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significa medroso e efeminado no entendimento popular. De acordo com o bajubá, o temo “Maricona” é empregado pelas travestis para se referir aos clientes ...
Tipologia: Notas de aula
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João Pessoa 2013
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia: Área de concentração: Estudos das Relações de Gênero, Geração e Étnico-Raciais.
Orientador: Prof. Dr. Adriano Azevedo Gomes de León Co-orientadora: Profa. Dra. Maria Antónia Pereira de Resende Pedroso Lima
João Pessoa 2013
Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Sociologia; Área de concentração: Estudos das Relações de Gênero, Geração e Étnico-Raciais.
Prof. Dr. Adriano Azevedo Gomes de León (Orientador / PPGS / UFPB)
Profa. Dra. Elisa Mariana de Medeiros Nóbrega (Membro / UEPB)
Profa. Dra. Mónica Franch (Membro / PPGS / UFPB)
Profa. Dra. Susel Oliveira da Rosa (Membro / UEPB)
Prof. Dr. Eduardo Sérgio Soares Sousa (Membro / PPGS / UFPB)
Dedico este trabalho às muitas interlocutoras desta pesquisa, mas em especial à Paula Madonna, Lôla de Castro, Iolanda Fontenelle, Iracema Fidelis, Sofia Camargo, Gisa Laysa, Laura Di Milano, Alcina Bardot e Sabrina Diniz, são nomes fictícios de travestis que existem e que emprestaram um pouco das suas vidas para que esta tese fosse possível.
À Associação para o Planejamento Familiar / APF Lisboa – especialmente à Letícia – que carinhosamente e atentamente sinalizou-me muitas brechas para que pudesse fazer parte da minha pesquisa de campo em Lisboa. À minha família, por sonhar junto comigo, principalmente à minha mãe, que suportou tamanha saudade de me ter longe dos seus olhos e dos seus cuidados, pouco mais de um ano, certamente, para ela foi uma eternidade. Às minhas queridas pesquisadoras com quem tive o prazer de conviver em Lisboa: Filipa Alvim, Paula Togni, Margarida Moz e Cristina Santinho. Agradeço todas as contribuições antropológicas, os sorrisos, os convites e os muitos cafés pingados no frio do ISCTE. Aos/às companheiros/as do grupo de investigadores do Centro em Rede de Investigação em Antropologia – CRIA: Marisa Gaspar, Mario Gomes e Margarida Paredes, meu muito obrigado pelos encontros, contribuições e questionamentos. Acrescento ainda, as contribuições da pesquisadora Sandra Saleiro e a atenção de Joana Santos, que me apresentou pessoas importantes para o desenvolvimento da pesquisa de campo e por ter me acompanhado na primeira brigada no Conde Redondo. Aos/às funcionários da Secretaria e à Coordenação do Programa de Pós- Graduação em Sociologia da UFPB e do Centro em Rede de Investigação em Antropologia - CRIA, pelo trabalho sério e pela atenção dispensada. A todos que foram presença amiga, cujos nomes seria impossível citar todos, mas destaco a presença incondicional de Emylio Silva, Augusto Martins, Karyne Aguiar, Carlos Eduardo, Jania Perla, Andria Moreira, Ester Melo, Lee Fontenele, Daniele Costa, Márcia Teixeira, Juliano Gadelha e Jáder Torres. Obrigado pelos questionamentos, reflexões, cervejas e principalmente pela companhia de vocês, sempre inspiradora. Às/aos minhas/meus amadas/os TRANS: Juliana Justa e Elias Veras. Muito grato pela disponibilidade e pela leitura atenta do meu texto. À equipe do Translendário 2013, e principalmente Silvero Pereira, ator e diretor, que há mais de dez anos realiza trabalhos artísticos e teatrais com travestis e transformistas, e que gentilmente cedeu-me a foto (Profeta Trans) para ser utilizada como capa desta tese. Aos companheiros e amigos/as da Escola de Saúde Pública do Ceará, pela compreensão e carinho durante este período de escrita: Silvia Bomfim, Jocélia Oliveira,
Rachel Cassiano, Maíra Barroso, Camila Colares, Ana Hanneman, Ivina Siqueira, Vládia Freide, Neide Frutuoso, Josy Loiola, Tiago Teófilo e Caio Garcia. A todos os bons encontros que fizeram parte da minha intensa e feliz história pelas Terras de “Além-Mar”: Andrea Filipa (minha querida Musa), Priscila Faber, Júlia Monnerat, Sabrina Eccard, Ana Paula Miranda, Inês Carrera, Duarte Nuno, Elizabete Maia, Marco Campolongo, Elsa Carla, Edma Góis e Alex Lima. Aos professores: Dra. Ednalva Maciel e Dr. Artur Perrusi, membros da banca examinadora de qualificação, pela leitura atenta e pelas observações de grande valor. Finalmente e em destaque, agradeço a todas as travestis, minhas encantadoras e guerreiras interlocutoras, no Brasil e em Lisboa, pelas suas histórias compartilhadas, por abrirem suas vidas e suportarem minha presença em suas casas e nos seus “postos” de trabalho: esquinas, ruas, colinas, cinevídeos pornôs, saunas e boate de público LGBT. A vocês que confiaram suas intimidades a mim, o meu muito obrigado.
Esta tese de doutorado tem o objetivo de compreender como os sujeitos que são identificados como “mariconas”, “Irenes”, “tias” e “bichas velhas” lidam com os processos de envelhecimento e com a velhice. Busco ainda analisar a partir das narrativas biográficas (KOFES, 2001), os sentidos e os significados que são atribuídos aos seus corpos. Diante de novos itinerários corporais e sociais diversos dispositivos são acionados no intuito de “camuflar” e “burlar” o preconceito acumulado presente no interior da experiência, em decorrência do estigma por serem travestis e por estarem agora na condição de velhas. Na velhice travesti, elementos sociais e culturais passam a questionar a existência de uma ordem cronológica, geracional e biológica, mesmo não as negando completamente. As travestis que de alguma maneira estão ligadas à prostituição, quando sobrevivem às ruas e à violência, vão construindo outros espaços de sociabilidade. Ainda que marcadas pelo silêncio e pela invisibilidade, elas criam e passam por outros lugares, como novos espaços de prostituição, pela própria casa, pela militância, e ainda constroem subterfúgios, o que as permitem transitar com mais fluidez e exercerem suas práticas sexuais. Este estudo etnográfico foi tecido a partir de uma pesquisa de campo em Fortaleza e em Lisboa, através de entrevistas semiestruturadas e da observação participante/flutuante (MALINOWSKI, 1978; GOLDMAN, 1995) em bares, boates, cafés, saunas, cinevídeos pornôs, domicílios, associações, serviços de saúde e nas ruas e avenidas por onde travestis costumeiramente se prostituem. Neste sentido, nota-se que os corpos das travestis velhas acabam por se apresentar como campos de fluxos e intensidades que nos faz duvidar de toda verdade que para si são traçadas. Tencionam limites. Fissuram estruturas. Fendem sentidos e rompem com a linearidade que os interpela e que a velhice e o envelhecimento podem ser lugares de contestação privilegiados das normas de gênero e da sexualidade, percebendo assim, que a todo instante as travestis constroem-se e reconstroem-se a partir do dispositivo da experiência (SCOTT, 2009; FOUCAULT, 2001).
Palavras-chave: Travestilidade; Velhice; Corpo; Gênero; Invisibilidade; Violência; Itinerários Corporais e Sociais.
This thesis aims to understand how the subjects that are identified as "mariconas", "Irenes", "aunts" and "old fags" deal with the processes of aging and old age. I seek to further analyze from the biographical narratives (KOFES, 2001), the meanings and the senses that are attributed to their bodies. Faced with new social and body itineraries multiple devices are triggered _ in order to "camouflage" and "circumvent" the prejudice accumulated inside the experience, due to the stigma for being transvestites and now in the condition of elderly. In old age transvestite, social and cultural elements begin to question the existence of a chronological, biological and generational, not even denying the completely. The transvestites that somehow are linked to prostitution, when they survive the streets and violence, built others spaces of sociability. Although marked by silence and invisibility, they create and pass through other places, as new spaces of prostitution, the own house, by militancy, and still build subterfuge, which allow them to move more fluidly and exercise their sexual practices. This ethnographic study was woven from a field survey in Fortaleza and Lisbon, through semi-structured interviews and participant observation / floating (MALINOWSKI, 1978; GOLDMAN,
Keywords : Transvestite; Aging; Body; Gender; Invisibility; Violence; Social and Body Itineraries.
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A velhice é a paródia da vida. Simone de Beauvoir “Sou um ser humano como qualquer outro qualquer. Uma pessoa iluminada por Deus, com muita fortuna de tá viva hoje em dia. Feliz, alegre, que gosta de viver a vida, que não tem medo de ser aquilo que é. Porque eu não tenho vergonha, não tenho medo de dizer o que sou e gosto de ser o que sou. Acredito, se outra vida eu tivesse de escolher o que ser, eu seria eu mesma, travesti. Obviamente, eu não gostaria de passar por muita coisa que já passei, mais sempre eu mesma”. É assim que se apresenta Luisa Marilac, uma travesti que experiênciou a fama instantânea da internet pelo vídeo postado dos “bons drinques”, diante da pergunta inicial “Quem é você?”, realizada pelo apresentador Antônio Abujamra no programa “Provocações” da TV Cultura , exibido no dia 28 de junho de 2011. “Apesar de tudo, eu sou uma das poucas travestis sobreviventes da minha geração, pois muitas foram mortas na rua e não tiveram a chance de estar viva hoje em dia pra contar suas histórias como eu estou tendo aqui. E olha que não sou uma bicha tão “cansada”^1 pra falar desse jeito (risos), mesmo assim não me importo quando as outras me chamam de “maricona”, “Irene” ou “bicha velha”, eu não estou nem aí, porque a velhice pra mim é uma vitória. Nós, travestis, temos que ter sorte, pois a vida da gente na rua não é fácil, é uma batalha todos os dias. Eu acho que hoje as coisas estão mais fáceis para elas, pois antigamente a gente tinha que ter muita coragem para sair na rua “montada” e mesmo assim a gente saía linda. É “babado” 2 (risos)”. É assim, com entusiasmo e com muita elegância, que Iolanda Fontenelle, 48 anos, fala da sua trajetória de vida e sobre os processos de envelhecimento. “Eu acho que um dos maiores desafios da gente é mesmo a velhice, pois se as pessoas já se chocam com as travestis, imagina se elas não forem mais tão novinhas, é pior ainda. Chega um tempo que não dá mais pra ganhar a vida assim na prostituição. Graças a Deus eu não me troco por muitas daqui. Olhe pra mim!”. Neste instante, Lôla de Castro, 42 anos, levanta a camiseta, mostra os seios, joga os cabelos para o lado (bate
(^1) Expressão sinônimo de “bicha velha”, “maricona” ou até mesmo “senhora” e” geriatra”, como aparece nos trabalhos de Mônica Siqueira (2004; 2009). 2 Babado pode ter vários significados no dialeto típico das trans e dos gays conhecido como Bajubá: acontecimento qualquer, podendo tanto ser bom como mal; caso amoroso e/ou sexual. Entrevista realizada com Iolanda Fontenelle no dia 25 de novembro de 2011.
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cabelo)”^3 e dá um giro sensual e milimetricamente ensaiado em cima de um salto agulha para exibir o seu corpo moldado por muitos litros de silicone líquido, e continua: “Eu não volto para casa „batendo‟^4 de jeito nenhum, pois tenho os meus clientes certos, e têm aqueles que preferem as mais experientes e também vou me virando de qualquer jeito pra sobreviver. [...] É claro que não sou mais uma “ninfetinha”, mas a gente vai encontrando estratégias para me dar bem na „pista‟”^5. São de várias trajetórias de vidas como estas, das narrativas sobre os novos itinerários corporais e sociais, das lutas contra o tempo e contra a violência e das diversas estratégias de sobrevivência experimentadas por travestis que esta tese ousa falar, uma vez que os sentidos e os significados atribuídos aos processos de envelhecimento, à velhice e aos seus corpos muitas vezes contrariam os padrões e os limites instituídos cotidianamente acerca da experiência de envelhecer, sejam eles sociais, culturais e/ou biológicos. O processo para se construir uma tese inicia-se com uma questão, uma reflexão que se orienta por uma longa bibliografia e pelas escolhas metodológicas, sinalizando certo tipo de leitura sobre um tema específico. Assim, surgem as questões que alimentam pretensões, que despertam o desejo de organizar essa leitura e produzir certas considerações que têm sua origem em um modo de ler. A construção desta tese nasceu a partir da seguinte indagação: como as travestis lidam com o processo de envelhecimento e com a velhice? Esta pergunta também se fez provocada pela realidade em que muitas travestis^6 passam grande parte de suas vidas construindo um novo corpo e afirmando uma identidade de gênero^7 (BUTLER, 2003)^8
(^3) A expressão significa dançar com a cabeça jogando o cabelo para os lados, se divertir ou aproveitar alguma coisa. Ex: Vou bater cabelo na boate amanhã. 4 Esta expressão “voltar para casa batendo” tem o mesmo significado de “voltar para casa sem dinheiro”. Esta expressão lembrou-me bastante da pesquisa de campo que realizei ainda na graduação junto às travestis e prostitutas que se prostituíam nos postos de combustível da BR-222, pois era bastante utilizada por elas e pelos caminhoneiros para se referirem que estavam sem nenhuma carga/mercadoria, ou seja, estavam indo buscar alguma carga ou já tinham feito a entrega de uma referida carga/mercadoria e estavam regressando às suas cidades de origem ou para suas empresas de trabalho, nos mais diversos estados do país. 5 6 Ou seja, prostituiu-se nas ruas e avenidas. Assim como Larissa Pelúcio (2006) e Marcos Benedetti (2005), decidimos assumir o emprego do substantivo travesti classificado dentro do gênero gramatical feminino. Existe um processo em construção do gênero feminino no corpo e na subjetividade que não podemos negar. Existe também todo um arranjo de cunho político sobre a discussão da travestilidade, e o mais importante é uma reivindicação forte e presente nas falas das travestis entrevistadas. 7 É a maneira como alguém se sente e se apresenta para si e para as demais pessoas como masculino ou feminino, ou, ainda, pode ser uma mescla, uma mistura de ambos, independentemente do sexo biológico (fêmea ou macho) ou da orientação sexual (orientação do desejo: homossexual, heterossexual ou bissexual). É a forma como reconhecemos a nós mesmo e desejamos que os outros nos reconheçam. Isso
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científicos ou artísticos ele se mantém incólume, já que outra característica desvalorizadora atribuída à velhice é a decadência das faculdades mentais e intelectuais. Debruçando-se sobre as reflexões de Luna Rodrigues da Silva (2008) e Guita Debert (2004) para analisar da passagem histórica do conceito de velhice para terceira idade, pode-se pensar em três momentos importantes: o primeiro deles data da segunda metade do século XIX e início do século XX, os anos 1960 e 1970 e os tempos contemporâneos. Segundo estas autoras, o aparecimento da classificação da sociedade em faixas etárias está ligado ao surgimento da modernidade industrial ao longo do século XIX, pois nas etapas pré-industriais as configurações familiares e sociais não seguiam essa ordem social e etária. A classificação das fases de vida não envolveu apenas a idade, mas teve um caráter ainda claramente ligado ao campo organizacional dentro da sociedade capitalista que se formava. Debert (2004), na clássica obra dos estudos sobre envelhecimento no Brasil, A reinvenção da velhice , aponta que as transformações históricas inerentes ao processo de modernização não só atingiram a periodização da vida, a diferenciação entre as suas etapas e os significados que passaram a caracterizar cada uma delas, como também – e fundamentalmente – provocaram a própria compreensão do curso da vida como uma instituição social relevante. Para Silva (2008), a noção de velhice como etapa diferenciada da vida surgiu no período de transição entre os séculos XIX e XX. Uma série de mudanças específicas e a convergência de diferentes discursos acabaram reordenando o curso da vida e gerando condições para o surgimento da velhice. Para a autora, dois fatores se destacam como determinantes: a formação de novos saberes médicos que investiam sobre o corpo envelhecido e a institucionalização das aposentadorias. Essas colocações se alinham às proposições de Foucault (2001a), ao abordar a legitimação do saber médico na obra O nascimento da clínica , pois o corpo passou a ser tomado como centro das estratégias de poder/saber sobre os sujeitos e sobre as populações. Nesse contexto, o corpo velho é usado para classificar uma fase da vida e os sujeitos que ela compõe. O corpo velho é o lugar do qual as patologias tomam conta, tornando-o improdutivo social e economicamente. Nesse período, configura-se a geriatria como área de saber encarregada do corpo velho, colando os entendimentos e os significados de velhice aos conceitos da geriatria.
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No decorrer da segunda metade do século XIX, a velhice começou a ser objeto do discurso de legisladores sociais, dando ensejo à criação de instituições específicas, como as caixas de aposentadoria para a velhice e à especialização progressiva de determinados hospícios em asilo para velhos. Silva (2008) reforça o entendimento fundamental para a compreensão da categoria velhice, como uma das muitas invenções da medicina moderna, pois a velhice e o processo de envelhecimento passaram a ser entendidos como problemas clínicos, pautados por certezas biológicas e processos invariáveis – a morte, por sua vez, passou a ser vista como resultado de doenças específicas da velhice. Nessa direção, a longevidade começou a ter limites biológicos insuperáveis, sendo a velhice considerada como uma etapa necessária da vida, na qual o corpo se degenera. Pautando em uma série de definições de velhice e das inúmeras abordagens que relativizam a experiência, como meia-idade, terceira idade, melhor idade (DEBERT,
(^9) Diante da necessidade de recortar o problema central da tese, optamos por direcionar a pesquisa àquelas travestis que estão de alguma maneira ligadas ao trabalho sexual. Este foi um dos critérios que nos guiou durante toda a pesquisa.
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comercial de prestação de serviços, a troco de dinheiro ou bens materiais (LOPES, 2006, p. 29), em que é desempenhado um comportamento com um signficado sexual ou erótico para quem compra (OLIVEIRA, 2008, p. 25). O trabalho sexual relaciona-se portanto, com serviços, desempenhos ou produtos sexuais comerciais, tais como a prostituição, a pornografia, o strip tease , danças e chamadas eróticas (WEITZER, 2005; OLIVEIRA, 2008). Ainda de acordo com a RTS, compreendemos que qualquer tipo de negociação/acordo acerca dos serviços sexuais é entre adultos e com consentimento mútuo. Quando não há consentimento mútuo, trata-se de violência, abuso ou escravatura sexual e não de trabalho sexual. Os casos que envolvem crianças configuram situações de abuso sexual de menores e não de trabalho sexual (OLIVEIRA, 2008, p. 25) No que se refere à prostituição dentro da experiência travesti, em momento algum se afirma que este seja o único caminho disponível para se viver a experiência. Observa-se, no entanto, que algumas travestis chegam a ter outras experiências de trabalho, muitas vezes em cargos estereotipados, como: domésticas, faxineiras, cozinheiras, cabeleireiras, entre outras atividades que fogem desta ideia essencialista do universo feminino, como, por exemplo, atividades na política, no campo da educação etc. Mas, devido ao preconceito na escola, das dificuldades de adentrarem o mercado de trabalho formal e a não aceitação da família e por falta de recursos financeiros, são poucas as travestis que conseguem “concluir seus estudos” e adquirirem qualificação para se inserem no mercado de trabalho formal. Quase sempre as ruas passam a ser uma das poucas opções para as mesmas. Outro fator a ser salientado está ligado ao fato da rua, para além de uma discussão acerca da violência, também ser um espaço importante de sociabilidade para a realidade das travestis, pois um grande número delas utiliza este espaço como um local onde podem ser desejadas e se afirmar como sujeitos responsáveis por suas ações (NOGUEIRA, 2009). Salvo algumas experiências que furam esta regularidade. No interior da experiência – da velhice travesti – , são acionados inúmeros dispositivos^12 (FOUCAULT, 1987; DELEUZE, 1991), que por sua vez, não são
(^12) A questão sobre o dispositivo vem sendo amplamente discutida por pesquisadores da sociologia, antropologia, psicologia, entre outras disciplinas. O pensamento sobre o dispositivo tem suas raízes no estruturalismo francês, baseado na ideia de que todas as relações entre sujeito e mundo são feitas com e no dispositivo, através da linguagem. Mas são as reflexões de Foucault que expandem o conceito de
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constituídos apenas por uma parte técnica ou por uma arquitetura, mas por um regime de fazer ver e de fazer falar. Assim, por dispositivo entende-se:
Um conjunto heterogêneo, comportando discursos, instituições, conjuntos arquiteturais, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, enfim: o dito como não dito [...] o dispositivo, nele mesmo, é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 1995b, p. 299) A idéia de “experiência” utilizada nesta tese é pensada a partir da proposta de Joan Scott (2002), na qual a experiência não é considerada nem interna nem externa ao sujeito, ela o constitui. Assim, a experiência não adquire significados: ela não aconteceria fora de significados, ou seja,
[...] não são os indivíduos que têm experiência, mas os sujeitos é que são constituídos através da experiência. A experiência, de acordo com essa definição, torna-se, não a origem de nossa explicação, não a evidência autorizada (porque é vista ou sentida) que fundamenta o conhecimento, mas sim aquilo que buscamos explicar, aquilo sobre o qual se produz conhecimento (p. 28). Continua Scott:
Pensar a experiência dessa forma é historicizá-la, assim como as identidades que ela produz. Esse tipo de historicização representa uma resposta aos/às muitos/as historiadores/as contemporâneos/as que argumentam que uma “experiência” sem problematização é o fundamento de suas práticas; é uma historicização que implica uma análise crítica de todas as categorias explicativas que normalmente não são questionadas, incluindo a categoria “experiência” (p. 28). Para compreendermos as experiências das nossas interlocutoras, decidimos operar sobre as vivências do/no presente que se constituem como uma relação social na qual as mesmas teriam a oportunidade de sair reelaborando suas realidades/experiências (FOUCAULT, 2001a). O trabalho de campo foi realizado dentro de um período de dois anos em Fortaleza (Junho de 2010 a Maio de 2011) e em Lisboa^13 , período este intercalado pelo
dispositivo em múltiplas dimensões, tornando-o determinante nas relações entre visibilidade e subjetividade. Para o autor, é a prisão o dispositivo por excelência, que, sujeitando os corpos, produz subjetividades de acordo com cada formação histórica. Os estudos de Foucault marcam a subjetividade moderna a partir do modelo de prisão criado por Jeremy Benthan no século XVIII, o panóptico. No entanto, tal processo de produção de subjetividade jamais esteve restrito à prisão. Foucault usa o modelo panóptico como um modelo teórico a ser aplicado em diversas instituições modernas através das estratégias de confinamento e disciplina. 13 A necessidade de compreender a complexidade presente na experiência do envelhecimento de travestis nos instigou a adentrar os mais diversos campos de investigação em Fortaleza: locais de prostituição travesti, boates de público LGBT, bares, cinevídeos pornôs, Saunas Gays , Associações, ONGs, Serviços