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Jean-paul sartre, filósofo francês, questionou as bases da psicologia clínica, criticando a herança liberal e médica, a concepção de saúde mental e a função social. Ele propôs uma nova perspectiva existencialista, oferecendo uma nova ontologia do eu, teoria do imaginário, teoria das emoções e teoria dos processos de socialização. Sartre teve uma clareza do potencial clínico de sua psicanálise, mas ainda falta aplicá-la praticamente.
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Tipologia: Notas de aula
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Interação em Psicologia, 2006, 10(1), p. 101-112 101
Daniela Ribeiro Schneider Universidade Federal de Santa Catarina
RESUMO O campo da psicologia clínica vem, historicamente, enfrentando dilemas epistemológicos no seu âmago, tais como, a multiplicidade de tendências que a fundamentam, que acarretam na indefinição de seu objeto, além da já questionada herança da perspectiva liberal e do modelo médico, entre outros aspectos, que acabam por questionar sua dimensão prática. Sartre foi um autor que discutiu aspectos fundantes da disciplina psicológica, bem como de seu domínio clínico, propondo concepções inovadoras. Suas obras têm muito a oferecer para o enfrentamento e superação de tais dilemas. O projeto fundamental do trabalho intelectual de Sartre foi reformular tal disciplina, realizando esse propósito no conjunto de suas obras psicológicas, filosóficas, literárias e em seus empreendimentos biográficos. Criador de uma metodologia específica de investigação da realidade humana, explicitada em sua “psicanálise existencial”, Sartre fornece as bases para uma psicologia clínica existencialista. Utilizando o recurso de elaborar biografias de escritores conhecidos, Sartre demonstrou ser possível atingir o conhecimento objetivo do ser do sujeito estudado, primeiro passo necessário para uma intervenção científica. A tarefa da psicoterapia sartriana é, pois, colocar o projeto de ser da pessoa em suas próprias mãos, na medida em que isso o viabilizará como sujeito de sua vida e de sua história. Palavras-chave : psicologia clínica; Jean-Paul Sartre; psicologia existencialista.
ABSTRACT Clinical psychology from a point of view of J. P. Sartre’s contributions Traditionally, clinical psychology has faced epistemological dilemmas in its core, such as the multiplicity of tendencies that structure it, which leads to an undefinition of its object. Among other aspects, the legacy it received from the liberal perspective and the medical model are also problematic and they have already been put in question. This affects its practical dimensions. Sartre was an author who discussed aspects of the basis upon which psychology was built, as well as clinical facets and proposed some innovative concepts. His work has much to offer to overcome such dilemmas. The fundamental project in Sartre’s intellectual work was reformulating psychology in his set of psychological, philosophical, literary works and in his biographical enterprises. Sartre was the creator of a new psychological theory as of a specific methodology to investigate the human reality. Both of them were explained in his “existential psychoanalysis” where Sartre gives the basis for an existential clinical psychology. The duty of the sartrean psychotherapy is to put the being project of the individual into his own hands, turning him into the manager of his own life and his own history. Keywords : clinical psychology; Jean-Paul Sartre; Existential Psychology.
I – O campo da psicologia clínica
No imaginário popular a clínica é a área predomi- nante e identitária da psicologia. Esse imaginário encontra seu suporte no fato do psicólogo clínico ser, efetivamente, o modelo hegemônico de profissional da psicologia, conforme atestam uma dezena de pes- quisas realizadas a partir do início década de 1980, no Brasil, entre elas as do Conselho Federal de Psicolo-
gia (1988; 1992; 1994). No início da década de 90 surgiram, na profissão, várias áreas emergentes (psi- cologia hospitalar, jurídica, dos esportes, saúde públi- ca etc.), geradas em função das demandas do mercado de trabalho, de mudanças nas relações sociais, bem como nas concepções teóricas, o que levou a uma certa modificação na já consolidada concentração dos psicólogos na área clínica. Portanto, a clínica é a área
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mais conhecida e, como conseqüência, a mais estereo- tipada no campo da psicologia.
Há muita discussão sobre as razões desse predomí- nio. Entre elas, não podemos deixar de considerar, a grande influência da psiquiatria e, portanto, do mo- delo médico, na constituição dessa disciplina, o que ajudou a definir os contornos da prática clínica e a consolidar o prestígio herdado do poder médico. Além disso, a tarefa de realizar a adaptação dos indivíduos desajustados, função para a qual a clínica psicológica foi inicialmente concebida, conforme atesta vários de seus historiadores (Mensh, 1971), serviu à necessida- de premente da sociedade de manter seu status quo.
Essas reflexões iniciais nos levam a indagar acerca das dificuldades e impasses em torno da delimitação da função clínica em psicologia. A partir da década de 80, frente a todas essas indefinições, além da consta- tação de sua dimensão ideológica, bem como de seu predomínio hegemônico, muitos psicólogos e pesqui- sadores brasileiros começaram a questionar aspectos basilares da área clínica (Conselho Federal de Psico- logia, 1988; 1992; 1994; Campos, 1992):
a) o fato de a psicologia clínica seguir e propalar um modelo de profissão liberal, pautada pela démarche médica, voltada para o atendimento de uma camada privilegiada da população – crítica de ordem político-ideológica; b) a sua concepção de homem ser individualista, ahistórica e associal, advinda de uma herança da psiquiatria clínica, de perspectiva mais orga- nicista e de uma psicologia subjetivista, sus- tentada em uma filosofia idealista e mentalista, além de sua relação com a concepção liberal de sociedade – crítica de cunho mais teórico e epistemológico, bem como ideológico; c) a concepção de saúde mental que a sustenta ser pensada em termos de normal/anormal, herança do modelo empírico, classificatório, que traba- lha na direção de enquadramento dos compor- tamentos desviantes – crítica de cunho episte- mológico e ideológico; d) a sua função de ajustamento dos indivíduos com comportamento desadaptado à sociedade, cumprindo um papel social de “manutenção do status quo ”, herança da medicina higienista do século XVIII e da psiquiatria clássica – crítica de cunho ideológico e político; Essas críticas, fundamentais para se pensar o fazer do psicólogo, acabaram por se tornar um questiona- mento de todo o modelo clínico e de sua prática mais
conhecida, a psicoterapia. Esses questionamentos adquiriram, de forma geral, uma ênfase mais político- ideológica, cuja solução deveria passar pela conscien- tização da função social do psicólogo, através de uma luta política na interioridade da categoria, na formação do psicólogo e na sociedade. Importantes conquistas foram feitas nesse campo. No entanto, no rumo desses questionamentos, muitas vezes se deixou de lado o aspecto teórico e epistemológico das críticas, funda- mentais por apontarem lacunas centrais na constitui- ção da ciência psicológica, posicionando-se, muitas vezes, aprioristicamente, pela negação da clínica ou da psicoterapia e não pela superação dos impasses dessa importante área de atuação do psicólogo. Dessa forma, o presente artigo visa trazer novas contribuições para o campo da psicologia clínica, que enfrentem seus problemas de (in)definição, seus dile- mas teóricos e epistemológicos. Nessa direção, a psi- cologia consolidada por Jean-Paul Sartre, que se ins- taura em um horizonte epistemológico, teórico e ideo- lógico diferente do da psicologia empírica, da psiquia- tria e da psicanálise freudiana, por assumir uma pers- pectiva histórica, dialética, não mentalista e não sub- jetivista, tem muito a oferecer para a superação dos impasses enfrentados pela psicologia clínica.
O grande desafio de Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi responder a alguns problemas que estavam pro- postos aos cientistas, filósofos e pensadores de sua época (Bertolino,1995): os dilemas trazidos pelo idea- lismo e racionalismo, por um lado, e pelo materialis- mo e positivismo, por outro, concretizados em ques- tões como a problemática do conhecimento, a discus- são acerca da objetividade nas ciências; a necessidade de revisão da filosofia, trazida pelo marxismo, que postulava um conhecimento que remetesse à realidade sócio-histórica, pois “bastava de contemplar o mundo, cabia, agora, transformá-lo!” (Marx & Engels, 1987). O contexto cultural estava a exigir, pois, a produção de um conhecimento que partisse e voltasse ao homem concreto. Era o que reclamava Politzer (1965; 1998) com a perspectiva de uma psicologia concreta, era o que perseguia Vygotski (1996) na discussão e crítica ao método da psicologia, lá pelos anos 1920 e 1930. Era também o que postulava a fenomenologia, no final do século XIX e início do século XX, pautando- se em seu princípio da volta às coisas mesmas. Sartre inseriu-se no âmago mesmo das indagações presentes no contexto da evolução do pensamento daquele mo-
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res que serão seus principais interlocutores – Husserl e Heidegger. O filósofo solicitou uma bolsa para estudar fenomenologia em Berlim, passando lá o ano de 1933, quando teve oportunidade de pesquisar essa filosofia em suas fontes originais.
O primeiro texto que Sartre produziu, esboçando suas reflexões críticas sobre as contribuições filosófi- cas da fenomenologia, escrito em 1934 e publicado somente em 1939, é o conhecido Uma idéia funda- mental da fenomenologia de Husserl: A intencionali- dade (Sartre, 1968), no qual explora a idéia-chave que guiará sua filosofia e psicologia, a intencionalidade, que postula que toda “consciência é sempre consciên- cia de alguma coisa”, ou seja, a consciência é sempre relação a uma exterioridade. Essa noção é o funda- mento para questionar o “mito da interioridade” ou, como ele designa nesse texto, a velha “filosofia ali- mentar”, recolocando essa disciplina em novas bases. A fenomenologia lhe fornece “os meios de pôr fim à idéia de representação e constituir assim uma nova psicologia, o que ele procurará fazer nos anos subse- qüentes – uma psicologia da imagem, da emoção, mesmo mais tarde uma psicanálise existencial” (Moutinho, 1995, p. 163).
Aos poucos, Sartre irá construindo sua crítica a Husserl, principalmente ao idealismo pressuposto em toda a sua proposta fenomenológica, até o momento em que precipitará sua ruptura com as idéias do refe- rido filósofo. Sartre, a partir de 1939, passa a centrar seus estudos principalmente na obra de Heidegger. Vai incorporando, um após outro, conceitos como “ser-no-mundo”, “mundaneidade”, “nada”, “tempora- lidade”, mas sempre de forma crítica. De qualquer maneira, a fenomenologia que Sartre foi aprender na Alemanha será decisiva na constituição de sua obra (Coorebyter, 2000).
A tese de conclusão de sua pós-graduação em Berlim foi seu primeiro escrito sobre a psicologia fenomenológica, sob a denominação de A Transcen- dência do Ego (1937/ 1994 2 ). Nele descreve a ontolo- gia do eu e os processos de constituição da personali- dade, quando defende que um dos grandes impasses presentes na filosofia e na psicologia, até então vi- gentes, é o fato de não diferenciarem a consciência do ego. Sartre estabelecerá uma distinção essencial entre essas duas dimensões do homem, demonstrando que o ego, ao contrário do que se afirmava, não é imanente à consciência, ou seja, não é seu habitante, mas sim, transcendente, objeto do mundo. Pretendia superar, com isso, o solipsismo (a concepção de um sujeito sustentado em si mesmo, o mundo sendo desdobra-
mento da perspectiva pessoal de cada um), bem com a chamada ilusão substancialista (a consciência consi- derada como uma substância em si), conceitos sempre presentes nas filosofias idealistas. A partir de então o caminho torna-se irreversível. As posições defendidas em A Transcendência do Ego se aprofundarão no restante de seus estudos. Suas obras, destacadamente as de cunho filosófico e psico- lógico, constituem-se em um conjunto articulado de concepções ontológicas, antropológicas, psicológicas e metodológicas. Somente em 1938 será publicado seu romance A Náusea (1938/2000), que já vinha redigindo desde 1933-4. Romance centrado na noção de contingência , ou seja, do confronto do sujeito com a gratuidade da existência, narra a história de Roquentin, que sofre de uma “metamorfose insinuante e horrível de todas as sensações” (Sartre, 2000), passando por um verdadei- ro processo terapêutico, no sentido da alteração do seu modo de se lançar no mundo e da redefinição de seu projeto de ser, na medida em que havia tido impasses psicológicos justamente por experimentar esse projeto inviabilizado. Sartre, nessa obra, insere uma série de reflexões filosóficas, ainda que em linguagem literá- ria. Um dos fatos que o levou a escrever A Transcen- dência do Ego , foi a tentativa de elucidação técnica de sua expressão literária em A Náusea (Contat & Rybalka,1970). Em 1936, ainda sob forte influência da fenomeno- logia de Husserl, dedica-se a estudar as questões liga- das à imagem mental, escrevendo uma obra cuja introdução tem o título de A Imaginação (1936/1987), onde faz uma revisão das principais teorias existentes sobre a psicologia da imaginação. Poucos anos mais tarde é publicado o restante dessas reflexões, sob o título de O Imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação (1940/1996), onde Sartre descreve sua própria compreensão dos fenômenos do imaginário. Partindo da noção de intencionalidade, concebe a imaginação como uma das formas da consciência se relacionar com o mundo, nesse caso com um objeto ausente ou inexistente. Portanto, a consciência imagi- nante não é algo que se dá “dentro” do sujeito, mas na sua relação com o mundo. O imaginário permite ao sujeito transcender a situação dada em direção ao que ainda não é, ao futuro. Possibilita, também, a retoma- da daquilo que já foi, o passado. Dessa forma, o ima- ginário é fundamental na definição do ser do homem, já que o coloca frente ao seu projeto de ser e a sua história.
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Vemos aqui os caminhos teóricos trilhados por Sartre que desembocam, nos anos de 1937/8, no seu tratado sobre La Psyché , cuja pretensão era elucidar a realidade humana a partir da existência concreta do sujeito, elaborando uma nova psicologia. No entanto, segundo Bertolino (1995) “teve de se rever a meio caminho, devido aos obstáculos de ordem técnica”. Seria necessário resolver, primeiramente, questões de ordem ontológica (teoria do ser da realidade) e antro- pológica (teoria do ser do homem), para depois resol- ver as questões do psicológico. Sartre nos explica, em seu Esboço de uma Teoria das Emoções (1939/1975), que foi o fragmento publicado das 400 páginas que já havia escrito do referido tratado:
Por outro lado, a psicologia, encarada como ciência de certos fatos humanos, não poderia ser um come- ço, porque os fatos psíquicos com que nos depara- mos nunca são os primeiros. São sim, na sua estru- tura essencial, reações do homem contra o mundo; pressupõe, portanto, o homem e o mundo e não po- dem assumir o seu verdadeiro sentido se, primeira- mente, essas duas noções não forem elucidadas. Se desejarmos fundar uma psicologia, teremos de ir bem mais alto do que o psíquico, mais alto do que a situação do homem no mundo; teremos de ir até à origem do homem, do mundo e do psíquico. (Sartre, 1939, p. 18)
Portanto, Sartre defronta-se com uma questão téc- nica fundamental. Constata que não conseguiria fun- dar uma psicologia , como era sua pretensão, explici- tada claramente na citação acima, se não revisse as bases filosóficas dessa ciência, se não lhe constituísse outra ontologia, que viabilizasse a compreensão da realidade, do homem, em uma outra perspectiva, já que a filosofia que tinha a seu dispor no contexto de sua época não lhe fornecia os subsídios necessários para tal empreendimento.
Passa a escrever, então, seu conhecido O Ser e o Na- da: ensaio de ontologia fenomenológica (1943/1997), no qual realiza a necessária revisão da filosofia, con- cretizando-se na proposição de uma nova ontologia fenomenológica. Nesse livro dialoga com autores como Husserl e Heidegger, apoiando-se em muitas de suas noções, ao mesmo tempo em que os critica pro- fundamente.
Nesse ensaio de ontologia, Sartre aprofunda a no- ção de consciência adquirida em Husserl, concebida pelo existencialista como a dimensão transfenomênica do sujeito, o absoluto de subjetividade; absoluto to- mado pelo existencialista no sentido filosófico, do ser
que é ilimitado, incondicional, incontestável. Portanto, Sartre considera a subjetividade, aqui compreendida pela noção de consciência, enquanto uma dimensão indescartável da realidade, daí ser um absoluto em termos ontológicos. No entanto, esse absoluto de subjetividade é não substancial , ou seja, não se sus- tenta em si mesmo, na medida em que a “consciência é sempre consciência de alguma coisa ” (princípio da intencionalidade), necessitando, assim, das coisas para ser. Constitui, portanto, a região ontológica que Sartre designa de para-si , na medida em que é pura relação, puro movimento para a exterioridade, não se susten- tando em-si mesma. A consciência é o que ela não-é , na medida em que seu ser é ser relação a algo. Ela é assim, o nada , o não-ser que se acrescenta ao ser. Eis que o outro absoluto, o de objetividade, é, então, tam- bém indescartável para a constituição da realidade. A objetividade, compreendida pelas coisas , não depende da consciência para existir, posto que os objetos, a natureza, os corpos, a materialidade existem em-si , independente do que se percebe, pensa, imagina ou constata sobre eles. Porém, o ser que é em-si não tem alteridade, na medida em que não estabelece relação por si mesmo, necessitando da consciência para ser organizado, sistematizado, nomeado, significado. Por- tanto, as duas regiões ontológicas que compõem a realidade: o ser e o nada , as coisas e a consciência , ou ainda, o em-si e o para-si , são dois absolutos, porém relativos um ao outro. Relativos porque, o primeiro (em-si) existe independente do segundo (consciência), mas só se organiza, só ganha sentido, pela presença deste. O segundo (para-si) para existir depende da relação estabelecida com aquele (com as coisas), ape- sar de ser distinto dele. Sartre define, portanto, sua ontologia a partir da dialética entre o ser e o nada ou entre a objetividade e da subjetividade , superando as ontologias idealistas ou espiritualistas (nas quais as coisas ou a objetividade são absorvidas pelo sujeito, consciência, idéia ou espí- rito) e as ontologias materialistas (nas quais o sujeito ou a subjetividade são absorvidos pela matéria, objeto ou ambiente). Como decorrência dos caminhos que vinha trilhan- do anteriormente, seu livro de ontologia O Ser e o Nada é perpassado por discussões de ordem psicoló- gica. Vários temas fundamentais como o homem en- quanto ser-no-mundo, a temporalidade psíquica, as relações com o corpo, o projeto de ser, a liberdade humana, etc, são ali desenvolvidos. No capítulo inti- tulado Psicanálise Existencial , descreve uma proposta metodológica para a psicologia, de forma a elucidar,
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bremaneira, retrabalhadas e superadas por sua própria ontologia e antropologia, forneceram o substrato ne- cessário para Sartre construir uma nova psicologia, que estabelece, definitivamente, um corte epistemoló- gico, metodológico e teórico com a psicologia empíri- ca e seus impasses, bem como com a psicanálise freu- diana e sua lógica pautada no determinismo psíquico^5.
Nesse horizonte, Sartre elaborou:
enfim, aspectos que desembocam em sua acepção da personalidade como resultante de um processo de construção, onde a “existência precede a essência”, o que coloca o homem como sujeito de seu ser. Esses pressupostos forneceram para Sartre a possi- bilidade de delinear importantes contribuições para o campo da psicopatologia. Sustentado em Jaspers (1979) e servindo de subsídio aos antipsiquiatras, o existencialista vai compreender a psicopatologia a partir do núcleo da vida e da história concreta do su- jeito. Ela é uma perturbação, sempre psicofísica, que acontece em função do movimento do sujeito no mundo, resultante de sua história de relações. Dessa forma, ao contrário da psicopatologia psiquiátrica que pretendem entender o homem a partir da doença , dando uma ênfase às determinações genéticas, Sartre compreende a doença a partir do homem, o patológi- co a partir de seu existir concreto no mundo. A elabo- ração de biografias de escritores conhecidos foi o recurso utilizado pelo existencialista para demonstrar concretamente a viabilidade teórico-prática de suas concepções. Essas são, portanto, as bases para que se possa viabilizar uma psicologia clínica em perspectiva sartriana.
V – Sartre e o caminho metodológico em direção a uma psicologia clínica científica
Sartre explicita claramente seu método para a investigação da realidade psíquica, no capítulo de O Ser e o Nada intitulado “Psicanálise Existencial”, complementando-o em seu Questão de Método, des- crevendo-o nos termos que explicitaremos abaixo. O objetivo da psicanálise sartriana é decifrar o nexo existente entre os diversos comportamentos, gestos, emoções, estados, ações, pensamentos do su- jeito concreto, ao extrair o significado de cada um destes aspectos em direção a um fim. Isto quer dizer que a psicanálise existencial deve decifrar o projeto de ser de cada indivíduo estudado, pois é ele que define o que são e para onde se encaminham os diferentes mo- vimentos de uma pessoa no mundo. O ponto de partida da investigação deve ser os aspectos concretos da vida de um sujeito, ou seja, os fenômenos de sua vida de relações, de homem em situação. Aqui se delineia o método sartriano: por um lado, ele é comparativo, ou seja, estabelece ligações entre os diversos aspectos que presidem a vida de um sujeito, procurando atingir o projeto original que dá sentido ao conjunto; é, nesse sentido, um método compreensivo ou sintético, já que pretende chegar “à
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intuição do psíquico, atingida por dentro”, como diria Jaspers (1979). Por outro, ele deve ser progressivo e regressivo, como Sartre (1960) trabalha no Questão de Método, ou seja, deve situar os aspectos antropológi- cos (época, cultura, nível social, etc.), que definem os contornos de ser de um sujeito concreto, reenviando- os ao mesmo tempo, à sua rede sociológica, bem como à sua subjetividade, a fim de se compreender a apropriação peculiar desses aspectos mais universais. A expressão da pessoa em gestos, atos, palavras, obras, devem ter, assim, sua dimensão subjetiva e objetiva. O sujeito é um singular/universal, pois ao mesmo tempo em que é idiossincrático, ele é resul- tante de seu tempo, de sua cultura e, portanto, uma ponte para compreendê-los.
A concepção de homem que subjaz na teoria sartria- na é histórica e dialética, segundo a qual o sujeito só pode ser compreendido levando-se em conta sua his- tória individual, tanto quanto a de sua conjuntura fa- miliar e a de seu contexto social e cultural, tendo como fundo de sustentação a noção que ele se faz e é feito no/por esse conjunto de fatores. Toda a psicolo- gia existencialista construída por Sartre pauta-se nessa antropologia, servindo de embasamento teórico para a concretização de sua psicanálise existencial.
Sartre, com a clareza do potencial clínico de sua psicanálise, afirma que sua “psicanálise ainda não encontrou o seu Freud” (Sartre, 1943, p. 663), assina- lando que o que faltava a ela era ser posta em prática.
A estratégia por ele utilizada, a partir de seus deli- neamentos teórico-metodológicos, em vistas à viabili- zação de sua psicanálise existencial, foi o da elabora- ção de biografias, buscando uma compreensão rigorosa do ser dos seus biografados, ao esclarecer o processo de suas personalizações, em suas dimensões objetivas e subjetivas, chegando ao projeto e ao desejo de ser, que são o combustível dos fenômenos psicológicos e da história de vida de cada sujeito, como fez com Ge- net e Flaubert. Essas biografias trazem, com isso, uma grande contribuição ao entendimento dos caminhos de uma psicologia clínica sartriana.
Para Sartre (1939) a tarefa da ciência, é esclarecer as condições de possibilidade de certos fenômenos de ordem geral, ou seja, é investigar os fatores que são os determinantes para a ocorrência de um dado fenôme- no estudado. Primeiramente deve-se, no entanto, investigar as variáveis que o delimitam e que interfe- rem para que ele se desenvolva da forma como deva ser. Depois disso é que se deve investigar suas deter- minantes.
A tarefa da ciência psicológica deve ser, portanto, investigar as condições de possibilidades de certos fenômenos de ordem psicológica ocorrerem, conside- rando-os em suas essências específicas, suas variáveis constitutivas, seus significados (Sartre, 1939). Sendo assim, a psicologia clínica, cujo objeto é a personali- dade e a psicopatologia do paciente, para ser científi- ca, em sua teoria, em seu método e em seus procedi- mentos, deve investigar quais as condições de possi- bilidade para um sujeito chegar a ser quem ele é, ou seja, como chegou a constituir-se determinada perso- nalidade, sustentada em um projeto de ser específico, esclarecendo como foi que se complicou psicologica- mente. Deverá, assim, poder especificar, em sua histó- ria, os contextos antropológicos (cultural, material) e sociológicos (rede de relações e de mediações de ser) que forneceram as condições de sua personalização e psicopatologização. No entanto, no processo científico deve-se sempre começar pelo momento atual do fenômeno para de- pois esclarecê-los em sua gênese. O primeiro mo- mento metodológico necessário é, assim, a demarca- ção do fenômeno, quer dizer, no caso da clínica, a definição clara da sintomatologia e do quadro psico- patológico do paciente, ou seja, a elaboração do psi- codiagnóstico. Ele é que definirá os rumos da inter- venção. O segundo momento é o da elaboração da proble- mática ou do equacionamento do teorema em torno das complicações do paciente. Realiza-se essa elabo- ração investigando as variáveis fundamentais na constituição dos impasses psicológicos do paciente, compreendidos no horizonte da personalidade do pa- ciente, ou seja, a partir de sua dinâmica psicológica, da forma como ele se sabe sendo tal sujeito específico, em seu sistema de certezas de ser (Bertolino, 2004; Sartre, 1952). Aqui é fundamental a inteligibilidade de Sartre acerca da personalidade, considerada sempre como um fenômeno resultante da dialética entre obje- tividade e subjetividade. Portanto, as condições de possibilidade de alguém se constituir sujeito estão dadas em suas relações concretas, inseridas em uma situação mais próxima, de sua rede de mediações, aqui definidas como contexto sociológico e, em uma mais abrangente, dadas pela cultura a que pertence, sua classe social, sua condição material, os sistemas de racionalidades que o influenciam, aqui definido como contexto antropológico (Bertolino, 2004; Sartre, 1952). Essas circunstâncias são apropriadas ativa- mente pelo sujeito concreto, ainda que de forma alie- nada, levando-o a experimentar-se psicofisicamente
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tanto, essa tentativa inglesa não foi fiel ao próprio pensamento sartriano, na medida em que se fundiu com outras metodologias e psicologias com ela incom- patíveis (como a psicanálise kleiniana, por exemplo), utilizando-se do referencial sartriano como contribui- ções pontuais. Assim, apesar de assinalarem o poten- cial clínico da psicologia existencialista, elas não se constituíram na sistematização do conjunto de sua teoria e metodologia.
O aproveitamento do conjunto da obra sartriana na direção da consolidação de uma nova perspectiva para a psicologia e seus desdobramentos concretos para a realização de uma clínica vem sendo praticada, hodier- namente, por alguns profissionais de que temos notícias: há um grupo de psicólogos, filósofos e outros profis- sionais e pesquisadores em Florianópolis, Santa Cata- rina, reunidos em torno do NUCA^6 , que há mais de vinte anos vem se dedicando a estudar a obra de Sartre, e que está pondo em prática uma metodologia psicote- rapêutica totalmente sustentada na filosofia e psicolo- gia sartriana. Nos Estados Unidos, há uma psicóloga, Betty Cannon, que também realiza uma clínica sartriana nos moldes acima mencionados, conforme aparece em seu livro Sartre et la Psychanalyse (Cannon, 1993).
VII – À guisa de uma conclusão
Sartre participou ativamente do contexto da evolu- ção do pensamento de seu tempo, tendo sérias preo- cupações com o papel das ciências na organização da sociedade onde estava inserido. Para que esse papel fosse efetivamente transformador, como julgava ne- cessário, propunha que a filosofia, a antropologia e a psicologia fossem questionadas em seus fundamentos, já que elas fornecem o horizonte de inteligibilidade humana do sistema social vigente. Sua crítica mais contundente prendia-se ao fato de que esses conheci- mentos transformam a realidade em uma mera abstra- ção, em uma entidade metafísica, muito distante da realidade concreta dos indivíduos. Sob o horizonte dessas críticas, o francês partiu para refazer tais co- nhecimentos.
Seu projeto teórico inicial foi elaborar uma nova psicologia. A meio caminho, porém, compreendeu que só conseguiria propor uma nova perspectiva para essa ciência se revisse seus fundamentos ontológicos e antropológicos, pois os impasses da psicologia tinham ali sua âncora. Partiu para a elaboração de uma nova ontologia e, mais tarde, de uma nova antropologia. Mas, no fundo de suas obras, a temática da psicologia continuava presente e em constante elaboração. Seus
empreendimentos biográficos foram exercícios práti- cos de sua psicologia em formulação. Em sua trajetória teórica Sartre viabilizou: a) uma proposta metodológica concreta para a área em estudo
Dessa forma, Sartre construiu um novo arcabouço teórico-metodológico para a psicologia, que coloca a relação do homem com a sociedade em outras bases, fornecendo elementos teórico-epistemológicos para a necessária superação dos processos de alienação, soli- dão e enlouquecimento típicos da cultura contemporâ- nea.
Novas perspectivas para a psicologia clínica a partir das contribuições de J. P. Sartre 111
Os conhecimentos psicológicos e filosóficos pro- postos por Sartre fornecem as condições necessárias para a viabilização de um momento pós-psiquiátrico, que supere os impasse gerados pela dialética entre a tese psiquiatrizante e sua antítese antipsiquiatrizante ou antimanicomial, conforme nos afirma Bertolino (Leone, 2000).
Consideramos como absolutamente necessária e enriquecedora uma reflexão sobre o pensamento sar- triano para a realidade contemporânea, por constituir- se em uma das mais inovadoras compreensões de homem e de sociedade contemporânea e, portanto, em uma reviravolta para as ciências hodiernas, principal- mente em suas elaborações para a psicologia e, mais especificamente, para a psicologia clínica.
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