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Morte e Imortalidade segundo São Cipriano de Cartago, Notas de aula de Teologia

refletiremos sobre a atualidade da teologia da morte de S. Cipriano tendo em conta a resposta que a Igreja deu à “peste” do século XXI provocada pelo Covid 19.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Boto92
Boto92 🇧🇷

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA
FACULDADE DE TEOLOGIA
MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico)
CELESTINO DA COSTA
Morte e Imortalidade segundo São Cipriano de
Cartago
Uma leitura atualizante do Tratado De Mortalitate
Dissertação Final
sob orientação de:
Prof. Doutor Isidro Pereira Lamelas
Lisboa
2021
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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE TEOLOGIA MESTRADO INTEGRADO EM TEOLOGIA (1.º grau canónico) CELESTINO DA COSTA

Morte e Imortalidade segundo São Cipriano de

Cartago

Uma leitura atualizante do Tratado De Mortalitate Dissertação Final sob orientação de: Prof. Doutor Isidro Pereira Lamelas Lisboa

AGRADECIMENTOS

Agradecer é reconhecer que em cada sucesso está um conjunto de auxílios recebidos. Ao concluir o presente Curso de Mestrado Integrado em Teologia, não posso deixar de agradecer e reconhecer, em primeiro lugar, a Deus por tudo; depois, a algumas pessoas que foram determinantes neste meu final de percurso: Um grande agradecimento ao meu orientador, Professor Doutor Isidro Lamelas, cujo auxílio quero sumamente reconhecer. O meu agradecimento ao Pe. Basílio Gonçalves e ao Pe. Aníbal Mendonça que ajudaram a corrigir o meu português. Um agradecimento aos meus pais, irmãos e toda família que me apoiaram sempre. Um obrigado aos irmãos salesianos da minha comunidade e a todos os salesianos da Província Portuguesa. Um agradecimento aos docentes da faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e ao Instituto Superior da Filosofia e Teologia de Évora. Um obrigado aos funcionários da biblioteca da Universidade Católica de Lisboa, pela disponibilidade, ajuda e paciência. Do fundo do coração, grito com toda a minha existência, um obrigado todos!

Abstract The fear of death has always been cause for reflection. It became even more so in the Christian context since faith in Christ has given new meaning to bodily death. The Christians of the early Church are understood to have been unafraid of death, because it was no longer an experience ahead of them, but behind them, through baptism. For the baptised, it is only life that lies ahead of them. To establish this thesis, we will look at the work of St. Cyprian of Carthage, De Mortalitate. We will develop our reflection in three points: firstly, we will explore the context that inspired Cyprian to produce this work and elaborate on the theme of ‘death.’ Secondly, we will reflect on the Bishop of Carthage’s response to the crisis of personal and social morality. Thirdly, we will reflect on the topicality of the ‘death’ theology of St. Cyprian, in the response that the church has been giving to the “plague” of the 21st century, caused by Covid19. Key words : Cyprian, plague, death, imortality, fear, baptism.

INTRODUÇÃO

Todo o ser humano tem a consciência de que um dia morrerá, que a morte faz parte do desfecho natural e trágico da vida humana. É uma certeza que, ainda assim, projeta na incerteza de não se saber quando e como vai chegar. É um mistério que levanta tantas questões! E é boa essa preocupação, porque desperta a vigilância, interroga as realidades existenciais da vida, apela a um sentido para a vida e para a morte; coloca inevitavelmente a questão do para-além-da-morte. Que respostas pode dar a teologia às grandes perguntas e inquietações provocadas pela experiência da morte? Na procura do tema para o trabalho de conclusão do Mestrado Integrado em Teologia, as questões supramencionadas acabaram por despertar em mim uma especial motivação, acabando por me propor refletir acerca da morte, a partir da experiência concreta da “mortalidade” incontornável e experienciada cada dia, em toda a parte e tempo. Que resposta deu e dá a fé cristã, mormente quando a experiência da morte se coloca em termos coletivos, enquanto acontecimento solidariamente vivido por muitos no contexto de uma peste ou pandemia? Para ir ao encontro de alguns elementos de resposta, pensei, com a ajuda do meu orientador, revisitar um autor patrístico, no intuito de encontrar na sabedoria dos antigos orientações para algum desnorte que hoje vivemos, nomeadamente no que concerne ao tema tabu da morte. Foi assim que me encontrei com o grande bispo latino do século III, S. Cipriano de Cartago. Efetivamente, tendo começado a ler o seu De Mortalitate ainda antes do surgimento da pandemia do Covid19, logo me pareceu que merecia a pena centrar-me nesta obra redigida num contexto muito semelhante. Pareceu-me oportuno este desafio que ia ao encontro das minhas preocupações ao longo do curso teológico. Mais interessante ainda se tornou porque, ao longo da leitura e da reflexão, por mera coincidência, surgiu a pandemia “Covid19” que nos coloca perante a repentina e dramática quantidade de mortes no mundo inteiro. O mundo subjugado pela pandemia do novo coronavírus está seriamente confrontado com a realidade da morte. É natural que a morte seja vista, de um modo geral, como uma destruição da vida, que origina a angústia e incompreensibilidade do ponto de vista humano. Mas é em momentos como estes que os cristãos são confirmados na fé com uma visão diferente da realidade, vendo para além do sofrimento, da separação e da destruição física, o sentido da vida humana.

teológica do autor presente na mensagem do Papa Francisco e dos bispos portugueses através dos temas: a fé na ressurreição; a morte e a Providência divina; do medo da morte à esperança cristã; a morte de Cristo e a morte do cristão; a nova atitude perante a morte; a espiritualidade da morte. O objetivo deste trabalho é, portanto, fazer uma reflexão sobre o tema da morte, baseada na obra De Mortalitate de São Cipriano, a partir da sua leitura crente da realidade humana bem como da sua ação apostólica em momentos limite de enorme sofrimento e morte. Além desse objetivo central, esta reflexão também se dirige aos cristãos de hoje, confrontados com a tragédia de desorientação, de sofrimento, e de uma grande quantidade de mortes provocadas pelo Covid19. Por isso, trazemos para a nossa reflexão uma atualização do pensamento do autor através dos apelos teológicos do Papa Francisco e dos bispos portugueses que, no seu magistério, têm reagido a esta adversidade como aconteceu com o bispo Cipriano no seu tempo. Esperamos, deste modo, não querer forçar o Padre da Igreja do século III a “concordar” com o que nós hoje pensamos, mas mostrar como a doutrina e a pregação pastoral da Igreja de hoje encontra fundamento sólido na tradição sapiencial da Igreja desde os primeiros séculos aos nossos dias.

CAPÍTULO I

CONTEXTO DO DE MORTALITATE

Neste capítulo procuramos, antes de tudo, compreender o contexto geral da obra De Mortalitate , abordando a vida do autor e os seus escritos, a conceção do significado da morte no mundo antigo, o significado da morte na era dos mártires, e depois entrando no contexto específico em que o autor redigiu a sua obra. O objetivo deste primeiro capítulo é perceber o contexto geral do autor para se perceber o alcance da reflexão exposta na sua obra.

1. O Autor São Cipriano é uma figura muito importante na história da Igreja de África e não só. Felizmente, dispomos de bastantes informações sobre o autor, a partir de fontes suas contemporâneas bastante seguras. Além da Vita Cypriani , redigida pelo seu diácono Pôncio, dispomos dos Actos oficiais do seu martírio ( Acta Proconsularia Cypriani ). Não menos relevantes, como fontes para conhecermos este importante personagem da Igreja do século III, são as obras do próprio, especialmente o Ad Donatum e a suas Cartas. Quanto à importância e influência do autor, são ainda importantes outras fontes antigas como Lactâncio, São Jerónimo, Santo Agostinho e Eusébio de Cesareia, famoso historiador da Igreja do século IV. 1.1. A vida Baseando-nos nas informações fornecidas por estas fontes, vamos expor, de forma resumida, os momentos mais importantes da biografia deste pastor da Igreja cartaginês. a) Antes da conversão ao cristianismo Se para o período da sua vida em que já era cristão dispomos, como dissemos, de abundante informação, o mesmo não sucede relativamente ao período que antecedeu a sua conversão. Como o seu biógrafo confessa, para os cristãos desse tempo a verdadeira vida de uma pessoa só começa depois da sua conversão, isto é, depois do batismo, que marca o novo momento de nascimento para Deus^1. É uma circunstância própria daquela (^1) Cf. Pôncio, Vita Cypriani , II,1.

doando as suas riquezas aos pobres^8. Chegou à fé cristã por intermédio desse presbítero. Recebeu o batismo já em idade adulta, provavelmente no ano 245 ou 246. Para ele o batismo foi um milagre porque, pelos méritos da graça batismal, adquiriu uma vida nova. Ele próprio descreve nestes termos a experiência que a ação da graça operou na sua vida: «Mas depois de ficarem apagadas as manchas da vida passada com a água da regeneração e se infundir a luz no meu espírito transformado e purificado, depois de me transformar num homem novo por um segundo nascimento e efusão do espírito celestial, imediatamente se esclareceram as dúvidas dum modo maravilhoso, abriu-se o que estava fechado, dissiparam-se as trevas e tornou-

  • se fácil o que antes parecia difícil, foi possível o que antes parecia impossível, de modo que pude reconhecer que a minha anterior, vida carnal, sujeita aos pecados, provinha da terra e que era coisa de Deus o que agora estava animado pelo espírito»^9. A vida passada é purificada na água do batismo e transformada pelo Espírito. O batismo era para os cristãos deste tempo uma verdadeira revolução na vida moral, mental e espiritual: um verdadeiro “segundo nascimento”. O batismo abre o horizonte da vida: o que estava fechado, o que era trevas, torna-se claro; o que antes era difícil e parecia impossível torna-se fácil e possível. O autor quer contar-nos que a sua vida anterior era uma vida carnal sujeita aos pecados, que provinha da terra e não de Deus. De toda esta informação do autor, transmite-se a ideia de que a sua vida, antes da sua conversão, não é importante e é, por isso, descrita com poucas palavras como uma vida carnal e sem sentido. Sendo uma vida sem sentido, então também não tem sentido transmiti-la aos outros. O que é válido para o autor é a conversão e a vida posterior à conversão. Por isso, Cipriano designa a sua conversão como um milagre pelos méritos da graça divina recebida no batismo. b) Depois da conversão No ano 248, poucos anos após o seu batismo, foi elevado ao sacerdócio e, pouco depois, no fim do ano 248 ou no início do ano 249, foi eleito bispo de Cartago, por aclamação do povo e confirmação do clero, após a morte do bispo Donato^10. Essa confirmação do clero de Cartago foi influenciada pela surpreendente mudança de vida de Cipriano e pela sua generosa doação de bens, como acima foi referido. Porém, alguns clérigos cartagineses mais velhos não aceitaram a eleição de Cipriano como Bispo, entre os quais estava um deles chamado Novato. Não sabemos quais foram as razões, mas (^8) Cf. Jerónimo, De viris illustribus , 67. (^9) Cipriano, Ad Donatum, 4. (^10) Cf. Pôncio, Vita Cypriani, V,1.

possivelmente a única razão poderia ter sido a sua cobiça, desejando verem-se eles na posição que Cipriano estava para assumir na Sé de Cartago. Decorria apenas um ano no exercício do seu cargo como bispo de Cartago, no ano 250, quando chegaram os efeitos da perseguição de Décio. O imperador Décio emitira um decreto que obrigava todos os cidadãos do Império a oferecer sacrifícios aos deuses tradicionais perante uma autoridade imperial da qual receberiam um certificado (o libellus )^11. Esta perseguição afetava todos os súbditos do império, que eram obrigados a praticar esse sacrifício cultual. O mandato imperial afetou também a igreja de Cartago, especialmente as suas lideranças, já que a política persecutória de Décio visava especialmente o clero. Perante esta situação, o bispo de Cartago vê-se obrigado a retirar-se para um lugar seguro, desconhecido,^12 acompanhado por um grupo de clérigos e féis^13 , mantendo-se em contacto frequente com o seu povo e o seu clero em geral. No entanto, a sua fuga não contou com a aprovação de todos, principalmente dos que se haviam oposto à sua eleição. Perante estas duras críticas, Cipriano defende-se várias vezes justificando o seu comportamento através de diversas cartas. Numa das cartas, o bispo afirma: «Achei necessário escrever-vos esta carta para vos dar conta da minha conduta, da minha conformidade com a disciplina e do meu zelo. Assim que estalou o primeiro distúrbio, o povo chamava-me com muita gritaria e insistência. Então, segundo os ensinamentos do Salvador, preocupado com a paz de toda a comunidade, mais do que com a minha própria segurança, decidi imediatamente fugir, a fim de evitar que a minha imprudente presença servisse de incentivo ao motim que se havia gerado. Mas, embora ausente no corpo, tenho estado presente em espírito, e com as minhas ações e conselhos, segundo a medida das minhas pobres forças, sempre que pude, esforcei-me por dirigir os meus irmãos segundo os preceitos do Senhor»^14. Nesta carta apercebemo-nos das razões que o levaram a esconder-se e de como se mantinha ativo. De facto, esta e outras cartas mostram-nos que, durante o seu exílio, Cipriano nunca abandonou os seus deveres de pastor da comunidade. Apesar da distância, ele continua a marcar presença em espírito no meio da comunidade através das boas ações e de bons conselhos. Depois da violenta tempestade, no final do ano 250, sob a reinado de Treboniano, regressa a paz. Os fugitivos regressam, os prisioneiros são libertados e voltam à Igreja, (^11) Cf. Jean Daniélou e H-I. Marrou, The first six hundred years, Edição Darton, Longman and Todd, London, 1964, 206. (^12) Cf. Cipriano, Epistola , 11, 4,2. (^13) Cf. Cipriano, Epistola , 7. (^14) Cipriano, Epistola , 20 ,1.

estado de espírito no momento difícil da morte, no fim da vida terrena. Cipriano apresenta o momento da morte como um tempo de combate, porque o descanso vem só depois da morte. Para ele, quem tem fé não deve ter medo de sair deste mundo para entrar no mundo melhor, que é o Reino de Deus. Na parte final da sua obra, o autor afirma que «devemos renunciar ao mundo e que nele habitamos provisoriamente como hóspedes e peregrinos, porque o dia que coloca um de nós na verdadeira pátria, libertando-nos dos laços deste mundo, restitui-nos ao paraíso e ao reino»^21. Nesta afirmação o bispo de Cartago ensina a sua comunidade que considere a morte como um momento de libertação deste mundo, onde se é apenas peregrino, pois o mais importante é manter-se fiel a Deus para que, através da morte, o cristão regresse à verdadeira pátria, visto que a pátria do cristão é o paraíso^22. Além do serviço da palavra, Cipriano também prestava cuidados e ajuda caritativa aos doentes. Nesse momento difícil, surgiu também uma lei por iniciativa do imperador Treboniano Galo que obrigava toda a população a fazer sacrifícios, provavelmente ao deus Apolo, do qual ele esperava socorro para tal situação. Perante esta ordem do imperador, o bispo não deixa de exortar também os seus fiéis a que não a cumpram. A atitude do bispo, face à decisão tomada pelo imperador, provoca a ira e há quem queira que Cipriano seja lançado aos leões^23. Entretanto, o problema da peste foi praticamente ultrapassado em finais de 254. Os últimos anos da vida de Cipriano foram agitados pela controvérsia sobre o batismo dos hereges. Para esta questão apresentam-se diferentes respostas dadas pelas igrejas da África, da Ásia Menor e de Roma. As igrejas da África e da Ásia Menor exigiam que se rebatizasse os hereges,^24 enquanto a de Roma dizia que não era necessário rebatizar, bastando apenas impor as mãos aos hereges arrependidos em sinal de reconciliação e de paz^25. Por parte das igrejas de África, houve três sínodos reunidos em Cartago, nos anos 255 e 256, sob a presidência de Cipriano, a reafirmar que era necessário rebatizar os hereges, exceto no caso destes terem sido batizados antes de abandonar a igreja católica, uma vez que o batismo dos heréticos e dos cismáticos era totalmente nulo^26. Face a esta decisão, a igreja de Roma, mediante o Papa Estêvão I (254-257), contestou de modo incisivo, opondo-se assim aos africanos contra a introdução de (^21) Cf. Cipriano, De mortalitate, 26. (^22) Cf. Cipriano, De mortalitate, 26. (^23) Cf. Cipriano, Epistola, 59, VI. (^24) Cf. Cipriano, Epistola, 69, I,1. (^25) Cf. Cipriano, Epistola, 75,VII,1. (^26) Cf. Cipriano, Epistola, 74, XII.

novidades contrárias à tradição. Cipriano, porém, não quis mudar de parecer e, desta forma, criou-se tensão entre os dois bispos. A certa altura, o Papa Estêvão I ameaçou mesmo excomungar os bispos africanos se não aceitassem a disciplina romana. A imprudente ameaça do Papa Estêvão I provocou em Cipriano a seguinte pergunta: “honrará a Deus quem, fazendo-se amigo dos hereges e inimigos dos cristãos, pensa que devem ser excomungados os bispos de Deus que defendem a verdade de Cristo e a unidade da Igreja?”^27. A disputa continuou e envenenou-se rapidamente a relação entre ambos, encaminhando-se para uma perigosa separação. Entretanto, surgiu outra perseguição por parte do imperador Valeriano, a partir da promulgação de um édito contra os cristãos, em meados do ano 257. Neste édito afirmava que, poupando os leigos, seriam exilados os bispos e presbíteros, vigiados e proibidos de presidir qualquer cerimónia, quem desobedecesse seria executado^28. Na perseguição que se seguiu a este édito, o Papa Estêvão foi martirizado e sucedeu-lhe o Papa Xisto, retomando então as relações e repondo a acalmia normal^29. Poucas semanas depois, Cipriano também foi chamado a comparecer perante o tribunal do Procônsul de África, Paterno. Foi interrogado e desterrado para Cúrabis^30 no dia 30 de agosto de 257. Um ano mais tarde, a 14 de setembro de 258, foi decapitado perto de Cartago. Foi o primeiro bispo africano mártir. Podemos apreciar o testemunho do seu martírio como bispo na seguinte transcrição do último interrogatório em tribunal, e assim concluímos da melhor forma esta abordagem à biografia do autor em estudo:

  • «És tu Tácio Cipriano? – perguntou.
  • Sou.
  • És o Papa do da seita sacrílega?
  • Sou.
  • Os divinos imperadores ordenam-te que sacrifiques.
  • Eu não o faço.
  • Reflete, disse Galeriano.
  • Faz o que deves. Em matéria tão justa não há lugar para refletir.
  • Há muito tempo que vives em sacrilégio: conquistaste muita gente para a tua conspiração criminosa e converteste-te em inimigo dos deuses e da religião de Roma. Os piedosos e sagrados imperadores, Valeriano, Galieno, Augusto e Nobilíssimo César Valeriano não conseguiram atrair-vos à sua religião. Portanto, estás convicto de ter sido fautor e autor principal de grandes delitos e servirás de exemplo aos teus cúmplices: teu sangue ensinará aos outros a respeitar a lei.
  • Tácio Cipriano é condenado a morrer decapitado.
  • “Bendito seja Deus”»^31. (^27) Cipriano, Epistola, 74, X,1. (^28) Cf. Cipriano, Epistola, 80, I, 2. (^29) Cf. Pôncio, Vita Cypriani, XIV, 1. (^30) Cf. Cipriano, Acta proconsularia cypriani, II_._ (^31) Pôncio, Vita Cypriani, XVII, 1-3.

De habitu virginum é uma obra escrita logo no início do seu pontificado como bispo de Cartago, por volta do ano 249. É uma exortação pastoral dirigida às virgens de Cartago. Com esta exortação, Cipriano quer regularizar os estilos de vida monástica e solucionar as crises surgidas no seio da comunidade. Sobre o estilo de vida das virgens diante da comunidade, de forma mais direta, diz: “querendo apresentar-se com mais luxo, vaguear com mais liberdade, deixam de ser virgens”^33. De lapsis é a primeira obra que São Cipriano escreveu, após regressar à sua sede depois da perseguição, por volta do ano 251. É uma obra que se refere aos cristãos que, durante a perseguição tiveram medo das pressões e não permaneceram firmes na fé e que, após a perseguição, desejaram voltar à comunidade e à sua fé. A partir desta obra, o bispo de Cartago quer refletir e solucionar as questões que surgiram sobre os lapsi durante a sua ausência e, ao mesmo tempo, reflete acerca das suas causas. De Catholicae Ecclesiae unitate é um tratado redigido por volta do ano 251, no momento do seu regresso à sede episcopal e ao conselho. Ideia geral da obra é a realidade do cisma causado nessa altura por Novaciano. Na introdução do tratado, o autor sustenta que os cismas e as heresias são causadas pelo diabo, e que acabam por ser mais perigosas do que as perseguições porque corrompem a unidade interna dos cristãos, arruínam a fé e a verdade. Diante deste problema, o bispo de Cartago afirma que todo o cristão deve permanecer na Igreja Católica, porque não há outra Igreja, ela é só uma e também una e está edificada sobre Pedro: «Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18). Por isso, nesta obra, o autor sustenta que o Episcopado é um só... a Igreja é una... que assim como há uma só luz nos muitos raios de sol, uma árvore em muitos ramos, um só tronco fundamentado em raízes tenazes, muitos rios de uma única fonte… assim também a Igreja do Senhor é uma única luz que se difunde sem perder a sua própria unidade, um tronco que desenvolve os seus ramos por toda a terra… é uma na cabeça, uma pela origem; uma mãe imensamente fecunda»^34. A unidade é, para São Cipriano, a nota teológica por excelência da Igreja católica. Para ele, este último adjetivo é inseparável a “ unitas”. Por ser uma e una, deduz que quem estiver fora dessaunitas” não participa dos dons salvíficos que a Esposa recebeu do esposo-Cristo^35. A quem “adultera” a unidade querida por Deus, rompendo a unidade, sucede-lhe o mesmo que aconteceu aos que ficaram fora da arca de Noé^36. Ficou famosa a sua afirmação de que fora da igreja não há salvação. (^33) Cipriano, De habitu virginum, 20. (^34) Cipriano, De catholicae Ecclesiae unitate, 5. (^35) Cf. Cipriano, De catholicae Ecclesiae unitate, 6. (^36) Cf. Cipriano, De catholicae Ecclesiae unitate, 6.

De Dominica oratione é o tratado que surge pouco tempo depois da obra De catholicae Ecclesiae unitate, provavelmente nos finais do ano 251 e nos inícios do ano

  1. O bispo de Cartago escreveu esta obra dirigida a todos os cristãos da sua comunidade, mas especialmente aos neófitos, com o objetivo de expor o verdadeiro significado da oração e a sua utilidade para a vida cristã. Com esta obra tenta ajudar os cristãos da sua comunidade a ter uma relação profunda e íntima com Deus na oração. Para tal fim, nesta obra Cipriano sublinha a importância do Pai Nosso como fundamental na oração do cristão. Afirma que na sua oração, o cristão deve dirigir-se a Deus como Pai. O Pai-Nosso é a oração “do homem novo, renascido e restituído a Deus pela sua graça”^37. É a oração dos cristãos porque no batismo foram santificados e identificados com Cristo. E só estes têm o direito de dirigir esta oração a Deus Pai. Ad Demetrianum é uma obra redigida como resposta aos ataques dos pagãos representados por um personagem desconhecido chamado Demetriano que responsabilizava os cristãos pelas recentes calamidades: a guerra, a peste, a fome e a seca. Nesta obra, São Cipriano contradiz fortemente as acusações feitas aos cristãos e atribui as calamidades que martirizam o Império (as guerras, a carestia, a peste) à imoralidade humana e às leis naturais de envelhecimento do universo. Ele afirma que os cristãos não eram responsáveis pelas calamidades que afligiam o seu tempo e que estas não eram um castigo de Deus por as pessoas terem abandonado o culto das divindades pagãs, mas que eram causados pela corrupção moral e pelos erros humanos^38. A verdadeira culpa de todos os males do mundo é dos pecados, da imoralidade dos pagãos, da desobediência da humanidade, dos crimes e das idolatrias dos pagãos^39. A datação da composição da obra é incerta, mas é apontada como posterior ao De mortalitate , entre os anos 252 e 253. De mortalitate é uma obra redigida pouco tempo depois da perseguição do imperador Décio aos cristãos e da passagem pela cidade de uma terrível epidemia. Nesta circunstância difícil, a comunidade olha para a morte como uma companheira fiel de todos os dias. Cipriano como pastor da comunidade dedicou a sua vida a auxiliar os seus fiéis quer na ação quer na palavra. Na ação dedicou-se a ajudar os doentes tanto cristãos como pagãos. Na palavra, redigiu a sua reflexão intitulada De mortalitate para explicar o significado da morte do cristão fiel. Para os cristãos, perante tantas mortes, o autor (^37) Cipriano, De Dominica oratione, 9. (^38) Cf. Cipriano, Ad Demetrianum, 17. (^39) Cf. Cipriano, Ad Demetrianum, 25.

virtude da paciência tem a sua origem em Deus. Ser paciente e obediente a Deus e a Cristo é importante porque todo o homem que é amável, paciente e manso é imitador de Deus Pai e suporta pacientemente os profanos, os ídolos da terra e os ritos sacrílegos, que desrespeitam a honra e a majestade de Deus.

2. A morte no mundo antigo Para melhor lermos De mortalitate e entendermos o pensamento do seu autor, convém tentarmos compreender como era encarado o tema da morte no mundo mental e cultural do autor. Ao longo da história da humanidade, verificamos que toda a humanidade está sujeita à mortalidade. Morrer é um facto e é uma realidade a que ninguém escapa. Abordar o tema da morte no mundo do autor é perceber como eram as atitudes e as imagens dos povos que tinham ligação à vida do autor. As atitudes e as imagens são recorrentes e transformaram-se ao longo dos tempos, mas as preocupações sobre o destino após a morte permanecem. As diferentes manifestações e conceções dificultam a nossa reflexão sobre a morte no mundo do autor, mas existem aspetos comuns na cultura dos povos tais como as circunstâncias e os modos em que as pessoas morrem, o tratamento dado aos mortos e as maneiras como os mortos são lembrados. Esse conhecimento facilita a nossa tarefa de perceber o pensamento do autor. O tratamento, as maneiras e os ritos interpretam as respostas que as pessoas dão a questões fundamentais como: o que há para além da morte? Será o fim de “tudo” ou há uma vida nova? A pessoa é confrontada com o duplo sentimento: a vida acaba com a morte ou continua a haver vida após a morte da pessoa? Esta introdução leva-nos a perceber, em primeiro lugar, os conceitos acerca da morte da cultura dos povos ou culturas com maior ligação ao autor, para depois podermos perceber melhor os conceitos e os ensinamentos do autor acerca da morte refletidos na obra De mortalitate. De facto, Cipriano não só conhece bem e usa o Antigo Testamento, como também devia ter conhecimento da importante comunidade judaica que vivia em África^44. Quanto à cultura pagã-romana, não será necessário demonstrar a suma importância na vida e no pensamento do nosso autor, que se converteu ao cristianismo em idade já adulta. (^44) Como no-lo mostra a obra de Tertuliano Adversus Iudaeos.

2.1. A morte no contexto judaico Como confessa o próprio Cipriano, a mortandade provocada pela peste era entendida como uma “peste”, para judeus e pagãos, ao passo que os cristãos vêem nela uma “porta para eternidade”: “ Mortalitas ista Iudaeis et gentibus… pestis est. Dei servis salutares excessos est ”^45. Assim se resumem as diferentes posições de cada grupo perante a experiência da morte provocada pela peste. Comecemos por falar dos judeus e da sua atitude face à morte. Cipriano pode não ter tido uma relação direta com o contexto judaico, mas de forma indireta a perceção da morte no mundo judaico deixou alguma marca na vida e no pensamento do autor porque Cipriano viveu ainda na época da expansão das primeiras comunidades cristãs, que ainda tinham contactos diretos e indiretos com as comunidades judaicas na diáspora, que se manifestavam em vários aspetos da vida social, cultural e política. Além destes aspetos, podemos sublinhar outro que nos parece essencial: a influência dos textos e das passagens da Bíblia hebraica e dos livros do Antigo Testamento no pensamento do autor. Não é por acaso que o autor cita várias passagens e faz muitas referências a figuras conhecidas do Antigo Testamento para explicar e animar a sua comunidade a enfrentar a calamidade da morte. Por estas razões, apresentamos a perceção da morte no mundo judaico para compreendermos o pensamento do autor sobre a morte na obra De mortalitate. Não vamos alongar-nos descrevendo a história do judaísmo, mas limitamo-nos a essa perceção acerca da morte. No judaísmo a morte é entendida como uma intervenção de Deus. A vida ideal é a vida em comunhão com Deus, quando o homem, sem lamentações, se entrega à vontade de Deus; a morte ideal e querida por Deus é a morte em idade avançada. Percebe-se que a vida provém de Deus e deve ser vivida em comunhão com Ele. Quando a vida é vivida na separação de Deus tem um castigo e causa dois tipos de morte: a morte prematura e a morte em terra estrangeira^46. Uma morte ideal no judaísmo é a morte em idade avançada e a morte na própria terra porque, ao contrário da terra estrangeira, aquela é a terra prometida por Deus. Podemos enriquecer esta perceção, observando o rito da celebração da morte. De forma breve, esse rito consta do seguinte: (^45) Cipriano, De mortalitate , 15. (^46) Cf. Herbert Vorgrimler, El Cristianismo ante la muerte, Editorial Herder, Barcelona 1981, 48.