A busca é uma odisseia em que a auto identidade espera a sua validação a partir da descoberta do outro” (GIDDENS, 1993, p.57):

Desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada querer fazer longe um do outro. (PLATÃO, 2003, p. 121-122)

Também se funda nesse mito a concepção romântica de fusão. A matemática abstrata que afirma que as pessoas possuem um vazio e precisam se fundir uma a outra (sua cara- metade ou alma gêmea), para que possam se tornar inteiras. O raciocínio de Aristófanes aponta para a universalidade do amor, que é intrínseco à natureza humana dividida. Como no rio de Heráclito, ele é definitivo, pois “Nem no amor nem na morte pode-se penetrar duas vezes” (BAUMAN, 2004, p.17).

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encontros. O amor de Deus não se revela como conhecimento (aprendizado na escola da Luz) e sim vivência emocional da essência divina (conflito entre o emocional e o lógico).

Já no amor cortês há uma laicização do objeto de amor. A Dama ou a Senhora substituem Deus como objeto amoroso, porém permanece o sofrimento do desejo frustrado da mística cristã (o “amor-abandono”) e a sublimação das necessidades carnais (“serviço de amor” e “amor cortês propriamente dito”). O amor cortês renuncia a possibilidade de encontro entre os amantes. A ética cortês apontaria para a aceitação alegre da impossibilidade, sendo vista como “gozo com sofrimento” ou “espiritualização sublimada” (COSTA, 1998, p. 40). Do vocabulário sentimental dos trovadores, surgiram muitos dos clichês do futuro romantismo, que incluía tanto a substituição de Deus pela mulher quanto a negação de uma vida conjugal.

Até o momento, apesar de intensas, todas as formas de amor eram profundamente enraizadas em finalidades sociais. O amor entre homens era estimulado nos discípulos de Sócrates, a fim de formar uma comunidade apenas de amigos amantes que pudesse governar o Estado; o amor ligado à religião implicava na ideia de formação de comunidades cristãs, em que se buscam novos discípulos e cerimônias públicas de conversão, profissão de fé e outras são realizadas; e o amor cortês se relacionava com a prática das heranças e a busca de uma noiva rica a quem cortejar, além da manutenção de serviços do rei. Em comum, esses amores privilegiavam um objeto idealizado à custa de um sujeito que se anula pelo amado, só encontrando conforto no conhecimento ou na morte. Seja o Supremo Bem da Grécia Antiga, o Deus cristão do amor caritas ou da mística cristã e a Dama do amor cortês, o objeto amoroso sugere a desimportância do sujeito.

Porém, com os teóricos leigos do amor, a balança começa a pender para o outro lado e a questão amorosa passa a ser pensada a partir do sujeito e não do amado. No século XVI e XVII ocorreu uma revolução político-econômica, em que se aboliram as concepções teleológicas (explicações baseadas em utilidade, finalidade e no Bem) para aplicar uma abordagem mais mecanicista, em que noções mais complexas estão fundadas nas partes mais simples. Portanto, parou-se de olhar para a massa profunda e complicada do amor e realizou-se a sua decomposição em partes: desejo e prazer.

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Thomas Hobbes (1588 – 1679) é o ponto de partida para o pensamento científico em torno dos afetos. Para ele, sem o desejo, o homem fica com seus sentidos e imaginação paralisados e, por isso, é necessário que os desejos sejam realizados, mesmo que isso implique em violência e destruição. O direito de natureza seria a liberdade de usar o seu poder e força para satisfazer os seus desejos, preservando a sua natureza. Ao contrário de Sócrates, que subia uma escada, de beleza em beleza, em direção ao Bem e à imortalidade, Hobbes segue em uma corrida de desejo em desejo, já que “o objetivo do desejo do homem não é gozar apenas uma vez” (MONZANI apud COSTA, 1998, p.60) e alega que o que é verdadeiramente imortal é a vontade de consumir.

No “Banquete”, no amor caritas, na mística cristã e até no amor cortês, busca-se um Bem que não se apresenta no mundo sensível, enquanto para Hobbes o amor é profundamente sensorial, ou seja, o engano dos tolos, de Platão, e o inferno, de Agostinho. Para o autor, essas visões são moralistas e escondem a verdadeira natureza do homem que, em seu estado de natureza, é competitivo e egoísta. Afinal, o amor é apenas a “faceta domesticada de uma maldade essencial inscrita no desejo” (COSTA, 1998, p.61).

John Locke e Étienne Condillac se juntam ao coro de Hobbes como sensualistas que defendem que o amor não é nada mais do que um conjunto de impressões sensoriais de prazer. Como o prazer sensorial é uma característica de todos os corpos biológicos, mantém-se a prerrogativa de que o amor, seja ele como for, é algo intrínseco à natureza humana e, portanto, um sentimento universal.

Ao contrário de Hobbes, Jacques Rousseau (1712 – 1778) acredita que a inclinação original do ser humano para o desejo sexual é uma possibilidade viável de socialização sem coação estatal ou religiosa. O sexo pode ser uma força útil, que trabalha tanto para a felicidade do sujeito individual quanto para o social. A expressão sexual é a forma natural de sociabilidade, desde que seja equilibrada com base na temperança, comum ao amor caritas. O desafio é satisfazer-se sem despedaçar o Outro, pois “A inquietação dos desejos produz a curiosidade, a inconstância: o vazio dos prazeres turbulentos produz o tédio” (ELIAS apud COSTA, 1998, p. 68). O sexo, portanto, não pode ser a corrida do desejo de Hobbes e precisa ser contido dentro do seio da família. Para Rosseau, já que os homens buscam fazer sexo e ter filhos, devem aproveitar para incitar, no meio familiar, a

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pode ser corrompida antes do casamento. É um tipo amoroso profundamente conectado às noções de família, lar e também maternidade^1. Numa versão burguesa de romantismo conformista, juntos, marido, mulher e filhos criam uma história compartilhada, em que se dá prioridade especial ao relacionamento conjugal em relação a outros aspectos da organização social. Em sua versão mais radical, os românticos perdem a vida por amores proibidos e os dentes das sereias esperam por eles, como as nadadoras assassinas de Alphaville^2 atacam a facadas o banhista que professou sua fé no amor e na poesia.

1.2 O Amor de hoje

O amor romântico foi largamente utilizado nos filmes de narrativa e estética clássica. A busca e o encontro do verdadeiro amor ilustraram a maioria das histórias desses heróis e heroínas. “E o vento levou” (1939), “Casablanca” (1942), são exemplos da busca da tal cara-metade, o pedaço extirpado dos tempos de Aristófanes. Mas, em algum momento, anunciado com o começo do cinema moderno e continuado no cinema contemporâneo, a humanidade deixou de acreditar nas sereias e a sedução fatal foi substituída pela entrega à apatia e à impotência. Afinal, como Franz Kafka (2002) havia previsto, existia algo mais fatal do que o canto das sereias: “o seu silêncio.” A morte das sereias apresenta uma crise no panorama das emoções. E, junto à mudez do canto, houve a paralisia do movimento.

Na transição do cinema narrativo clássico (1917-60) para o cinema moderno (1960 – hoje)^3 , constata-se um enfraquecimento das ações e, por conseguinte, uma maior internalização de problemas. Inibidos de ações, os amantes adquirem o dom da vidência e enxergam na inação significados escondidos pelo mundo do movimento. Com um novo olhar, adquirem a consciência do desequilíbrio do mundo. Os amantes passaram a aceitar a sua própria covardia, eles se veem impossibilitados diante de situações de conflito e não realizam mais uma ação sensório-motora, física, para solucioná-las. O apaixonado deixa de buscar uma resolução, consciente de sua inabilidade em aniquilar o problema.

(^1) De acordo com Giddens, a mãe foi idealizada e o afeto foi amalgamado à ideia de feminino. (^2) Aphaville (Jean-Luc Godard, 1965, França/Itália, 99 min)

(^3) Não há consenso quanto à data final do cinema moderno e esse trabalho considera que as características modernas persistem até hoje e que não houve um momento de ruptura com tal cinema, mas sim uma continuidade.

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Passou-se a questionar se as sereias teriam sido só um mito ou se os homens e as mulheres haviam se tornado insensíveis por causa da cera nos ouvidos. Seja como for, o que restou dos flagelos do amor romântico foi a desconfiança nas promessas de eternidade e de felicidade, que, na doce bocarra das cantoras, levaram tantos para uma morte encantada. O modelo monogâmico, heterossexual e escapista dos românticos não fazia mais sentido em uma sociedade abatida por duas grandes guerras. Hoje, não sabemos se o que temos é a nostalgia dos tempos das sereias ou o total deboche dessa fantasia.

Surge uma nova história para Ulisses, em que as sereias são apenas belas figurantes nuas de um filme que não se consegue terminar, no qual não há nem a possibilidade de encontro do espetacular na morte. Pelo contrário, a relação conjugal abalada é o tema de uma geração descrente nas promessas amorosas. No romance “ Il Disprezzo ” (1954) de Alberto Moravia, um diretor de cinema propõe uma versão alterada da Odisseia, a de que Ulisses teria sugerido a Penélope aceitar presentes dos pretendentes e não desagradá-los, levando-a então a desprezar o marido que, desesperado, resolve partir para Tróia e retardar o seu retorno, só conseguindo de novo o amor da mulher após matar os pretendentes. Em “Desprezo” ( Le mépris , Jean-Luc Godard, França, 1963, 103 min), que adapta o romance, sugere-se que Penélope é infiel e, ao invés de ser o símbolo da espera eterna no amor, tecendo e destecendo o tecido infinito, ela é uma mulher volúvel e vingativa.

O panorama amoroso não é mais de busca de um amor maior que a vida e a sociedade de divorciados e encontros sexuais casuais marca o velório das mágicas sereias. De acordo com Bauman (2004), em uma sociedade consumista como a atual, não há espaço nem para o desejo, muito menos para o amor. O consumo é realizado num impulso e o desejo não consegue o tempo necessário para crescer. O imediatismo, a satisfação urgente, o prazer passageiro, as receitas testadas, as garantias e os seguros caracterizam essa cultura, onde não há mais condições para a geração de nada que não tenha lucros garantidos. Raciocínios antes destinados apenas ao mundo do consumo passaram a ser empregados no universo dos afetos. Relacionamentos são vistos como ações na bolsa de valores, um compromisso é um investimento que pode subir ou descer e a lealdade a uma ação nova

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Hoje, a sexualidade não condensa mais o potencial de prazer e felicidade. Ela não é mais mistificada positivamente. Como êxtase e transgressão, mas negativamente, como fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal. (ZIGUSCH apud BAUMAN,2003, p.56)

De forma ambígua, o amante vira prisioneiro do prazer, mas não consegue tirar dele mais do que uma melancólica conquista. Além de todas as contradições do amor, há ainda uma faceta a mais: o sofrimento que ele causa se não for recíproco. De acordo com Annette Baier, misamorists “são aqueles que dão ênfase aos sentimentos negativos existentes no estado psíquico de apaixonamento romântico: ciúme, ódio, medo, dor...” (COSTA, 1998, p.169). Afinal, a entrega à urgência romântica, quando não correspondida, leva à ansiedade, ao desespero e, muitas vezes, à morte nos braços das sereias. De forma análoga aos amantes líquidos de Bauman que, no medo de se perderem, optam por nunca se envolver, a paixão compromete a autonomia humana.

O amor romântico, em seu entender, nos impede de imaginar ‘outros elos afetivos que poderiam fazer do mundo um lugar menos triste’, pela importância que tem na ideia de felicidade do imaginário ocidental. (COSTA, 1998, p.157).

Apesar dos perigos do amor romântico, tal amor propôs, de forma inovadora, o desenvolvimento de uma vida individual, independente dos processos sociais, na qual a relação íntima possui prioridade especial. Dessa forma, pela primeira vez, criou-se um eixo entre amor e liberdade. “Os ideais do amor romântico...inseriram-se diretamente nos laços emergentes entre a liberdade e a auto-realização” (GIDDENS, 1993, p. 50-51). De maneira semelhante, a literatura romântica se instituiu como uma literatura de esperança e recusa que, frequentemente, quanto ao papel da mulher, “rejeitava a ideia da domesticidade estabelecida como o único ideal proeminente” ( ibidem , p. 55). Além disso, o amor romântico apresenta um caráter mais ativo do que o apresentado nos registros literários medievais; porque, na sua busca,

Possui um caráter ativo e, neste aspecto, o romance moderno contrasta com as histórias românticas medievais, em que a heroína em geral é relativamente passiva. ( ibidem , p. 57)

O amor romântico foi um modelo que ruiu, pois a liberdade de autorrealização que

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propunha teve sua potência reduzida e limitada pela associação compulsória ao casamento, à maternidade e à eternidade. Tal obrigatoriedade fez com que muitas mulheres se submetessem a um casamento infeliz para se manterem “respeitáveis” ( ibidem , p. 49). A princípio entendido como uma alforria do destino na cozinha, as mulheres que sonhavam com um amor maior que a vida, liberto de todas as obrigações sociais, acabavam apenas na casa de outro homem (não mais o pai), agora como mães e esposas.

Diante do existencialismo sartriano, essa tensão entre liberdades tornou o amor em uma meta impossível. Para Jean-Paul Sartre (2008), as relações só podem ser vistas a partir da ótica do conflito. Quando amamos, queremos o outro. O outro é um olhar, que molda quem sou, me possui e é a forma do eu experimentar o meu ser-Para-outro. Através desse olhar outro, eu existo, é o olhar dele que me cria. Assim como os apaixonados, num passe de mágica, se acham mais belos e melhores diante de um olhar amoroso. Por isso, eu preciso me tornar ser-objeto para existir, ser objeto do olhar do outro. Esse “ser-objeto é a única relação possível entre eu e o outro” (SARTRE, 2008, p.456). Dessa forma, a minha relação com o outro é de subjugação. Tenho de me objetificar, diante do olhar e da liberdade do outro, desistindo da minha liberdade, com que tanto sonhei ao ler os folhetins românticos, para que possa perceber que existo. Como num quarto cheio de espelhos em todas as paredes, sinto que só através dos olhos dos outros posso enxergar todas as facetas da minha própria essência, ainda que temporária. Através dos olhos de outras pessoas é que consigo me ver como parte do mundo, como totalidade. No amor, o eu se sente inteiro, como prometia o romantismo e o mito do andrógino de Aristófanes, como se finalmente fosse reavida a outra metade cortada pelos deuses. Mas essa certeza se dissipa rapidamente dando lugar ao desespero de perder-se.

Como existo pela liberdade do outro, me sinto inseguro e sinto que preciso recuperar o meu ser. Numa manobra semelhante a da minha objetificação para o outro, quero submeter a liberdade do outro à minha. Porém, a noção de propriedade, de possessividade, tão comum em tantos relacionamentos de ciúme, em que o aprisionamento do outro me dará as garantias que preciso, não se confirma. Queremos possuir a liberdade do outro, mas ela só existe enquanto liberdade e, portanto, algo livre: “o amante não quer possuir o amado como se possui uma coisa; exige um tipo especial de