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Este artigo propõe uma análise da leitura psicanalítica de mal-estar na cultura a partir do cinema latino-americano contemporâneo, especificamente dos filmes argentinos 'a odisseia dos tontos' e 'relatos selvagens'. Ao mesmo tempo em que despertam sentimentos de identificação com histórias de revolta diante do mal-estar, essas obras de arte proporcionam processos terapêuticos de catarse e sublimação do mal-estar pela arte.
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Gabriel Crespo Soares Elias^1
RESUMO O presente artigo se propõe a apresentar a leitura psicanalítica de mal-estar na cultura a partir do cinema latino-americano contemporâneo, mais precisamente, faremos uma leitura dos filmes argentinos A Odisseia dos Tontos e Relatos Selvagens de modo a mostrar como estas obras de arte são capazes de, ao mesmo tempo, despertar nos espectadores sentimentos de identificação com suas histórias de revolta diante do mal-estar que vivenciam e proporcionar os processos terapêuticos de catarse e sublimação do mal-estar pela arte. Traçaremos um diálogo entre cinema e psicanálise de modo a mostrar como as obras trabalhadas podem nos proporcionar experiências ricas em potência diante do desconforto e indignação que sentimos no nosso cotidiano de injustiças e desigualdades. Palavras-chave: psicanálise; cinema; mal-estar; Relatos selvagens; A Odisseia dos tontos.
ABSTRACT The purpose of this article is show the psychoanalytic reading of discontentment in culture from contemporary Latin American cinema, more precisely, we will read Argentine films Heroic Losers and Wild Tales from in order to show how these artworks are able, at the same time, to awaken in the spectators feelings of identification with their stories of revolt in the face of the discontentment they experience and too provide the therapeutic processes of catharsis and sublimation of discontentment through art. We will trace a dialogue between cinema and psychoanalysis in order to show how the featured artworks can provide us with rich experiences in potency in the face of the discomfort and indignation that we feel in our everyday lifes of injustices and social differences. Key words : psychoanalysis; cine; discontent; Wild Tales; Heroic Losers.
RESUMEN Este artículo propone presentar la lectura psicoanalítica del malestar en la cultura del cine latinoamericano contemporáneo, más precisamente, leeremos películas argentinas La Odisea de los Giles y Relatos Salvajes, grandes éxitos de críticos y audiencias, para mostrar cómo estas obras de arte pueden despertar en los espectadores sentimientos de identificación con sus historias de revuelta frente al malestar que experimentan, así como proporcionar los procesos terapéuticos de catarsis y sublimación del malestar a través del arte. Trazaremos un diálogo entre el cine y el psicoanálisis para mostrar cómo las películas trabajadas pueden proporcionarnos experiencias ricas en potencia frente a la incomodidad e indignación que sentimos en nuestra vida cotidiana de injusticias y desigualdades. Palabras clave: psicoanálisis; cine; malestar; Relatos Salvajes; La Odisea de los Giles. (^1) Graduando de Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (Campus Universitário Rio das Ostras)
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Em 1930, Sigmund Freud publica O mal-estar na civilização. Neste ensaio, o criador da psicanálise discute o descontentamento do homem na cultura, a infelicidade deste peculiar animal civilizado. A questão da felicidade é tomada pelo autor como uma questão autenticamente humana e impossível de ser realizada por completa, pois a condição do homem para Freud é trágica: o homem está fadado a reprimir os seus impulsos sexuais e agressivos^2 em prol da sua civilização.
A repressão dos impulsos se dá pelo fato de que o homem, com o desenvolvimento da sua consciência, criou princípios para a vida em comunidade a fim de não permitir que o interesse pessoal seja sobreposto ao interesse compartilhado. Por exemplo, por mais que seja autêntica a vontade de matar alguém, não o fazemos pelo fato de que este desejo entra em conflito com o receio que temos do outro poder desejar nos matar também. Desse modo, as leis e os ideais morais, que fazem parte da civilização, têm o propósito de manter os nossos impulsos primitivos abafados, ou melhor dizendo, recalcados. Todos devem se abster de seus impulsos agressivos para a sobrevivência da comunidade.
No pensamento freudiano, estes impulsos, no entanto, jamais deixam de exigir satisfação do aparelho psíquico. Podem ter sido lançados para longe da consciência imediata, mas nem por isso deixaram de existir. A partir de seu registro inconsciente, eles se manifestam através de sonhos, atos falhos e outras manifestações do inconsciente que observamos na clínica e na vida cotidiana.
Os interesses em se satisfazer pelas vias do erotismo e pela agressividade são constantes e incessáveis, assim como a frustração destes desejos reprimidos imposta pela moral e ética culturais. Segundo Freud não podemos negligenciar a importância da análise da repressão destes impulsos, pois eles auxiliam na compreensão dos problemas do homem e da
(^2) Os impulsos (também chamados de instintos ou pulsões, a depender da tradução adotada) são para Freud os representantes psíquicos do que ocorre no corpo do indivíduo. Ele é o conceito criado pelo autor para definir aquilo que está na fronteira do mental e do corpóreo, sendo aquilo que une estas duas dimensões. Os impulsos dividem-se em duas classes: impulsos de vida e impulsos de morte. Dos primeiros fazem parte os impulsos de reprodução, multiplicação, voltados para a sobrevivência e manutenção da vida da espécie. Dos segundo fazem parte os impulsos de destruição e agressividade. Em termos metapsicológicos, o Eros cumpre a função da fusão das partes vivas em uma unidade, enquanto a morte opera a desfusão da unidade em partes menores. (ROUDINESCO & PLON, 1998).
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contato com o outro, o autor afirma: “O sofrimento que provém desta última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro” (FREUD, 1930/1996, p. 85).
Cabe salientar que o presente artigo versará mais precisamente sobre esta terceira fonte de sofrimento descrita por Freud, sobre o mal-estar advindo do relacionamento com o outro. Trabalhando com os filmes A Odisseia dos Tontos e Relatos Selvagens , mostraremos como se dá a sensação de frustração do homem ético no relacionamento com pessoas que não se abstém de seus impulsos primitivos, que não se preocupam em causar dor, destruição ou falência desde que seus interesses pessoais sejam atendidos. Mostraremos desse modo como a arte, mais precisamente o cinema, a partir da identificação do expectador com os personagens em cena pode servir de recurso de catarse e via de sublimação para a sensação de mal-estar inerente à vida do homem civilizado comum.
Encontramos no trabalho do sociólogo Zygmunt Bauman, intitulado O mal-estar da pós-modernidade (1998), uma fonte de esclarecimento sobre o mal-estar contemporâneo, em outras palavras, encontramos uma análise profunda sobre as transformações significativas que ocorreram na sociedade ocidental entre o que o autor chamou de período moderno (ao qual Freud se referia) para o período pós-moderno. Ele mostrará como estas transformações do social implicaram na mudança do panorama de frustração do sujeito na cultura.
Segundo Bauman, na pós-modernidade há um aumento das incertezas e dos impasses existenciais sentidas pelo deslocamento do interesse do sujeito na segurança para as promessas de liberdade, e pela mudança de uma cultura que buscava construir bens duradouros para o bem-estar do indivíduo para uma cultura que tem como princípio o consumismo e a precariedade das coisas. Para o autor, na pós-modernidade o sujeito investe demasiadamente nas promessas de liberdade e perde com isso as garantias de segurança que eram buscadas pelo sujeito moderno. Bauman toma como ilustração a figura de uma balança: se pesar mais em segurança, perde-se em liberdade, se pesar demais em liberdade, perde-se em segurança. O mundo pós-moderno, em constante reconfiguração e valores, técnicas e hábitos, força o sujeito a acompanhar esse ritmo acelerado de vida que embora prometa felicidade no aumento da sensação de liberdade, aumenta também a sensação de insegurança, ansiedade e desse modo remodela a sensação de mal-estar. Enquanto o sujeito moderno, aquele analisado por Freud, sofria pela privação da satisfação de seus impulsos, ou seja, sofria
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pela privação das promessas de liberdade, pode-se dizer que o sujeito pós-moderno sofre pela ausência de segurança advinda da liberdade de satisfazer seus impulsos (BAUMAN, 1998).
Na esteira da análise de Bauman, encontramos no trabalho do psicanalista brasileiro Joel Birman, uma leitura que pode ser somada à análise da contemporaneidade feita pelo sociólogo. Em Mal-estar na atualidade , Birman (2001) vai analisar as modificações ocorridas no social, ou seja, vai fazer uma atualização da leitura sobre o mal-estar na cultura de modo a mostrar como a transformação de uma sociedade tradicional para uma sociedade contemporânea operaram na modificação do quadro de mal-estar psíquico observado nos dias de hoje. A partir de sua experiência clínica, Birman apontará para o surgimento de sintomas que podem ser descritos como contemporâneos, tais como a depressão, as crises de ansiedade e pânico (a sensação de estar morrendo ou que algum órgão não funciona corretamente). A dificuldade de manter-se em um emprego, manter-se de acordo com o estilo de vida proposto como o ideal, manter-se sempre bem, produzindo e mantendo viva a cultura de espetáculo, coloca o sujeito contemporâneo a uma cadeira quase que insuportável de incertezas e impossibilidades existenciais.
O mundo adquire uma dimensão de infinitude, já que as rotas e os caminhos se multiplicam numa espécie de espiral ascendente. Incrementa-se muito, dessa maneira, o potencial de incerteza do sujeito, já que este passa a ser exposto a maiores opções e escolhas. A insegurança e a angústia se multiplicam, como consequência. [...] o sujeito passa a se inscrever num mundo que lhe abre muitas possibilidades, mas que também lhe aponta muitas impossibilidades existenciais (BIRMAN, 2001, p. 85).
Ao longo deste trabalho apresentaremos, tomando filmes como ilustração, os seguintes aspectos do mal-estar social contemporâneo, tais como a dissolução dos coletivos eficazes (impossibilidade de formação de laços sólidos); as incertezas no mundo do trabalho atual (aumento da sensação de insegurança); fragilidade dos laços humanos (indiferença); a tecnologia, suas vantagens e desvantagens e por fim o mal-estar de uma vida ética enquanto nem todos cumprem com a sua parte no pacto social.
No pensamento de Freud há dois conceitos imprescindíveis para se pensar na interlocução entre arte e psicanálise: catarse e sublimação. O primeiro deles, mais recorrente em uma primeira fase do trabalho freudiano, diz respeito à experiência terapêutica de
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para nosso pai. Nossos sonhos nos convencem de que é isso o que acontece (FREUD, 1900/2001, p. 234).
Atualizando a questão freudiana podemos nos perguntar: por que motivo as pessoas continuam a se interessar e assistir a estas tramas, sejam da tragédia familiar como no caso do Édipo , do Hamlet ou das novelas tão difundidas no nosso país, sejam da tragédia coletiva, como no caso de A Odisseia dos tontos e outras histórias de mal-estar correspondentes como o episódio do bombita de Relatos selvagens? A partir de uma leitura freudiana, podemos dizer que, de certo modo, estas histórias trágicas, assim como cumpriam sua função catártica, terapêutica, nos gregos antigos, continuam a auxiliar na descarga afetiva do sujeito contemporâneo. Enquanto as tragédias familiares continuam despertando interesses e reações das pessoas, constatada a universalidade do Complexo de Édipo, como postulado por Freud, por outro lado, as tragédias coletivas, que mostram pessoas se unindo ou o nascimento de figuras heroicas que se lançam contra o sistema e o mal-estar social, dizem respeito a uma descarga do sentimento próprio da época de agora. Estas histórias trágicas coletivas dizem respeito à insatisfação do sujeito na cultura contemporânea e do desejo profundo deste em tomar alguma atitude, mesmo que seja radical, para mudar o quadro atual da insatisfação em que se encontra.
Uma das formas de tentar escapar da insatisfação que vem do contato com o outro, uma ‘saída’ àquela terceira fonte de sofrimento descrita por Freud, seria a sublimação^4. A sublimação é descrita como um conceito que explica um novo caminho, um novo destino da pulsão sexual que é desviada dos destinos sexuais originários para a realização de que não tem um caráter originalmente sexual. A sublimação seria o deslocamento das forças pulsionais sexuais para a realização de atividades valorizadas na sociedade, tais como a produção artística, a prática de esportes e até mesmo o trabalho científico (MENDES, 2011).
A sublimação se insere na clínica psicanalítica como um processo em que observamos a liberação das pulsões de agressividade e destruição para a sua transformação em criações culturais, ou seja, para criações de algo que ao invés de triunfar sobre a cultura e deixar seu
(^4) Freud (1930/1996) apresenta os seguintes paliativos ao mal-estar: a) religião; b) busca pelo aniquilamento das pulsões; c) o uso de substâncias tóxicas e por fim d) a sublimação das pulsões, que apesar de ser parcialmente eficaz em alguns casos (como no artista que sublima as suas pulsões eróticas e destrutivas em obras de arte), também seria uma forma precária de proteção contra o sofrimento humano. Para Freud, todas estas formas são ineficazes para atender à problemática da felicidade humana, mas cada uma consegue em auxiliá-lo em algum grau.
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rastro de morte e destruição, contribui, por sua vez, para a manutenção da cultura. Freud defenderá que o papel da análise é reforçar as pulsões de Eros a fim de que as pulsões de morte, ou destrutivas (substituídas por aquelas) deixe de colocar o Eu em risco de danos que podem levar até mesmo à morte propriamente dita. De acordo com o pai da psicanálise, em análise devemos trabalhar como aliados das pulsões do Eros, das pulsões que se esforçam por manter a unidade das coisas vivas e perpetuação delas, ou seja, atuamos de certa forma como contrários à irrestrita expressão das pulsões de agressividade, quando não estiverem à serviço da sublimação e da manutenção da civilização (FREUD, 1926/1996)^5.
A produção de filmes que tematizam a inconformidade diante da injustiça, e o sucesso de bilheteria e crítica de longas metragens como Relatos Selvagens e A Odisseia dos Tontos deve se explicar pela identificação que sentimos com as emoções e com os pensamentos dos seus protagonistas, assim como pela experiência catártica e sublimatória que este tipo de cinema permite. Vivenciamos dificuldades e experiências semelhantes a estes personagens.
Os escritores, diretores e atores envolvidos nesta arte experimentariam, numa visão psicanalítica, uma experiência de sublimação, pois suas pulsões de agressividade são liberadas a fim de se produzir uma arte que contribua tanto para a reflexão sobre o social quanto para a liberação das cargas afetivas que nós espectadores sentimos e que conseguimos descarregar assistindo a estas histórias. Nas palavras de Eliana Pereira Rodrigues Mendes:
o verdadeiro artista é aquele que consegue lidar com seus conteúdos inconscientes, indo além do recalcamento, trazendo-os transformados em novo objeto, seja ele uma escultura, uma pintura, uma canção, um poema, podendo fazer com que outros compartilhem dessa criação, através daquilo que sua obra evoca em cada um (MENDES, 2011, p. 63).
La Odisea de los Giles , traduzida para no Brasil como A Odisseia dos Tontos , é um longa ambientado no interior da Argentina no início dos anos 2000. O filme começa com um sonho coletivo que trazia uma promessa de vida melhor: cidadãos do interior decidiram trazer de volta à ativa uma antiga cooperativa, de modo a desenvolver economicamente a sua cidade
(^5) Isto não significa a manutenção da ordem estabelecida, nem mesmo a conformação com as forças que estão vigentes no atual estado da cultura. Manutenção da civilização aqui significa, no sentido freudiano, a manutenção do estado de animais culturais, ou seja, o não retorno ao estado anterior à criação de tudo aquilo que valorizamos na civilização, as suas garantias de segurança e criações artísticas, científicas e culturais.
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invisível aos olhos daqueles que promovem os grandes ataques contra o povo? Quantas pessoas morrem em decorrência de um problema que tem responsáveis que são indiferentes ao sentimento do outro?
Após saberem de um cofre construído pelo advogado em um local afastado da cidade, Fermín e seus amigos montam um plano de resgatar o dinheiro que lhes foi tomado. Este plano se torna uma verdadeira odisseia, pois eles se atrapalham para alcançar seu objetivo comum, pois são originalmente pessoas honestas, homens de bem, seguidores da lei e de vida comum. Por isso a odisseia é dos tontos, adjetivo traduzido do espanhol giles , que, como afirma o ator Ricardo Darín na abertura do filme, é sinônimo de gente de vida pacata e simples que não estão inclinadas a transgredirem a lei nem o que é considerado correto.
Assistindo a reunião dos giles podemos dizer que eles formaram um coletivo eficaz, pois conseguiram à sua maneira resgatar seu dinheiro. Em Modernidade líquida , Bauman (2001), aponta como uma das características da época de agora, que ele chama de modernidade líquida^7 , a dissolução destes coletivos reais e eficazes. Os coletivos reais seriam aqueles de encontros presentes, com pessoas que se conhecem e compartilham histórias, experiências e afetos, que formam vínculos. As novas promessas de melhoria do trabalho através da “oferta de maior flexibilidade”, “geração de novos postos de trabalho”, “possibilidade de fazer seu próprio horário”, “acordos menos fechados entre empregador e empregado”, são lidas por Bauman como o “novo canto da sereia” – seduz, é lindo, mas é mortal.
Se o sentido do trabalho na modernidade, valorizado pelas gerações anteriores, consistia na criação de um mercado e de leis trabalhistas sólidas, que visava garantir maior segurança ao empregado, o sentido do trabalho na modernidade líquida, no entanto, volta-se para a criação de um mercado de trabalho volátil, tão fluido ao ponto de ser incapaz de oferecer garantias e seguranças ao trabalhador. Os coletivos de trabalhadores neste tipo de
(^7) Se no primeiro o autor trabalhava com o conceito de pós-modernidade (BAUMAN, 1998), no segundo ele substitui a ideia de modernidade pós-moderna para modernidade líquida. O conceito de liquidez oferece uma ideia mais apropriada das transformações ocorridas na sociedade ocidental do que a separação por ‘eras’. As mudanças tratam-se mais da mudança de estados, sólido para o líquido, do que de uma ruptura entre duas épocas. Para ele importa investigar como a economia, o mercado de trabalho, os valores e os relacionamentos humanos se liquefizeram, tornaram-se fluidos, inconsistentes. (BAUMAN, 2001, p. 8).
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companhias (grandes empresas, indústrias, multinacionais) e com este tipo precário de contrato formam apenas coletivos líquidos porque não apresentam consistência nem consegue manter-se em estado sólido. A própria empresa, com a renovação constante do quadro de funcionários, não oferece condições (duração, tempo suficiente) para a formação de laços entre eles. Ao estimular a competitividade dos seus funcionários, reavivando o estado de todos contra todos, dilui-se os espaços saudáveis de convivência, necessários para que sejam formadas amizades, vínculos concretos no ambiente de trabalho (BAUMAN, 2001).
Os espaços de convivência reais, concretos, recentemente também têm sido progressivamente substituídos pelos espaços de encontros virtuais. Os coletivos virtuais são aqueles que se dão através do uso da tecnologia e da reunião em redes e grupos sociais virtuais, que na visão do autor são ineficazes. O relacionamento virtual ocorre num espaço e tempo próprios, diferentes do real e, por sua vez, oferecem tanto possibilidades de realizações quanto impossibilidades e limitações. Ao mesmo tempo em que se é possível estar em contato com um grande número de pessoas no plano virtual, no plano concreto estas pessoas permanecem sozinhas, isoladas com seus aparelhos eletrônicos (BAUMAN, 2007).
Bauman percebe que há na modernidade líquida a morte destes espaços favoráveis à formação de coletivos eficazes e o aumento expressivo da individualização. A aceleração e o dinamismo com os quais se dão os encontros e contatos nestes novos espaços de convivência, impossibilitam ou tornam difícil que haja a formação de laços duradouros, pois da mesma forma que temos facilidade de acessar o outro, temos também de exluí-lo, bloqueá-lo (BAUMAN, 2004).
Há uma cena na Odisseia na qual os personagens descobrem um aparelho curioso que cabe no bolso e dá para se comunicar com outro como um telefone. O ano era 2001 e retrata a pitoresca descoberta dos telefones móveis, aparelhos celulares. Se de um lado ela é aliada porque auxilia na comunicação entre eles para a melhor e exata execução das etapas do plano, do outro lado ela é rival porque é a mesma tecnologia que serve para informar rapidamente ao antagonista que o cofre por estar sendo roubado.
O que faz com que Bauman se demore na análise dos agenciamentos virtuais, líquidos, é o fato dele perceber que há um interesse político por detrás da substituição das formas antigas e tradicionais para as novas formas (BAUMAN, 2001). As novas promessas do mercado de trabalho, que são oferecidas ao sujeito contemporâneo como uma “modernização” das leis trabalhistas e das formas de trabalho (como se fosse por isso um grande ‘progresso’),
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saber que não poderia estacionar ali. A multa cobrada e o rebocamento eram, portanto, indevidos.
Nos diálogos de Simón com os demais personagens, somos apresentados a alguns elementos que confirmam o quadro de mal-estar na sociedade atual: a sensação de indiferença no tratamento do outro, a sensação de estarem tirando algo que é nosso (no caso trata-se de dinheiro, que nos é tirado na forma de impostos ou de taxas e cobranças absurdas), a sensação de que somos impotentes diante de um sistema que, aparentemente, tem suas regras ditadas por outros personagens que não somos nós, a sensação de indignação por sermos “obrigados” a seguir estas regras para evitar aborrecimentos e outros transtornos. Simón é atendido por dois funcionários que ora lhe dão respostas automáticas (“o senhor tem que fazer o pagamento”), ora expressam deboche. Quando percebe que sua voz não é mais ouvida e que não valem de nada seus argumentos, Simón pega um extintor de incêndio e quebra o vidro que o separa do atendente. Este evento causou a sua prisão e, dada a repercussão negativa de seu nome na imprensa, acaba sendo demitido da empresa que trabalhava há anos. Sua vida familiar também vira do avesso após ter chegado atrasado para o aniversário de sua filha: sua esposa pede o divórcio e além de exigir na justiça a pensão para sua filha, ainda requer a guarda exclusiva da criança (para aumentar o desespero do personagem).
Quando seu carro é rebocado mais uma vez, indevidamente, e ele se vê obrigado a pagar novamente pela liberação do veículo e a multa por infração de trânsito, Simón toma uma atitude final. Calcula, com sua racionalidade de engenheiro, os danos que causará ao colocar explosivos no porta-malas de seu carro e deixar que ele seja rebocado mais uma vez. No estacionamento onde os carros guinchados eram colocados, que também havia uma cabine onde as pessoas faziam o pagamento para a retirada dos veículos, ocorre uma grande explosão. Simón acaba sendo preso por seus atos. No entanto, o resultado que poderia ser um final triste se torna um curioso final feliz. Enquanto para os “donos” do sistema Simón é chamado de criminoso e terrorista a população nas redes sociais o tomam como herói nacional.
Seus compatriotas se identificam com a sua frustração diante de uma injustiça assim como se identificam com a sua solução na forma de um espetáculo explosivo: elas o transformam no personagem bombita, criam nas redes sociais a hashtag bombita para presidente e fazem brincadeiras (sérias) pedindo que ele agora escolhesse outros lugares para explodir, como, por exemplo, a sede da prefeitura. Sua família volta para ele e na prisão e fora dela ele é aplaudido pelos civis, prisioneiros e carcereiros. Curiosamente, apenas depois de ter
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cometido um crime contra o sistema e ter ficado preso, Simón é um homem mais feliz do que era antes de tudo isto ocorrer.
A conformação e passividade diante do mal-estar da corrupção estão presentes no discurso de um homem que está na fila do caixa de um setor da prefeitura momentos antes da primeira explosão do ‘bombita’:
O governo credencia uma empresa privada que ganha dinheiro à vontade. É claro, que em troca de uma propina para os funcionários que nós escolhemos. É uma afronta, mas é assim... Você tem duas opções: ou paga e trabalha um pouco ou o seu coração arrebenta de tanto estresse. E quer saber, amigo? Eu tenho muitas razões pra viver. Quero navegar, viajar pelo mundo com meus netos... Não fique nervoso, não vale a pena.
Simón, ou bombita, é o herói dos descontentes inconformados, daqueles que não se submetem facilmente ao sistema. Bombita, encarnação de um explosivo, símbolo de material que estoura, que auxilia nas demolições e também construções, é um personagem que faz a travessia da passividade para a atividade. Seu final alegre mostra a necessidade de tomar uma providência para impedir que injustiças e absurdos continuem ocorrendo naturalmente na nossa sociedade. Diferente dos giles , que se reúnem para juntos saírem vitoriosos na busca pelo que lhes pertence, Simón mostra que as atitudes de inconformação e resistência podem acontecer pela via individual, através de uma atitude de insubordinação, desobediência. Se não for pelo raciocínio e diálogo, que seja pelo espetáculo de uma explosão.
No segundo “relato” de Relatos selvagens , a personagem de uma senhora cozinheira e ex-presidiária põe em dúvida a questão da liberdade e felicidade dos ditos homens “livres”, ou seja, daqueles que não estão encarcerados cumprindo pena. Quando sua colega de trabalho, uma jovem garçonete reconhece um homem que arruinou a sua família e fica transtornada e enraivecida com a presença dele, a cozinheira sugere à moça: “Porque não colocamos veneno pra rato na comida dele?” Apesar de a proposta parecer tentadora, a garçonete hesita. Tem medo de ir parar atrás das grades. Ao demonstrar a preocupação pela possibilidade de ir para a cadeia ao matar aquele homem, a jovem fica surpresa ao saber que a colega de trabalho já foi presa. A cozinheira diz que a cadeia não é tão ruim assim e que se sentia mais livre nela do que fora. Segue um trecho do diálogo entre as duas:
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agressividade, dos nossos impulsos de morte, se isso não impede que as pessoas sejam agressivas e impiedosas comigo? De que vale uma vida ética, justa, se nem sempre as pessoas são éticas e justas comigo? De que vale estarmos livres se não nos sentimos autenticamente livres ou felizes?
A questão da ética humana como resposta à infelicidade é problematizada por Freud no seu Mal-estar. O autor diz que uma vida ética pode amenizar a sensação de infelicidade que o homem civilizado carrega consigo, porém, não conseguirá lograr toda a satisfação que os pensadores sobre a ética na história da humanidade (Aristóteles, por exemplo) sugeriram que ela fosse capaz de conseguir. Freud tomará como exemplo de ética o ideal de amor e respeito que herdamos da tradição cristã. Esta ética se fundamenta numa “recompensa” metafísica. Para o autor, contudo, qualquer promessa de recompensa (felicidade) para além desta vida se caracterizam como ilusões. As pessoas precisam sentir em suas vidas reais que a ética é algo que vale a pena.
As pessoas, em todos os tempos, deram o maior valor à ética, como se esperassem que ela, de modo específico, produzisse resultados especialmente importantes. [...] Enquanto, porém, a virtude não for recompensada aqui na Terra, a ética, imagino eu, pregará em vão” (FREUD, 1930/1996, p. 148-149).
O interesse de transgredir as leis, romper com a ética e com os códigos sociais e permitir que os impulsos reprimidos se materializem em nossos atos destrutivos e agressivos advém da sensação de estarmos sendo honestos e justos em vão. Em seu mal-estar , Bauman dirá que os “impuros” dos nossos tempos, aqueles que são vistos como o grande risco da cultura atual, são aqueles indivíduos que por algum motivo não respeitam a ética e a lei ou decide ser os juízes e fazedores da lei de que sentem falta. Nas palavras do próprio autor:
A mais odiosa impureza da versão pós-moderna da pureza não são os revolucionários, mas aqueles que ou desrespeitam a lei, ou fazem a lei com suas próprias mãos - assaltantes, gatunos, ladrões de carro e furtadores de loja, assim como seus alter egos – os grupos de punição sumária e os terroristas (BAUMAN, 1998, p. 26).
Apesar de considerarmos que Relatos selvagens e A Odisseia dos tontos apresentam problemas para a consciência e para a ética humanas, não podemos deixar de acrescentar que este mesmo conteúdo mostrado nas telonas, e que pode perturbar a nossa consciência, é o
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mesmo conteúdo que encontramos nos nossos sonhos. No mundo onírico, quando as barreiras do recalcamento não cumprem a sua função como quando estamos em estado vigil, nós podemos experimentar as sensações mais destrutivas contra os que nos fizeram algum mal e desejamos retribuir com ódio, ou fazemos algo que temos vergonha de dizer até para nós mesmos. O cinema de Szifron e Borensztein nos auxilia não somente em fazer uma leitura sobre o panorama contemporâneo de mal-estar, mas também a liberar o conteúdo que se esconde nos nossos sonhos e fantasias, conteúdos que, de certa forma, tem a sua utilidade em permanecer oculto. Podemos dizer ainda que ambos os longas apresentam uma esperança de que o sujeito, sozinho ou em coletivo, não está condenado à passividade, ele pode causar perturbações no sistema, manifestar a sua indignação e forçar que as coisas se transformem. Se a nossa consciência nos impede de realizar atitudes radicais contra o mal-estar social, conseguimos realizar-nos pela experiência do cinema.
A ODISSEIA DOS TONTOS. Direção: Sebastián Borensztein. Produção:Fernando Bovaira, Javier Braier, Micaela Buye, Leticia Cristi, Chino Darín, Ricardo Darín, Simón de Santiago, Axel Kuschevatzky, Matías Mosteirín, Federico Posternak e Hugo Sigman. Argentina: Mod Producciones, K&S Films e Kenya Films, 2019.
BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BAUMAN, Z. O Mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BAUMAN, Z. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e suas novas formas de subjetivação. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
ELIAS, G C. S. O discurso trágico da psicanálise diante do mal-estar contemporâneo. Revista Lampejo. Fortaleza, v. 7, n. 2, 2018, p. 77-91. Disponível em http://revistalampejo.apoenafilosofia.org/edicoes/edicao-14-vol_7_n_2/6- O_discurso_tr%C3%A1gico_da_psican%C3%A1lise_diante_do_mal- estar_contempor%C3%A2neo.pdf Acesso em: 04 mar. de 2020.
FREUD, S. (1900) A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001.