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Machado de Asssis quinze dias
Tipologia: Notas de estudo
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Não perca as partes importantes!
História de Quinze Dias, de Machado de Assis
Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística http://www.cce.ufsc.br/~alckmar/literatura/literat.html Universidade Federal de Santa Catarina
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas. Para maiores informações, escreva para bibvirt@futuro.usp.br.
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História de Quinze Dias Machado de Assis
[1 julho]
I
Dou começo à crônica no momento em que o Oriente se esboroa e a poesia parece expirar às mãos grossas do vulgacho. Pobre Oriente! Mísera poesia!
Um profeta surgiu em uma tribo árabe, fundou uma religião, e lançou as bases de um império; império e religião têm uma só doutrina, uma só, mas forte como o granito, implacável como a cimitarra, infalível como o Alcorão.
Passam os séculos, os homens, as repúblicas, as paixões; a história faz-se dia por dia, folha a folha; as obras humanas alteram-se, corrompem-se, modificam-se, transformam-se. Toda a superfície civilizada da terra é um vasto renascer de coisas e idéias. Só a idéia muçulmana estava de pé; a política do Alcorão vivia com os paxás, o harém, a cimitarra e o resto.
Um dia, meia dúzia de rapazes libertinos iscados de João Jacques e de Benjamim Constant, ainda quentes do último discurso de Gladstone ou do mais recente artigo do Courrier de l'Europe; meia dúzia de rapazes, digo eu, resolveram dar com o
monumento bizantino em terra, abrir o ventre ao fatalismo e arrancar de lá uma carta constitucional
Pelas barbas do Profeta! Há nada menos maometano do que isto? Abdul-Aziz, o último sultão ortodoxo, quis resistir ao 89 turco; mas não tinha sequer o exército, e caiu; e, uma vez caído, deitou-se da janela da vida à rua da eternidade.
O Alcorão fala de dois anjos negros de olhos azuis? que descem a interrogar os mortos. O ex-padixá foi naturalmente inquirido como os outros:
—Quem é teu senhor?
—Alá.
__Tua religião?
—lslã.
—Teu profeta? __Maomé.
—Há um só deus e um só profeta?
—Um só. La illah il Allah, ve Muhameden ressul Allah.
—Perfeito. Acompanha-nos.
O pobre sultão obedeceu.
Chegando à porta das delícias eternas achou o profeta sentado em coxins espirituais, resguardado por um guarda-sol metafísico.
—Que vens cá fazer? —perguntou ele.
Abdul explicou-se, referiu o seu infortúnio; mas o profeta atalhou-o, clamando:
—Cala-te! És mais do que isso, és o destruidor da lei, o inimigo do Islã. Tu fizeste possível o gérmen corruptor das minhas grandes instituições, pior que a fé de Cristo, pior que a inveja dos russos, pior que a neve dos tempos; tu fizeste o gérmen constitucional. A Turquia vai ter uma câmara, um ministério responsável,
Dizem os jornais que o serviço foi preparado às pressas; que o escrivão do registro teve de interromper o alistamento dos votantes para ir registrar o óbito de Manuel da Gata.
Ressuscitado este, desfez o enterro, mas não se desfez a nota do cemitério.
Manuel da Gata pode viver cem anos mais; civilmente está, não só morto, mas até sepultado no cemitério, cova número tantos.
Quem nos afiança que isto não é uma trica eleitoral?
Manuel da Gata morreu; tanto morreu, que foi enterrado. Se ele aparecer a reclamar o seu direito, dir-lhe-ão que não é ele; que o Gata autêntico jaz na eternidade; que ele é um Gata apócrifo, uma contrafação do verdadeiro Gata, que Deus tem!
Esboço apenas a idéia; os políticos que lhe dêem agora a cor e o movimento.
O que eu não esbocei, decerto, foi o jantar dado ao Blest Gana. Qual esboçar!
Saiu-me acabado... dos dentes, acabado como ele merecia que fosse, por que era escolhido.
A imprensa da capital brilhou; meteu-se à testa de uma idéia de simpatia, e levou-a por diante, mostrando-se capaz de união e perseverança.
O jantar era o menos; o mais, o essencial era manifestar a um cavaleiro digno de todos os respeitos e afeições a saudade que ele ia deixar entre os brasileiros, e foi isso o que claramente e eloqüentemente disseram por parte da imprensa um jornalista militante, Quintino Bocaiúva, e um antigo jornalista, o Visconde do Rio Branco.
Respeito as razões que teve o Chile para não fazer duas da única legação que tem para cá dos Andes, ficando exclusivamente no Rio de Janeiro o ministro que por tantos anos representou honestamente o seu país; mas sempre lhe digo que nos levou um amigo velho, que nos amava e a quem amávamos como ele merecia.
Blest Gana costumava dizer, nas horas de bom humor, que era poeta de vocação e diplomata de ocasião.
Era injusto consigo mesmo; a vocação era igual em ambos os ramos. Somente, a diplomacia abafava o poeta, que não podia acudir ao mesmo tempo a uma nota que passava e a uma estrofe que vinha do céu.
Ainda se estivesse aqui só, vá; sempre lhe daríamos algum tempo de poetar. Mas ache um homem algum lazer poético andando a braços com a Patagônia e o Dr. Alsina!
Sou amigo do ilustre chileno há dez anos; e ainda possuo e possuirei um retrato seu, com esta graciosa quadrinha:
Verás en ese retrato De semejanza perfecta, a imagen de un mal poeta Y poco peor literato.
Nem mau poeta, nem pior literato; excelente em ambas as necessidade política no- lo levasse.
Sobre notas tivemos esta quinzena duas espécies, as falsas e as da ópera italiana,— um velho calembour, rafado, magro e decrépito que há de viver ainda muito tempo. Por quê? Porque acode logo à boca.
Opera italiana é uma maneira de falar. Reuniram-se alguns artistas, que vivem há muito entre nós, e cantavam o Trovador; prometem cantar algumas óperas mais.
São bons? Não sei, porque não os fui ainda ouvir; mas das notícia benignas dos jornais, concluo que,—um não cantou mal,—outro interpretou bem algumas passagens, o coro de mulheres esteve fraquinho e o de homens foi bem sofrível e não se achava mal ensaiado.
São as próprias expressões de um dos mais competentes críticos.
Não repetirei o dito em relação ao homem que toca rabeca com os pés; seria cair numa repetição de mau gosto.
Não direi que já ouvi o Gravenstein ou o Muniz Barreto, porque além de tocar, o dito homem penteia-se, acende um charuto, joga cartas, desarrolha uma garrafa, uma infinidade de coisas que não fazem os meus nem os pés do leitor.
Há outro que engole uma espada, e uma dama que, à força de saltos mortais, chegará à imortalidade.
Um correspondente do Piauí escreve para esta Corte as seguintes linhas: "Esteve por alguns dias na chefatura o juiz de direito da capital, Dr. Jesuíno Martins, que etc." Tenho lido outras vezes que a chefança perdeu um honrado magistrado; não poucas que mal anda o chefado nas mãos de Fulano; outras enfim que a chefação vai caminhando ao abismo.
Será preciso observar a todos os cavalheiros que cometem semelhante descuido, que não há chefança , nem chefado , nem chefação , nem chefatura, mas tão-somente chefia?
[1 agosto]
I
HOJE POSSO espeitorar meia dúzia de bernardices sem que o leitor dê por elas.
A razão não é outra senão a de ser o leitor um homem que se respeita, ama o belo, possui costumes elegantes: conseguintemente, não tem orelhas para crônicas, nem outras cousas ínfimas.
Suas orelhas andam de molho, reservam-se para as grandes e belas vozes que estão prestes a chegar do Rio da Prata.
Antes de ir mais longe, convém advertir que o fato de nos virem as celebridades líricas do Rio da Prata é um fenômeno que, em 1850, seria puramente milagre; mas que hoje, mediante os progressos do dia, parece a cousa mais natural do mundo.
Há incrédulos, é verdade; há ombros que se levantam, espíritos que dão seus muxoxos de dúvida.
Mas qual foi a verdade nova que ainda não encontrou resistências formais?
Colombo andou mendigando uma caravela para descobrir este continente; Galileu teve de confessar que a única bola que girava era a sua. Estes dois exemplos ilustres devem servir de algum lenitivo aos cantores platenses.
Demais os incrédulos se são duros, são em ínfimo número; número verdadeiramente ridículo. Porquanto, ainda, os cantores não deram amostra, já não digo de uma nota, mas somente de um espirro ou de um aperto de mão, e já os bilhetes estão todos tomados, a preços de primíssimo cartelo.
Donde os filósofos podem concluir com segurança que as vozes não são a mesma coisa que os nabos. Credo, quia absurdum , era a máxima de Santo Agostinho. Credo, quia carissimum , é a do verdadeiro dilettanti.
Ao preço elevado dos bilhetes corresponde os dos vencimentos dos cantores. Só o tenor recebe por mês oito contos e oitocentos mil-réis! Não sei que haja na crítica moderna melhor definição de um tenor do que esta dos oito contos, a não ser outra de dez ou quinze.
Que me importa agora ouvir as explicações técnicas dos críticos para saber se o tenor tem grande voz e profundo estudo? Já sei, já o sabemos todos; ele tem uma voz de oito contos e oitocentos; devo aplaudi-lo com ambas as luvas, até arrebentá- las.
Vejam a superioridade da música sobre a política. Cavour fez a Itália—um pau por um olho, e não sonhou nunca receber ordenado tamanho. Mas um jovem de olho azul e bigode louro, tendo a boa fortuna de engolir um canário ou outra ave equivalente, só por esse motivo, c por outros que seria longo desfiar, mete Cavour num chinelo. Cavour morreu talvez com pena de não ter sido barítono.
talento, é uma erudição de primeira ordem, e no vigor da idade retira-se a uma quinta, faz da banca um lagar, engarrafa os seus merecimentos, entra em concorrência com o Sr. N. N. e nega ao mundo o que lhe não pertence a ele!
Não foi esse o único prodígio da quinzena. Além dessa e da companhia lírica (a 8:000$000 cada garganta), houve o projeto de constituição turca, dado pelo Jornal do Comércio.
Não sei se tal constituição chegará a reger a Turquia; mas foi proposta, e tanto basta para deixar-me de boca aberta.
O art. 1.° desse documento diz que o império otomano como Estado não tem religião: reconhece todos os cultos, protege-os e subvenciona-os.
Eu palpo-me, esfrego os olhos, dou murros no peito e na cabeça, agito os braços, passeio de um lado para outro, a fim de certificar-me que não estou sonhando. O Alcorão subvencionando o Evangelho! O janízaro do crê ou morre reconhecendo todos os cultos e dando a cada um os meios de subsistência! Se isto não é o fim do mundo, é pelo menos o penúltimo capítulo. Que abismo entre Omar e Mourad V!
Alegre-se quem quiser; eu fico triste. A tolerância dos cultos tira-me a cor local da Turquia, desnatura a história, estabelece certas acomodações entre o Alcorão e o céu. Substitui-se a Sublime Porta por uma trapeira constitucional.
No meio de tanta novidade — azeite herculano, ópera italiana, liberdade turca, não quis ficar atrás o Sr. Luís Sacchi. Não conheci Luís Sacchi; li porém o testamento que ele deixou e os jornais deram a lume.
Ali diz o finado que seu corpo deve ir em rede para o cemitério, levado por seus escravos, e que na sepultura há de se lhe gravar este epitáfio: "Aqui jaz Luís Sacchi que pela sua sorte foi original em vida e quis sê-lo depois da sua morte".
Gosto disto! A morte é coisa tão geralmente triste, que não se perde nada em que alguma vez apareça alegre. Luís Sacchi não quis fazer do seu passamento um
quinto ato de tragédia, uma coisa lúgubre, obrigada a sangue e lágrimas. Era vulgar: ele queria separar-se do vulgo. Que fez? Inventou um epitáfio, talvez pretensioso, mas jovial. Depois dividiu a fortuna entre os escravos, deixou o resto aos parentes, embrulhou-se na rede e foi dormir no cemitério.
Não direi que haja profunda originalidade neste modo de retirar-se do mundo. Mas, em suma, a intenção é que salva, e se o reino dos céus também é dos originais, lá deve estar o testador italiano.
Amém!
Na hora em que escrevo estas linhas, preparo-me para ir ver um sapatinho de cetim,—o sapatinho que Dona Lucinda nos trouxe da Europa e que o Furtado Coelho vai mostrar ao público fluminense.
Não vi ainda o sapato e já o acho um primor. Vejam o que é parcialidade! Juro a todos os deuses que o sapatinho foi roubado à mais bela das sultanas do padixá, ou talvez à mais ideal das huris do profeta. Imagino-o todo de arminho, cosido com cabelos da aurora, forrado com um pedacinho do céu... Que querem? Eu creio, que há de ser assim, porque é impossível que o Furtado nos trouxesse um mau sapato.
Mas que o trouxesse! Eu consentia nisso, e no mais que fosse de seu gosto, mediante a condição de que não havia deixar-nos outra vez. Entendamo-nos; ele pertence-nos. Viu muita coisa. Teve muito aplauso, muita festa, mas a aurora das suas glórias rutilou neste céu fluminense, onde, se não rutilou também a do talento de sua esposa, já recebeu muitos dos seus melhores raios juvenis.
Que fiquem; é o desejo de todos e meu.
[15 agosto]
I
fosse o que eu quero dizer é que o ano meu amigo brilha pela ausência na festa do Prado Fluminense.
Eu sou obrigado a confessar que também lá não ponho os pés em primeiro lugar porque os tenho moídos, em segundo lugar porque não gosto de ver correr cavalos nem touros. Eu gosto de ver correr o tempo e as coisas; só isso. Às vezes corro eu também atrás da sorte grande, e correria adiante de um cacete, sem grande esforço. Quanto a ver correr cavalos.
Vou dizer a minha opinião toda.
Cada homem simpatiza com um animal. Há quem goste de cães: eu adoro-os. Um cão, sobretudo se me conhece, se não guarda a chácara de algum amigo, aonde vou, se não está dormindo, Se não é leproso, se não tem dentes, oh! um cão é adorável.
Outros amam os gatos. São gostos; mas sempre notarei que esse quadrúpede pachorrento e voluptuoso é sobretudo amado dos homens e mulheres de certa idade.
Os pássaros tem seus crentes. Alguns gostam de todo o bicho careta. Não são raros os que gostam do bicho de cozinha.
Eu não gosto do cavalo.
Não gosto? Detesto-o; acho-o o mais intolerável dos quadrúpedes. É um fátuo, é um pérfido, é um animal corruto. Sob pretexto de que os poetas o têm cantado de um modo épico ou de um modo lírico; de que é nobre; amigo do homem; de que vai à guerra; de que conduz moças bonitas; de que puxa coches; sob o pretexto de uma infinidade de complacências que temos para com ele, o cavalo parece esmagar-nos com sua superioridade- Ele olha para nós com desprezo, relincha, prega-nos sustos, faz Hipólito em estilhas. É um elegante perverso, um tratante bem educado; nada mais.
Vejam o burro. Que mansidão! Que filantropia! Esse puxa a carroça que nos traz água, faz andar a nora, e muitas vezes o genro, carrega fruta, carvão e hortaliças, puxa o bond , coisas todas úteis e necessárias. No meio de tudo isso apanha e não se volta contra quem lhe dá. Dizem que é teimoso. Pode ser; algum defeito é natural que tenha um animal de tantos e tão variados méritos. Mas ser teimoso é algum
pecado mortal? Além de teimoso, escoiceia alguma vez; mas o coice, que no cavalo é uma perversidade, no burro é um argumento, ultima ratio.
E por falar neste animal, publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa população não sabem ler.
Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem retórica.
Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu , querendo falar do nosso país, dirá:
—Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino. força é que este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que decida entre mim e o Sr. Fidé1is Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos superior a todos os direitos.
A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
—A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler; desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é ignorar o Sr. Meireles Queles; é não saber o que ele vale, o que ele pensa o que ele quer; nem se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram: sem saber porque nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, - por divertimento. A Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma revolução ou um golpe de Estado.
Replico eu:
—Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições...
ESTE ANO parece que remoçou o aniversário da Independência. Também os aniversários envelhecem ou adoecem, até que se desvanecem ou perecem. O dia 7 por ora está muito criança.
Houve realmente mais entusiasmo este ano. Uma sociedade nova veio festejara data memorável; e da emulação que houver entre as duas só teremos que lucrar todos nós.
Nós temos fibra patriótica; mas um estimulante de longe em longe não faz mal a ninguém. Há anos em que as províncias nos levam vantagem nesse particular; e eu creio que isso vem de haver por lá mais pureza de costumes ou não sei que outro motivo. Algum há de haver. Folgo de dizer que este ano não foi assim. As iluminações foram brilhantes, e quanto povo nas ruas, suponho que todos os dez ou doze milhões que nos dá a Repartição de Estatística estavam concentrados nos largos de S. Francisco e da Constituição e ruas adjacentes. Não morreu, nem pode morrer a lembrança do grito do Ipiranga.
Grito do Ipiranga? Isso era bom antes de um nobre amigo, que veio reclamar pela Gazeta de Notícias contra essa lenda de meio século.
Segundo o ilustrado paulista não houve nem grito nem Ipiranga.
Houve algumas palavras, entre elas a Independência ou Morte, —as quais todas foram proferidas em lugar diferente das margens do Ipiranga.
Pondera o meu amigo que não convém, a tão curta distância, desnaturar a verdade dos fatos.
Ninguém ignora a que estado reduziram a História Romana alguns autores alemães, cuja pena, semelhante a uma picareta, desbastou os inventos de dezoito séculos, não nos deixando mais que uma certa porção de sucessos exatos.
Vá feito! O tempo decorrido era longo e a tradição estava arraigada como uma idéia fixa.
Demais, que Numa Pompílio houvesse ou não existido é coisa que não altera sensivelmente a moderna civilização.
Certamente é belo que Lucrécia haja dado um exemplo de castidade às senhoras de todos os tempos; mas se os escavadores modernos me provarem que Lucrécia é uma ficção e Tarquínio uma hipótese, nem por isso deixa de haver castidade...e pretendentes.
Mas isso é história antiga.
O caso do Ipiranga data de ontem. Durante cinqüenta e quatro anos temos vindo a repetir uma coisa que o dito meu amigo declara não ter existido.
Houve resolução do Príncipe D. Pedro, independência e o mais; mas não foi positivamente um grito, nem ele se deu nas margens do célebre ribeiro.
Lá se vão as páginas dos historiadores; e isso é o menos.
Emendam-se as futuras edições. Mas os versos? Os versos emendam-se com muito menos facilidade.
Minha opinião é que a lenda é melhor do que a história autêntica. A lenda resumia todo o fato da independência nacional, ao passo que a versão exata o reduz a uma coisa vaga e anônima. Tenha paciência o meu ilustrado amigo. Eu prefiro o grito do Ipiranga; é mais sumário, mais bonito e mais genérico.
Não foi igualmente bonito nem sumário o rolo do Largo de São Francisco, no dia
O referido rolo, verdadeiro hors-d'oeuvre na festa, foi uma representação da guerra do Oriente.
Os urbanos fizeram de sérvios e os imperiais marinheiros de turcos.
A estação do largo foi a Belgrado.
Na hora em que escrevo, tenho à minha espera as luvas para ir aos Huguenotes. Acho que a coisa há de sair boa; entretanto veremos.
Admirei-me algumas linhas atrás, da prodigalidade do público em relação à companhia Ferrari. Pois não havia de que, visto que, apesar dela, aí está a do Sr. Torresi, cujas assinaturas estão tomadas todas.
Dentro de poucos dias não haverá meio de dar os bons dias, pagar uma letra ou pedir uma fatia de presunto, sem ser por música.
A vida fluminense vai ser uma partitura. a imprensa uma orquestra, a maçonaria um coro de punhais.
Amanhã almoçaremos em lá menor; calçaremos as botas em três por quatro, e as ruas a três por dois.
O Sr. Torresi promete dar tudo o que o Sr. Ferrari nos der, e mais o Salvador Rosa.
Também promete moças bonitas, cujos retratos já estão na casa do Sr. Castelões, em frente às suas rivais.
Pela imprensa disputa-se a questão de saber qual é o primeiro teatro da capital, se o de S. Pedro, se o Dom Pedro II.
De um e outro lado afirma-se com a mesma convicção que o teatro do adversário é inferior.
Está-me isto a parecer a mania dos primeiros atores; o 1.° ator Fulano, o 1.° ator Sicrano, o 1.° ator Paulo, o 1.° ator Sancho, o 1.° ator Martinho.
O que sairá daqui não sei; mas se a coisa não prova entusiasmo lírico, não sei que mais querem os empresários.
Talvez sejam tão exigentes como os moradores da Rua das Laranjeiras, que estão a bradar que a mandem calçar, como se não bastasse morar em rua de nome tão poético
E certo que, em dias de chuva, a rua fica pouco menos lamacenta que qualquer sítio do Paraguai. Também é verdade que duas pessoas, necessitadas de comunicar uma coisa à outra, com urgência podem vir desde o Cosme Velho até o Largo do Machado, cada uma de sua banda, sem achar lugar em que atravessem a rua.
Finalmente, não se contesta que sair do bond, em qualquer outra parte da dita rua, é empresa só comparável à passagem do mar Vermelho, que ali é escuro.
Tudo isso é verdade. Mas em compensação, que bonito nome! Laranjeiras! Faz lembrar Nápoles; tem uns ares de idílio: a sombra de Teócrito deve por força vagar naquelas imediações.
Não se pode ter tudo,—nome bonito e calçamento; dois proveitos não cabem num saco. Contentem-se os moradores com o que têm, e não peçam mais, que é ambição.
Suponha o público que é um sol, e olhe em volta de si: verá o Globo a rodeá-lo, mais forte do que era até há pouco e prometendo longa vida.
Eu gosto de todos os globos, desde aqueles (lácteos) que tremiam quando Vênus entrou no céu (viu Lusíadas), até o da Rua dos Ourives, que é um Globo como se quer.
Falando no sentido natural, direi que o Globo honra a nossa imprensa e merece ser coadjuvado por todos os que amam essa alavanca do progresso, a mais potente de todas.
Hoje a imprensa fluminense é brilhante. Contamos órgãos importantes, neutros ou políticos, ativos, animados e perseverantes. Entre eles ocupa lugar distinto o Globo, a cujo talentoso redator e diretor, Sr.
Quintino Bocaiúva, envio meus emboras, não menos que ao seu folhetinista Oscar d'Alva, cujo verdadeiro nome anda muita gente ansiosa para saber qual seja.