Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Objeção de Consciência e Abortos em Portugal: Impacto em Serviços de Saúde Públicos, Notas de aula de Direito

Este documento investiga como a objeção de consciência de profissionais de saúde pode criar constrangimentos no funcionamento de serviços de saúde públicos, levando algumas mulheres a realizar abortos inseguros. O texto discute a legislação portuguesa e os estudos que indicam que a ausência de uma rede abrangente de serviços disponíveis pode levar mulheres a recorrer a abortos em estados gestacionais mais tardios, causando problemas de saúde mental e saúde física. O documento também aponta que a clínica dos arcos em lisboa é responsável por aproximadamente metade de todos os abortos por opção da mulher na região de lisboa e cerca de um terço do número total de abortos por opção da mulher realizados em portugal.

O que você vai aprender

  • Como a objeção de consciência de profissionais de saúde pode afetar o funcionamento de serviços de saúde públicos?
  • Quais são as restrições legais que regulam os abortos por opção da mulher em Portugal?
  • Quais são as consequências para as mulheres que recorrem a abortos clandestinos?

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jacirema68
Jacirema68 🇧🇷

4.5

(122)

227 documentos

1 / 101

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Escola de Sociologia e Políticas Públicas
Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas
Miguel Areosa Feio
Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas
Orientador: Paulo José Fernandes Pedroso, Professor Auxiliar Convidado
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa
Agosto 2019
O Silêncio das Inocentes
Objeção de Consciência e Outras Barreiras na
Implementação da Interrupção Voluntária de
Gravidez
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Objeção de Consciência e Abortos em Portugal: Impacto em Serviços de Saúde Públicos e outras Notas de aula em PDF para Direito, somente na Docsity!

Escola de Sociologia e Políticas Públicas

Departamento de Ciência Política e Políticas Públicas

Miguel Areosa Feio

Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Políticas Públicas

Orientador: Paulo José Fernandes Pedroso, Professor Auxiliar Convidado

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

Agosto 2019

O Silêncio das Inocentes

Objeção de Consciência e Outras Barreiras na

Implementação da Interrupção Voluntária de

Gravidez

I

Agradecimentos

Esta investigação só se tornou possível graças aqueles e aquelas que se disponibilizaram a colaborar. Por esse motivo é incontornável agradecer ao Dr. Francisco George, à Dr.ª Ana Campos, à Dr.ª Maria José Alves, à Dr.ª Teresa Bombas, à Enfermeira Maria Vidigal, à Dr.ª Manuela Tavares, à Dr.ª Paula Pinto e à Dr.ª Sónia Lopes. O meu sincero obrigado. Agradeço muito à minha amiga e ex-colega Ana Montrond pela facilitação no processo de recolha de história de vida. E à entrevistada pela coragem no relato e na sua vida. Uma palavra de especial agradecimento ao Dr. Duarte Vilar, não só pela entrevista concedida mas sobretudo pelas conversas diversas que fomos tendo.

Ao meu pai pelas reflexões que fomos fazendo em conjunto. À restante família pelo interesse e apoio.

Voltar à “vida académica” 12 anos depois de a ter deixado foi um desafio que se mostrou menos pesado do que esperava. Tal só foi possível porque contei com o apoio incondicional da Rita ao longo destes dois anos, em especial por cuidar do Vasco e do Tomás sempre que eu não pude. A eles os dois, que espero que herdem o sentido de solidariedade e justiça, dedico este trabalho.

III

Resumo: O processo que conduziu à despenalização da interrupção voluntária de gravidez por opção da mulher culminou com o agendamento de um referendo à população em 2007. Para tal contribuíram vários fatores políticos e sociais analisados à luz da Teoria dos Fluxos Múltiplos de Kingdom. Destaca- se o fluxo do problema social e de saúde pública associado à ocorrência de abortos clandestinos na sociedade portuguesa até então. A Lei 16/2007 visou eliminar tal situação da nossa sociedade, mas existe evidência robusta de que barreiras como a objeção de consciência de profissionais de saúde contribuem para a ausência de resposta de alguns serviços públicos para o procedimento, causando constrangimentos que afetam, especialmente, mulheres em situação de desfavorecimento. Concorrem para essas barreiras outros fatores como prazos curtos para o procedimento, períodos de reflexão obrigatórios ou a estigmatização face às mulheres e profissionais disponíveis para a realização do procedimento, aspetos que podem levar à perpetuação da opção por aborto clandestino. Para investigar essas evidências, analisaram-se dados disponíveis nos relatórios anuais da Direção Geral da Saúde, dados provenientes da plataforma de registo de Interrupções da referida DG e estatísticas respeitantes às complicações pós-aborto. Simultaneamente foram realizadas entrevistas e focus group com profissionais de ONG especialistas que intervém com a comunidade e a profissionais de saúde da área da ginecologia, obstetrícia e planeamento familiar. Foi recolhida uma história de vida acerca do aborto clandestino. As evidências permitem refletir acerca da implementação da lei e dão pistas para o seu futuro debate.

Palavras-chave: aborto, objeção de consciência; teoria dos fluxos múltiplos; aborto clandestino

Abstract: The process that led to the decriminalization of abortion on request ended in the scheduling of a referendum in 2007. Several political and social factors analysed by the spectrum of the Kingdom's Multiple Stream Framework contributed to it. Especially the problem stream linked to the social and public health consequences of clandestine abortions in Portuguese society until then. The Law 16/ aimed to eliminate this situation from our society, but there is evidence that barriers such as conscientious objection of health professionals contribute to the lack of response of some public services to the procedure, causing embarrassments that affect especially women in a disadvantaged situation. Other barriers include short deadlines for the procedure, mandatory reflection periods or stigmatization regarding women and professionals available to perform the procedure, aspects that may lead to the perpetuation of the option for clandestine abortion. To investigate this evidence, data available in the annual reports of the Direção Geral de Saúde, data from its abortion registration platform and statistics on post abortion complications were analysed. Simultaneously, interviews and focus groups were conducted with NGO’s specialist professionals and health professionals in the area of gynaecology, obstetrics and family planning. A life story on clandestine abortion was collected. Such data allow reflections about the law implementation and give clues for its future debate.

Keywords: Abortion; conscientious objection; multiple stream framework; clandestine abortion

IV

VI

Índice de Quadros

Quadro 1 - Sistematização dos procedimentos metodológicos ............................................................. 22 Quadro 2 - Número absoluto de abortos por opção da mulher e percentagem por tipo de serviço ...... 28 Quadro 3 - Aspetos que interferem com a iniquidade e características das mulheres afetadas. ........... 39

Índice de Figuras

Figura 1 - Processo de convergência dos três fluxos do Modelo de Kingdom (1984) que conduziu à mudança legislativa em relação à interrupção voluntária da gravidez em Portugal ............................. 11 Figura 2 - Número absoluto de abortos por opção da mulher e percentagem por tipo de serviço ........ 25 Figura 3 - Número total de IVG por opção da mulher em Portugal, por região de 2008 a 2013 .......... 26 Figura 4 - Número total de IVG por opção da mulher em Portugal, por região de 2008 a 2013 .......... 27 Figura 5 - Percentagem de IVG por opção da mulher realizada fora da região de residência .............. 30 Figura 6 - Número absoluto de IVG por opção da mulher, por região e por ano, oriundas de outras regiões ................................................................................................................................................... 30 Figura 7 e Figura 8 - Regiões de receção de pessoas oriundas de Açores e Alentejo, respetivamente, para realização de IG por opção da mulher entre 2008 e 2013 ............................................................. 31 Figura 9 e Figura 10 - Razões para o deslocamento de mulheres oriundas de Açores e Alentejo, respetivamente, para realização de IVG por opção da mulher entre 2008 e 2013 ................................ 31 Figura 11 - Complicações decorrentes de aborto dentro e fora do quadro legal entre 2008 e 2014 ..... 32

Introdução

Este documento concretiza a Dissertação de Mestrado em Políticas Públicas do ISCTE. É o compêndio de informação teórica e empírica acerca de uma medida de política pública que se encontra em vigor em Portugal desde 2007, mas que conheceu uma evolução política, mediática e social incontornável no nosso país. Falamos da interrupção voluntária da gravidez, aborto por opção da mulher ou simplesmente interrupção de gravidez, tema que vem sendo alvo de debates sucessivos desde os anos 70, polarizando posições, aspeto que se ilustra pelo facto de ser um dos únicos dois temas que deu origem a referendo à população (no caso a dois referendos). A partir de 2007, decorrente do segundo processo de referendo, a interrupção de gravidez por opção da mulher passou a ser permitida até às 10 semanas, nos serviços de saúde públicos, consagrada pela lei 16/2007 de 17 de abril.

Após 12 anos interessa perceber as questões relevantes em torno desta legislação que veio responder a dois problemas fundamentais: mortes e morbilidade de mulheres e sua criminalização, ambos decorrentes de abortos clandestinos. Nos dias de hoje todos os indícios apontam para que estes constrangimentos estejam ultrapassados e que existam condições institucionais, pelo menos no plano formal, para que todas as mulheres que optem por interromper uma gravidez até às 10 semanas o possam fazer em segurança. Este é, sem margem para dúvida, um avanço civilizacional e uma conquista inegável das mulheres e de quem defende os seus direitos à igualdade, à autodeterminação e à saúde. No entanto, parecem resistir na formulação e implementação legislativa marcas de estigma e paternalismo os quais podem comprometer, no plano material, a garantia plena desses direitos. E é esse o papel fundamental deste trabalho, o de perceber de que forma a implementação legislativa pode estar a perpetuar alguns dos problemas que levaram ao seu agendamento político em referendo em 2007. Em particular, aquilo a que este trabalho se propõe é a investigação acerca de como a objeção de consciência de profissionais de saúde, face à realização de interrupções de gravidez, pode estar a criar constrangimentos no funcionamento dos serviços de saúde públicos levando a que algumas mulheres continuem a realizar abortos inseguros.

Para o efeito importa analisar o que a literatura mais atual tem a dizer acerca dos constrangimentos e barreiras ao aborto seguro e qual o papel da objeção de consciência e outros fatores nesse acesso. Posteriormente iremos olhar para aquilo que são os dados disponíveis à data sobre interrupção de gravidez e sobre a intervenção médica em situações de complicações pós-aborto. As entrevistas e focus grupo realizados com pessoas de referência – profissionais de saúde e profissionais de organizações

I. A Interrupção Voluntária da Gravidez como Direito em Saúde Sexual e

Reprodutiva. A Saúde Sexual e Reprodutiva como Direito Humano

De acordo com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento

  • Conferência do Cairo (Nações Unidas, 1994), o conceito de Saúde Reprodutiva remete para a garantia de uma vivência plena, satisfatória e segura de uma vida sexual por todas as pessoas, o que passa também por decidir se, quando e com que frequência têm filhos (Direção Geral de Saúde, n.d.). Segundo a Direção Geral da Saúde (DGS), esta condição pressupõe o direito de cada pessoa a ser informada e a ter acesso a métodos de planeamento familiar da sua escolha, que sejam seguros, eficazes e aceitáveis e, ainda, a serviços de saúde adequados, que permitam às mulheres terem uma gravidez e um parto em segurança e que ofereçam aos casais as melhores oportunidades de terem crianças saudáveis. Abrange, também, o direito à saúde sexual, entendida como potenciadora da vida e das relações interpessoais.

Os cuidados a prestar em Saúde Sexual e Reprodutiva (SSR) constituem um conjunto diversificado de serviços, técnicas e métodos que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivos de mulheres e homens ao longo do seu ciclo de vida. Quando falamos em SSR, falamos de gravidez adolescente, de acesso a contraceção, de violência e igualdade de género, planeamento familiar ou VIH e outras Infeções Sexualmente Transmissíveis, pelo que pensar a SSR em termos de desigualdades pode ser um exercício interessante para compreender de que forma os diferentes tipos de desigualdades se intersectam e a afetam. Segundo a IPPF (2017) verificamos, por exemplo, que no Mundo existem ainda 222 milhões de mulheres e raparigas que não podem aceder a consultas de planeamento familiar e contraceção.

O acesso à interrupção de gravidez (IG ou aborto) segura é uma questão de Saúde Reprodutiva, sendo que o ato em si, segundo algumas enciclopédias médicas (Cunningham, F. G., Leveno, K. J., Bloom, S. L., Spong, C. Y., Dashe, J. S., Hoffman, B. L., Casey, B.M., Sheffield, 2014; IPPF, 2008; U.S. National Library of Medicine - MedlinePlus, 2018), pode definir-se como a terminação de uma gravidez antes das 20 semanas ou antes da viabilidade fetal, sendo um fenómeno frequente na gravidez, decorrente da própria gestação (o caso dos abortos espontâneos) induzido por profissionais de saúde (nos países em que tal é permitido), ou por motivos diversos, no caso dos abortos provocados^1.

(^1) A literatura anglo-saxónica distingue os conceitos de aborto espontâneo com o termo miscarriage do de aborto provocado - abortion.

No final do século XX e início do século XXI, assistiu-se, um pouco por todo o mundo, mas em especial na Europa (IPPF, 2012) a uma tendência para a liberalização do aborto (Boland, Katzive, & Boland, 2008), mudança para a qual contribuiu a promoção da saúde pública e os movimentos de defesa dos direitos humanos e das mulheres (Berer, 2004; Boland et al., 2008; Finer & Fine, 2013). Esta tendência está relacionada com o reconhecimento, por um lado, de que o acesso a serviços de aborto legais e seguros é uma questão de direitos fundamentais das mulheres, contribuindo para a sua autodeterminação e para a plenitude da sua vivência enquanto pessoas livres, mas, igualmente, que a sua criminalização representa um problema para a saúde pública (Berer, 2004; Finer & Fine, 2013). No entanto, cerca de 39% das mulheres de todo o mundo vive ainda em países com legislação restritiva face à interrupção da gravidez (Finer & Fine, 2013), sobretudo em países da Ásia, África e América Latina (Boland et al., 2008; IPPF, 2012). Dados recentes mostram que o número mais atual se situa nos 41% (Center for Reproductive Rights, 2019), aspeto que pode indicar uma reversão da tendência verificada no início do século. Nestes contextos, o imperativo da promoção da saúde pública, em particular das mulheres, deverá ser defendido para a garantia de proteção e salvaguarda das mesmas (Berer, 2004).

A história do processo político e dos debates em torno do aborto é sintomática da evolução social e cultural do último século. Em particular, os períodos de tempo entre os anos 50 e 80 do século XX, primeiro, e a partir dos anos 90, depois, são férteis em acontecimentos, pois coincidem com alterações significativas na legislação de praticamente todos os países do mundo industrializado (Berer, 2004; Finer & Fine, 2013). A questão da despenalização do aborto, enquanto mecanismo promotor do direito à saúde da parte da mulher, é um processo que coloca sob tensão normas sociais estabelecidas (muitas vezes associadas a convicções religiosas ou culturais), pelo que afronta interesses políticos e sociais internos. Por outro lado, dinâmicas comuns a diferentes países evidenciam uma evolução das mentalidades e da opinião dominante, sob influência de movimentos sociais, em particular feministas, redes internacionais, tratados de direitos humanos e outros aspetos que ultrapassam as fronteiras nacionais. É esta dinâmica dupla que interessa conhecer para compreender os processos que conduziram ao estado da arte da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) em Portugal.

um grupo feminista radical de luta pela autodeterminação das mulheres e pelo direito ao próprio corpo. Por esta altura e até ao final dos anos 70, o debate em torno do aborto insere-se, essencialmente, no campo dos direitos e liberdades individuais das mulheres, nomeadamente o controlo sobre o corpo (Magalhães, 1998), passando a integrar, depois, argumentos ligados à saúde pública: o aborto clandestino e as razões socioeconómicas que o promovem (Tavares, 2003). Na viragem da década de 70, o CNAC - Campanha Nacional pelo Aborto e Contraceção, que conta com a participação de algumas das organizações feministas mais relevantes da sociedade portuguesa, tenta promover o debate político em torno da despenalização do aborto. Este novo ativismo provoca uma reação da parte da Igreja Católica, que recusa perentoriamente o argumento socioeconómico para a despenalização da IVG, defendendo que o combate à pobreza não deve ser feito pelo aborto. Entretanto, estimava-se que os valores do aborto clandestino se situassem, na década de 1970, entre os 100.000 e os 200.000 por ano, dos quais 2% terminavam em morte. O aborto era, então, a terceira causa de morte das mulheres (Tavares, 2008)

No plano político, a ação dos organismos responsáveis pelos direitos da mulher, nomeadamente a ação da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género - à data Comissão da Condição Feminina - estava muito condicionada pela convergência de um moralismo católico que caracterizava a sociedade portuguesa e do conservadorismo do governo da Aliança Democrática (PPD/PSD-CDS/PP-PPM), (Monteiro, 2012). Ao contrário do que se verifica noutros países europeus, os efeitos dos movimentos feministas não produziram o impacto pretendido, entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80. Foi mais tarde que, na conjuntura social descrita, mas com um governo do Partido Socialista e um Parlamento com maioria de deputados de esquerda, surgem as primeiras tentativas de alteração da lei. Uma primeira proposta foi apresentada em 1980 pela UDP e outra pelo PCP em 1982, que apesar de terem sido rejeitadas pela Assembleia da República, revelaram-se de extrema importância na medida em que abriram caminho para que em 1984 um novo projeto do Partido Socialista levasse à discussão no Parlamento a exclusão de ilicitude nos casos de perigo de vida física e psíquica da mulher, violação e malformação do feto, naquela que ficou conhecida como a Lei 6/84 de 11 de maio (Lei nº 6/84 de 11 de Maio - Exclusão de ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária de gravidez, 1984).

A nova lei instituiu várias alterações ao Código Penal (ver Anexo A) e as suas formulações acompanharam as disposições legais de alguns países europeus. Entre estas poder-se-ia encontrar dois tipos fundamentais de postura face ao aborto: aqueles que permitiam a interrupção por opção da mulher e aqueles que apenas a consideravam lícita de acordo com determinadas condições, tal como consagrado na lei portuguesa de 1984. Segundo a IPPF (2012), em 1984 existiam já vários países com legislação específica em torno da IVG, alguns dos quais permitiam-na por opção da mulher até as 12 ou 13 semanas - a Finlândia (desde 1970), a Dinamarca (desde 1973), a Áustria (desde 1974), a Noruega e a Suécia (desde 1975) e a Holanda (desde 1981), (IPPF, 2012). Por outro lado, países como Islândia

(1975), Grécia (1978) e Itália (1978) instituíram legislação que permitia o aborto em situações excecionais, como a violação, riscos de danos físicos ou psíquicos para a mãe e malformação fetal, servindo de inspiração ou fazendo parte de uma corrente que teve influência na formulação da lei portuguesa de 1984 e da lei espanhola de 1985.

No final dos anos 80 era já relativamente consensual a convicção de que o aborto clandestino constituía um problema de saúde pública e um atentado à autodeterminação da mulher. No entanto, a convergência de políticas a nível europeu estava muito longe de se tornar realidade, o que é bem ilustrado pelo facto de nesta altura, tanto a Alemanha como a França não disporem de qualquer lei relativa ao aborto.

Uma outra ordem de questões é aquela que está associada quer à interpretação das leis, quer à sua transposição para as práticas sociais, nomeadamente nas situações em que as formulações legislativas em torno do aborto não só podem ter interpretações dúbias, como no âmbito de cada enquadramento legal nacional, há espaço para juízos que dependem da interpretação da letra e do espírito da lei (Levels et al., 2014). Neste artigo relata-se o caso holandês, em que o aborto é permitido em qualquer situação que cause angústia à mulher, sendo que esta condição não necessita ser verificada por nenhum profissional, o que na prática corresponde a uma decisão por opção da mulher. No sentido oposto, podemos considerar que a própria lei portuguesa de 1984 possuía formulações ardilosas, devido à objeção de consciência e consequente inexistência de serviços clínicos – públicos e privados - para a interrupção da gravidez, o que fazia com que grande parte das situações permitidas por lei, não fosse de facto realizada, conduzindo a uma certa perpetuação das práticas de aborto clandestino^2 (Ana Campos, 2018 [entrevista concedida a Miguel Areosa Feio a 22 de Novembro de 2018])^3.

Se até ao início dos anos 90 a crescente mobilização dos grupos de interesse tinha tido um impacto marginal na promoção de políticas liberais face ao aborto (Yishai, 1993), o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (ICPD) realizada no Cairo em 1994, constituiu um marco importante nas mudanças no que à legislação em torno do aborto diz respeito: 25 países promoveram mudanças legislativas de sentido liberalizante, decorrentes do compromisso com as resoluções do documento (Finer & Fine, 2013; Nações Unidas, 1994). No período pós-Cairo muitos movimentos sociais e ONG’s dos 179 países comprometeram-se com uma interpretação das resoluções favorável ao direito ao aborto, tendo promovido fortes campanhas em torno da sua despenalização como parte integrante do direito à saúde sexual e reprodutiva. Outros países – muitos deles católicos e na sua

(^2) A faixa em plena Assembleia da República no dia da aprovação da lei, com a inscrição “Lei do PS mantém aborto clandestino”, é disso exemplo 3 (Alves et al., 2009). Na elaboração do enquadramento teórico desta dissertação foram efetuadas duas entrevistas com pessoas consideradas uma referência no tema. Foram elas o Dr. Francisco George, médico e professor que como Diretor Geral da Saúde entre 2005 e 2017 esteve incontornavelmente ligado aos processos que deram origem à Lei 16/2007 e sua implementação ao nível do SNS; e Dr.ª Ana Campos, médica, diretora clínica de obstetrícia da Maternidade Alfredo da Costa e uma das pessoas que participaram no grupo de trabalho responsável pela elaboração dos procedimentos de implementação da lei (transcrição das entrevistas no anexo H).

III. A Lei 16/2007: a confluência que conduziu à mudança

O período de 2006-2007 constitui o novo marco da evolução da questão do aborto em Portugal, culminando com a aprovação da lei 16/2007 que ainda hoje vigora. A mudança verificada não foi um processo determinado por um ator único – Estado ou movimentos sociais. Foi antes o resultado de fatores contextuais e oportunidades políticas, que se desenvolveram sobre reivindicações antigas de movimentos de mulheres (Monteiro, 2012).

Do ponto de vista da análise de Políticas Públicas, o reagendamento da questão da IVG, que conduziu à sua despenalização por opção da mulher até às 10 semanas, pode ser explicado à luz da Teoria dos Fluxos Múltiplos de John Kingdom. O autor (Kingdom, 1984, cit. por Hill, 2009) defende que as políticas não surgem de forma automática para a resolução de problemas, mas sim de um processo dinâmico de interação entre vários intervenientes, que se operacionaliza pela conjugação de três fluxos no sistema político: o fluxo dos problemas, o fluxo das políticas (no sentido da policy ) e o fluxo da política (a politics ). Estes conceitos são normalmente independentes, contudo, quando por razões conjunturais as três correntes se congregam, ocorrem mudanças de políticas significativas. A ação de “empreendedores” (o voluntarismo político) é um aspeto essencial no aproveitamento das janelas de oportunidade (Zahariadis, 2007). Devido ao facto de os decisores políticos se debaterem com constrangimentos temporais, o timing em que os fluxos convergem é fundamental no processo de surgimento da medida de política, sendo precisamente nesse tempo que a janela de oportunidade se concretiza. Normalmente, as condições sociais e políticas que se verificam aquando do processo de construção de medidas de política, pressupõem um certo grau de ambiguidade, no sentido em que existem formas diferentes de olhar para o problema (Zahariadis, 2007) algo que de facto se verificava em torno da questão do aborto. Estes dois aspetos poderão ajudar a perceber, também, os motivos que conduziram ao resultado no referendo de 1998, na medida em que, nessa altura, o timing para o envolvimento político – em particular da parte do Partido Socialista - não favorecia a convergência dos fluxos.

A janela de oportunidade surge decorrente das ideias e constructos introduzidos pela comunidade política, as quais contribuem para o surgimento do fluxo das políticas. Durante os últimos anos da década de 90 e os primeiros anos da década de 2000, diversos atores-chaves, sociais e políticos, principalmente, fizeram emergir no debate das ideias, argumentos associados aos direitos e autodeterminação das mulheres, reforçados pela influência de importantes recomendações das Nações Unidas e da Organização Mundial de Saúde. Em simultâneo, observa-se uma maior convergência das

políticas Europeias em torno da IVG, às quais Portugal, enquanto país membro da União Europeia, não poderia ficar imune: países como Bélgica (1990) ou Alemanha (1995) formulam as suas leis de despenalização do aborto, incluindo a por opção da mulher, embora com redações legislativas bastante distintas (IPPF, 2012). Esta “sopa” de ideias (Zahariadis, 2007), um aglomerado de opiniões de referência promoveu o timing ideal para ação dos empreendedores, aos quais se juntou uma paralela e crescente atenção da opinião pública e da comunicação social para o tema, tornando a questão do aborto incontornável, enquanto demanda, para os decisores políticos (Howlett, 2000). Por outro lado, assistiu- se a um fenómeno de policy transfer , um processo de apropriação de políticas de uns países por outros, outro elemento que ajuda a explicar a forma como os decisores políticos olham em redor, no processo de formulação política ou legislativa (Hill, 2009). No processo de surgimento de uma política, o policy transfer contribui para o fenómeno de apropriação de políticas de uns países, por outros, enquanto que a convergência de políticas se debruça sobre os efeitos práticos da mudança legislativa que levam a que as nações e instituições se tornem mais similares ao longo do tempo (Holzinger, Jörgens, & Knill, 2008). Apesar das mudanças estarem relacionadas, fundamentalmente, com acontecimentos internos, podem- se associar a eventos semelhantes decorridos noutros países, existindo uma imitação relativa por apropriação ou aprendizagem da forma a estar de acordo com certo status quo decorrente de recomendações Europeias ou internacionais (Holzinger et al., 2008).

É neste contexto que o aborto se constitui como um problema político, sendo o seu reagendamento impulsionado pela opinião pública, sociedade civil organizada e media (tal como descrito por Howlett, 2000). Segundo Zahariadis (2007) para que um tema se constitua enquanto problema é necessário que sejam verificáveis uma série de indicadores e eventos e exista uma resposta social em relação a ele. No caso do aborto, tanto o número de procedimentos clandestinos - cerca de 17 mil abortos clandestinos (no ano de 2005), que por vezes conduziam a mortes - como a criminalização de mulheres, de que é exemplo o mediático julgamento de 17 mulheres na Maia (e a consciência de que isso constituía uma dupla vitimização das mesmas), foram contributos para a elevação do aborto a problema político. O fluxo dos problemas pode ser, então, entendido como um processo que faz com que uma dada questão seja merecedora de atenção política, algo que não se verifica para todas as questões que afetam a sociedade, estando sempre dependentes de questões interpretativas ou de perceção, de comparações temporais ou geográficas (Kingdom, 1995, cit. por Zahariadis, 2007). Neste processo a ação dos empreendedores políticos é especialmente relevante, pois parte deles, também, o trabalho de chamar a atenção para os referidos indicadores e mediatizar os fenómenos, afirmando em simultâneo as vias para a sua superação, algo que vimos acontecer nos últimos anos da década de 90 e no início do século XXI.

O fluxo da política manifestou-se no reagendamento do tema, concretizado pela inclusão de um novo referendo ao aborto no Programa de Governo de José Sócrates em 2005 (Programa do XVII Governo Constitucional, 2005), para o qual contribuíram, como vimos, uma forte componente mediática, de