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Análise do Filme 'Maus Hábitos': Perfil de Mulheres com Anorexia e Bulimia, Esquemas de Nutrição

Este documento analisa o filme 'maus hábitos' e seus personagens, as quais apresentam sintomas de anorexia e bulimia. O autor utiliza o método indicador de carlo ginzburg para identificar esses traços, discutindo aspectos interdisciplinares da alimentação e nutrição, cultura, estigma, abordagem médica e formação de relações afetivas. O texto também explora as múltiplas possibilidades de discussão sobre a comida, sua erotização, medicalização e cobrança social.

O que você vai aprender

  • Quais sintomas de anorexia e bulimia são apresentados pelas personagens do filme 'Maus Hábitos'?
  • Como o método indicador de Carlo Ginzburg é utilizado para identificar esses sintomas?
  • Quais aspectos interdisciplinares da Alimentação e Nutrição são abordados no texto?
  • Como a cultura influencia os padrões sociais de beleza e magreza?
  • Quais formas de lidar com a anorexia e bulimia são discutidas no texto?

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Pamela87
Pamela87 🇧🇷

4.5

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MAUS HÁBITOS À MESA: A ANOREXIA NO CINEMA
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Francisco Romão Ferreira, Larissa Escarce Bento Wollz, Shirley Donizete Prado e
Paola Moraes Sarmento Santiago Freitas
Este texto trata da anorexia, transtorno alimentar que ocupa lugar de destaque
entre profissionais de saúde que atuam na academia científica e na clínica. A abordagem
sobre o tema será feita a partir do filme Maus hábitos”, produzido no México em 2007
e dirigido por Simón Bross. O filme lida com anorexia e bulimia em diferentes
personagens e será tratado aqui como um “estudo de caso” que retrata o comportamento
de pessoas que apresentam estes transtornos alimentares e implicações entre os
familiares mais próximos. O percurso metodológico é realizado a partir do “método
indiciário” de Carlo Ginzburg (1989), tido como adequado por capturar os sintomas da
anorexia a partir de detalhes, indícios e sinais apresentados pelas personagens em tela.
A ideia de produzir o texto surgiu de discussões acerca do tema entre profissionais com
formação em Sociologia, Psicologia e Nutrição que atuam no campo da saúde, gostam
de cinema, trabalham com ensino e pesquisam temas ligados à imagem corporal.
Apresentação do tema: os transtornos alimentares no cinema
No contexto das “psicopatologias da contemporaneidade”, os transtornos
alimentares ocupam lugar de destaque e vêm instigando diversos profissionais que
atuam na academia científica e na clínica. Desde o nascimento, o alimento relaciona-se
aos vínculos com o outro; portanto, os transtornos alimentares não são um mero
distúrbio biológico e devem ser pensados também como transtornos do vínculo afetivo.
Os sintomas se expressam em diversas épocas e observa-se que seguem as vicissitudes
do seu tempo, fato que nos instiga a refletir sobre a abrangência da discussão, pois ela
engloba fatores históricos, culturais, sociais, biológicos e psíquicos.
O filme Maus hábitos, produzido no México em 2007 e dirigido por Simon
Bróss, foi premiado nos festivais de Montreal, Los Angeles e Bogotá. Trata da questão
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Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Alimentação,
Nutrição e Saúde através do Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação (NECTAR) do
Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contou com apoio
financeiro da FAPERJ, do CNPq e PROCIÊNCIA-UERJ/FAPERJ.
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MAUS HÁBITOS À MESA: A ANOREXIA NO CINEMA^3

Francisco Romão Ferreira, Larissa Escarce Bento Wollz, Shirley Donizete Prado e Paola Moraes Sarmento Santiago Freitas Este texto trata da anorexia, transtorno alimentar que ocupa lugar de destaque entre profissionais de saúde que atuam na academia científica e na clínica. A abordagem sobre o tema será feita a partir do filme “ Maus hábitos ”, produzido no México em 2007 e dirigido por Simón Bross. O filme lida com anorexia e bulimia em diferentes personagens e será tratado aqui como um “estudo de caso” que retrata o comportamento de pessoas que apresentam estes transtornos alimentares e implicações entre os familiares mais próximos. O percurso metodológico é realizado a partir do “método indiciário” de Carlo Ginzburg (1989), tido como adequado por capturar os sintomas da anorexia a partir de detalhes, indícios e sinais apresentados pelas personagens em tela. A ideia de produzir o texto surgiu de discussões acerca do tema entre profissionais com formação em Sociologia, Psicologia e Nutrição que atuam no campo da saúde, gostam de cinema, trabalham com ensino e pesquisam temas ligados à imagem corporal. Apresentação do tema: os transtornos alimentares no cinema No contexto das “psicopatologias da contemporaneidade”, os transtornos alimentares ocupam lugar de destaque e vêm instigando diversos profissionais que atuam na academia científica e na clínica. Desde o nascimento, o alimento relaciona-se aos vínculos com o outro; portanto, os transtornos alimentares não são um mero distúrbio biológico e devem ser pensados também como transtornos do vínculo afetivo. Os sintomas se expressam em diversas épocas e observa-se que seguem as vicissitudes do seu tempo, fato que nos instiga a refletir sobre a abrangência da discussão, pois ela engloba fatores históricos, culturais, sociais, biológicos e psíquicos. O filme Maus hábitos , produzido no México em 2007 e dirigido por Simon Bróss, foi premiado nos festivais de Montreal, Los Angeles e Bogotá. Trata da questão (^3) Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Alimentação, Nutrição e Saúde através do Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação (NECTAR) do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Contou com apoio financeiro da FAPERJ, do CNPq e PROCIÊNCIA-UERJ/FAPERJ.

da anorexia e bulimia em diferentes personagens e será abordado aqui como “estudo de caso”, pois a análise das imagens e dos personagens permite compreender o que acontece no cotidiano. O filme retrata de forma muito próxima da realidade o comportamento das pessoas que apresentam esses transtornos alimentares e implicações sobre a vida de familiares mais próximos. O quadro clínico que as personagens apresentam segue um padrão, que é facilmente reconhecível em seus “indícios e sinais” pelos profissionais que têm experiência na área, tais como perda acentuada de peso, hiperatividade, mudanças frequentes de humor, insônia, isolamento, queda de cabelos, prática exaustiva de exercícios físicos, entre outros. O filme retrata essas questões de forma séria, coerente, sem apelações ou sensacionalismo, o que nos permite propor uma reflexão acerca do perfil das mulheres que apresentam esse distúrbio. Se a vida imita a arte, as obras de arte também retratam de forma muito eficaz as questões humanas em toda sua grandeza e/ou pequenez. A ideia do texto surgiu a partir da discussões acerca do tema entre profissionais que atuam no campo da saúde, que tem formações diferentes (Sociologia, Psicologia e Nutrição), percebem pontos em comum no tema, gostam de cinema, trabalham com ensino e pesquisam questões ligadas à imagem corporal. O percurso metodológico é realizado a partir do “método indiciário” de Carlo Ginzburg (1989), tido como mais adequado, por capturar os sintomas da anorexia a partir de detalhes, indícios e sinais apresentados pelas personagens do filme. Anorexia e bulimia: aspectos gerais A anorexia e a bulimia são transtornos alimentares comuns nas sociedades urbanas ocidentais e apresentam maior incidência entre mulheres jovens e pertencentes às camadas mais favorecidas economicamente. Recentemente, também foram identificadas parcelas significativas desses transtornos em áreas rurais, salientando que a anorexia é relativamente estável em diferentes épocas e regiões, embora existam variações em seus sentidos e significados em distintos momentos históricos. Pesquisas evidenciaram que a “incidência de bulimia mostra-se seis vezes maior nas cidades do que nas áreas rurais” (FERNANDES, 2012. p. 57), o que nos permite pensar que não se trata de um transtorno meramente biológico e, sim, de um fenômeno comportamental mais ligado ao universo feminino urbano.

por profissionais de outros campos da Saúde que atuam na clínica e se deparam com as questões aqui retratadas. A arte imita a vida: o cinema como recurso didático e ferramenta metodológica Acreditamos que a Arte não contradiz a Ciência; ela nos ajuda a compreender certos aspectos que a ciência não consegue perceber. Para nós, razão e emoção não são pares opostos; são, sim, complementares. Os processos criativos, sejam eles artísticos ou científicos, operam buscando modos de compreender, traduzir, interferir e transformar a realidade. Ambas (Arte e Ciência) buscam soluções e respostas, são meios de entender a realidade, ambas tentam descobrir e questionar padrões, estabelecer e reformular princípios, criar modelos, ampliar a linguagem e o pensamento, criar novos modos de pensar (FERREIRA, 2010). A Arte seria uma síntese semiológica que traduz as formações históricas (ARGAN, 1994); ao apresentar mecanismos lógicos, organizativos e metodológicos, ela também é um campo de saber constituído, organizado e complexo, com mecanismos próprios de racionalização dos processos, de organização do campo, dos fluxos e do jogo discursivo. Assim como um cientista, o artista precisa premeditar, antever, criar, imaginar, conferir, refletir, propor, intuir e, principalmente, organizar (ROOT- BERNSTEIN, 2001). O trabalho, seja ele artístico ou científico, requer pleno domínio intelectual do autor sobre o objeto de estudo e sobre o processo de sua produção. Em ambos utilizamos a força criadora, intuitiva, sensível, imaginadora, projetamos nosso desejo e expressamos nosso modo de existir. Partindo do pressuposto de que a linguagem artística pode dialogar com a linguagem científica, percebemos que o cinema pode ser de grande valia para o ensino de ciências e também “para promover um encontro de diferentes áreas do conhecimento e colocá-las em intercomunicação” (GARCIA; COIMBRA, 2008, p. 18). Para dialogar com nossos alunos, é fundamental reconhecer as transformações socioculturais promovidas pelo desenvolvimento da tecnologia da informação, a inserção dos jovens no universo da indústria cultural, nas redes sociais e suas facilidades de acesso a bens culturais via internet. Pimentel (2011) ressalta que, se desejamos ser educadores de um novo tempo, o da multimídia, o da sociedade da informação e da tecnologia, temos que utilizar essas linguagens para dialogar com os nossos alunos, pois a partir do cinema temos a construção de um aparato simbólico que pode norteá-los. Segundo Oliveira,

Filmes de aventuras, dramas, comédias, desenhos têm também sua parcela de contribuição na formação de estereótipos, modelos e expectativas que acabam por se constituir como referências comuns pelas quais a ciência e a técnica são percebidas por grande parte da sociedade, compondo assim o arsenal simbólico no qual a opinião pública vislumbra e discute os rumos e os limites dos empreendimentos científicos e tecnológicos (OLIVEIRA9, 2007. p. 8). A utilização de filmes em sala de aula pode ser útil também para o campo da Alimentação e Nutrição, pois sabemos que “esse recurso apresenta diversas vantagens, como a sua praticidade, acessibilidade, ampliação do contato entre os alunos, além de agregar o prazer ao processo educativo” (VIEIRA, 2012). O filme pode ser visto como um produto oriundo do campo da arte que apresenta questões que podem ser pensadas a partir de uma abordagem científica, trazendo para a sala de aula assuntos do cotidiano dos estudantes e do currículo convencional, mas tratando os temas de forma lúdica, gerando empatia e criando uma abordagem que permita, ao mesmo tempo, que o professor possa expor diferentes perspectivas sobre o tema e que o aluno apresente suas opiniões pessoais, valores morais, posições políticas e ideológicas, tudo isso de forma didática e agradável. Os sintomas de transtornos alimentares apresentados pelos personagens podem ser discutidos em seus aspectos clínicos e podem ser analisados como um caso concreto, na medida em que este retrata o que acontece cotidianamente na clínica e, muito provavelmente, na própria sala de aula. Assistir a um filme é ingressar num universo que, ao mesmo tempo, reproduz a realidade, mas se mantém distante dessa mesma realidade retratada. A suspensão da descrença produzida pelo filme traduz a vontade do espectador de aceitar como verdadeiras as premissas de um trabalho de ficção, mesmo que tais premissas sejam contraditórias, fantásticas ou impossíveis. Pois o filme “nos dá o sentimento de estarmos assistindo a um espetáculo quase real”, e com isso, [...] desencadeia no espectador um processo ao mesmo tempo perceptivo e “afetivo” de participação, conquista de imediato uma espécie de credibilidade (não total, é claro), mas mais forte do que em outras áreas, às vezes muito viva no absoluto, encontra o meio de se dirigir à gente no tom da evidência, como que usando o convincente “É assim”, alcança sem dificuldade um tipo de enunciado que o linguista qualificaria de plenamente afirmativo e que, além do mais, consegue ser levado em geral a sério (METZ, 2010, p. 16). A suspensão da descrença produzida pelo filme nos permite ingressar nesse universo sem reservas e acreditar que estamos diante de uma história verídica, embora

(VANOYE, 1994, p. 14). É preciso então ver e rever o filme várias vezes para extrair dele os sentidos e significados produzidos sobre o corpo que estão naturalizados no social. As questões relativas à anorexia e bulimia que são destacadas do filme reproduzem no plano individual a construção da identidade de um sujeito imerso no meio social com todo seu aparato simbólico, seus códigos de conduta, valores morais, padrões estéticos e cobranças que são interiorizadas e naturalizadas, transformadas em cobranças sociais que geram quadros clínicos individuais, mas são resultados de padrões sociais que atingem a todos indiscriminadamente. Acreditamos que o corpo é socialmente construído (LE BRETON, 2003), que as representações do corpo operam de acordo com as representações disponíveis na sociedade e essas representações sociais são reproduzidas no filme como se fossem “naturais”, como se transtornos alimentares apresentados ali fossem dramas reais. O simples ato de se alimentar traduz o modo como a cultura é naturalizada e coloca para o sujeito diferentes modos de pensar, sentir e agir. O social modela o somático, produz padrões de comportamento e técnicas do corpo (MAUSS, 2013). O corpo é construído, portanto, na interseção entre o biológico, o psíquico e o cultural, e a anorexia faz parte dessa interseção; para compreendê-la, é preciso articular essas diferentes instâncias. Considerações metodológicas sobre o filme “Maus hábitos” No filme “Maus hábitos”, as situações expostas retratam uma realidade que é compartilhada por muitas pessoas em diferentes faixas etárias e nacionalidades. Chama a atenção o fato de ser um filme mexicano, mas que poderia ter sido feito no Brasil, nos EUA, na Espanha ou na Austrália. Trata-se de uma questão comum nas sociedades urbanas ocidentais e os tipos humanos retratados ali causam empatia justamente pela proximidade e pela familiaridade, pois pode acontecer algo parecido no cotidiano. A preocupação com a imagem corporal entre mulheres, com a magreza, o preconceito contra os(as) gordinhos(as), o alto índice de bulimia entre as estudantes adolescentes, os mecanismos criados para inibir o apetite ou ludibriar o controle dos pais, as privações, os delírios, os indícios que permitem perceber alguns transtornos alimentares – enfim, tudo o que acontece na tela é familiar para quem lida com esses transtornos e percebe seus “indícios e sinais”, seja no ambiente profissional ou familiar. Carlo Guinzburg (1989), em seu texto “Sinais: raízes do paradigma indiciário”, publicado no livro Mitos, emblemas e sinais , coloca que nossos pequenos gestos

inconscientes revelam nosso caráter e nossas verdadeiras intenções, mais do que qualquer ato consciente ou pensado, elaborado por nós. Partindo da sabedoria popular que afirma que “o diabo mora nos detalhes”, Ginzburg cria o que conhecemos como método indiciário, ou seja, cria uma metodologia de análise que parte da percepção dos detalhes, dos indícios, dos pequenos sinais e detalhes que revelam a totalidade. Pois é através desses pequenos sinais que podemos reconstituir o sentido geral da trama social ou de um quadro psíquico. Neste modelo epistemológico, que Ginzburg (1989) chama de “paradigma indiciário”, é necessário examinar os detalhes, os pormenores mais triviais e “naturais”, imperceptíveis para a maioria. E foi através desses detalhes considerados marginais que foi possível percebermos os traços de anorexia e bulimia nas personagens do filme e, consequentemente, torna mais fácil também a percepção desses traços, tanto para profissionais quanto para leigos, no nosso cotidiano. Segundo Ginzburg (1989, p. 152), “o que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma totalidade complexa não experimentável diretamente”. Ele cita como exemplo três personagens conhecidas pela sua astúcia em descobrir pistas e perceber detalhes reveladores de uma trama. São eles: o crítico de arte Giovanni Morelli, que é especialista em descobrir falsificações nas obras de arte a partir dos detalhes mais negligenciáveis, e menos característicos da Escola a qual o pintor pertencia, tais como os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés, identificando assim detalhes que só o pintor original (sem perceber) deixava nos originais, mas não nas cópias. O escritor Conan Doyle, criador do detetive Sherlock Holmes, que descobre os autores dos crimes baseados em indícios e pistas imperceptíveis para a maioria. E também por Sigmund Freud, que da mesma forma utiliza um método interpretativo centrado nos resíduos, nos dados que aparentemente são marginais, mas na verdade são reveladores. Esses três “investigadores” captam uma realidade mais profunda, aquela não aparente, de forma inatingível através de pistas infinitesimais. Essas pistas são chamadas de sintomas, no caso de Freud; indícios, no caso de Sherlock Holmes, e signos pictóricos, no caso de Morelli. Em todos os casos, predomina o modelo da semiótica médica, segundo o qual a disciplina permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo. Ou seja, detalhes aparentemente banais escondem os sentidos sociais

à comida, que vão do componente erótico ao místico, da medicalização, da cobrança social, da culpa pela gordura; as trocas afetivas a partir do alimento, a relação existente entre prazer e comida, a erotização do alimento, a negação dos afetos via comida – enfim, são muitos os aspectos simbólicos presentes no filme que se relacionam ao ato de comer. Mas esses aspectos se escondem nos detalhes, nos indícios e sinais, como aponta Ginzburg. O filme tem a construção narrativa de um drama, mas traz elementos da filmagem que remetem à criação de uma atmosfera de suspense, produzindo algo meio mágico e misterioso no clima, tanto no sentido das condições atmosféricas (da chuva constante) quanto no sentido do conceito visual (da iluminação sombria) e da fotografia (com closes que destacam cada personagem) que remetem a uma trama policial às vezes sombria, trabalhando com pouca luz e cores saturadas que contribuem para dar à história uma aura de sonho e misticismo. A chuva constante colabora para essa atmosfera tensa e o ritmo da montagem deixa o espectador na expectativa de que algo grave e trágico pode acontecer a qualquer momento, pois todos os personagens estão envolvidos numa trama em que a comida é a moeda principal de troca, seja ela mística, erótica ou afetiva. O filme “Maus hábitos” trata de algumas obsessões que são conhecidas da literatura acerca da anorexia, entre elas: a motivação religiosa, o êxtase místico que caracteriza a anorexia desde o período medieval, a obsessão estética, a preocupação excessiva com a forma física e a compulsão por exercícios físicos para perder peso. No período medieval, o jejum voluntário era comum, mas tanto poderia ser considerado como possessão demoníaca como milagre divino e são vários os casos que relacionam a anorexia, ou inanição autoimposta, às religiosas do medievo. Segundo Abuchaim (1998), vários relatos do século V ao século XIII tratam desse transtorno. Um dos mais famosos é de Santa Wilgefortis (do latim “virgem forte”), que foi prometida por seu pai em casamento, mas teria feito um voto de castidade e queria servir a Deus, até o relato das 260 santas e beatas da Igreja Católica com suas práticas de jejum religioso a partir do século XIII. Segundo Brumberg, citado por Abuchaim, [...] o jejum e a negação das necessidades corporais nessas mulheres eram uma prova de devoção a Deus, significando que haviam encontrado outras formas de comida: a oração e a eucaristia. Essas práticas de ascetismo eram encorajadas pela Igreja Católica na forma de canonização, de santificação dessas mulheres (BRUBERG apud ABUCHAIM, 1998, p. 14).

A “anorexia sagrada” tem características diferentes da “anorexia moderna, pois na primeira as mulheres não tinham a preocupação em engordar ou com a forma física; as preocupações eram de ordem religiosa, busca de ascese espiritual; ou poderia ser também uma tentativa de escapar de casamentos arranjados e evitar a procriação de filhos. Podemos considerar, no entanto, a anorexia sagrada análoga à anorexia moderna, pois em ambas “há um conflito de identidade, uma tentativa de libertação feminina de uma sociedade patriarcal” (BELL apud ABUCHAIM, 1998 , p. 14). Segundo Abuchaim, A partir da Reforma Protestante, a abstinência alimentar, chamada de inedia prodigiosa (inanição severa) ou anorexia mirabilis (perda do apetite inspirada no milagre), passou a ser considerada obra do demônio e essas práticas deixaram de ser encorajadas pela igreja. Havia, à época, uma preocupação de elucidar cada caso de abstinência alimentar que surgisse para verificar se não se tratava de fraude, porque suspeitava-se que essas jovens, então conhecidas como “donzelas milagrosas” (miracolous maids), poderiam estar buscando notoriedade. Na Alemanha, no século XVI, uma dessas donzelas jejuadoras foi executada ao se descobrir que se alimentava às escondidas (ABUCHAIM, 1998, p. 14). É interessante notar que o diretor do filme colocou a personagem principal do filme, Matilde (interpretada por Ximena Ayala), como uma jovem freira enclausurada num convento onde o jejum é prática corriqueira, certamente fazendo uma remissão a esse passado tão marcante. Mas no filme, apesar de sua fé, ela sucumbe ao pecado da gula, comendo escondido de sua superiora e buscando comida até no lixo, às vezes como forma de extravasar sua gula e outras vezes como penitência ou sacrifício para obter um pedido por sua tia enferma. Ao agir dessa forma, ela nega o alimento, amplia sua culpa ao comer e transforma o alimento em sintoma do distúrbio psíquico. Matilde tem um perfil autodestrutivo e chega ao ponto de criar uma companheira imaginária que reforça sua culpa e acirra sua compulsão relativa à comida. A anorexia da personagem é retratada a partir de sua ascese mística, que remete à origem do transtorno no período medieval, revelando também um quadro de transtorno mental, pois ela acredita ter poderes mágicos ou milagrosos para curar pessoas enfermas ou parar um grande temporal. Esse pensamento mágico inicia-se na primeira cena, quando ela ainda criança reza enquanto o pai estava engasgado e acredita tê-lo corado com sua oração; no segundo momento, ela jejua por sua tia que se restabelece; e finalmente, tenta controlar as condições climáticas com o seu jejum. A

alguns aspectos familiares, como a mãe controladora que quer a todo custo que a filha emagreça, inclusive cogitando uma cirurgia, o pai ausente, a relação de amor e ódio inconsciente e a simbiose com a filha. Sua filha apresenta traços de obesidade infantil e, ironicamente, a personagem, que se chama Linda (interpretada por Elisa Vicedo), não consegue emagrecer e, com isso não consegue se sentir amada pela mãe. Tendo a comida como ponto em comum, essas duas formas de sofrimento compulsivo geram dor, angústia e desamor entre mãe e filha, acarretando total incapacidade de manter um vínculo afetivo. Por outro lado, Linda tem um amigo também gordinho, que lhe ensina uma técnica para emagrecer, que consiste em colocar na boca qualquer alimento, mastigá-lo várias vezes depois cuspir o bolo alimentar sem engolir. Eles se conhecem em uma clínica para controle de peso que utiliza técnicas de premiação ou humilhação de acordo com o peso alcançado. Linda sofre com a cobrança da mãe em relação ao seu peso. Quanto mais pressionada, mais se sente mal e come escondido, especialmente no banheiro, antes de dormir; a menina possui um esconderijo secreto para seus doces e chocolates, no ursinho de pelúcia. Apesar de se sentir muito triste com as falas de sua mãe, não deixa de comer, revelando uma não submissão ao desejo de controle materno. Linda tem um afeto especial por seu pai e recebe ajuda da prima Matilde para se alimentar. Em um dado momento, não suportando mais a pressão, a menina pega o remédio receitado a ela (que o médico alertou sobre sua alta periculosidade) e coloca na água da mãe. A mãe morre e Linda acredita a ter matado, sem saber que o remédio era placebo e não passava de água. Viverá com a culpa... Sabemos que esses impasses evidenciados nos transtornos alimentares mostram incessantemente a complexidade e as vicissitudes da relação do sujeito com seu próprio corpo. Não é de hoje que a psicanálise coloca em foco a importância das primeiras relações com a mãe na construção do corpo. Na obesidade, a relação com a mãe assume forma diferente da anorexia, pois existe a fantasia de, através do alimento, incorporar ou reparar o seio materno atacado sadicamente na fantasia. É como se o ato de comer tomasse um sentido purificador; o comer poderia ser visto como equivalente ao ato de restaurar o bom objeto, internalizar bons alimentos e, dessa maneira, se fortalecer, porque na fantasia o alimento teria o poder materno do nutrir, com leite e com amor (MIRANDA, 2010). Esse vazio precisa ser preenchido, numa sensação de débito semelhante à da anorexia, mas enquanto na anorexia o corpo é usado como fetiche, na obesidade o

alimento vai ocupar esse lugar como substituto de outro afeto. É comum que as pessoas com transtornos alimentares se refiram ao próprio corpo como não sendo seu e, nesse sentido, o emagrecimento ou o excesso corporal representam a afirmação da própria identidade, como é o caso da relação entre Linda e Elena. Além disso, o obeso procura negar a possibilidade de ter destruído seus bons objetos, pois a comida ocupa o lugar do afeto perdido e que o obeso tenta a todo custo recuperar (MIRANDA, 2010). O tema da obesidade infantil é também é apresentado no filme a partir da relação entre Linda e o menino da clínica de emagrecimento, e revela a obsessão da mãe anoréxica que leva a filha a um endocrinologista para que ela emagreça usando medicamentos, antes de sua primeira comunhão. Chega a solicitar que o médico indique um cirurgião para crianças para reduzir o tamanho do intestino, revelando aqui a medicalização da infância, já apontada por David Le Breton (2003). Segundo o autor, o domínio químico do cotidiano não poupa a criança e [...] a escuta da criança, o suporte afetivo, o acompanhamento ao seu lado, a detecção de violências familiares ou escolares deixam de se impor quando se trata de cuidar estritamente do sintoma (a criança transformada em terminal biológico) sem ter mais de interrogar as causas (o sistema de relação em que está imersa) (LE BRETON, 2003, p. 58). Outro personagem importante é Gustavo (interpretado por Marco Antonio Treviño), marido de Elena e pai de Linda, que sofre com a doença da mulher e tem problemas afetivos e sexuais decorrentes do quadro de anorexia da esposa. Ele se envolve afetiva e sexualmente com uma aluna apelidada Gordinha (interpretada por Milagros Vidal), que representa o oposto da anorexia, ou seja, o descontrole com o peso, a despreocupação com a forma física, o prazer com a comida e a erotização da comida durante o ato sexual, enfim, tudo o que não tem com a esposa. São artifícios que o diretor usa para trazer à tona os distúrbios alimentares, discutir os códigos sociais, criticar os valores estéticos hegemônicos, analisar as questões afetivas presentes no momento da alimentação e colocar em cena diferentes perspectivas acerca da anorexia. Há nesse aspecto uma clara referência à dimensão erótica e permissiva da comida. Uma referência aos que têm prazer à mesa, que se permitem saborear o alimento e que aparentemente estão alheios às imposições culturais da nossa época. Talvez um resgate do paraíso medieval da Cocanha, um país fictício onde todos os prazeres, inclusive alimentares, são permitidos, principalmente os ligados à gula;

As comorbidades psiquiátricas, ou seja, associação com outros transtornos psiquiátricos, são frequentes, e dentre as mais comuns estão: depressão (50 a 75%), transtornos de ansiedade (>60%), TOC (40%) e abuso de álcool ou outras substâncias ( 12 a 27%). A presença desses distúrbios dificulta ainda mais o tratamento, uma vez que há agravos na sintomatologia. Sua recuperação é de aproximadamente 50% em dez anos; sendo que 25% permanecem doentes e chegam a mortalidade até 25%. Entre os indícios e sinais de um quadro de anorexia na personagem Elena, podemos observar o uso de cigarro como forma de mascarar a fome, a atividade física como forma de perder peso mais rapidamente, além de sinais de depressão (isolamento social, perda de interesse pela vida) e TOC (arrumação constante, mania de limpeza), tudo isso culminando com sua morte. Matilde, outra personagem que entra em inanição severa, é internada em estado gravíssimo e quase vai a óbito por falta de alimento. Ambas apresentam sinais do transtorno perceptíveis àqueles mais atentos. No campo da Alimentação e Nutrição, sabemos que comer é um fenômeno social, um dos muitos rituais praticados diariamente pelo ser humano, variando de cultura para cultura, de pessoa para pessoa, mas caracterizando-se quase sempre como uma atividade de grupo. A prática alimentar é um processo complexo que envolve fatores culturais, sociais, psicológicos, biológicos, antropológicos e econômicos. Com o passar dos anos, as formas de se alimentar foram-se modificando: antigamente comia-se de tudo, porém devido a preceitos religiosos e a modernização, o hábito alimentar hoje em dia varia muito, mesmo dentro de uma mesma região. O ato de comer envolve escolhas motivadas não só pela fome, mas também por vontade, prazer, gostos, crenças, costumes, desejos e emoções. E ainda que seja uma decisão pessoal (mutável a todo instante), sofre grande influência externa, principalmente no âmbito cultural, que determina a disponibilidade da comida e até mesmo a forma de comer. Não diferente, é o ato de não comer. Entretanto, a motivação, na maioria das vezes, está ligada ao medo (quase doentio) de engordar e ao enorme desejo de emagrecer. O ato da escolha torna-se, portanto, um ato de negação; é uma decisão baseada no que não se pode comer. Envolve controle constante para “não cair em tentação”, para controlar a fome e também o desejo. Quando se “perde” esse controle, há culpa, tristeza, raiva, ansiedade, autodepreciação, podendo chegar a automutilação e autoagressão. A personagem Matilde não resiste a morder uma maçã do amor e logo após a primeira mordida, cospe tudo e, ao jogar fora a maçã, se fere.

Na anorexia nervosa, a escolha pelo comer é praticamente inexistente. Geralmente se inicia com uma dieta, decorrente da insatisfação quase sempre injustificada com o peso e a forma corporal, há restrição de inúmeros alimentos e eliminação daqueles que são julgados como mais calóricos ou proibidos. A restrição alimentar aumenta progressivamente, podendo chegar, em alguns casos, a inanição severa ou jejum total. A meta principal é a perda de peso (que inicialmente é “justificada” pela vontade de perder “apenas alguns quilos extras” ou “melhorar a saúde”) e, consequentemente, a magreza; isto se deve a um ponto central da psicopatologia, que é o distúrbio de imagem corporal. Imagem corporal é designada como representações, que são ao mesmo tempo conscientes e inconscientes, da posição do corpo. Ela é específica de cada um e é a síntese viva e sã das experiências emocionais vividas ao longo da vida (NASIO, 2009). Ferreira (2008) vai além e coloca que é a forma como o mundo e o nosso próprio corpo são construídos na nossa mente – ou seja, é o contato com a realidade externa que nos leva a formular nossa representação corporal interna, que muitas vezes não coincide com a imagem fornecida pelo espelho e com a imagem descrita por outros. Por ser uma construção tão individual e intransponível, todos os aspectos relacionados à imagem corporal são extremamente complexos e requerem um olhar diferenciado. Elena, personagem com anorexia nervosa, representa bem esse transtorno. Muito magra (sendo sua magreza apontada por todos a sua volta – filha, marido, médicos) olha-se no espelho repetidas vezes, analisando-se e medindo-se. Sua insatisfação com o corpo é enorme, o que a faz praticar atividade física intensamente, jejuar e provocar vômito. Praticamente não tem vida social, uma vez que se sente muito gorda e “fora dos padrões”. Desloca a importância da obtenção desse corpo magro para a vida, tornando esse cuidado corporal o centro de tudo. Outros indícios da anorexia nervosa vão desde alterações nos exames clínicos, passando por sinais físicos e chegando a alterações fisiológicas. Fadiga, tontura, constipação intestinal, palpitações, insônia, palidez cutânea, alopecia (perda de cabelo), presença de lanugo (pelos finos e quebradiços), gengivite, edema periférico, bradicardia e hipotermia são alguns desses sintomas. Para aquelas que usam a purgação, há aumento das glândulas paratireoides, erosão do esmalte dentário, escoriações nas mãos (se as usam como forma de provocar o vômito), esofagite, arritmias, desidratação, alteração da função tireoidiana, perda elevada de eletrólitos, entre outros.

pessoal. Acreditam que ter um corpo magro é símbolo de competência, sucesso e autocontrole, que poderiam ampliar seus atrativos sexuais, suas chances de obter felicidade e maior possibilidade de emprego. Usam o corpo como forma de se colocar no mundo, uma “estratégia de construção de identidade”, já que o corpo é um motivo de representação de si (LE BRETON, 2003; CASTRO, 2007). Nesse contexto, vale ressaltar que a aparência física em diversas épocas e culturas sempre foi valorizada pelas mulheres, o que não vale para o excesso de magreza a partir de parâmetros estéticos, que são uma marca da contemporaneidade. Percepções da psicanálise acerca da anorexia 90% dos casos de anorexia e de bulimia ocorre em mulheres, sendo, portanto um problema com dinâmica característica do feminino (FERNANDES, 2012). Nesse processo de adoecimento, inscrevem-se sentidos de alimentação, corpo, reprodução, sexualidade e relação mãe-filha como elementos nucleares, e também ganha destaque como uma das relevantes “psicopatologias da contemporaneidade”. Segundo Miranda (2010), a mulher contemporânea, mais do que o homem, é exposta, subjugada e fiscalizada pelos ditames repressores da cultura, da mídia, da publicidade e está rendida aos imperativos e exigências da juventude, da beleza e da saúde. Se antes a repressão se relacionava às interdições do comportamento sexual, hoje o foco está no comportamento alimentar. Outra questão apontada pela autora é que se ensina às mulheres desde pequenas que, embora nutridoras, o ato de comer em excesso não é feminino. Vale destacar as contribuições de Freud com relação a anorexia e conteúdos melancólicos. O pensador afirma que o afeto que corresponde à melancolia é o luto pelo desejo de recuperar algo que foi perdido pela vida pulsional. A neurose nutricional paralela à melancolia é a anorexia. Segundo ele, “A famosa anorexia nervosa de moças jovens [...] é uma melancolia em que a sexualidade não se desenvolveu” (apud MIRANDA, 2010, p. 135). Freud destaca que a perda do apetite em termos sexuais significa perda da libido. E a personagem Elena se encaixa perfeitamente nesse diagnóstico, pois para ela a sexualidade e a vida conjugal não estão em primeiro plano, pelo contrário. Numa cena em que o marido chega em casa após uma aventura sexual, ainda exalando os odores típicos dessa situação, ela sequer repara ou reclama, porque sua preocupação principal é mostrar para ele seu verdadeiro objeto de desejo, um equipamento para fazer exercícios

e dar vazão à sua compulsão por atividades físicas que vão levá-la a perder peso. Para ela, a perda de apetite pela comida é similar à perda do apetite sexual. Por outro lado, a personagem Matilde também nega e anula a sexualidade, ao se enclausurar em um convento. Consideramos também as contribuições de Freud (2010) acerca da relação entre o psíquico e o somático, relacionando a função das dinâmicas psíquicas da existência humana com suas relações com o funcionamento orgânico particular. Segundo ele, [a] pulsão nos aparece como conceito-limite entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo e que atingem a alma, como uma medida de trabalho imposto à psique por sua ligação com o corpo (FREUD, [ 1915 ] 2010, p. 57). Para Freud (2010), a pulsão consiste na verdadeira força motriz do comportamento humano e distingue-se do instinto por sua natureza e por sua plasticidade quanto aos seus modos de expressão e objetos de satisfação. As personagens Matilde e Elena tornam clara essa dissociação entre o psíquico e o somático, ao lidarem com o alimento, seja evitando qualquer tipo de alimentação, seja comendo compulsivamente ou usando o alimento como punição. Em ambos os casos, há um claro desequilíbrio entre a necessidade biológica do alimento e o distúrbio psíquico que o transforma em algo a ser evitado. Segundo Volich (2010), os instintos manifestam-se e buscam satisfação essencialmente por intermédios de mecanismos automáticos da fisiologia e do comportamento, determinados principalmente por fatores biológicos e hereditários. A inanição, por exemplo, provoca rebaixamento dos níveis de glicemia no sangue e o desconforto deste estado só cessará diante da ingestão de alimentos. Por sua vez, a pulsão é passível de manifestação por meio de seus representantes psíquicos e pode ser satisfeita por uma maior diversidade de objetos e modalidades. Tomando o mesmo exemplo, sabemos que por um certo tempo, tanto o bebê como o adulto são capazes de suportar o desconforto da fome mediante a lembrança, de caráter alucinatório, de uma experiência anterior de satisfação. Podemos relacionar a recusa à alimentação a outras fontes de satisfação, pois, para os seres humanos, a alimentação está ligada ao afeto e não se reduz ao instinto propriamente dito. A partir de 1920, Freud descreveu o modelo pulsional a partir de duas dimensões: a pulsão de morte e a pulsão de vida. Na primeira, observa-se uma tendência