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Guias e Dicas
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Cenário Português na Idade Moderna: Ideias, Expansão Marítima e Formação do Reino, Notas de estudo de Cultura

Uma introdução à história e historiografia de portugal durante o renascimento, enfatizando a importância do papel do reino em circulação de ideias europeias, especialmente aquelas italianas. O texto aborda a formação do reino de portugal, as viagens de descobrimento e colonização, e a influência da herança da ciência islâmica medieval no desenvolvimento de conhecimentos náuticos em portugal. Além disso, o documento discute a importância dos humanistas e a criação de novas instituições educacionais, como o colégio das artes, estruturado de acordo com o programa de educação humanista.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pernambuco
Pernambuco 🇧🇷

4.2

(45)

225 documentos

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7 Tempo
Notas sobre cultura,
política e sociedade
no mundo português
do século XVI *
Lígia Bellini **
Em A sociedade da corte, Norbert Elias observa que, tanto em países com
governo absolutista como a França do ancien régime como em Estados menos
centralizados, a corte do rei combinava duas funções distintas: a de residência da
família real extensa e a de órgão central da administração do Estado. Nesse espaço
imbricavam-se interesses pessoais e oficiais de diferentes tipos. Elias observa também
que sociedades envolvidas em processos de conquista em geral se caracterizavam por
uma marcada tendência a concentrar poder político numa única posição social, a do
monarca, cuja corte constituía uma poderosa e prestigiosa elite.1
Esses atributos genéricos são a meu ver adequados para caracterizar a corte real
portuguesa no século XVI. Portugal era, nessa época, um Estado amplamente
envolvido na empresa de conquista, com uma administração centralizada dos negócios
públicos, desde o que dizia respeito a decisões políticas e militares até o que concernia
à administração de centros intelectuais como a universidade e o Colégio das Artes,
criado em 1548 com o objetivo de promover a educação humanista e que, apenas sete
anos depois, teve sua orientação radicalmente transformada.2
* O presente artigo foi escrito com base em pesquisas patrocinadas pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq. Agradeço a João José Reis e a Maria Inês Cortes de
Oliveira pelos comentários.
** Professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia.
1. Norbert Elias, The Court Society, Oxford, Basil Blackwell, 1983, pp.1-2.
2. Sobre o papel central da figura do rei no aparato institucional da administração portuguesa nos começos da
época moderna, ver José Manuel Subtil, “A administração central da Coroa”, in José Mattoso (dir.), História de
Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, 8 vols., vol. 3, 1993, pp. 78-90, esp. pp.78-80.
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7 Tempo

Notas sobre cultura,

política e sociedade

no mundo português

do século XVI *

Lígia Bellini **

Em A sociedade da corte , Norbert Elias observa que, tanto em países com governo absolutista como a França do ancien régime como em Estados menos centralizados, a corte do rei combinava duas funções distintas: a de residência da família real extensa e a de órgão central da administração do Estado. Nesse espaço imbricavam-se interesses pessoais e oficiais de diferentes tipos. Elias observa também que sociedades envolvidas em processos de conquista em geral se caracterizavam por uma marcada tendência a concentrar poder político numa única posição social, a do monarca, cuja corte constituía uma poderosa e prestigiosa elite.^1 Esses atributos genéricos são a meu ver adequados para caracterizar a corte real portuguesa no século XVI. Portugal era, nessa época, um Estado amplamente envolvido na empresa de conquista, com uma administração centralizada dos negócios públicos, desde o que dizia respeito a decisões políticas e militares até o que concernia à administração de centros intelectuais como a universidade e o Colégio das Artes, criado em 1548 com o objetivo de promover a educação humanista e que, apenas sete anos depois, teve sua orientação radicalmente transformada.^2

  • O presente artigo foi escrito com base em pesquisas patrocinadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq. Agradeço a João José Reis e a Maria Inês Cortes de Oliveira pelos comentários. ** Professora do Departamento de História da Universidade Federal da Bahia.
  1. Norbert Elias, The Court Society , Oxford, Basil Blackwell, 1983, pp.1-2.
  2. Sobre o papel central da figura do rei no aparato institucional da administração portuguesa nos começos da época moderna, ver José Manuel Subtil, “A administração central da Coroa”, in José Mattoso (dir.), História de Portugal , Lisboa, Editorial Estampa, 8 vols., vol. 3, 1993, pp. 78-90, esp. pp.78-80.

Procura-se explorar, no presente artigo, uma variedade de aspectos do mundo português do período que estavam em geral submetidos ao controle direto da Coroa, uma vinculação que serve para explicar, ao menos em parte, as transformações ocorridas no decorrer desse século. São focalizadas as práticas de uma elite política e intelectual, compondo um espectro que abrange desde mudanças nos saberes vigentes na área acadêmica até empreendimentos políticos e militares associados à expansão marítima e às relações de Portugal com outros Estados europeus. Também são referidos, ainda que de forma breve, aspectos da sociedade portuguesa que não estavam diretamente relacionados ao rei e seu círculo, a exemplo da diversidade étnica e religiosa, da escassez de trabalhadores na agricultura e da intranqüilidade social, em contraste com a pompa na corte. Utilizando informações da historiografia sobre Portugal e a Europa nos inícios da época moderna, busca-se compor um quadro do cenário português, uma introdução à história e historiografia de Portugal no Renascimento. No Portugal quinhentista, o paço real era o lugar por excelência de circulação de idéias, já que estava a ele ligada a maior parte dos pensadores, centros e atividades intelectuais. É lícito propor que a dependência, em relação ao patrocínio e controle da Coroa, de instituições e áreas do saber que constituíram, na primeira metade do século XVI, uma oposição promissora ao modelo escolástico, é fator de importância central para explicar o súbito declínio dessas instituições e correntes inovadoras a partir de meados do mesmo século. Todavia, veremos adiante que outros fatores iluminam a perda de vigor das novas tendências, acompanhando o declínio da sociedade portuguesa como um todo. A centralização de atividades e interesses na corte favoreceu o envolvimento pessoal de homens de letras em empreendimentos políticos e militares como as viagens de descobrimento e colonização e a guerra contra o Islã. É interessante observar que, servindo aos reis portugueses simultaneamente como intelectuais e soldados, homens como o cronista, pedagogo, gramático e alto funcionário da administração João de Barros (1496-1570), o poeta Luis de Camões (ca. 1524-1580) e o médico Afonso Rodrigues de Guevara encaixavam -se no paradigma do homem da corte renascentista, traçado por Baldassare Castiglione em Il Cortigiano (1528). Nessa obra, são precisamente as virtudes como estudioso das artes e humanidades e como guerreiro as que recebem ênfase especial na caracterização do leal servidor do príncipe.^3 A cultura portuguesa do século XVI é aqui tratada como um caso particular do Renascimento europeu. Nela estão presentes a efervescência e a mistura de influências modernas, medievais e clássicas, características do período. Como ocorreu em outros países, em Portugal uma parcela importante das novas idéias sobre arte e diversos ramos do saber filosófico e literário era originária da Itália. Essas características gerais adquiriram formas específicas no contexto português. Isto também está de acordo com o modo como o Renascimento se difundiu pela Europa. Um estudo das relações de Portugal com o conjunto da Europa dos inícios da época moderna, do ponto de vista da circulação de idéias, deve considerar os principais acontecimentos da história portuguesa do período.

  1. Baldassare Castiglione, The Book of the Courtier , tradução e introdução de G. Bull, Harmondsworth, Penguin, 1976, passim; ver esp. "Introduction", p.14.

estas fossem possíveis, estiveram em jogo fatores que variaram desde a difusão de idéias no continente europeu até a situação geográfica privilegiada dos reinos ibéricos, especialmente Portugal, em relação ao oceano Atlântico. Técnicas e conhecimentos desenvolvidos por marinheiros e estudiosos italianos no Mediterrâneo, assim como conhecimentos de astronomia, náutica, instrumentos de orientação e matemática (em particular o uso de numerais arábicos ou hindus em cálculos), difundidos por muçulmanos e judeus na península Ibérica, foram de grande importância nesse processo.^7 Paralelamente aos fatores acima mencionados, é preciso considerar o empenho de príncipes como Henrique, o Navegador, e o rei D. João II (cujo reinado estendeu-se de 1481 a 1495), que patrocinaram um desenvolvimento inédito nas áreas de engenharia naval, instrumentos, astronomia náutica e cartografia. As técnicas desenvolvidas por italianos no Mediterrâneo tiveram que ser adaptadas pelos portugueses (e espanhóis) às condições radicalmente diversas de navegação no oceano Atlântico. Este fato é apontado por David W. Waters, que enfatiza a importância de tal processo na constituição, em Portugal, de um saber fundamentado no raciocínio metódico e na observação empírica. Segundo Waters, esse processo decorreu da necessidade de observação sistemática das condições meteorológicas que diziam respeito à regularidade dos ventos e marés e, mais especialmente, da observação de corpos celestes associada a cálculos geométricos, para a determinação da posição dos navios nos oceanos. O uso feito pelos portugueses da astronomia náutica para orientação constituiu, de acordo com Waters, uma forma de navegação inteiramente nova, que implicou a invenção de técnicas, tabelas, mapas e instrumentos.^8 O crescimento desse saber empírico foi fruto da colaboração mútua entre estudiosos e marinheiros, que eram ensinados a usar as novas técnicas e em geral proviam um feedback quanto a seu ajustamento e eficácia. Entre as figuras mais importantes dessa tendência em Portugal, destacam-se o cartógrafo e fabricante de instrumentos náuticos catalão Jacome de Maiorca (primeira metade do século XV), o astrônomo judeu Abraão Zacuto (ca.1452-ca.1525) e o matemático Pedro Nunes (1502-1578). Outras áreas do saber em Portugal tiveram desenvolvimento marcante no que diz respeito ao saber empírico. As navegações possibilitaram a observação de realidades e fenômenos até então desconhecidos, ou referidos incorretamente, em textos antigos e medievais. Além da astronomia e geografia, essa tendência é evidente em estudos sobre plantas e drogas medicinais do Oriente, expressando-se plenamente nos Coloquios dos simples e drogas e cousas medicinais da India , de Garcia de Orta (1563). Nos Coloquios , obras de autoridades como Galeno, Dioscorides e Plinio são analisadas criticamente à luz de informações obtidas através da observação direta.^9

problemática cultural do século XVI , Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp.9-10.

  1. Sobre o papel da herança da ciência islâmica medieval no desenvolvimento de conhecimentos náuticos em Portugal, ver António José Saraiva, História da cultura em Portugal , Lisboa, 1950-62, 3 vols., vol.2, pp.397- 401; Jaime Cortesão, A expansão dos portugueses no período henriquino , Portugalia Editora, Lisboa, 1965, pp.34-37; e Barreto, Descobrimentos e Renascimento ..., op. cit., pp.197-203.
  2. David W. Waters, "Science and the Techniques of Navigation in the Renaissance", in Charles S. Singleton (ed.), Art, Science and History in the Renaissance , Baltimore, Johns Hopkins University Press, pp.189-237, pp.197ss.
  3. Ver Luís de Albuquerque, "Sobre o empirismo científico em Portugal no século XVI", in A sociedade e a cultura de Coimbra no Renascimento (Actas do Simpósio Internacional), Coimbra, Epartur, 1982, pp.9-25; e

Por mais importante que a empresa marítima e colonial tenha sido, ela não pode ser considerada "a alma do Portugal renascentista" 10 no que concerne a ramos do saber distintos dos mencionados acima. Por exemplo, uma ausência que salta aos olhos na área médica é a de comparações entre as características anatômicas dos diferentes tipos raciais com que os navegadores portugueses tiveram contato. Também não se encontram discussões de métodos terapêuticos utilizados em lugares como o Japão e a Índia. Uma análise de obras médicas nessas áreas revela a presença central, nelas, de idéias e abordagens do humanismo renascentista, dentro de uma tradição mais livresca. Outros domínios também parecem ter sido influenciados apenas marginalmente pelas expedições além-mar. Este é o caso das belas artes, em que estudiosos têm apontado a existência de muito poucas evidências da presença de imagens relacionadas às viagens marítimas.^11 Em Portugal, no século XVI, essas evidências são menos freqüentes que em partes da Europa não diretamente envolvidas com os descobrimentos, a exemplo da Alemanha. No continente europeu como um todo, imagens visuais relacionadas aos contatos com novas terras e povos eram muito menos freqüentes que imagens e descrições verbais.^12 É preciso observar, entretanto, que tanto a área médica em geral quanto as belas artes sofreram uma influência indireta dos descobrimentos, já que seu desenvolvimento foi favorecido pela prosperidade econômica e cultural propiciada pelo comércio colonial. O apogeu da expansão portuguesa ocorreu durante o reinado de D. Manuel I (1495-1521), tornando possível o tão sonhado monopólio do comércio das Índias. Entre os reis de Portugal dos inícios do período moderno, D. Manuel parece ter sido o que mais se envolveu com um projeto imperial. Isto se evidencia simbolicamente no título por ele adotado, confirmado por bula papal em 1502: "Dom Manuel per graça de d~s Rey de portugall & dos algarues daquem & dalem mar em África. Senhor de guinee & da comquista nauegacam & comercio dethiopia arabia persia & da Jndia". Também constitui evidência simbólica do projeto imperial desse monarca o mais importante símbolo real, qual seja, a esfera armilar, um antigo instrumento astronômico no qual os principais círculos celestes são representados por anéis de

"Science et Humanisme...", in L'Humanisme Portugais ... (Actes...)., op. cit.

  1. Luis Filipe Barreto Barreto, Descobrimentos e Renascimento ..., op. cit., p.53.
  2. Ver Dagoberto L. Markl, "Uma arte dos descobrimentos ou uma arte da fixação. Entre o sonho imperial de Emmanuel Salomão e o imaginário do real", Vértice 3, segunda série, junho 1988, pp.11-22, passim. Markl discorda da interpretação tradicional, que considera a arquitetura do reinado de D. Manuel I (1495-1521) amplamente influenciada pelas viagens marítimas. Ver, por exemplo, Reynaldo dos Santos, L'art portugais , Paris, Librairie Plon, 1953, pp.13-20; Robert C. Smith, The Art of Portugal 1500-1800 , Londres, Weidenfeld & Nicholson, 1968, Introdução e Capítulo 1; e o estudo mais recente de Fernando A. Baptista Pereira, "A arte dos descobrimentos: renovação plástica e mensagem imperial", Vértice 1 , segunda série, abril 1988, pp.67-74.
  3. Iconografia associada aos encontros com novas terras e povos foi produzida na Alemanha na mesma época que em Portugal. Ver, por exemplo, ilustração em Peter Hulme, "The spontaneous hand of nature: savagery, colonialism, and the Enlightenment", in Hulme e Ludmilla Jordanova (eds.), The Enlightenment and Its Shadows , Londres e New York, Routledge, 1990, pp.16-34, p.19. Exemplos de imagens visuais em que se observa a influência das expedições além-mar, em Portugal e na Alemanha, encontram-se em Markl, "Uma arte dos Descobrimentos...", Vértice 3, op. cit., pp.20-21. Valerie Fraser observa a preeminência de descrições verbais da América e seus habitantes, em relação a imagens visuais, no século XVI. "America and American Indians in Sixteenth and Seventeenth Century Imagery", dissertação de M.Phil. apresentada à Universidade de Londres, 1974, esp. pp.12-13. Sobre imagens verbais produzidas na Europa, como resultado dos empreendimentos coloniais, ver Hulme, Colonial Encounters: Europe and the native Caribbean , 1492-1797, Londres e New York, 1986.

O sucessor de D. Manuel I foi D. João III (1521-1557). Os reinados desses dois monarcas constituem o período histórico de relevância central neste ensaio. Uma breve descrição das diferenças, do ponto de vista econômico, entre os dois, sugere quão breve foi o período de prosperidade em Portugal, na época. No que tange às mais importantes atividades econômicas do reino, o primeiro estava inteiramente direcionado para o comércio colonial com a África e o Oriente. Este foi um tempo de otimismo, em que o tráfico, principalmente o de especiarias, deu a Portugal a ilusão de que se inaugurava uma fase de grande prosperidade. O reinado de João III já mostra os primeiros sinais do declínio, associado a fatores como o êxodo extensivo de funcionários e outros membros da população para as feitorias comerciais e aos custos financeiros para manter uma frota, a burocracia estatal e o luxo da corte.^15 Apesar dessas diferenças, os reinados de Manuel I e João III podem ser considerados aqui como parte de um mesmo quadro geral, uma vez que pode-se observar uma série de similaridades e continuidades entre eles. Um exemplo é a centralização, na figura do rei, das decisões políticas, militares e mesmo quanto ao rumo de instituições acadêmicas. Estas características já aparecem, ao menos em parte, antes do final do século XV, no reinado de João II.^16 O estabelecimento de uma rota comercial através dos oceanos Atlântico e Índico, como uma alternativa ao tradicional tráfico mediterrâneo, transformou Lisboa num dos maiores centros mercantis do mundo. A cidade tornou-se uma das mais populosas da Europa, com um número de habitantes estimado entre sessenta e cem mil, incluindo comerciantes e marinheiros estrangeiros, funcionários ligados à diplomacia, artesãos e outros, que foram para lá atraídos pelas perspectivas econômicas favoráveis.^17 Entusiasmados com a ilusória facilidade de obter lucros com o monopólio do comércio de especiarias, os reis Manuel I e João III, especialmente o primeiro, parecem ter gasto prodigamente os fundos do Estado. Ambos mantiveram uma corte e um grande número de funcionários públicos, construíram igrejas, palácios e fortalezas, levaram para Lisboa intelectuais e artistas estrangeiros, enviaram representantes diplomáticos e estudantes portugueses para diversos centros europeus, além de promoverem guerras de conqui sta. Os reinados de Manuel I e João III diferiram entre si quanto ao estilo de vida na corte. D. João III e a rainha D. Catarina (?-1578), sua esposa, parecem não ter sido tão apegados ao divertimento e ao convívio social quanto seu antecessor. Ao contrário, fizeram-se cercar de uma atmosfera solene e severa, impondo regras de conduta mais rígidas do que no tempo de D. Manuel. Não que as celebrações religiosas e populares tenham deixado de ser promovidas, mas se realizavam num ambiente mais austero. Havia na corte portuguesa um grande interesse na composição e leitura de poesia, tanto imitando formas desenvolvidas na Itália quanto criando novas formas. A maior

  1. O funcionamento e as deficiências do sistema econômico mercantil monopolista, encabeçado pelos reis portugueses do período, são analisados por Joaquim Romero Magalhães, “A Fazenda”, in Mattoso (dir.), História de Portugal , vol.3, op. cit., pp.90-105.
  2. O período correspondente aos reinados de D. Manuel I e D. João III, e suas contradições, são discutidos por vários autores que escreveram sobre a história de Portugal, nos começos da época moderna. Joaquim de Vasconcellos elaborou estudo bem documentado sobre esse tema, Albrecht Dürer e a sua influência na península , Coimbra, Imprensa da Universidade, 1929, passim.
  3. Teresa Ferreira Rodrigues, “As estruturas populacionais”, in Mattoso (dir.), História de Portugal , vol.3, op. cit., pp. 197-241, esp. pp.202 e 213.

parte dos escritores lusitanos freqüentava o paço real. Isto pode ser observado, a título de exemplo, no círculo da princesa Maria (1521-1577), irmã de D. João III, que havia recebido uma boa formação em latim, história e literatura, e apreciava a dança, a música e as artes. A princesa cercou-se de um grupo de mulheres com formação semelhante à sua, que patrocinavam e criticavam o trabalho de escritores e músicos.^18

Uma certa urgência em transformar Portugal num centro cultural, sugerida pelas medidas tomadas pelos reis do período, revela a influência de outros países europeus, especialmente da Itália. Por toda a Europa as cidades italianas eram consideradas paradigmas de centros "modernos", nos quais o saber e as artes desenvolviam-se pari passu com a prosperidade econômica. Isto era reforçado pelos contatos de intelectuais italianos com os reis portugueses, no típico estilo laudatório do Renascimento. O estudioso da cultura clássica e poeta Angelo Poliziano (1454-1494) tinha planos de escrever uma história do reinado de D. João II, com ênfase nos descobrimentos na África, e escreveu ao rei pedindo-lhe que enviasse a Florença materiais sobre o assunto (1489).^19 Constitui evidência da influência da Itália sobre as reformas promovidas pelos reis portugueses o fato de que estes modelaram a criação de novas instituições, como o hospital de Todos os Santos em Lisboa, e a renovação de outras, como a universidade, em instituições italianas similares.^20 Havia uma única universidade em Portugal, no período que estamos enfocando. Desde a sua fundação, no final do século XIII, esta foi sediada alternadamente nas cidades de Coimbra e Lisboa. A interferência direta do rei sobre a universidade parece ter-se iniciado durante o reinado de D. Manuel I, que promulgou novos estatutos cerca de 1504. Em 1537 a universidade foi transferida de Lisboa para Coimbra, que havia sido sua sede duas vezes anteriormente (de 1308 a 1338; e de 1354 a 1377). A transferência da universidade para Coimbra em 1537 foi iniciativa de D. João III, de quem se afirma ter-se empenhado profundamente na renovação da instituição, quer proporcionando melhores condições materiais, quer selecionando pessoalmente parte dos professores.^21 Os estudos humanistas foram introduzidos no contexto português através dos canais apontados por Paul Oskar Kristeller, em artigo intitulado "The European Diffusion of Italian Humanism".^22 Através de eruditos estrangeiros que viveram em Portugal, como o italiano Cataldus Siculus, que lá chegou em 1485 para ser preceptor do príncipe Jorge (?-1550), filho de D. João II,^23 Nicholas Cleynaerts (ca.1493-1542),

  1. Ver H. H. Hart, Luis de Camoens and the Epic of the Lusiads , Norman, 1962, pp.37-45; e Américo da Costa Ramalho, Estudos sobre a época do Renascimento , Coimbra, Imprensa da Universidade, 1969, pp.346-352.
  2. José Vitorino de Pina Martins, "Pico della Mirandola e o humanismo italiano nas origens do humanismo português", Estudos italianos em Portugal, 23, 1964, pp.107-146, pp.112-113; 117-118; Jacob Burckhardt , The Civilization of the Renaissance in Italy , Harmondsworth, Penguin, 1990, p. 109.
  3. Paulo Pereira, “Ensaios de mudança. O confronto de linguagens”, in Mattoso (dir.), História de Portugal , vol.3, op. cit., pp.426-431, pp.426-427.
  4. A. Tavares de Sousa, "A transferência da universidade para Coimbra em 1537 e o ensino da medicina", in A Sociedade ... (Actas...), op. cit., pp.165-193, pp.166-167. Outra universidade foi fundada pela Companhia de Jesus em Évora, em 1559, iniciando suas atividades alguns anos depois. Este tema será abordado adiante no presente artigo. Ver Saraiva, História da cultura ..., op. cit., vol.2, p.208.
  5. Paul Oskar Kristeller, Renaissance Thought and the Arts , Princeton, Princeton University Press, 1990, pp.69-
  6. Ramalho, Estudos ..., op. cit., pp.33-41; "A introdução do Humanismo em Portugal", separata de Hvmanitas,

centro ideal do mundo, na formulação de Nicola Abbagnano.^31 Em segundo lugar, características específicas da cultura portuguesa favoreceram a influência do neoplatonismo lá. Esta corrente filosófica é definida como o "corpo receptivo" e o "conjunto orgânico" que absorveu e articulou idéias derivadas do hermetismo, orfismo, neopitagorismo, astrologia, cabala e outras tendências do período,^32 parte das quais eram correntes na península Ibérica muito antes do Quattrocento. Este é o caso da astrologia e de conceitos religiosos e filosóficos da tradição hebraica. Foi na península Ibérica que se originou o pensamento cabalístico, adotado por um dos principais platonistas florentinos, Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494). É provável que essas condições históricas anteriores tenham constituído um terreno favorável à recepção de influências derivadas do neoplatonismo italiano. Além disso, tais condições implicaram a relevância que tiveram certas atitudes e crenças, como as associadas à astrologia e à cabala, em Portugal no período estudado.^33 Se o quadro de prosperidade econômica decorrente do comércio colonial, junto com o interesse dos monarcas portugueses em transformar o reino num centro cultural, constitui o referencial em relação ao qual o florescimento de certas áreas do saber deve ser analisado, outras características da sociedade portuguesa servem para explicar, ao menos em parte, seu rápido declínio. Ao contrário de outros centros comerciais europeus, entre os quais as cidades italianas e Bruges são exemplos clássicos, Lisboa não cresceu gradualmente, em paralelo ao desenvolvimento de atividades urbanas diversificadas e de uma burguesia. O rei era o maior responsável por uma variedade de grandes empreendimentos em Portugal, e sua capacidade de promovê-los dependia centralmente do comércio marítimo. Este fato é observado por George Buchanan, que ensinou no Colégio das Artes de 1547 a 1550. Num poema intitulado In Polyonymum , Buchanan ironicamente prevê dívidas e fome, caso o tráfico de pimenta cessasse, uma premonição que provou ser bem próxima do que viria a ocorrer.^34 Antes mesmo do declínio do comércio de especiarias, Portugal havia contraído dívidas consideráveis e feito contratos comerciais desfavoráveis ao reino com banqueiros europeus, como os alemães Fugger, Welser e Hochstetter.^35 A súbita emergência de novas circunstâncias, num contexto em certa medida despreparado para tanto, teve efeitos sociais perniciosos. O reduzido número de artesãos no reino, especialmente em Lisboa, foi diminuído ainda mais pelo êxodo para a África, a Ásia e o Brasil. Ofícios mais especializados eram em geral praticados por estrangeiros. Um número crescente de escravos africanos em Portugal contribuiu para forjar o peculiar desprezo pelo trabalho, ao qual fazem referência autores como o poeta Antonio Ferreira (1528-1569) e o professor Nicholas Cleynaerts. Este último, em carta escrita em 1535, descreve a situação do reino, abordando aspectos também apontados

  1. Nicola Abbagnano, "Renaissance Humanism", in P. P. Wiener (ed.), Dictionary of the History of Ideas , New York, Charles Scribner & Sons, 5 vols., vol.4, pp.129-136, p.131.
  2. Brian Vickers, "Introduction", in Vickers (ed.), Occult and Scientific Mentalities in the Renaissance , Cambridge, Cambridge University Press, 1984, pp.1-55, pp.3 e 6.
  3. Ver Helder Macedo, Do significado oculto da menina e moça , Lisboa, 1977, esp. pp.128-129.
  4. "Si belli furor, aut mare aestuosum/ Occludant piperariam tabernam,/ Famam foenore pransitabit emtam,/ Versuram faciet vel esuribit", citado em Cerejeira, O Renascimento ..., op. cit., vol.1, pp.157-159.
  5. Vasconcellos, Albrecht Dürer ..., op. cit., pp.11-14; Magalhães, “A Fazenda”, in Mattoso (dir.), História de Portugal , vol.3, op. cit., pp. 90-105.

nos trabalhos de outros escritores portugueses do período. Numa entonação um tanto exagerada, Cleynaerts aponta a deficiência geral das artes mecânicas e agricultura, e ainda a tendência a um excesso de ostentação entre os nobres.^36 Fases de escassez alimentar, sobretudo frumentária, contribuíram para a drenagem dos lucros obtidos com o comércio, gastos pela Coroa com a compra, no exterior, de quase tudo que se consumia em Portugal. A historiografia sobre o período faz referência a uma sucessão de fomes (1504-1506; 1521; 1545) e pestes (1505; 1521-1523; 1527-1529; 1569; 1579-1580; 1598).^37 Certas artes mecânicas, como a engenharia naval, a produção de instrumentos náuticos e a cartografia tiveram desenvolvimento diverso do acima descrito, devido à sua estreita associação com as viagens marítimas. Entretanto, essas áreas também acabaram por ser afetadas pela ausência de uma tradição artesanal em Portugal. Isto fica evidente no reinado do sucessor de D. João III, D. Sebastião (1567-1578).^38 Uma comparação do quadro acima com processos históricos que tiveram lugar em outras partes da Europa indica que seria errôneo pensar que desenvolvimentos na esfera acadêmica não estão ligados a fatores como os mencionados. Kristeller observa que Florença, desde os começos do seu florescimento, era uma cidade de mercadores e artesãos, que cultivava intensamente as artes, a literatura e a devoção religiosa.^39 A diferença entre essas características de Florença e Veneza, por um lado, e a ostentação inútil da nobreza de Nápoles, por outro, é considerada por Jacob Burckhardt como um dos principais fatores da exclusão desta última do "movimento espiritual do Renascimento".^40 Analisando o desenvolvimento científico, médico e tecnológico ocorrido durante a chamada Revolução Inglesa do século XVII, Charles Webster sugere que a atividade científica foi influenciada pela "emergência de uma ética social que punha considerável ênfase no trabalho incessante e que valorizava grandemente as artes manuais".^41 Ambos os exemplos mencionados - o Renascimento florentino e a revolução científica na Inglaterra - estavam organicamente ligados ao que poderia ser chamado de um desenvolvimento social integral, incluindo diferentes domínios das sociedades florentina e inglesa, respectivamente. No que diz respeito a Florença, constitui evidência desse fato a participação pessoal dos oligarcas da cidade e de outros cidadãos nos debates promovidos pelos pensadores locais. Na Inglaterra, a ligação orgânica entre o saber e outras esferas da sociedade é expressa pelo interesse dos intelectuais em produzir um conhecimento útil à comunidade, assim como pelo papel que motivações religiosas e filosóficas, e também o envolvimento com o contexto político, tiveram nesse processo. Relações como essas não parecem ter ocorrido na sociedade portuguesa do século XVI, na qual o saber renascentista e a

  1. Cerejeira, O Renascimento ..., op. cit., vol.1, pp.161-171; Reger Hooykaas, Humanism and the Voyages of Discovery in 16th Century Portuguese Science and Letters , separata de Mededelingen Der Koninklijke Nederlandse Akademie Van Wetenschappen, Afd. Letterkunde , 42/4, pp.30-37.
  2. Vasconcellos, Albrecht Dürer ..., op. cit., esp. pp.59-61 e 146-149; Teresa Ferreira Rodrigues, “As Grandes Crises”, in Mattoso (dir.), História de Portugal , vol. 3, op. cit., pp. 214-222.
  3. Hooykaas, Humanism and the Voyages ..., op. cit., p.37.
  4. Kristeller, Renaissance Thought ..., op. cit., p.89.
  5. Burckhardt, The Civilization ..., op. cit., pp.231-233.
  6. Charles Webster, The Great Instauration: Science, Medicine and Reform 1626-1660 , Londres, Duckworth, 1975, esp. pp.325-326.

de Camões, referindo-se aos propósitos das expedições além -mar, expressa, melhor do que qualquer outra passagem, a relação entre conquista e expansão da cristandade: "Onde ve~ samear de Christo a ley,/E dar nouo costume, e nouo Rei". Os Lusíadas (1572) é o épico de Portugal. Seu tema central é a primeira viagem de Vasco da Gama de Lisboa a Calecute mas, além disso, o poema descreve a saga de um pequeno povo cujos feitos contribuíram para ampliar o mundo conhecido pelos europeus e para abrir o Oriente à fé cristã e ao comércio.^45 Os Lusíadas também expressa de modo exemplar a atmosfera heróica reinante na sociedade portuguesa do século XVI, pela abertura de um oceano nunca antes navegado, e pela descoberta de novos mundos e fenômenos, apesar dos formidáveis perigos que tiveram que ser enfrentados para que isso ocorresse. É claro que essa atmosfera é mais evidente entre os membros da corte, cujas concepções são veiculadas na literatura da época, e a quem era freqüentemente dado o comando de expedições e de altos postos da administração colonial, na metrópole ou nas colônias. Mas certas passagens da literatura de viagem sugerem que o sentimento épico era partilhado por outros grupos sociais participantes da empresa marítima, a exemplo dos marinheiros. No que diz respeito à corte, épicos da Antigüidade como a Eneida , de Vergílio, postos em circulação pelos humanistas, tiveram uma influência importante nesse processo. Vergílio inspirou de muitos modos Os Lusíadas.^46 Junto a isso, a constituição de um sentimento heróico entre os portugueses relaciona-se a outras influências, cujas origens podem ser situadas em parte na Idade Média e em parte no Renascimento. Por um lado, está ligada à tradição medieval da cavalaria; por outro, à confiança renascentista nas capacidades do homem de transformar-se e de transformar o mundo. Este constitui um caso particular da sobreposição entre influências clássicas, medievais e modernas que é típica do período. Em decorrência das características apontadas acima, o clima épico presente na literatura portuguesa do século XVI tem em geral um duplo sentido. Por um lado, expressa uma atitude crítica em relação à ousadia do homem moderno em arrogantemente transgredir seus próprios limites, um tema recorrente nos escritos da Antigüidade que reaparece no Renascimento. Por outro lado, sugere o orgulho pela coragem dos marinheiros e soldados portugueses, que ousaram ultrapassar esses limites.^47 O conflito étnico-religioso em Portugal, nos começos da época moderna, tem outra importante dimensão, relacionada à presença dos judeus no reino. Estes constituíam um grupo de destaque na civilização islâmica medieval da península Ibérica e preferentemente permaneceram lá após a expulsão dos mouros. A ampla presença de judeus em terras lusitanas se deve centralmente à sua expulsão da Espanha, em 1492. No entanto, já muito antes dessa data, a população judaica em Portugal era considerável. Reconhecidos como um grupo isolado, tanto devido a seus

  1. Luis de Camões, The Lusiads , tradução, introdução e notas de L. Bacon, New York, 1950. Citação (Canto VII, 15) retirada da edição fac-simile de uma das edições de 1572, in A. G. Cunha (org.), Índice analítico do vocabulário de Os Lusíadas , Rio de Janeiro, 1966, 3 vols., vol.A.
  2. Ver as notas de Bacon in Camões, The Lusiads , op. cit., passim; e também G. Bullough, "Introduction", in Luis de Camões, The Lusiads , tradução de Sir Richard Fanshawe (1655), edição e introdução de G. Bullough, Londres, 1963, pp.13-17. 47, Hooykaas, ..., op. cit., pp.21-24; Silva Dias, Os Descobrimentos ..., op. cit., pp.13-20.

costumes religiosos e à prática de atividades urbanas, como o empréstimo de dinheiro a juros, quanto em função de restrições legais a eles impostas – em relação, por exemplo, aos lugares onde era permitido que habitassem –, foram os judeus, em diferentes momentos da história de Portugal, objeto de preconceito e hostilidade por parte da população cristã, que de diversas formas deles dependia. Nas cortes – a assembléia que reunia nobres, plebeus e o clero – eram feitas repetidas queixas a propósito de suas atividades financeiras e comerciais. Em diferente ocasiões (1383;

  1. houve atentados cristãos ao bairro judeu em Lisboa.^48 É interessante que se explore esse conflito com um pouco mais de detalhe. Quando da expulsão dos judeus da Espanha, a permanência de um grande contingente deles em Portugal foi permitida por D. João II, com a condição de que fosse por um limitado período de tempo, após o qual seriam escravizados, caso não deixassem o reino. De fato, mais tarde, muitos foram tornados escravos. As famílias mais ricas compraram a autorização para permanecerem definitivamente em Portugal, e a Coroa pôs em prática uma política de assimilação daqueles cujas profissões eram úteis ao reino. Os judeus recém -chegados, assim como aqueles que já viviam em Portugal há mais tempo, se engajaram em certas atividades vitais, sobretudo nas áreas financeira e acadêmica. Esse grupo teve importante papel na divulgação e desenvolvimento de uma tradição intelectual árabe que havia florescido nos centros islâmicos medievais na península Ibérica. A maior parte dos médicos, astrônomos e astrólogos em Portugal pertencia à comunidade judaica. A essa comunidade também pertenciam muitos artesãos. D. Manuel iniciou seu reinado com uma política conciliatória em relação aos judeus, em grande medida devido à importância das muitas atividades desempenhadas por estes em Portugal. Entretanto, já em 1496, o rei foi pressionado pelos monarcas espanhóis Ferdinando e Isabella (com cuja única filha ele desejava casar -se, visando a possibilidade de obter o trono da Espanha) a expulsar os israelitas e também os muçulmanos que haviam sido assimilados no processo de constituição do reino. D. Manuel fez uso de um singular estratagema de forma a garantir que os judeus permanecessem em Portugal, tornando-se cristãos. Ordenou que os menores de quatorze anos fossem afastados de sua comunidade e entregues a famílias cristãs e batizou um grande número de adultos à força. Estes foram chamados "cristãos novos" ou "marranos". A partir de então, D. Manuel cessou a hostilidade aberta contra eles, incentivando casamentos entre cristãos e judeus, ao mesmo tempo em que proibia estes últimos de deixar o reino. Oficialmente considerados cristãos, os israelitas deixaram de sofrer restrições quanto a suas atividades econômicas e profissionais. Disso resultou um aumento da importância da comunidade hebraica na sociedade portuguesa e também o acesso de judeus à universidade, uma particularidade local no que diz respeito à esfera acadêmica, já que em geral não era permitido em outras partes da Europa.^49
  1. Ver Saraiva, História da cultura ..., op. cit., vol. 1, pp.432-434.
  2. Sobre os judeus em Portugal e as perseguições contra eles: Saraiva, História da cultura ..., op. cit., vol.3, pp.22ss; Idem, Inquisição e cristãos novos , Lisboa, Editorial Estampa, 1969; Macedo, Do significado oculto ..., op. cit., pp.63-79; Joaquim de Carvalho, "Leão Hebreu, filósofo", in Obra completa , Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1978-87, vol.1, pp.149-297, pp.153-158.

escocês George Buchanan), suspeitos de professar o protestantismo. Em 1559, a Companhia de Jesus fundou uma universidade em Évora.^52 Os inacianos desempenharam um papel central no processo de restabelecimento do aristotelismo como corrente intelectual dominante no contexto português. Entretanto, mesmo numa breve referência a esse processo, é preciso considerar certas nuances. Em primeiro lugar, como foi proposto por Charles Schmitt a respeito do ensino universitário na Europa como um todo, em Portugal, no século XVI, a escolástica aristotélica em nenhum momento foi superada pela reintrodução da filosofia platônica e estóica, ou pela emergência de novas tendências no domínio do saber. A filosofia aristotélica continuou sendo a fundação da instrução universitária nas artes, ciência, medicina e teologia, ainda que transformada em parte pela influência das novas correntes. Apesar de certos aspectos da doutrina terem sido postos em questão, nenhum sistema alternativo de envergadura foi produzido para substituir o aristotelismo.^53 Por outro lado, é importante observar que conceitos e abordagens do Humanismo renascentista, presentes em outras tendências do saber em Portugal, imprimiram sua marca na restauração da filosofia aristotélica promovida pe la Companhia de Jesus. Sabe-se que os jesuítas de Coimbra produziram, na segunda metade do século XVI e início do século XVII, uma série de comentários da obra de Aristóteles que exerceram grande influência na educação na península Ibérica, na Alemanha cat ólica, França, Itália e nos Países Baixos. Nesses comentários, segundo Schmitt, percebe-se "uma forte ênfase no texto, com a utilização do aparato humanista adquirido no século anterior na interpretação do Aristóteles grego".^54 No entanto, esses comentários têm também claras ligações com o modelo tradicional de educação em teologia, direito e ciência que, em Portugal, acabou por eclipsar inteiramente tanto a efervescência intelectual promovida pelo Humanismo como a orientação empírica associada às viagens de descobrimento e colonização. A educação constituiu a via principal pela qual os jesuítas tomaram parte no movimento da Reforma católica. Sua atuação nas colônias portuguesas evidencia uma opção pela evangelização, ao invés da guerra santa,^55 um posicionamento diverso do sugerido nos escritos de intelectuais da metrópole, conforme apontado anteriormente. Um aspecto da participação dos inacianos nesse processo nos interessa de modo particular, qual seja, o seu papel como veículo do impacto, sobre as populações nativas

52 Saraiva, História da cultura ..., op. cit., vol.2, pp.189-197. 53 Schmitt, "Philosophy and Science in Sixteenth-Century Universities: Some Preliminary Comments", in J. E. Murdoch e E. D. Sylla (eds.), The Cultural Context of Medieval Learning , Dordrecht e Boston, 1973, pp.485- 537; Idem , Aristotle and the Renaissance , Cambridge, Mass., 1983, passim. 54 Schmitt, "Philosophy and Science...", in Murdoch and Sylla (eds.), The Cultural Context ..., op. cit., cit. p.509; e Idem, Aristotle ..., op. cit., pp.97 -98. Ver também Amândio A. Coxito, "Aspectos renascentistas da obra filosófica de Pedro da Fonseca", in A sociedade e a cultura ... (Actas...), op. cit., pp.195-222, esp. pp.195-196; e K. Park e E. Kessler, "The concept of psychology " (pp.455-463, pp.462-463); e Kessler, "The intellective soul" (pp.485-534, pp.507-516), in C. B. Schmitt, Q. Skinner, E. Kessler e J. Kraye (eds.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy , Cambridge, Cambridge University Press, 1990. 55Isto é sugerido por várias passagens da correspondência e outros escritos dos jesuítas. Cf., por exemplo, Anchieta: "Tanto que chegaram ao Brasil, procuraram os ditos padres com caridade e meios possíveis entender na dita conversão e fomos ajuntando alguns meninos do gentio com consentimento de seus pais e os foram domesticando e instruindo para serem batizados, e alguns adultos in extremis. Isto faziam os padres andando sempre por algumas aldeias desta comarca da Baía, ainda que muitas vezes a risco de sua vida, buscando todos os modos e maneiras que podiam para entrar com o gentio, e lhe pugnarem a lei evangélica". Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões (1554-94) , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, p.349.

do Brasil, das grandes transformações no campo da religião e da cultura como um todo, ocorridas no período que estamos enfocando.^56 É bem conhecido que parte da literatura sobre as atividades da Companhia de Jesus no Brasil enfatiza a "humanização" promovida por ela no processo de colonização, enquanto outras obras preferem ressaltar sua importância como parte integrante do sistema de dominação colonial portuguesa. Há ainda autores que acreditam que poder e saber compõem uma mesma estratégia da missão jesuítica.^57 De qualquer modo, é certo que esta missão perseguiu o objetivo de "europeização dos autóctones", na formulação de Stuart Schwartz, que enfatiza a dimensão econômica desse objetivo, "a criação de um campesinato indígena capaz de transformar-se em um proletariado agrícola". Nisso, ao menos nas primeiras décadas da colonização, a estratégia dos padres diferia da dos colonos portugueses, que visava centralmente integrar os brasis à economia colonial como escravos.^58 Em sua prática missionária, os inacianos não raro deram respostas originais aos problemas surgidos no contexto americano, entre as quais encontram -se o uso das línguas indígenas na catequese, a aceitação da nudez dos nativos nos ritos cristãos e a utilização, nestes, de uma variedade de elementos gestuais, poéticos e musicais, muitas vezes baseados nas próprias culturas indígenas.^59 Merecem menção ainda as tentativas de adaptação dos impedimentos relativos à consangüinidade no casamento cristão aos padrões indígenas.^60 É preciso observar, todavia, que certas práticas dos índios, entre elas a antropofagia, a poligamia e rituais religiosos envolvendo transe eram vistas à luz das concepções demonológicas européias e duramente combatidas.^61

56 Como afirmou Michael Mullett, a questão da influência da Reforma católica sobre sociedades não européias tem relação com o problema do impacto das reformas religiosas sobre as culturas populares no continente europeu. The Counter-Reformation , Londres e New York, Methuen, 1984, p.38. No que diz respeito a esse processo na Europa, constituem referência necessária Jean Delumeau, Catholicism between Luther and Voltaire , Burns and Oates , 1977; John Bossy, "The Counter-Reformation...", Past and Present 47; Cameron , The European Reformation , op. cit; Natalie Zemon Davis , Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna , Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. Sobre as dimensões específicas do papel dos jesuítas no movimento militante da Reforma católica nos trópicos, e na promoção do impacto do universo cultural europeu sobre as culturas americanas, ver Luiz Felipe Baêta Neves, O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios , Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 1978. 57 Neves, O Combate ..., op. cit., passim. 58 Stuart B. Schwartz, Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial , São Paulo, Companhia das Letras, 1988, cap.2, cit. p.46. Mário Maestri também enfatiza a importância da Companhia de Jesus na conquista da América portuguesa. Os senhores do litoral: conquista portuguesa e agonia tupinambá no litoral brasileiro , Porto Alegre, Editora da Universidade / UFRGS, 1994. Ver ainda John Manuel Monteiro , Negros da terra: indios e bandeirantes nas origens de São Paulo , São Paulo, Companhia das Letras, 1994, pp.17-56. 59 Diversas passagens da correspondência jesuítica fazem menção a essas práticas. Ver, por exemplo, Serafim Leite (org.), Monumenta brasiliae , Roma, Archivum Romanum Societatis Iesu, 1956-60, 5 vols., vol. 2, 1957, p.351; Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil (1549-1560) , Rio de Janeiro, Officina Industrial Graphica, 1931, Cartas Jesuíticas I), pp.141-142; e Cartas avulsas (1550-1568) , Rio de janeiro, Officina Industrial Graphica, 1931, p. 424. 60 Leite (org.), Monumenta ..., op. cit., vol. 2, pp.114 e 126; Nóbrega, Cartas do Brasil e mais escritos (Opera omnia), Introdução e notas de Serafim Leite, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1955, pp.205-206. 61 Ver Laura de Mello e Souza, Inferno atlântico: demonologia e colonização, séculos XVI -XVIII , São Paulo, Companhia das Letras, 1993, esp. caps. 1-3; Ronald Raminelli , Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira , Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1996; Ronaldo Vainfas , A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial , São Paulo, Companhia das Letras, 1995.