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Crítica comparativa de Morfologia de Macunaíma e O tupi e o alaúde: análise crítica, Notas de estudo de Cultura

Henrique pinheiro costa gaio analisa duas importantes formas de recepção crítica de macunaíma (1928) de mário de andrade: morfologia do macunaíma (1973) de haroldo de campos e o tupi e o alaúde (1979) de gilda de mello e sousa. O artigo discute as diferentes interpretações de macunaíma e suas implicações para a formação nacional brasileira.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jose92
Jose92 🇧🇷

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Revista Ágora Vitória n. 24 2016 p. 18-30 ISSN: 1980-0096
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MacunaíMa entrincheirado: a crítica entre a
forMa e a identidade nacional*
Henrique Pinheiro Costa Gaio**
Resumo: Este artigo pretende analisar, de maneira comparativa, duas importantes formas de
recepção crítica de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, a saber: Morfologia do Macunaíma
(1973), de Haroldo de Campos, e O tupi e o alaúde (1979), de Gilda de Mello e Sousa. O
esforço em compreender o debate visa não somente às peculiares leituras da obra exemplar
do modernismo, mas também sublinhar a posição crítica que sustenta as opções analíticas dos
autores e seus usos do passado.
Palavras-chave: Crítica literária; Formação nacional; Macunaíma.
Abstract: This article intends to analyze, in a comparative approach, two important forms of the
critical reception of Macunaíma (1928), by Mário de Andrade: Morfologia do Macunaíma (1973),
by Haroldo de Campos, and O tupi e o alaúde (1979), by Gilda de Melo e Sousa. The effort to
grasp this debate aims not only the understanding of the peculiar readings of this master-piece
of Modernism, but also to underline the critical position that supports the analytic options of
the authors and their uses of the past.
Keywords: Literary Criticism; National formation; Macunaíma.
* Artigo submetido à avaliação em 11 de outubro de 2016 e aprovado para publicação em 13 de novembro de 2016.
** Possui doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pós-doutorado pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
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M acunaíMa entrincheirado: a crítica entre a

forMa e a identidade nacional

Henrique Pinheiro Costa Gaio ** Resumo: Este artigo pretende analisar, de maneira comparativa, duas importantes formas de recepção crítica de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, a saber: Morfologia do Macunaíma (1973), de Haroldo de Campos, e O tupi e o alaúde (1979), de Gilda de Mello e Sousa. O esforço em compreender o debate visa não somente às peculiares leituras da obra exemplar do modernismo, mas também sublinhar a posição crítica que sustenta as opções analíticas dos autores e seus usos do passado. Palavras-chave: Crítica literária; Formação nacional; Macunaíma. Abstract: This article intends to analyze, in a comparative approach, two important forms of the critical reception of Macunaíma (1928), by Mário de Andrade: Morfologia do Macunaíma (1973), by Haroldo de Campos, and O tupi e o alaúde (1979), by Gilda de Melo e Sousa. The effort to grasp this debate aims not only the understanding of the peculiar readings of this master-piece of Modernism, but also to underline the critical position that supports the analytic options of the authors and their uses of the past. Keywords: Literary Criticism; National formation; Macunaíma.

  • (^) Artigo submetido à avaliação em 11 de outubro de 2016 e aprovado para publicação em 13 de novembro de 2016. ** (^) Possui doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pós-doutorado pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

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Henrique Pinheiro Costa Gaio

En ese universo saturado de libros, donde todo está escrito, sólo se puede releer, leer de otro modo. Por eso, una de las claves de ese lector inventado por Borges es la libertad en el uso de los textos, la disposición a leer según su interés y su necesidad. Cierta arbitrariedad, cierta inclinación deliberada a leer mal, a leer fuera de lugar, a relacionar series imposibles. La marca de esta autonomía absoluta del lector en Borges es el efecto de ficción que produce la lectura (PIGLIA, 2013, p. 28).

A

publicação de Macunaíma (1928) mostra-se como baliza importante do movimento modernista, não somente por representar uma espécie de síntese, mas, sobretudo, pelo caráter polissêmico e fugidio que se expressa nas diferentes recepções da rapsódia de Mário de Andrade. Investir nas possibilidades da recepção de Macunaíma , além de sublinhar camadas interpretativas, pode servir para reconhecer certos projetos da crítica literária nacional que se cristalizam na segunda metade do século XX. Desse modo, nos deteremos em dois casos exemplares de leitura que nos servem como molduras para o debate: Morfologia do Macunaíma (1973), de Haroldo de Campos, e O tupi e o alaúde (1979), de Gilda de Mello e Sousa. Em 1972, por ocasião da obtenção do título de Doutor em Letras, no Curso de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, Haroldo de Campos, sob a orientação de Antonio Candido, apresentou a tese Morfologia do Macunaíma: para uma teoria da prosa modernista brasileira. Apesar da necessária dimensão monográfica requerida, a obra preserva o traço fragmentário que caracterizava os ensaios que costumavam servir como plataforma básica de suas incursões críticas. A tese estabelece um adensamento do olhar sincrônico e premonitório diante do passado literário nacional, inserindo-se em projeto mais amplo de leitura semiológica da prosa brasileira de vanguarda, anunciado na nota introdutória. Tal menção mostra-se relevante, pois evidencia o plano que se delineia de maneira mais clara após a fase heroica da poesia concreta, indicando o empenho na releitura da tradição segundo uma perspectiva inventiva, propondo uma historiografia que denote antes a sedição que a sedimentação de recursos poéticos.^1 O impulso primordial para a tentativa de releitura de Macunaíma articula-se no interior do paideuma concretista – repertório vanguardista que será exaustivamente mobilizado para sancionar a produção poética e crítica dos concretistas –, tomando como ponto de ancoragem a aproximação com os romances-inventivos de Oswald (^1) Haroldo de Campos (2008) explica desta forma seu projeto: “O presente livro constitui o primeiro volume de uma obra mais ampla – Semiologia da Prosa Brasileira de Vanguarda –, em progresso. Um segundo volume está previsto e em andamento, compreendendo uma Poética de Oswald de Andrade (com integração, ampliada e concatenada, dos meus prefácios às reedições de Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande ) e um Retrospecto e Prospecto, no qual procurarei, através de uma leitura sincrônica do legado diacrônico de nossa literatura em prosa – no que ele exibe de inventivo e premonitório – pensar criticamente as possibilidades da escritura ou do texto hoje”.

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O mosaico armado não se restringe, portanto, ao simples levantamento de dados folclóricos, tal como foi indicado por Florestan Fernandes através da expressão “conto- mosaico”, mas sim adquire uma conotação gestaltiana de composição: o arranjo, se submetido ao processo de decomposição, permite a identificação das partículas que estruturam a totalidade. O foco recai, justamente, no peculiar agenciamento das partes que compõem o todo, identificando leis gerais de composição. Assim, se no esboço do primeiro prefácio de Macunaíma há uma compreensão de que a realização funciona como uma “antologia do folclore brasileiro”, posteriormente, retificando em notas tal imagem, diz-nos Mário de Andrade: “evidentemente não tenho a pretensão de que meu livro sirva para estudos científicos de folclore. Fantasiei quando queria e sobretudo quando carecia para que a invenção permanecesse arte e não documentação seca de estudo”; além disso, ressalta que “os meus livros podem ser resultado dos meus estudos porém ninguém não estude nos meus trabalhos de ficção, leva fubeca” (ANDRADE, 2013, p. 223). As palavras do autor recomendam comedimento na construção de sentidos que extrapolem a pretensão de uma obra ficcional, ou seja, que imponham um referencial externo como motivação primordial – pode-se dizer um sentido histórico-sociológico –, onerando o fluxo imagético da narrativa. Segundo a leitura proposta por Haroldo de Campos, não é o material mobilizado que interessa, mas sim o procedimento que o conforma, pois ao cotejar a estrutura narrativa de Macunaíma com os contos fabulares russos, encontra similaridades que perpassam as principais soluções de composição utilizadas por Mário de Andrade. O ensaio O tupi e o alaúde (1979), de Gilda de Mello e Souza, funciona como contraponto significativo, pois sua leitura de Macunaíma constitui-se como resposta direcionada ao que considerava como equívocos interpretativos de Haroldo de Campos. Quanto ao método compositivo de Macunaíma , o concretista encontra similitudes com a ideia de mosaico, rearranjo criativo de dados retirados dos contos populares num processo de agenciamento que reconsidera a própria noção de autoria. Em contrapartida, Gilda de Mello e Souza reconhece certa insuficiência explicativa em tal colocação, pois acredita que o destaque à mera justaposição reduziria o aspecto autoral, extremamente forte na produção de Mário de Andrade – mesmo reconhecendo que o novo agenciamento dos fragmentos sugere o procedimento típico do bricoleur , no qual o artista figura como compositor que se alimenta de matérias já dadas de antemão, procurando, em meio aos escombros, fragmentos que possam servir- lhe, intuindo, sobretudo no jogo formal, as regras para optar pelo descarte ou pela utilização. Desse modo, ainda que nuançando a composição através de fragmentos, a proposta de Haroldo de Campos não comportaria a ressonância e a profundidade da obra de Mário de Andrade. A brevidade das formas seria uma espécie de inevitável

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consequência desse sistema de bricolagem, deixando em segundo plano a aguda intencionalidade do autor. Portanto, para a autora, “mais do que na técnica do mosaico ou no exercício da bricolagem, é no processo criador da música popular que se deverá a meu ver procurar o modelo compositivo de Macunaíma” (SOUZA, 2003, p. 11). O longo trabalho de auscultação do processo de composição musical popular teria servido como arcabouço para a rapsódia de Mário de Andrade. O jogo de propor cantos novos valendo-se de certa traição da tradição mnemônica inerente ao canto decorado e à oralidade popular serviria como alimento mais profundo para a prosa musical que narra as peripécias de Macunaíma. O estilo parasitário dos cantadores populares, que norteados por um núcleo básico constroem em livre associação imagética diversas variantes para temas secundários, parece ser a grande referência compositiva de Macunaíma. Desse modo, os métodos de composição popular indicam um jogo tenso entre as manifestações eruditas e populares da cultura, provocando nivelamentos e desnivelamentos estéticos. Assim, Incapaz de se movimentar dentro de um estilo importado, a imaginação popular brasileira adotou uma solução peculiar que, evitando a subserviência da cópia, contornava a dificuldade com esperteza: submeteu os textos originais a uma combinatória muito engenhosa que ora trocava os textos, ora as melodias; ora fracionava os textos e as melodias; ora inventava melodias novas para textos tradicionais – e assim por diante (SOUZA, 2003, p. 22). De acordo com Gilda de Mello e Souza, a narrativa de Macunaíma orienta-se em procedimento similar; seu método aparentemente parasitário remete aos empréstimos entre popular e erudito. Em caminho similar, Mário de Andrade, em Ensaio sobre a música brasileira (1928), chega a condenar a individualidade egoísta do autor que se nega às adaptações e deformações que concedem novos significados a velhos objetos, numa espécie de elogio da emulação. Em indagação de efeito retórico, encontra-se o incentivo às variações de velhos temas ou melodias: “E si pode utilizar nessas formas os próprios temas populares, como estes mudam de lugar para lugar, de tempo em tempo, de ano em ano até, o quê que impede a utilização nessas formas de temas inventados pelo próprio compositor? Nada” (ANDRADE, 2006, p. 54). Em carta aberta a Raimundo Moraes, publicada no Diário Nacional em 1931, Mário de Andrade demonstra com clareza seu método de composição e refuta a ideia de plágio da obra do etnógrafo alemão Koch-Grünberg: O sr., [Raimundo Moraes] muito melhor do que eu, sabe o que são os rapsodos de todos os tempos. Sabe que os cantadores nordestinos, que são nossos rapsodos atuais, se servem dos mesmos processos dos cantadores da mais histórica antiguidade, da Índia, do Egito, da Palestina, da Grécia, transportam integral e primariamente tudo o que escutam e leem pros seus poemas, se

Macunaíma entrincheirado

temporal, dessa maneira, podem servir como alegoria para a coexistência regional e temporal, pois “o mapa de sua terra, que Macunaíma descortina do alto, sobrevoando o Brasil no tuiuiú-aeroplano, é de certo modo a projeção de um desejo profundo do escritor, manifestado em outros momentos de sua obra”, qual seja, “de estabelecer a identidade entre o habitante rico do Sul e o pobre do seringueiro do Norte, entre as cidades prósperas e superpovoadas do litoral e ‘o vasto interior, onde ainda a pobreza reina, a incultura e o deserto’” (SOUZA, 2003, p. 33). No parágrafo final da narrativa, encontra-se de maneira transparente a oralidade e a musicalidade que permeiam o conto de Mário de Andrade, pois a transmissão só foi possível por conta do papagaio que preservou, após a subida de Macunaíma ao céu em meio ao silêncio de Uraricoera, os feitos e a fala do herói. Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei para vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente. Tem mais não (ANDRADE, 2013, p. 214). Outro ponto de divergência está na análise da estrutura narrativa, apesar do débito de Macunaíma com os estudos folclóricos empreendidos pelo autor mostrar-se consensual nas diferentes propostas de leituras. Todavia, no percurso interpretativo desenhado por Haroldo de Campos, objetiva-se uma aproximação morfológica com as fábulas estudadas pelo formalista russo Vladímir Prop. O esquema fabular proposto em Morfologia da Fábula (1928) sugere uma armação narrativa na qual se identificam grandezas variáveis, como nomes e tributos dos personagens, e grandezas constantes, como as ações que implicam funções definidas no interior do enredo. Numa tentativa de síntese do modelo, pode-se reconhecer que a narrativa inicia-se com a introdução breve dos personagens e a descrição de um infortúnio ou dano que origina a marcha do herói; a carência possui caráter introdutório e concede sentido e movimento à narrativa. Todo o desenvolvimento seguinte, podendo ser entremeado de casos secundários, direciona-se para o desenlace que tem como função primordial a satisfação da querência inicial, a reparação do dano introdutório e a volta a um estágio de equilíbrio. Entre constantes e variáveis, emerge um sistema narrativo identificável em suas partes. Essa montagem através de rubricas comuns ao conto fantástico em muito se aproxima da colagem concretista – mobilizando novamente o paideuma como repertório analítico. Além disso, o que chama a atenção é a possibilidade de racionalizar a criação através da verificação de uma morfologia que se espraia em diferentes combinações, possibilitando um número variável de sínteses.

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O eixo central da narrativa de Mário de Andrade articula-se entre o roubo e a recuperação do talismã recebido por Ci, o muiraquitã. Entre divertimentos fortuitos e as brincadeiras que permeiam a trajetória do anti-herói de Mário de Andrade, o horizonte permanece quase que imutável – a expectativa em reaver a pedra perdida que se encontrava nas mãos do “regatão peruano” que se chamava Venceslau Pietro Pietra. “O cânone do conto exige mesmo obrigatoriamente este roubo, para que a ação se complique no meio” (PROPP, 1971, p. 265). O recurso à tipologia funcional proppiana recenseava o clássico modernista e desautorizava uma leitura alegórica que privilegiasse a síntese de uma essência nacional. A própria ausência de caráter do herói reforçaria uma funcionalidade narrativa verificada na morfologia do conto fantástico. Nesse ponto reside uma dificuldade em se atribuir uma leitura unívoca da narrativa andradiana, pois o próprio autor oscilou na tentativa de explicar sua pretensão inicial. No primeiro prefácio, o autor assevera que o que o “interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros” (ANDRADE, 2013, p. 217). Dessa preocupação, que concede inteligibilidade à sua produção intelectual, surge a perspectiva da ausência de caráter dos brasileiros em um registro histórico. Uma espécie de reflexo da formação nacional, em que a ausência de caráter teria não só o sentido de uma moral reprovável, como também de uma espécie de vazio constitutivo. Assim, as ações do anti-herói não projetariam uma interioridade identificável, mas antes a inexistência de padrões comportamentais definíveis que pudessem pautar a experiência individual. Segundo Mário de Andrade (2013, p. 217-218). (O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter). Brasileiro (não). Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral. Daí nossa gatunagem sem esperteza, (a honradez elástica/ a elasticidade da nossa honradez), o desapreço à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas famílias. E sobretudo uma existência (improvisada) no expediente (?) enquanto a ilusão imaginosa feito Colombo de figura de proa busca com olhos eloquentes na terra um eldorado que não pode existir mesmo, entre panos de chãos e climas igualmente bons e ruins, dificuldades macotas que só a franqueza de aceitar a realidade poderia atravessar. É feio. Seguindo as indicações acima, pelas quais se propõe um olhar pouco lisonjeiro da formação nacional, o anti-herói parece configurar o inacabamento. Sua plasticidade lastrearia a experiência histórica nacional no que ela tem de deficiente e desbragada. Não por acaso, nesse mesmo prefácio, Paulo Prado é citado como referência para a

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se torna ridícula devido ao desacordo grotesco que se estabelece entre o heroísmo dispendido e a insignificância dos obstáculos interpostos. Em Mário de Andrade, ao contrário, a carnavalização deriva da atrofia do projeto cavaleiresco, da sua negação, da paródia: Macunaíma é dominado pelo medo e as suas fugas constantes estão em desproporção com a realidade dos perigos; ele é, por conseguinte, o avesso do Cavaleiro da Triste Figura, representando a carnavalização de uma carnavalização (SOUZA, 2003, p. 77). Em registro distinto, Haroldo de Campos compreende a ambiguidade do anti-herói como fator sintomático da funcionalidade que o sujeita a determinados lugares-comuns da fábula. Nesse sentido, percebe certa atenuação do psicologismo andradiano caraterístico de seus escritos anteriores. No canto de Macunaíma , tal atenuação configuraria um dado significativo de que o autor não se deixou evadir para os meandros de uma interioridade que pusesse em xeque a estrutura fabular. Pois, [...] “o ‘psicologismo’, que constitui a debilidade principal da teoria como da prática artística marioandradiana, encontra, por isso mesmo, um dique providencial no Macunaíma , onde o desenfreio e a diluição intimistas são controlados, como que subliminarmente, pelo constante pedal da articulação fabular de base: esta já oferece um módulo pré-operante de elaboração psicológica, objetivado na própria andadura e desenlace funcionais do raconto. As gamas da subjetividade, da interpretação pessoal, funcionam então como harmônicas desejadas e mesmo indispensáveis para a orquestração da peça a partir desse great bass ” (CAMPOS, 2008, p. 60). Enquanto na leitura proposta por Haroldo de Campos o agenciamento de formas modelares inibiria o psicologismo, para Gilda de Mello e Souza a decifração de certa psicologia nacional demonstraria a força alegórica da rapsódia de Mário de Andrade. Segundo a autora, a dubiedade constitutiva do herói sem nenhum caráter representaria a dimensão bipartida da própria cultura nacional. A dificuldade de apreensão de caracteres definidores manifesta-se na própria imagem do herói, já que “a substituição da aparência original de Macunaíma, negro e selvagem, pela figura bela e aristocrática do herói europeu que o nosso folclore herdou” poderia sugerir a “incapacidade brasileira de se afirmar com autonomia em relação ao modelo ocidental” (SOUZA, 2003, p. 62). O enredo, desse modo, auxiliaria o entendimento da tensão básica de nossa formação, metáfora eficiente do desterro que nos constitui.^5 (^5) Em registro cômico, Mário de Andrade constrói a cena da tentativa de resolução mística dos males nacionais nos pedidos feitos a Exu, em macumba do Rio de Janeiro. Tanto os pedidos quanto as concessões revelam certos traços formativos nacionais utilizados na narrativa fabular: “Depois que todos beijaram adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos e promessas. Um carniceiro pediu pra todos comprarem a carne doente dele e Exu consentiu. Um fazendeiro pediu pra não ter mais saúva nem maleita no sítio dele e Exu se riu falando que isso não consentia não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar de professora municipal para casarem e Exu consentiu. Um médico fez um discurso pedindo pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exu não consentiu” (ANDRADE, 2013, p. 80-81). Outra cena prenhe de significados ocorre quando os irmãos banham-se

Macunaíma entrincheirado

No segundo prefácio de Macunaíma , redigido em 1928, substitui-se a noção de entidade nacional pela de sintoma. O movimento é de relativização da obra, uma proposta de abertura interpretativa – portanto, aproximando-se da perspectiva haroldiana. Desse modo, a alegoria da formação nacional é reconhecida como fonte de boa parte da simbologia presente no enredo, contudo não esgotaria a leitura da rapsódia. Apesar de longa, a próxima citação serve-nos como exemplo do movimento de relativização e como síntese do tom desse segundo prefácio: Quanto às intenções que bordaram o esquerzo, tive intenções por demais. Só não quero é que tomem Macunaíma e outros personagens como símbolos. É certo que não tive intenção de sintetizar o brasileiro em Macunaíma nem o estrangeiro no gigante Piaimã. Apesar de todas as referências figuradas que a gente possa perceber em Macunaíma e o homem brasileiro, Venceslau Pietro Pietra e o homem estrangeiro, tem duas omissões voluntárias que tiram por completo o conceito simbólico dos dois: a simbologia é episódica, aparece por intermitência quando calha para tirar efeito cômico e não tem antítese. Venceslau Pietro Pietra e Macunaíma nem são antagônicos, nem se complementam e muito menos a luta entre os dois tem qualquer valor sociológico. Se Macunaíma consegue retomar o muiraquitã é porque eu carecia de fazer ele morrer no Norte. E é impossível de se ver na morte do gigante qualquer aparência de simbologia. As próprias alusões, sem continuidade ao elemento estrangeiro que o gigante faz nascer, concorrem para minha observação do sintoma cultural do livro: é uma complacência gozada, uma acomodação aceita tão conscientemente que a própria mulher dele é uma caapora e a filha vira estrela. Me repugnaria bem que se enxergasse em Macunaíma a intenção minha dele ser o herói nacional (ANDRADE, 2013, p. 226-227). A rasura, que Mário de Andrade efetua em seus prefácios, indica a angústia de compreender e controlar o alcance da própria obra, já que “o presente é uma neblina vasta”. A atmosfera histórica de fins da década de 1920 influencia na recepção alegórica de Macunaíma , pois o compromisso com as questões nacionais mobiliza grande parte da geração modernista e a seguinte. O ensaio de Mello e Souza, nesse sentido, opera na busca por um sentido histórico mais profundo, dando vasão a uma leitura donde se depreendem significados subterrâneos que extrapolam o próprio texto. Contudo, deve-se notar que a alegoria não pressupõe soluções ou um desfecho histórico desejado, mas sim, a incerteza. Diferentemente da euforia antropofágica que na água encantada originada pela marca de Sumé: “Quando o herói saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão de Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou: - Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz. Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou: - Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas! (ANDRADRE, 2013, p. 50).

Macunaíma entrincheirado

academicamente. Enquanto que o viés antropófago proposto por Haroldo de Campos visa apropriar-se inventivamente de um grande cânone do modernismo, minimizando deliberadamente as principais marcas identificadas pela crítica sociológica e enfatizando o uso de procedimentos de composição referendados por um repertório cosmopolita

  • nesse sentido, numa clara continuação de propostas engendradas pelo concretismo. Trata-se de um debate que envolve concepções diferentes sobre a tarefa do crítico e, como corolário, ênfases distintas sobre o legado literário nacional. A divergência exemplifica, desse modo, uma espécie de querela pelo controle de uma tradição já sedimentada e por possibilidades variadas de leituras sobre o passado. Referências ANDRADE, M. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1978. ______. Ensaio sobre a música brasileira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006. ______. Macunaíma , o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 2010a. _______. Metalinguagem & outras metas : ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2010b. _______. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 2008. _______. Teoria da poesia concreta : textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006. HANSEN, J. A. Alegoria : construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Atual,

MAGALHÃES, C. Os monstros e a questão racial na narrativa modernista brasileira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. MOTTA, L. T. Sobre a crítica literária brasileira no último meio século. Rio de Janeiro: Imago, 2002. PASSOS, J. L. Ruínas de linhas puras : quatro ensaios em torno a Macunaíma. São Paulo: Annablume, 1998. PIGLIA, R. El último lector. Buenos Aires: Anagrama, 2013. PROENÇA, M. C. Roteiro de Macunaíma. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1987. PROPP, V. As transformações dos contos fantásticos. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da Literatura : formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1971. SOUZA, G. M. O tupi e o alaúde : uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. SÜSSEKIND, F. Papéis colados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1993.