




Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Machado de Asssis simão
Tipologia: Notas de estudo
1 / 8
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
www.uol.com.br/cultvox
Contos, de Machado de Assis - Frei Simão
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: Virtual Bookstore http://www.elogica.com.br/virtualstore/ - a livraria virtual da Internet Brasileira. Texto scanneado e passado por processo de reconhecimento óptico de caracteres (OCR) por Renato Lima rlima@elogica.com.br, graças a doação a partir da Cognitive Software do seu excelente Cuneiform http://www.orcr.com.
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para bibvirt@futuro.usp.br.
Estamos em busca de patrocinadores e voluntários para nos ajudar a manter este projeto. Se você quer ajudar de alguma forma, mande um e-mail para bibvirt@futuro.usp.br e saiba como isso é possível.
Contos Machado de Assis
Frei Simão
CAPÍTULO PRIMEIRO
FREI SIMÃO era um frade da ordem dos Beneditinos. Tinha, quando morreu, cinqüenta anos em aparência, mas na realidade trinta e oito. A causa desta velhice prematura derivava da que o levou ao claustro na idade de trinta anos, e, tanto quanto se pode saber por uns frag- mentos de memórias que ele deixou, a causa era justa. Era frei Simão de caráter taciturno e desconfiado. Passava dias inteiros na sua cela, donde apenas saía na hora do refeitório e dos ofícios divinos. Não contava amizade alguma no convento, porque
não era possível entreter com ele os preliminares que fundam e con- solidam as afeições. Em um convento, onde a comunhão das almas deve ser mais pronta e mais profunda, frei Simão parecia fugir à regra geral. Um dos noviços pôs-lhe alcunha de urso, que lhe ficou, mas só entre os noviços, bem entendido. Os frades professos, esses, apesar do des- gosto que o gênio solitário de frei Simão lhes inspirava, sentiam por ele certo respeito e veneração. Um dia anuncia-se que frei Simão adoecera gravemente. Chama- ram-se os socorros e prestaram ao enfermo todos os cuidados neces- sários. A moléstia era mortal; depois de cinco dias frei Simão expirou. Durante estes cinco dias de moléstia, a cela de frei Simão esteve cheia de frades. Frei Simão não disse uma palavra durante esses cinco dias; só no último, quando se aproximava o minuto fatal, sen- tou-se no leito, fez chamar para mais perto o abade, e disse-lhe ao ouvido com voz sufocada e em tom estranho: -- Morro odiando a humanidade! O abade recuou até a parede ao ouvir estas palavras, e no tom em que foram ditas. Quanto a frei Simão, caiu sobre o travesseiro e passou à eternidade. Depois de feitas ao irmão finado as honras que se lhe deviam, a comunidade perguntou ao seu chefe que palavras ouvira tão sinis- tras que o assustaram. O abade referiu-as, persignando-se. Mas os frades não viram nessas palavras senão um segredo do passado, sem dúvida importante, mas não tal que pudesse lançar o terror no espí- rito do abade. Este explicou-lhes a idéia que tivera quando ouviu as palavras de frei Simão, no tom em que foram ditas, e acompanhadas do olhar com que o fulminou: acreditara que frei Simão estivesse doudo; mais ainda, que tivesse entrado já doudo para a ordem. Os hábitos da solidão e taciturnidade a que se votara o frade pareciam sintomas de uma alienação mental de caráter brando e pacífico; mas durante oito anos parecia impossível aos frades que frei Simão não tivesse um dia revelado de modo positivo a sua loucura; objetaram isso ao abade; nuas este persistia na sua crença. Entretanto procedeu-se ao inventário dos objetos que pertenciam ao finado, e entre eles achou-se um rolo de papéis convenientemente enlaçados, com este rótulo: "Memórias que há de escrever frei Simão de Santa Águeda, frade beneditino". Este rolo de papéis foi um grande achado para a comunidade curiosa. Iam finalmente penetrar alguma cousa no véu misterioso que
importância, não quero confiá-las ao nosso desleixado correio. Que- res ir no vapor ou preferes o nosso brigue? Esta pergunta era feita com grande tino. Obrigado a responder-lhe, o velho comerciante não dera lugar a que seu filho apresentasse objeções. O rapaz enfiou, abaixou os olhos e respondeu: -- Vou onde meu pai quiser. O pai agradeceu mentalmente a submissão do filho, que lhe pou- pava o dinheiro da passagem no vapor, e foi muito contente dar parte à mulher de que o rapaz não fizera objeção alguma. Nessa noite os dous amantes tiveram ocasião de encontrar-se sós na sala de jantar. Simão contou a Helena o que se passara. Choraram ambos algu- mas lágrimas furtivas, e ficaram na esperança de que a viagem fosse de um mês, quando muito. À mesa do chá, o pai de Simão conversou sobre a viagem do rapaz, que devia ser de poucos dias. Isto reanimou as esperanças dos dous amantes. O resto da noite passou-se em conselhos da parte do velho ao filho sobre a maneira de portar-se na casa do correspon- dente. Às dez horas, como de costume, todos se recolheram aos aposentos. Os dias passaram-se depressa. Finalmente raiou aquele em que devia partir o brigue. Helena saiu de seu quarto com os olhos ver- melhos de chorar. Interrogada bruscamente pela tia, disse que era uma inflamação adquirida pelo muito que lera na noite anterior. A tia prescreveu-lhe abstenção da leitura e banhos de água de malvas. Quanto ao tio, tendo chamado Simão, entregou-lhe uma carta para o correspondente, e abraçou-o. A mala e um criado estavam prontos. A despedida foi triste. Os dous pais sempre choraram alguma cousa, a rapariga muito. Quanto a Simão, levava os olhos secos e ardentes. Era refratário às lágrimas; por isso mesmo padecia mais. O brigue partiu. Simão, enquanto pôde ver terra, não se retirou de cima; quando finalmente se fecharam de todo as paredes do cár- cere que anda, na frase pitoresca de Ribeyrolles, Simão desceu ao seu camarote, triste e com o coração apertado. Havia como um pres- sentimento que lhe dizia interiormente ser impossível tornar a ver sua prima. Parecia que ia para um degredo. Chegando ao lugar do seu destino, procutou Simão o correspon- dente de seu pai e entregou-lhe a carta. O Sr. Amaral leu a carta,
fitou o rapaz e, depois de algum silêncio, disse-lhe, volvendo a carta: -- Bem, agora é preciso esperar que eu cumpra esta ordem de seu pai. Entretanto venha morar para a minha casa. -- Quando poderei voltar? perguntou Simão. -- Em poucos dias, salvo se as cousas se complicarem. Este salvo, posto na boca de Amaral como incidente, era a oração principal. A carta do pai de Simão versava assim:
Meu caro Amaral, Motivos ponderosos me obrigam a mandar meu filho desta cidade. Rete- nha-o por lá como puder. O pretexto da viagem á ter eu necessidade de ultimar alguns negócios com você, o que dirá ao pequeno, fazendo-lhe sempre crer que a demora é pouca ou nenhuma. Você, que teve na sua adolescência a triste idéia de engendrar romances, vá inventando circunstâncias e ocorrências impre- vistas, de modo que o rapaz não me torne cá antes de segunda ordem. Sou, como sempre, etc.
CAPÍTULO III
PASSARAM-SE DIAS e dias, e nada de chegar o momento de voltar à casa paterna. O ex-romancista era na verdade fértil, e não se cansava de inventar pretextos que deixavam convencido o rapaz. Entretanto, como o espírito dos amantes não é menos engenhoso que o dos romancistas, Simão e Helena acharam meio de se escre- verem, e deste modo podiam consolar-se da ausência, com presença das letras e do papel. Bem diz Heloísa que a arte de escrever foi inventada por alguma amante separada do seu amante. Nestas car- tas juravam-se os dous sua eterna fidelidade. No fim de dous meses de espera baldada e de ativa correspon- dência, a tia de Helena surpreendeu uma carta de Simão. Era a vigé- sima, creio eu. Houve grande temporal em casa. O tio, que estava no escritório, saiu precipitadamente e tomou conhecimento do negó- cio. O resultado foi proscrever de casa tinta, penas e papel, e instituir vigilância rigorosa sobre a infeliz rapariga. Começaram pois a escassear as cartas ao pobre deportado. Inqui- riu a causa disto em cartas choradas e compridas; mas como o rigor fiscal da casa de seu pai adquiria proporções descomunais, acontecia que todas as cartas de Simão iam parar às mãos do velho, que, depois de apreciar o estilo amoroso de seu filho, fazia queimar as ardentes epístolas.
FREI Simão de Santa Águeda foi obrigado a ir à província natal em missão religiosa, tempos depois dos fatos que acabo de narrar. Preparou-se e embarcou. A missão não era na capital, mas no interior. Entrando na capital, pareceu-lhe dever ir visitar seus pais. Estavam mudados física e mo- ralmente. Era com certeza a dor e o remorso de terem precipitado seu filho à resolução que tomou. Tinham vendido a casa comercial e viviam de suas rendas. Receberam o filho com alvoroço e verdadeiro amor. Depois das lágrimas e das consolações, vieram ao fim da viagem de Simão. -- A que vens tu, meu filho? -- Venho cumprir uma missão do sacerdócio que abracei. Venho pregar, para que o rebanho do Senhor não se arrede nunca do bom caminho. -- Aqui na capital? -- Não, no interior. Começo pela vila de ***. Os dous velhos estremeceram; mas Simão nada viu. No dia se- guinte partiu Simão, não sem algumas instâncias de seus pais para que ficasse. Notaram eles que seu filho nem de leve tocara em Hele- na. Também eles não quiseram magoá-lo falando em tal assunto. Daí a dias, na vila de que falara frei Simão, era um alvoroço para ouvir as prédicas do missionário. A velha igreja do lugar estava atopetada de povo. À hora anunciada, frei Simão subiu ao púlpito e começou o dis- curso religioso. Metade do povo saiu aborrecido no meio do sermão. A razão era simples. Avezado à pintura viva dos caldeirões de Pedro Botelho e outros pedacinhos de ouro da maioria dos pregadores, o povo não podia ouvir com prazer a linguagem simples, branda, per- suasiva, a que serviam de modelo as conferências do fundador da nossa religião. O pregador estava a terminar, quando entrou apressadamente na igreja um par, marido e mulher: ele, honrado lavrador, meio reme- diado com o sítio que possuía e a boa vontade de trabalhar; ela, se- nhora estimada por suas virtudes, mas de uma melancolia invencível. Depois de tomarem água-benta, colocaram-se ambos em lugar donde pudessem ver facilmente o pregador. Ouviu-se então um grito, e todos correram para a recém-chegada, que acabava de desmaiar. Frei Simão teve de parar o seu discurso, enquanto se punha temia ao incidente. Mas, por uma aberta que a turba deixava, pôde ele ver o rosto da desmaiada.
Era Helena. No manuscrito do frade há uma série de reticências dispostas em oito linhas. Ele próprio não sabe o que se passou. Mas o que se passou foi que, mal conhecera Helena, continuou o frade o discurso. Era então outra cousa: era um discurso sem nexo, sem assunto, um verdadeiro delírio. A consternação foi geral.
O DELÍRIO de frei Simão durou alguns dias. Graças aos cuidados, pôde melhorar, e pareceu a todos que estava bom, menos ao médico, que queria continuar a cura. Mas o frade disse positivamente que se retirava ao convento, e não houve forças humanas que o detivessem. O leitor compreende naturalmente que o casamento de Helena fora obrigado pelos tios. A pobre senhora não resistiu à comoção. Dous meses depois mor- reu, deixando inconsolável o marido, que a andava com veras. Frei Simão, recolhido ao convento, tornou-se mais solitário e taci- turno. Restava-lhe ainda um pouco da alienação. Já conhecemos o acontecimento de sua morte e a impressão que ela causara ao abade. A cela de frei Simão de Santa Águeda esteve muito tempo reli- giosamente fechada. Só se abriu, algum tempo depois, para dar en- trada a um velho secular, que por esmola alcançou do abade acabar os seus dias na convivência dos médicos da alma. Era o pai de Simão. A mãe tinha morrido. Foi crença, nos últimos anos de vida deste velho, que ele não estava menos doudo que frei Simão de Santa Águeda.