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Uma análise da relação entre a mídia e as performances de gênero na igreja universal, focando no projeto godllywood. O texto aborda as relações entre a igreja universal e as mídias, as práticas de sacrifício e desafio no contexto do projeto, e a construção de gênero através das novas tecnologias de internet.
O que você vai aprender
Tipologia: Esquemas
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Jacqueline Moraes Teixeira Universidade de São Paulo – São Paulo São Paulo – Brasil
Este artigo 1 tem por finalidade mapear e descrever algumas práticas relaciona- das à produção de uma performatividade de gênero mimetizada em formas de falar, de se apreender e de experienciar os corpos a partir da circulação de imagens na internet, em páginas da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) voltadas para o público feminino. Meu objetivo ao recuperar essa interação é pensar o papel que a mídia, de modo geral, e as tecnologias de internet, de modo particular, têm na for- mação de tais performatividades, ora por meio da linguagem de gendramento dos gê- neros, ora mediante tecnologias de poder que conformam a sujeição e a subjetivação dos sujeitos (Butler 1999). Trago como escopo de análise a recente produção de saberes, sujeitos e técni- cas voltados para a produção da “Mulher V”, nome dado ao estágio último do progra- ma Godllywood. Trata-se de um emblema que remete à figura descrita na Bíblia por Salomão como “mulher virtuosa”, reunindo um conjunto de práticas que mobilizam a noção teológica de “vida em abundância”, a partir de uma disciplina focada na divisão binária de gêneros cujo gerenciamento da prosperidade se dá com base no espraiamento de tecnologias para cuidado de si e para o casamento. Tais formas são incorporadas e partilhadas por meio da produção pedagógica de um calendário de desafios semanais destinados a mulheres participantes do movimento_._ Os desafios são tarefas guiadas por metas que devem ser cumpridas e divulgadas em redes sociais, tais como o Facebook, o Twitter, o Instagram, o Whatsapp_._
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A ideia deste texto consiste, portanto, em pensar o modo como a relação com tais redes e a exposição de performances individuais ou coletivas, a partir de fotos que são compartilhadas na linguagem de desafios, acaba por servir como tecnologia de produção de modos de subjetivação. A regulamentação e conformação de um mo- dus operandi sobre o mundo desenham-se através de uma linguagem ritual que deve passar obrigatoriamente pela publicização de performances de autoimagem, também conhecidas como “ selfies ”. As selfies emergem como uma tecnologia fundamental que dinamiza e torna visível o movimento de subjetivação e de compartilhamento coleti- vo de cada desafio conquistado, contribuindo para dar forma ao processo de transfor- mação do corpo feminino em corpo virtuoso.
A mídia na IURD e a IURD na rede
Antes de entrar especificamente no problema proposto e na descrição de algu- mas especificidades do objeto empírico em questão, penso ser necessário discorrer um pouco sobre as relações entre tecnologias de mídia e a Igreja Universal. As conexões entre Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e mídia são bem conhecidas no âmbito acadêmico. Parte desse interesse construiu-se, sobretudo, pelo modo como tal agência firmou suas relações na arena pública concentrando uma parcela significativa de suas estratégias evangelísticas e de organização na aquisição de canais e veículos importantes de comunicação. Na primeira década deste século, era possível encontrar sob o registro de propriedade da IURD ou de pessoas físicas associadas à igreja 62 emissoras de rádio, além de emissoras de televisão, tais como a Rede Record, que reúne outras 63 emissoras, das quais 21 são diretamente ligadas à Igreja Universal (Fonseca 2003 apud Antônio 2012). Ainda no cenário da mídia televisiva, em 2008 a TV Record expandiu-se como canal de TV a cabo inaugurando a Record News, que, a exemplo dos canais fechados dirigidos pelas emissoras Rede Globo e Bandeirantes, tem nos noticiários o seu carro chefe (Antônio 2012). Além do predomínio em canais de rádio e emissoras de TV, parte do capital mi- diático que se atribui à IURD consolidou-se também numa relação conflituosa com outras agências de comunicação, as quais, ainda na segunda metade da década de 1980, deram um destaque negativo para cultos e ritos públicos realizados pela igreja. A Rede Globo, considerada a principal emissora de televisão do país, tem um papel central nesse processo, dedicando parte de seus programas jornalísticos principais e até um de seus seriados ao que se foi configurando como uma guerra contra a Igreja Universal2. A Rede Globo não foi a única agência de comunicação envolvida nesse pro- cesso. Outros importantes canais de mídia entraram no debate produzindo programas que descreviam os rituais e até mesmo a doutrina da IURD, explorando principal- mente seu método de arrecadação de dinheiro. Em 1990, foi ao ar pela extinta Rede Manchete o Programa Documento Especial^3 , que exibiu uma série intitulada Seitas
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rativo entre duas denominações religiosas, a IURD e a Assembleia de Deus, e parte de suas perguntas dizia respeito à emergência de uma mídia voltada para o público feminino, bem como de temas discutidos em programas que, de uma forma geral, também estavam relacionados ao público feminino. Em sua análise, temáticas como participação feminina no mercado de trabalho, planejamento familiar, sexualidade e saúde da mulher já apareciam como foco nos programas televisivos, no rádio e nos veículos de mídia impressa, tais como Folha Universal e Revista Plenitude^7 , todos man- tidos pela IURD (Machado 1999:171). No período analisado por Machado (1999), foi possível concluir que havia uma disparidade entre as denominações analisadas. Apesar de a AD ser a igreja mais populosa do país, a IURD era majoritária em sua programação televisiva e radiofôni- ca. Outro fato que a pesquisa evidenciou foi a participação de mulheres, esposas dos bispos, nos programas televisivos, participação justificada pela identidade de gênero classificando as mulheres como conselheiras e responsáveis pelos momentos de acon- selhamento e intercessão. A despeito de haver esse recorte específico e relacionado a um papel religioso concedido ao gênero feminino, foi possível notar alguma visibili- dade dessas mulheres mediante a autoridade no trato com outras mulheres. No caso da IURD, essa relação entre espectadoras e apresentadoras deu-se, sobretudo, no trato das temáticas relacionadas ao corpo, aos cuidados estéticos e à saúde: “a mulher da IURD deve se orgulhar de ser mulher, e isso inclui cuidado com a aparência e a vaidade” (Machado 1999:180). Assim, é possível pensar no argumento que pretendo desenvolver de forma mais detalhada neste texto, acerca da circulação nas redes sociais de questões rela- cionadas ao corpo feminino e do gendramento de performances de gênero, que têm sua recorrência nas demais formas de mídia mobilizadas por esses sujeitos e no modo como a IURD se apresenta na esfera pública.
O gênero do desafio
Em Plano de poder: Deus, os cristãos e a política (2008) 8 , os autores Edir Macedo e Carlos Oliveira apresentam como objetivo do livro esquadrinhar algumas noções da teoria clássica de política. A justificativa seria preparar a igreja em nome de um importante projeto divino: formar uma nação. No texto, Deus possui intenções de um bem-sucedido estadista que, no livro de Gênesis, cria um ambiente para o ser humano viver. O detalhe é que, depois de criado o ser humano, Deus imediatamente institui “o conceito de planejamento familiar, algo fundamental para o criacionismo, que consiste em dar o máximo possível de qualidade de vida em família, que é a base da vida social” (Macedo & Oliveira 2008:9).
Deus tem um grande projeto de nação elaborado por ele mesmo e que é nossa responsabilidade apresentá-lo e colocá-lo em prática. Na Bí-
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blia, em Gênesis, Deus dá uma aula de planejamento, organização e execução de sua ideia. Ele esclarece sua intenção estadista e a formação de uma grande nação. A proposta de uma sociedade politicamente organizada tem por objetivo essencial trazer bem-estar aos seus cidadãos. O ambiente, a cidade e o Estado são pensados visando sempre ao bem- estar das pessoas (Macedo & Oliveira 2008:15).
O texto segue com uma citação de A Política , de Aristóteles, que diz “o fim da política não é viver, mas viver bem” (apud Macedo & Oliveira 2008:22). É nesses termos que a concepção aristotélica de boa vida passa a ser apresentada como um princípio filosófico divino para a vida próspera, ou seja, a vida em abundância. O li- vro apresenta ainda algumas noções que suscitam práticas as quais, segundo o autor, resultariam na formação de uma nação abençoada e próspera. Com o intuito de produzir uma espécie de laboratório para esse ideal de nação, em 2010 foi lançado na IURD Internacional (uma espécie de associação que reúne igrejas fora do Brasil) o projeto Godllywood , idealizado e fundado por Cristiane Car- doso, que é a filha mais velha do bispo Edir Macedo. A fundação da Igreja Universal ocorreu em 1977, ano do nascimento de Vi- viane, irmã caçula de Cristiane, quando esta última tinha apenas três anos de idade, de modo que grande parte de sua trajetória de vida confunde com a trajetória da IURD. Em 1984, quando tinha dez anos, mudou-se com seus pais para Nova Iorque, a fim de trabalharem como missionários na fundação do primeiro templo da Igreja Universal fora do território nacional. De volta ao Brasil, aos dezoito anos, Cristiane casou-se com Renato Cardoso, um jovem pastor, e no mesmo ano foram enviados para o sul dos Estados Unidos, onde fundaram um novo trabalho da IURD, permane- cendo por lá até o final de 2010. Mesmo estando nos Estados Unidos, sempre existiu certo protagonismo da parte de Cristiane e de seu marido, o bispo Renato Cardoso. Ainda no final da década de 1990 é possível encontrar alguns textos dele direcionados para o público jovem da igreja, todos reunidos no livro O jovem segundo o coração de Deus, lançado em 1998. No caso de Cristiane, nesse período suas aparições públicas ocorriam por meio de um programa de televis ão exibido apenas em canais de veiculação internacional e de pequenos textos timidamente publicados no jornal Folha Univer- sal. No ano de 2004, Cristiane começou a escrever semanalmente no jornal e passou a assinar a coluna Mulher , que, a partir de 2009, se transformou no caderno Folha Mulher. Em 2007, ela criou um blogue, o qual recebeu o título do seu primeiro livro, lançado nesse mesmo ano: Melhor que comprar sapatos. Além disso, tornou-se apre- sentadora principal e editora-chefe do programa Coisas de Mulher , que foi exibido pela Record News entre os anos de 2007 e 2011. Em 2010, ano de formação do projeto Godllywood , Cristiane, ainda nos Estados Unidos, encontrava-se no centro das produções voltadas para o público feminino na IURD, nos âmbitos nacional e internacional.
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[...] quando eu estava em trabalho missionário no Texas, buscando ins- piração para ajudar o maior número possível de jovens. Eu percebi que as adolescentes engravidavam muito cedo. Por isso, comecei a fazer reu- nião com elas, época em que surgiu o Sisterhood. Em princípio, o grupo era para atender somente a necessidade local dos Estados Unidos, mas em um mês tivemos tantos testemunhos, que chamou a atenção do meu pai. Ele decidiu expandir esse trabalho para os outros países, indicando esposas que teriam o perfil para participar deste projeto, que tem como meta fazer das jovens mulheres de Deus, e também ganhar almas por meio delas.^11
As atividades das três fases são de responsabilidade das Bigsisters , papel exer- cido por mulheres casadas com bispos da IURD que recebem o título de donas. Elas fazem um pequeno curso preparatório para implantar o grupo, bem como para sele- cionar anualmente novas candidatas. No blogue de Cristiane, há um mapa do mundo com logotipo do projeto; em 2012, com apenas dois anos de existência , Godllywood já se havia estendido para setenta países. Há algumas normas para a participação no projeto. As prescrições seguem as especificidades etárias das participantes. O recrutamento de meninas para participar do Pré-Sisterhood , por exemplo, tem como único quesito que os pais sejam membros da IURD. Meninas com pai e mãe obreiros, ou com pai pastor ou bispo, têm preferên- cia no momento do recrutamento. No caso do Brasil, o projeto começou organizado apenas em capitais ou cidades consideradas de grande escala. No entanto, com a difusão dos desafios e a interação nas redes sociais, pode-se encontrar registros de organização de grupos até mesmo em cidades pequenas ou distantes dos grandes centros urbanos. A disposição de atividades dos grupos etários que compõem o Godllywood se dá por meio da circulação da ideia de desafio^12. Os desafios são temáticos e encontram- -se sistematizados num calendário semanal com atividades diárias. Ao final de cada desafio, as participantes são estimuladas a narrar o êxito conquistado com a realiza- ção da tarefa, narrativa esta que se dá, sobretudo, por meio da página do projeto no Facebook 13. As tarefas reúnem prescrições sobre como criar uma agenda semanal de atividades diárias, envolvendo as seguintes privações: não ingerir açúcar, usar saia para ir ao trabalho ou para a escola, ler algumas páginas de um livro por dia, dedicar- -se a ajudar alguém, dedicar-se a uma pessoa idosa, não consumir carne vermelha, não consumir fritura, não comprar roupas ou sapatos durante um período, poupar o dinheiro para empregá-lo em outra finalidade. A ideia dos desafios, que se estendem pela variação etária das mulheres parti- cipantes, é a de naturalizar no corpo o conceito da mulher virtuosa^14. É nesse sentido que podemos compreender as características almejadas descritas no livro de Cristiane Cardoso.
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O retrato da mulher virtuosa engloba características como:
Os desafios são vistos, portanto, como medidas para a formação disciplinar. A disciplina está entre os atributos fundamentais da mulher V :
[...] a mulher V é disciplinada. O que é a disciplina senão uma maneira de lidar com a vida de maneira mais organizada? [...] ao mesmo tempo em que controla as finanças do casal, a mulher V também fica de olho em novas oportunidades de aumentar seus ganhos. Ela poderia usar seu lucro para comprar roupas para si ou para a sua família, mas ela decide investir o seu dinheiro para aumentar os ganhos da sua família (Cardoso 2011:114).
As prescrições relativas à formação de uma economia dos rendimentos finan- ceiros mensais produziram, no âmbito do Godllywood, cursos e dois volumes de um livro intitulado Bolsa Blindada. Trata-se de um programa para oficinas com duração média de doze horas, no qual se aprende conceitos básicos de macroeconomia, fun- cionamento da bolsa de valores, formas de investimentos, etc. Nesse aprendizado, o corpo é o principal instrumento a ser educado; logo, é essencial compor um conjunto de aulas com técnicas para modificar a postura, con- trolar o peso, as roupas e o cuidado de si. A docilidade do corpo é o caminho para se apreender a ser mulher e, assim, garantir que a família prospere. Os sentidos para a produção substancial deste modelo de gênero envolvem, por um lado, a dependência e dedicação a uma relação de conjugalidade heterossexual e, por outro, a autonomia para o desenvolvimento profissional. Ao falar sobre os modos de produção dessa diferenciação que acaba por se na- turalizar na forma de habitus , Bourdieu (2009:127) afirma que os sentidos atribuídos
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Um trecho do livro de Cristiane Cardoso (2011:109) parece ilustrar bem essa questão: “Os homens são diferentes de nós, eles foram feitos para se concentrar e conquistar. Nós lutamos para fazer as mesmas coisas que eles fazem e ainda ser mãe, esposa e rainha do lar. Mas nós não somos eles, e não podemos querer fazer os dois papéis sem que nos prejudiquemos”. Em Fé racional (2010), Macedo critica o ministério feminino, dando como jus- tificativa de sua posição a diferença natural que domina a divisão sexual das funções de trabalho:
São por causa desses carnais que também nascem aquelas “profetisas”: normalmente, mulheres que não são nada em casa, mal-amadas, mas que têm encontrado na igreja ocasião para atrair a atenção. Muitos pas- tores deixam de ouvir a voz do Espírito Santo para se inclinarem à voz dessas mulheres, que muitas vezes vivem em pecado e são, portanto, profetas do inferno (Macedo 2010:97).
Esse mesmo processo de diferenciação sexual orienta as práticas no contexto do Godllywood. Contudo, a diferença ganha novos contornos com a fundação do projeto específico para homens, o Intellimen. A divisão sexual operada por meio da diferenciação dos espaços na sociedade, ou mesmo na divisão do espaço ritual da igreja (átrio e altar), desdobra-se numa diferenciação de disciplinas para o mundo da vida, configurando o que Bourdieu denomina de razão pedagógica , ou o domínio prático das regras de polidez. Segundo o autor, “O artifício da razão pedagógica reside precisamente no fato de extorquir o essencial sob aparência de exigir o insignificante, como o respeito às formas e as formas de respeito que constituem a manifestação mais visível e ao mesmo tempo mais ‘natural’ da submissão à ordem estabelecida” (Bour- dieu 2009:114). Assim, o conjunto de atividades que conforma o Godllywood torna- -se um espaço por excelência da objetivação dos esquemas geradores de indexação por meio das práticas, de disposições e da diferenciação dos corpos produzindo novas formas de organização do mundo da vida.
A dinâmica dos grupos etários
Algumas reuniões presenciais dos grupos dentro do projeto Godllywood são de acesso seletivo. As participantes precisam ser membros da IURD há algum tempo, preferencialmente da segunda geração de membros da igreja. Ou seja, é recomenda- do que os pais sejam membros de uma comunidade. Em muitas igrejas, os convites são feitos nominalmente, e a pessoa precisa passar por alguns testes de conhecimento bíblico para conseguir sua vaga no grupo. No caso da Sisterhood e da Mulher V , exige- -se, além da conversão, que a mulher tenha sido batizada, nas águas e no Espírito Santo.
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Segundo as informações disponíveis no site, no Brasil as inscrições iniciam-se sempre no mês de janeiro. Na cidade de São Paulo, a primeira seleção ocorreu no Ce- náculo (Antigo Templo Maior), na Avenida João Dias, em Santo Amaro, em janeiro de 2010. De início, não havia uma divulgação ampla para os processos de seleção e ingresso nos grupos. Os anúncios eram feitos dos púlpitos e por meio de panfletos de circulação interna. A partir de 2012, já era possível encontrar anúncios em blogues de frequentadoras da IURD e em páginas no Facebook. Abaixo, descrevo na íntegra um anúncio para a seleção de sisterhood na cidade de São Paulo:
Admite-se sisterhood: O objetivo é formar moças que se guardam para o casamento, que sa- bem como cuidar de uma casa e, ainda assim, seguir uma carreira, que não seguirão as tendências ruins e sexy da moda, mas as tendências de Deus. A Sisterhood é dividida em várias classes, e para entrar tem que cumprir algumas tarefas que demonstrem o quanto você quer participar da Sisterhood, e assim ser aprovada ou não. 03/02/2010 - 1º dia de participação na Sisterhood. Preenchimento das fichas e orientações para a entrevista pré-pledge com a missionária Lu- ciene na Av. João Dias, 1800 - Santo Amaro - São Paulo / SP. 18
As atividades têm início no mês de março. Além de cursos e programações específicas, as frequentadoras, chamadas no grupo de iniciantes, precisam executar tarefas como participação em obras sociais, visita a asilos, presídios e hospitais. As participantes também têm de cuidar dos afazeres no próprio lar, como preparo de refeições para a família e organização de ambientes, além da leitura de livros cristãos e mensagens do blogue da equipe. Outro item muitíssimo valorizado nas tarefas é o cuidado com a aparência, o que envolve o aprendizado para cortes de cabelos e ma- quiagens. Acrescenta-se a essas exigências aulas de conhecimentos gerais, línguas e orientação vocacional. Como já referido, os desafios conformam um calendário semanal e são pen- sados tendo como recorte a faixa etária das participantes. Por exemplo, no quadro mensal dos desafios semanais das Pré-Sisterhood (ainda crianças) estão as seguintes atividades:
Semana 1 - Encha seus pais de carinho, com muitos beijinhos. PROVA: Tire bastante fotos com eles, mostrando seu carinho através das poses e mostre para sua Big Sister no próximo domingo. Semana 2 - Prepare o café da manhã para toda a família todos os dias essa semana. PROVA: Tire fotos da mesa que você preparou e mostre para sua Big Sister no próximo domingo. Semana 3 - Essa semana, você vai lavar e secar as louças para a mamãe
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No caso das Sisterhood , as regras de participação são descritas no “Código Sis- terhood ”, que tem como regra principal: “ser atraente no falar e no comportamento; ser discreta na aparência; ser um exemplo positivo dentro de casa; ser corajosa e humilde para aceitar correção e estar disposta a mudar; e construir uma fé sólida em Deus”^21. Dentro do grupo, as candidatas passam por alguns estágios e, ao final de cada ano, são premiadas com alguma forma de certificação. Para as premiações, são realizadas grandes festas em que os participantes ( sisterhood e seus convidados) de- vem trajar roupas de gala. Elas são presenteadas com algumas insígnias que figuram o universo feminino, como colares, pulseiras e broches, objetos que servem como mar- cadores da fase vencida. Nesse rito, elas são apresentadas aos objetos que receberão caso sejam aprovadas no programa no ano seguinte. Se um possível fracasso é encarado como fraqueza espiritual, a conclusão do primeiro ano de desafios é uma vitória comemorada nos âmbitos material e espiritual, ou ainda, como um sinal de benção, como relatou Rebeca, de 15 anos, participante do grupo na cidade de São Paulo: “Quando olho para trás e lembro-me de como eu era, fico chocada. Eu tinha fé e boa intenção no meu coração, mas me faltava a ins- trução e a disciplina. Hoje me sinto diferente e abençoada”^22. As categorias “desafio” e “sacrifício” são imprescindíveis nesse processo. Uti- lizadas como moderadoras e motivadoras das práticas, tais categorias são acionadas para se explicar a implementação de novas atividades, estabelecendo conexão com as características de personagens descritas em alguns trechos do antigo testamento. Todo esse programa disciplinar faz parte de um projeto descrito pelos seus ide- alizadores como “projeto maior”, ou a formação de uma nação próspera, que, nessa chave interpretativa, também se traduz como “nação abençoada”, “orientada para Deus”.
O gênero do sacrifício e a performance da prosperidade
Antes de me ater à descrição mais detalhada sobre os desafios semanais do projeto Godllywood , bem como a rede de publicização do sacrifício e do êxito que se forma nas redes sociais, é necessário esquadrinhar algumas concepções de sacrifício e desafio presentes nos discursos dos atores frequentadores da Igreja Universal. Para tanto, escolhi trazer ao texto parte da narrativa e da trajetória de uma mulher que é membro da IURD e figura importante na construção da campanha “eu sou a Unive- sal”^23. Deusa já foi obreira da igreja no Brás, em São Paulo, e frequenta a IURD há quase duas décadas. Sua biografia parece ser muito conhecida, não apenas nas reuni- ões de mulheres, mas também por meio dos testemunhos proferidos nos cultos e em programas televisivos. Ela chegou a conceder uma entrevista ao bispo Edir Macedo, que foi exibida pela TV IURD em junho de 2011 24. Nordestina, nascida no interior
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do Piauí, migrou para São Paulo para trabalhar como doméstica na casa de uma famí- lia e, após problemas de convivência, acabou despejada. Ainda muito jovem passou a viver nas ruas no bairro da Liberdade. Hoje, Deusa é proprietária de uma rede de salões para cuidados estéticos no Morumbi, bairro considerado nobre na cidade de São Paulo. Agora passo a apresentar alguns trechos da narrativa de Deusa. É possível perceber, no modo como estrutura sua fala, ao remontar sua memória dos momentos vividos, a forte presença das categorias “desafio” e “sacrifício”, bem como de uma noção substantiva de gênero apoiada na sua intuição de trabalhar com o cuidado do outro.
Deusa: Eu já estava na rua há muito tempo e cheirava mal. O senhor sabe como é morador de rua, ele não toma banho, não come, só come resto de comida... Bispo Edir Macedo: Quanto tempo a senhora ficou morando na rua? Deusa: Quase dois anos... Mas assim, dois anos de angústia, de olhar para a rua, de olhar para o viaduto, e me sentir presa, angustiada e sentir... Bispo Edir Macedo: Então a senhora sentiu-se revoltada? Deusa: Sim, eu senti revolta... Um dia, o senhor sabe que mendigo anda muito, ele sobe e desce de cobertor nas costas... Um dia, fui pra aqueles lados do Brás, e o que me chamou atenção foi, na parede da igreja, o co- ração com a pombinha branca no meio. Tomei coragem, toda suja, toda fedida, eu falei com a moça que estava na porta da igreja, ela me levou pra dentro da igreja, me levou até o altar e falou bem baixinho: “esse aqui é o nosso pastor”. Eu olhei pra ele e falei: moço, o senhor pode me dar uma ajuda? Aí... olha só que homem especial, bispo! Ele veio com um papel que era um envelope, né? E me deu aquele papel. Bispo Edir Macedo: [muitos risos] Então, ao invés de te dar ajuda ele te deu um envelope? [risos] Deusa: Eu olhei pra ele e falei: ué, eu vim pedir ajuda e o senhor me dá um envelope? O que eu vou fazer com ele? Olha só a resposta dele, ele não falou muito, ele falou assim: “A senhora vai trabalhar”. Olha que palavra especial: “VAI TRABALHAR E FAZER UM SACRIFÍCIO”. [ênfase da narradora] Eu fui até a Praça da Liberdade e no dia seguinte fui num barzinho e arranjei um trabalho. O dono do bar me deu balde, vassoura, eu limpei tudo e no final do dia, ele me pagou. Eu comecei a trabalhar lá. A palavra do bispo: “VAI TRABALHAR E FAZER UM SACRIFÍCIO”. Foi a palavra SACRIFÍCIO que me levantou! Eu passei a juntar todo o dinheiro que eu ganhava dentro do envelope. Às ve- zes, bispo, eu tinha vontade de comprar um lanche, mas aquela palavra “SACRIFÍCIO” me segurou... Um dia fui na igreja, não tinha culto, eu
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bênçãos, a paz, a felicidade, a alegria e tudo de bom) passa a nos pertencer. Passamos a ser participantes de tudo o que é de Deus” (Macedo 2011:68). Voltando ao testemunho de Deusa, é interessante notar que sua narrativa amarra alguns pontos importantes ao projeto pedagógico desenhado na linguagem do desafio Godllywood. O primeiro deles diz respeito à correlação estabelecida entre prosperidade e cuidado de si. No início de sua fala, sua situação como mendiga se afirma na descrição de seu corpo: o odor, a sujeira, as roupas rasgadas emergem como marcadores de sua condição de pecadora e de seu distanciamento de Deus. Depois de ofertar seu primeiro sacrifício, ainda como empregada de um bar, sua primeira inicia- tiva foi matricular-se em cursos de formação de cabeleireiros e esteticista^25. Assim, a transformação de sua vida ocorreu de tal modo que os cuidados estéticos com o corpo tornaram-se foco do seu trabalho e, consequentemente, ato de seu sacrifício. Outro ponto importante diz respeito à sua condição e seu regime de trabalho, que passa de desempregada para empregada e de empregada para empreendedora. O trabalho é a ação condicionante de quem se apresenta em sacrifício, embora seja preciso considerar que existe um quadro de posições valorativas de trabalho. Quem sacrifica deve sacrificar-se visando melhorar sua posição nesse quadro. Sem analisar muito o lugar da carreira eclesiástica nessa conjuntura, certamente, empresários e empreendedores ocupam o topo dessas disposições. Há uma produção intensa de dispositivos que conformam uma economia voltada para o estímulo e o êxito do empreendedor autônomo incentivado por valores morais como “vitória”, “mudança de vida”, “prosperidade” (Lima 2008:23). Nesse sentido, a conquista de Deusa não está no fato de ter deixado de ser moradora de rua nem em ter conseguido empregar- -se como funcionária de um bar: esses não passariam de elementos mobilizados na narrativa como meios para se atingir a conquista. O desafio da entrega em sacrifício do bem poupado assemelha-se ao desafio de começar o próprio empreendimento. A conquista consiste, portanto, na celebração do êxito do próprio negócio. A narrativa de Deusa torna-se, assim, uma performance importante, a forma por excelência da perseverança no desafio e do êxito no sacrifício. As narrativas sobre enriquecimento individual remetem a uma disposição obje- tiva para agir que se manifesta na realização de “sacrifícios” e “desafios”. A narrativa da conquista (ou o testemunho) não opera apenas como ponto de finalização de um determinado circuito^26 de práticas: ela opera também como organizadora do tempo que corresponde à espera da realização do desejo, ou do intervalo da dádiva, que tem uma natureza incerta (Scheliga 2010:247). Bourdieu discorre sobre a importância de se avaliar também o intervalo entre o que é oferecido, a dádiva, e a retribuição. Esse intervalo de tempo que segue incerto faz emergir no agente da dádiva um sentimento de risco em relação à resposta de seu ato. Tal sentimento preserva a crença na gra- tuidade da reciprocidade, o que, com o passar do tempo, se produz como um habitus capaz de transformar o interesse (motivador da troca) num ato reconhecidamente desinteressado (Bourdieu 1996).
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O entendimento do corpo como mediador ritual desse circuito de práticas que reúne desafio, sacrifício e conquista rumo à prosperidade se dá mediante o es- praiamento da dimensão do rito, que passa da efervescência coletiva das reuniões da igreja para as práticas e para o cuidado de si no cotidiano. Na linguagem do desafio Godllywood , essa dimensão ganha forma e passa a ser performatizada por meio de fotos e imagens que são compartilhadas nas redes sociais.
O desafio na rede e a universalização do sacrifício
Num momento anterior, descrevi com detalhes a dinâmica dos grupos que compõem o programa Godllywood , quem é o público que participa e até mesmo quais são os quesitos e processos para garantir a aprovação de novas candidatas. O que passo a descrever a seguir é o movimento de publicização dessa dinâmica nas redes sociais e o modo como o uso da internet e o movimento das comunidades virtuais permitiu que o programa se espraiasse, constituindo uma rede de mulheres divididas por suas línguas e nacionalidades, dando visibilidade e acesso ao que era praticado apenas pelas mulheres escolhidas em reuniões fechadas nos templos da IURD^27. As Sisterhood e Mulher V compartilham a mesma lista de desafios sob o título de “desafio Godllywood”. Ao propor a execução, durante o prazo de uma semana, de algumas atividades cotidianas, o desafio amplia a temporalidade do ritual, trans- ferindo a ação que permanecera reservada ao espaço sagrado do culto para o corpo que, por meio da realização de pequenos sacrifícios cotidianos, passa a incorporar o sagrado como estilo de vida. Nesse sentido, o corpo passa a ser visto como espaço de performance do sagrado, o que permite que se amplie a rede de interlocutores do sagrado. No início de 2011, quase não se podia observar vestígios da formação dos gru- pos que compõem Godllywood fora do Brasil e dos Estados Unidos. Porém, desde que a divulgação dos desafios começou nas redes sociais, ao final de 2011, o programa passou a existir em outras regiões do mundo, tais como Europa, Ásia e África. Mesmo estando presente, atualmente, em sessenta países, os grupos e as atividades discipli- nares do Godllywood têm crescido essencialmente em países do continente africano, como África do Sul, Moçambique, Angola e Namíbia, constituindo uma rede de trocas e de gendramento de técnicas acerca do cuidado de si e dos sentidos para o fe- minino que ultrapassam as fronteiras dos países (a página do Godllywood já apresenta seu conteúdo traduzido para sete línguas). Num dos portais da IURD é possível acompanhar vários relatos acerca do programa Sisterhood na África. Os trabalhos das Big Sisters (função desempenhada por brasileiras, esposas de pastores) são narrados de modo a explicitar a dinâmica do “desafio” e do “sacrifício”. Há sempre um tom de desafio quando se pensa no modelo global de atividades e em como esse modelo pode ser pensado dentro das condições (sempre narradas como precárias) dos povos africanos. Em reportagem, cujo título
250 Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 34(2): 232-256, 2014
Honrar o código de Godllywood , que é: Ser exemplar no falar e no comportamento, discreta na aparência, um exemplo positivo em casa, no trabalho e na escola, corajosa e humilde para aceitar correção e mudar e construir uma fé sólida em Deus. Você está pronta para viver esse código? Então está pronta para continuar no Desafio Godllywood^30_._
Desde que o desafio Godllywood passou a ser publicado na internet e movi- mentado pela interação diária nas redes sociais, é comum encontrar no conjunto de prescrições algo que remeta a uma ação ligada ao universo das relações virtuais, desde o tipo de foto que se posta, até o tipo de discussão de que se participa. Com isso, o código da discrição passou a ser operado na chave da visibilidade das imagens do desafio; assim, discrição e outros atributos do feminino ganham, para além de seus sentidos, uma dimensão de imagem, ou seja, são materializados por meio de uma performance fotográfica. No Facebook, as páginas cujo título é “Desafio Godlywood ” multiplicaram-se; numa rápida busca é possível encontrar cerca de duzentas comunidades em línguas distintas. A facilidade de reunir tais grupos dá-se porque, mesmo em comunidades de língua oriental, “ Godllywood ” aparece como um código que nunca é traduzido. A dinâmica de uso das redes sociais ocorre numa espécie de regulação entre o material que se produz e o tipo de configuração de comunicação utilizado em cada canal. O Facebook pode ser considerado o mais flexível, dele sendo possível estabe- lecer conexão com o Twitter (que é usado para registrar e ampliar pequenas frases postadas no blogue de Cristiane Cardoso). O movimento de ampliação desses bre- ves discursos decorre do uso incansável de hashtags , tais como #euacreditodesafiogo- dllywood , #desafiogodllywoodeufiz. Outro mecanismo muitíssimo utilizado que produz suas ressonâncias entre as pessoas conectadas ao Facebook é o Instagram, adotado para o compartilhamento de fotos e vídeos. Um exemplo que apresento aqui sobre o uso prático dessa rede ocorreu em janeiro de 2014, no advento do Desafio 82^31 : den- tre as tarefas da semana, havia uma regulação sobre o consumo de carne vermelha, a compra de um livro e iniciar uma atividade física. Foi possível registrar nessa semana grande volume de selfies de mulheres com pratos decorados com ingredientes que ex- cluíam carne vermelha e de vídeos de famílias inteiras fazendo atividades físicas. As imagens e fotografias indexam-se a partir do acionamento das hashtags , o que acaba por configurar uma rede transnacional de práticas reunidas sobre os mesmos signos ou palavras-chave. Essa lógica de exteriorização do cotidiano por meio do registro ativo do cum- primento de um dever e de interiorização da regra parece sugerir que o movimento dessa rede de práticas não se inscreve no ato de fazer o desafio, mas sim na produção e no uso de tecnologias para fazer ver o desafio. Assim, a linguagem do desafio Go- dllywood não se estabelece apenas no tempo em que a tarefa é praticada, mas, funda-
T EIXEIRA: Mídia e performances de gênero na Igreja Universal 251
mentalmente, nas metodologias e capacidades envolvidas para garantir a visibilidade da ação. É esse devir que faz com que o conceito de performance, e nesse sentido específico, de performance de gêneros, pareça importante. Em seu texto Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (2010), Judith Butler apresenta como argumento central a desconstrução da oposição clas- sicamente constituída pela tradição das teorias feministas entre sexo e gênero. Para ela, tal oposição traduzia a consolidação da crença filosófica ocidental na existência metafísica de essências e substâncias; pensar gênero nessa tradição seria pensar na essência de um sujeito a despeito do campo de determinações biológicas impostas pelo sexo. Se a distinção entre sexo e gênero não existe de fato, a concepção mo- derna de essência dos sujeitos também não se sustenta. Aceitar o sexo como algo biologicamente dado e o gênero como algo construído, determinado culturalmente, seria o mesmo que considerar o gênero como expressão ou representação de um ser substanciado na identidade de um sujeito. Para Butler, o gênero é uma performance , performance esta que se adapta a qualquer corpo; portanto, a autora distancia-se de uma concepção mais ontológica de que um determinado corpo estaria para um gêne- ro específico. Ela propõe, assim, uma mudança no olhar sobre o corpo e, consequen- temente, sobre o gênero; na sua leitura, o corpo eclode como superfície politicamente regulada. A concepção de gênero como performance engendra o corpo como um campo vasto de ações e atravessado por múltiplos poderes. Nesse movimento, emerge o que Butler denomina de efeito do gênero , processo que produz formas de estilização dos corpos e deve ser entendido, consequentemente, como um modo cotidiano de agir e de pensar sobre si, produzindo performances marcadas pela ideia de gênero, pensamento materializado por meio da transformação e da adequação desses corpos. O programa Godllywood seria, portanto, um espaço no qual se pratica, se pensa e, por conseguinte, se constrói o gênero, processo que se dá através de seus eventos e cursos e, substancialmente, do uso das novas tecnologias de internet e da circula- ção das performances dos desafios nas redes sociais. A Mulher V , resultado esperado mediante o cumprimento de tantos desafios, não seria a causa ou o código motriz de movimentação dessa rede, mas sim o resultado de um processo de gendramento e de compartilhamento de imagens sobre si. A forma e os sentidos dos selfies estão em ple- na disputa e podem ser testados e reformulados na medida em que são visibilizados, midiatizados e apreendidos pela linguagem do estilo.
Considerações finais
O objetivo do presente artigo consistiu em analisar a produção de tecnologias de visibilidade e a formação de performatividade de gênero a partir da circulação de fotos que compõem o quadro de tarefas do desafio Godlywood da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). A grande questão de fundo, proposição mobilizadora dos