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Ocidentais, Machado de Assis, Notas de estudo de Literatura Brasileira

Machado de Asssis ocidentais

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 10/09/2009

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paulo-karvan-9 🇧🇷

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Ocidentais
Machado de Assis
O DESFECHO
Prometeu sacudiu os braços manietados
E súplice pediu a eterna compaixão,
Ao ver o desfilar dos séculos que vão
Pausadamente, como um dobre de finados.
Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,
Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...
Súbito, sacudindo as asas de tufão,
Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.
Pela primeira vez a víscera do herói,
Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,
Deixou de renascer às raivas que a consomem.
Uma invisível mão as cadeias dilui;
Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
CÍRCULO VICIOSO
Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
"Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:
"Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:
"Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!"
Mas o sol, inclinando a rútila capela:
"Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"
UMA CRIATURA
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
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Ocidentais

Machado de Assis

O DESFECHO

Prometeu sacudiu os braços manietados E súplice pediu a eterna compaixão, Ao ver o desfilar dos séculos que vão Pausadamente, como um dobre de finados. Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião, Uns cingidos de luz, outros ensangüentados... Súbito, sacudindo as asas de tufão, Fita-lhe a água em cima os olhos espantados. Pela primeira vez a víscera do herói, Que a imensa ave do céu perpetuamente rói, Deixou de renascer às raivas que a consomem. Uma invisível mão as cadeias dilui; Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui; Acabara o suplício e acabara o homem.

CÍRCULO VICIOSO

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume: "Quem me dera que fosse aquela loura estrela, Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!" Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme: "Pudesse eu copiar o transparente lume, Que, da grega coluna à gótica janela, Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela" Mas a lua, fitando o sol, com azedume: "Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela Claridade imortal, que toda a luz resume!" Mas o sol, inclinando a rútila capela: "Pesa-me esta brilhante auréola de nume... Enfara-me esta azul e desmedida umbela... Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"

UMA CRIATURA

Sei de uma criatura antiga e formidável, Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável. Habita juntamente os vales e as montanhas; E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. Traz impresso na fronte o obscuro despotismo; Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, Parece uma expansão de amor e de egoísmo. Friamente contempla o desespero e o gozo, Gosta do colibri, como gosta do verme, E cinge ao coração o belo e o monstruoso. Para ela o chacal é, como a rola, inerme; E caminha na terra imperturbável, como Pelo vasto areal um vasto paquiderme. Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo Vem a folha, que lento e lento se desdobra, Depois a flor, depois o suspirado pomo. Pois essa criatura está em toda a obra: Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto; E é nesse destruir que as suas forças dobra. Ama de igual amor o poluto e o impoluto; Começa e recomeça uma perpétua lida, E sorrindo obedece ao divino estatuto. Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida. A ARTUR DE OLIVEIRA, ENFERMO Sabes tu de um poeta enorme Que andar não usa No chão, e cuja estranha musa, Que nunca dorme, Calça o pé, melindroso e leve, Como uma pluma, De folha e flor, de sol e neve, Cristal e espuma; E mergulha, como Leandro, A forma rara No Pó, no Sena, em Guanabara E no Escamandro; Ouve a Tupã e escuta a Momo, Sem controvérsia, E tanto ama o trabalho, como

Como o riso de um deus enfermo Que se aborrece Da divindade, e que apetece Também um termo...

MUNDO INTERIOR

Ouço que a Natureza é uma lauda eterna De pompa, de fulgor, de movimento e lida, Uma escala de luz, uma escala de vida De sol à ínfima luzerna. Ouço que a natureza, - a natureza externa, - Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna Entre as flores da bela Armida. E contudo, se fecho os olhos, e mergulho Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho Rola a vida imortal e o eterno cataclismo, E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme, Um segredo que atrai, que desafia - e dorme.

O CORVO

( EDGAR POE )

Em certo dia, à hora, à hora Da meia-noite que apavora, Eu, caindo de sono e exausto de fadiga, Ao pé de muita lauda antiga, De uma velha doutrina, agora morta, Ia pensando, quando ouvi à porta Do meu quarto um soar devagarinho, E disse estas palavras tais: "É alguém que me bate à porta de mansinho; Há de ser isso e nada mais". Ah! bem me lembro! bem me lembro! Era no glacial dezembro; Cada brasa do lar sobre o chão refletia A sua última agonia. Eu, ansioso pelo sol, buscava Sacar daqueles livros que estudava Repouso (em vão!) à dor esmagadora Destas saudades imortais Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.

E que ninguém chamará mais. E o rumor triste, vago, brando Das cortinas ia acordando Dentro em meu coração um rumor não sabido, Nunca por ele padecido. Enfim., por aplacá-lo aqui no peito, Levantei-me de pronto, e: "Com efeito, (Disse) é visita amiga e retardada Que bate a estas horas tais. É visita que pede à minha porta entrada: Há de ser isso e nada mais". Minh'alma então sentiu-se forte; Não mais vacilo e desta sorte Falo: "Imploro de vós,- ou senhor ou senhora, Me desculpeis tanta demora. Mas como eu, precisando de descanso, Já cochilava, e tão de manso e manso Batestes, não fui logo, prestemente, Certificar-me que aí estais". Disse; a porta escancaro, acho a noite somente, Somente a noite, e nada mais. Com longo olhar escruto a sombra, Que me amedronta, que me assombra, E sonho o que nenhum mortal há já sonhado, Mas o silêncio amplo e calado, Calado fica; a quietação quieta; Só tu, palavra única e dileta, Lenora, tu, como um suspiro escasso, Da minha triste boca sais; E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço; Foi isso apenas, nada mais. Entro coa alma incendiada. Logo depois outra pancada Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela: "Seguramente, há na janela Alguma cousa que sussurra. Abramos, Eia, fora o temor, eia, vejamos A explicação do caso misterioso Dessas duas pancadas tais. Devolvamos a paz ao coração medroso, Obra do vento e nada mais". Abro a janela, e de repente, Vejo tumultuosamente Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.

Que dos seus cantos usuais Só lhe ficou, na amarga e última cantiga, Esse estribilho: "Nunca mais". Segunda vez, nesse momento, Sorriu-me o triste pensamento; Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo; E mergulhando no veludo Da poltrona que eu mesmo ali trouxera Achar procuro a lúgubre quimera, A alma, o sentido, o pávido segredo Daquelas sílabas fatais, Entender o que quis dizer a ave do medo Grasnando a frase: "Nunca mais". Assim posto, devaneando, Meditando, conjeturando, Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava, Sentia o olhar que me abrasava. Conjeturando fui, tranqüilo a gosto, Com a cabeça no macio encosto Onde os raios da lâmpada caíam, Onde as tranças angelicais De outra cabeça outrora ali se desparziam, E agora não se esparzem mais. Supus então que o ar, mais denso, Todo se enchia de um incenso, Obra de serafins que, pelo chão roçando Do quarto, estavam meneando Um ligeiro turíbulo invisível; E eu exclamei então: "Um Deus sensível Manda repouso à dor que te devora Destas saudades imortais. Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora". E o corvo disse: "Nunca mais". "Profeta, ou o que quer que sejas! Ave ou demônio que negrejas! Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno Onde reside o mal eterno, Ou simplesmente náufrago escapado Venhas do temporal que te há lançado Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo Tem os seus lares triunfais, Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?" E o corvo disse: "Nunca mais". "Profeta, ou o que quer que sejas!

Ave ou demônio que negrejas! Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende! Por esse céu que além se estende, Pelo Deus que ambos adoramos, fala, Dize a esta alma se é dado inda escutá-la No éden celeste a virgem que ela chora Nestes retiros sepulcrais, Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!" E o corvo disse: "Nunca mais". "Ave ou demônio que negrejas! Profeta, ou o que quer que sejas! Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa! Regressa ao temporal, regressa À tua noite, deixa-me comigo. Vai-te, não fique no meu casto abrigo Pluma que lembre essa mentira tua. Tira-me ao peito essas fatais Garras que abrindo vão a minha dor já crua." E o corvo disse: "Nunca mais". E o corvo aí fica; ei-lo trepado No branco mármore lavrado Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho. Parece, ao ver-lhe o duro cenho, Um demônio sonhando. A luz caída Do lampião sobre a ave aborrecida No chão espraia a triste sombra; e, fora Daquelas linhas funerais Que flutuam no chão, a minha alma que chora Não sai mais, nunca, nunca mais!

PERGUNTAS SEM RESPOSTA

Vênus Formosa, Vênus fulgurava No azul do céu da tarde que morria, Quando à janela os braços encostava Pálida Maria. Ao ver o noivo pela rua umbrosa, Os longos olhos ávidos enfia, E fica de repente cor-de-rosa Pálida Maria. Correndo vinha no cavalo baio, Que ela de longe apenas distinguia, Correndo vinha o noivo, como um raio... Pálida Maria!

E vão levá-lo à cova que se abria; Terra e cal e um responso recitado... Pálida Maria! Quando, três sóis passados, rutilava A mesma Vênus, no morrer do dia, Tristes olhos ao alto levantava Pálida Maria. E murmurou: "Tens a expressão do goivo, Tens a mesma roaz melancolia; Certamente perdeste o amor e o noivo, Pálida Maria?" Vênus, porém, Vênus brilhante e bela, Que nada ouvia, nada respondia, Deixa rir ou chorar numa janela Pálida Maria.

TO BE OR NOT TO BE

(SHAKESPEARE)

E mais nobre a cerviz curvar aos golpes Da ultrajosa fortuna, ou já lutando Extenso mar vencer de acerbos males? Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas, Que as angústias extingue e à carne a herança Da nossa dor eternamente acaba, Sim, cabe ao homem suspirar por ele. Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe? Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono, Quando o lodo mortal despido houvermos, Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre. Essa a razão que os lutuosos dias Alonga do infortúnio. Quem do tempo Sofrer quisera ultrajes e castigos, Injúrias da opressão, baldões do orgulho, Do mal prezado amor choradas mágoas, Das leis a inércia, dos mandões a afronta, E o vão desdém que de rasteiras almas O paciente mérito recebe, Quem, se na ponta da despida lâmina Lhe acenara o descanso? Quem ao peso De uma vida de enfados e misérias Quereria gemer, se não sentira Terror de alguma não sabida cousa Que aguarda o homem para lá da morte, Esse eterno país misterioso

Donde um viajor sequer há regressado? Este só pensamento enleia o homem; Este nos leva a suportar as dores Já sabidas de nós, em vez de abrirmos Caminho aos males que o futuro esconde; E a todos acovarda a consciência. Assim da reflexão à luz mortiça A viva cor da decisão desmaia; E o firme, essencial cometimento, Que esta idéia abalou, desvia o curso, Perde-se, até de ação perder o nome.

LINDÓIA

Vem, vem das águas, mísera Moema, Senta-te aqui. As vozes lastimosas Troca pelas cantigas deleitosas, Ao pé da doce e pálida Coema. Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema, Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas Que o amor desabrochou e fez viçosas Nas laudas de um poema e outro poema. Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta De Lindóia, que a voz suave e forte Do vate celebrou, a alegre festa. Além do amável, gracioso porte, Vede o mimo, a ternura que lhe resta. Tanto inda é bela no seu rosto a morte

SUAVE MARI MAGNO

Lembra-me que, em certo dia, Na rua, ao sol de verão, Envenenado morria Um pobre cão. Arfava, espumava e ria, De um riso espúrio e bufão, Ventre e pernas sacudia Na convulsão. Nenhum, nenhum curioso Passava, sem se deter, Silencioso, Junto ao cão que ia morrer,

Vinha a glória depois; - quatorze reis vencido: E enfim as páreas triunfais De trezentas nações, e os parabéns unidos Das coroas ocidentais. Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto Das mulheres e dos varões, Como em água que deixa o fundo descoberto Via limpos os corações. Então ele, estende a mão calosa e tosca, Afeita a só carpintejar Com um gesto pegou na fulgurante mosca, Curioso de a examinar. Quis vê-la, quis saber a causa do mistério. E, fechando-a na mão, sorriu De contente, ao pensar que ali tinha um império, E para casa se partiu. Alvoroçado chega, examina, e parece Que se houve nessa ocupação Miudamente, como um homem que quisesse Dissecar a sua ilusão. Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela, Rota, baça, nojenta, vil, Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela Visão fantástica e subtil. Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo Na cabeça, com ar taful, Dizem que ensandeceu, e que não sabe como Perdeu a sua mosca azul.

ANTONIO JOSE

(21 de outubro de 1739) Antônio, a sapiência da Escritura Clama que há para a humana criatura Tempo de rir e tempo de chorar, Como há um sol no ocaso, e outro na aurora. Tu, sangue de Efraim e de Issacar, Pois que já riste, chora.

ESPINOSA

Gosto de ver-te, grave e solitário, Sob o fumo de esquálida candeia,

Nas mãos a ferramenta de operário, E na cabeça a coruscante idéia. E enquanto o pensamento delineia Uma filosofia, o pão diário A tua mão a labutar granjeia E achas na independência o teu salário. Soem cá fora agitações e lutas, Sibile o bafo aspérrimo do inverno, Tu trabalhas, tu pensas, e executas Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno, A lei comum, e morres, e transmutas O suado labor no prêmio eterno.

GONÇALVES CRESPO

Esta musa da pátria, esta saudosa Niobe dolorida, Esquece acaso a vida, Mas não esquece a morte gloriosa. E pálida, e chorosa, Ao Tejo voa, onde no chão caída Jaz aquela evadida Lira da nossa América viçosa. Com ela torna, e, dividindo os ares, Trépido, mole, doce movimento Sente nas frouxas cordas singulares. Não é a asa do vento, Mas a sombra do filho, no momento De entrar perpetuamente os pátrios lares.

ALENCAR

Hão de anos volver, - não como as neves De alheios climas, de geladas cores; Hão de os anos volver, mas como as flores, Sobre o teu nome, vívidos e leves... Tu, cearense musa, que os amores Meigos e tristes, rústicos e breves, Da indiana escreveste,-ora os escreves No volume dos pátrios esplendores. E ao tornar este sol, que te há levado,

Quando, torcendo a chave misteriosa Que os cancelos fechava do Oriente, O Gama abriu a nova terra ardente Aos olhos da companha valorosa, Talvez uma visão resplandecente Lhe amostrou no futuro a sonorosa Tuba. que cantaria a ação famosa Aos ouvidos da própria e estranha gente. E disse: "Se já noutra, antiga idade, Tróia bastou aos homens, ora quero Mostrar que é mais humana a humanidade. Pois não serás herói de um canto fero, Mas vencerás o tempo e a imensidade Na voz de outro moderno e brando Homero". IV Um dia, junto à foz de brando e amigo Rio de estranhas gentes habitado, Pelos mares aspérrimos levado, Salvaste o livro que viveu contigo. E esse que foi às ondas arrancado, Já livre agora do mortal perigo, Serve de arca imortal, de eterno abrigo, Não só a ti, mas ao teu berço amado. Assim, um homem só, naquele dia, Naquele escasso ponto do universo, Língua, história, nação, armas, poesia, Salva das frias mãos do tempo adverso. E tudo aquilo agora o desafia. E tão sublime preço cabe em verso. 1802- Um dia, celebrando o gênio e a eterna vida, Vitor Hugo escreveu numa página forte Estes nomes que vão galgando a eterna morte, Isaías, a voz de bronze, alma saída Da coxa de Davi; Ésquilo que a Orestes E a Prometeu, que sofre as vinganças celestes Deu a nota imortal que abala e persuade, E transmite o terror, como excita a piedade. Homero, que cantou a cólera potente De Aquiles, e colheu as lágrimas troianas Para glória maior da sua amada gente,

E com ele Virgílio e as graças virgilianas; Juvenal que marcou com ferro em brasa o ombro Dos tiranos, e o velho e grave florentino, Que mergulha no abismo, e caminha no assombro, Baixa humano ao inferno e regressa divino; Logo após Calderón, e logo após Cervantes; Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria; E, para coroar esses nomes vibrantes, Shakespeare, que resume a universal poesia. E agora que ele aí vai, galgando a eterna morte, Pega a História da pena e na página forte, Para continuar a série interrompida, Escreve o nome dele, e dá-lhe a eterna vida.

JOSÉ DE ANCHIETA

Esse que as vestes ásperas cingia, E a viva flor da ardente juventude Dentro do peito a todos escondia; Que em páginas de areia vasta e rude Os versos escrevia e encomendava A mente, como esforço de virtude; Esse nos rios de Babel achava, Jerusalém, os cantos primitivos, E novamente aos ares os cantava. Não procedia então como os cativos De Sião, consumidos de saudade, Velados de tristeza, e pensativos. Os cantos de outro clima e de outra idade Ensinava sorrindo às novas gentes Pela língua do amor e da piedade. E iam caindo os versos excelentes No abençoado chão, e iam caindo Do mesmo modo as místicas sementes. Nas florestas os pássaros, ouvindo O nome de Jesus e os seus louvores, Iam cantando o mesmo canto lindo. Eram as notas como alheias flores Que verdejam no meio de verduras De diversas origens e primores. Anchieta, soltando as vozes puras,

Certo é que tudo adoecia. Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento, Catava mais nenhum sustento, Não havia manjar que o apetite abrisse, Raposa ou lobo que saísse Contra a presa inocente e mansa, Rola que à rola não fugisse, E onde amor falta, adeus, folgança. O leão convocou uma assembléia e disse: "Sócios meus, certamente este infortúnio veio A castigar-nos de pecados. Que, o mais culpado entre os culpados Morra por aplacar a cólera divina. Para a comum saúde esse é, talvez, o meio. Em casos tais é de uso haver sacrificados; Assim a história no-lo ensina. Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência, Pesquisemos a consciência. Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão, Devorei muita carneirada. Em que é que me ofendera? em nada. E tive mesmo ocasião De comer igualmente o guarda da manada. Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto. Mas, assim como me acusei, Bom é que cada um se acuse, de tal sorte Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto Justo) caiba ao maior dos culpados a morte". "Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei Bom demais; é provar melindre exagerado. Pois então devorar carneiros, Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado? Não. Vós fizestes-lhes, senhor, Em os comer, muito favor. E no que toca aos pegureiros, Toda a calamidade era bem merecida, Pois são daquelas gentes tais Que imaginaram ter posição mais subida Que a de nós outros animais". Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso. Ninguém do tigre nem do urso, Ninguém de outras iguais senhorias do mato, Inda entre os atos mais daninhos, Ousava esmerilhar um ato; E até os últimos rafeiros, Todos os bichos rezingueiros, Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.

Eis chega o burro: "Tenho idéia que no prado De um convento, indo eu a passar, e picado Da ocasião, da fome e do capim viçoso, E pode ser que do tinhoso, Um bocadinho lambisquei Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade". Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!" Um lobo, algo letrado, arenga e persuade Que era força imolar esse bicho nefando, Empesteado autor de tal calamidade; E o pecadilho foi julgado Um atentado. Pois comer erva alheia! ó crime abominando! Era visto que só a morte Poderia purgar um pecado tão duro. E o burro foi ao reino escuro. Segundo sejas tu miserável ou forte Áulicos te farão detestável ou puro.

DANTE

(INFERNO, canto XXV) Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo As mãos em figas, deste modo brada: "Olha, Deus, para ti o estou fazendo!" E desde então me foi a serpe amada, Pois uma vi que o colo lhe prendia, Como a dizer: "não falarás mais nada!" Outra os braços na frente lhe cingia Com tantas voltas e de tal maneira Que ele fazer um gesto não podia. Ah! Pistóia, por que numa fogueira Não ardes tu, se a mais e mais impuros, Teus filhos vão nessa mortal carreira? Eu, em todos os círculos escuros Do inferno, alma não vi tão rebelada. Nem a que em Tebas resvalou dos muros. E ele fugiu sem proferir mais nada. Logo um centauro furioso assoma A bradar: "Onde, aonde a alma danada?" Marema não terá tamanha soma De reptis quanta vi que lhe ouriçava O dorso inteiro desde a humana coma.