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Helena, Machado de Assis, Notas de estudo de Literatura Brasileira

Machado de Asssis helena

Tipologia: Notas de estudo

Antes de 2010

Compartilhado em 10/09/2009

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paulo-karvan-9 🇧🇷

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Edições Costa Flosi
Helena, Machado de Assis
Texto proveniente de:
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A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Texto-base digitalizado por:
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Revisão: Sandra Flosi/Edição: Edson Costa Flosi e Nancy Costa
Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam
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HELENA
MACHADO DE ASSIS
Capítulo I
O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859.
Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, segundo
costumava dizer, e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete
em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado à pressa,
nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o padre Melchior não
pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea.
No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que
ainda viram os moradores do Andaraí. Cerca de duzentas pessoas
acompanharam o finado até à morada última, achando-se representadas entre
elas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não figurasse em
nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas
relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora
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Helena, Machado de Assis Texto proveniente de:A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro http://www.bibvirt.futuro.usp.br A Escola do Futuro da Universidade de São PauloPermitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:Biblioteca Virtual da Prefeitura de Ribeirao Preto http://www.coderp.com.brEdição eletrônica produzida pela Costa Flosi Ltda. Revisão: Sandra Flosi/Edição: Edson Costa Flosi e Nancy Costa Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejammantidas. Para maiores informações, escreva para bibvirt@futuro.usp.br.

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HELENA

MACHADO DE ASSIS

Capítulo I

O conselheiro Vale morreu às 7 horas da noite de 25 de abril de 1859. Morreu de apoplexia fulminante, pouco depois de cochilar a sesta, — segundo costumava dizer, — e quando se preparava a ir jogar a usual partida de voltarete em casa de um desembargador, seu amigo. O Dr. Camargo, chamado à pressa, nem chegou a tempo de empregar os recursos da ciência; o padre Melchior não pôde dar-lhe as consolações da religião: a morte fora instantânea.

No dia seguinte fez-se o enterro, que foi um dos mais concorridos que ainda viram os moradores do Andaraí. Cerca de duzentas pessoas acompanharam o finado até à morada última, achando-se representadas entre elas as primeiras classes da sociedade. O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade, pelas relações adquiridas, cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora

Helena, de Machado de Assis

magistrado no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas famílias paulistas. Ele próprio exercera dois empregos, havendo-se com habilidade e decoro, do que lhe adveio a carta de conselho e a estima dos homens públicos. Sem embargo do ardor político do tempo, não estava ligado a nenhum dos dois partidos, conservando em ambos preciosas amizades, que ali se acharam na ocasião de o dar à sepultura. Tinha, entretanto, tais ou quais idéias políticas, colhidas nas fronteiras conservadoras e liberais, justamente no ponto em que os dois domínios podem confundir -se. Se nenhuma saudade partidária lhe deitou a última pá de terra, matrona houve, e não só uma, que viu ir a enterrar com ele a melhor página da sua mocidade.

A família do conselheiro compunha-se de duas pessoas: um filho, o Dr. Estácio, e uma irmã, D. Úrsula. Contava esta cinqüenta e poucos anos; era solteira; vivera sempre com o irmão, cuja casa dirigia desde o falecimento da cunhada. Estácio tinha vinte e sete anos, e era formado em matemáticas. O conselheiro tentara encarreirá-lo na política, depois na diplomacia; mas nenhum desses projetos teve começo de execução.

O Dr. Camargo, médico e velho amigo da casa, logo que regressou do enterro, foi ter com Estácio, a quem encontrou no gabinete particular do finado, em companhia de D. Úrsula. Também a dor tem suas volúpias; tia e sobrinho queriam nutri-la com a presença dos objetos pessoais do morto, no lugar de suas predileções quotidianas. Duas tristes luzes alumiavam aquela pequena sala. Alguns momentos correram de profundo silêncio entre os três. O primeiro que o rompeu, foi o médico.

— Seu pai deixou testamento?

Helena, de Machado de Assis

Nem Estácio, nem D. Úrsula, pediram ao médico a explicação de semelhantes palavras. A curiosidade, porém, era natural, e o médico pode lê-la nos olhos de ambos. Não lhes disse nada; entregou o testamento a Estácio, ergueu-se e deu alguns passos na sala, absorvido em suas próprias reflexões, ora arranjando maquinalmente um livro da estante, ora metendo a ponta do bigode entre os dentes, com a vista queda, alheio de todo ao lugar e às pessoas.

Estácio rompeu o silêncio:

— Mas que lacuna ou que excesso é esse? perguntou ao médico. Camargo parou diante do moço. — Não posso dizer nada, respondeu ele. Seria inconveniente, antes de saber as últimas disposições de seu pai.

D. Úrsula foi menos discreta que o sobrinho; após longa pausa, pediu ao médico a razão de suas palavras.

— Seu irmão, disse este, era boa alma; tive tempo de o conhecer de perto e apreciar-lhe as qualidades, que as tinha excelentes. Era seu amigo; sei que o era meu. Nada alterou a longa amizade que nos unia, nem a confiança que ambos depositávamos um no outro. Não quisera, pois, que o último ato de sua vida fosse um erro.

— Um erro! exclamou D. Úrsula. — Talvez um erro! suspirou Camargo. — Mas, doutor, insistiu D. Úrsula, por que motivo nos não tranqüiliza o espírito? Estou certa de que não se trata de um ato que desdoure meu irmão;

Helena, de Machado de Assis

alude naturalmente a algum erro no modo de entender... alguma coisa, que eu ignoro o que seja. Por que não fala claramente?

O médico viu que D. Úrsula tinha razão; e que, a não dizer mais nada, melhor fora ter-se calado de todo. Tentou dissipar a impressão de estranheza que deixara no ânimo dos dois; mas da hesitação com que falava, concluiu Estácio que ele não podia ir além do que havia dito.

— Não precisamos de explicação nenhuma, interveio o filho do conselheiro; amanhã saberemos tudo.

Nessa ocasião entrou o padre Melchior. O médico saiu às 10 horas, ficando de voltar no dia seguinte, logo cedo. Estácio, recolhendo-se ao quarto, murmurava consigo:

— Que erro será esse? E que necessidade tinha ele de vir lançar-me este enigma no coração?

A resposta, se pudesse ouvi-la, era dada nessa mesma ocasião pelo próprio Dr. Camargo, ao entrar no carro que o esperava à porta:

— Fiz bem em preparar-lhes o espírito, pensou ele; o golpe, se o houver, há de ser mais fácil de sofrer.

O médico ia só; além disso, era noite, como sabemos. Ninguém pôde ver- lhe a expressão do rosto, que era fechada e meditativa. Exumou o passado e devassou o futuro; mas de tudo o que reviu e anteviu, nada foi comunicado a ouvidos estranhos.

As relações do Dr. Camargo com a família do conselheiro eram estreitas e antigas, como dissera Estácio. O médico e o conselheiro tinham a mesma idade:

Helena, de Machado de Assis

— Não fiquei triste pelo que me disse, papai, observou a moça. Tocava por distrair-me. D. Úrsula como está? Ficou tão aflita! Mamãe queria demorar- se mais tempo; mas eu confesso que não podia ver a tristeza daquela casa.

— Mas a tristeza é necessária à vida, acudiu D. Tomásia, que abrira os olhos logo à entrada do marido. As dores alheias fazem lembrar as próprias, e são um corretivo da alegria, cujo excesso pode engendrar o orgulho.

Camargo temperou esta filosofia, que lhe pareceu demasiado austera, com algumas idéias mais acomodadas e risonhas.

— Deixemos a cada idade a sua atmosfera própria, concluiu ele, e não antecipemos a da reflexão, que é tornar infelizes os que ainda não passaram do puro sentimento.

Eugênia não compreendeu o que os dois haviam dito. Voltou os olhos para o piano, com uma expressão de saudade. Com a mão esquerda, assim mesmo de pé, extraiu vagamente três ou quatro notas das teclas suas amigas. Camargo tornou a fitá-la com desusada ternura; a fronte sombria pareceu alumiar-se de uma irradiação interior. A moça sentiu-se enlaçada nos braços dele; deixou-se ir. Mas a expansão era tão nova, que ela ficou assustada e perguntou com voz trêmula:

— Aconteceu lá alguma coisa? — Absolutamente nada, respondeu Camargo, dando-lhe um beijo na testa. Era o primeiro beijo, ao menos o primeiro de que a moça tinha memória. A carícia encheu-a de orgulho filial; mas a própria novidade dela impressionou- a mais. Eugênia não creu no que lhe dissera o pai. Viu-o ir sentar-se ao pé de D.

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Tomásia e conversarem em voz baixa. Aproximando-se, não interrompeu a conversa, que eles continuaram no mesmo tom, e versava sobre assuntos puramente domésticos. Percebeu-o; contudo, não ficou tranqüila. Na manhã seguinte escreveu um bilhete, que foi logo caminho de Andaraí. A resposta, que lhe chegou às mãos no momento em que provava um vestido novo, teve a cortesia de esperar que ela terminasse a operação. Lida finalmente, dissipou todos os receios da véspera.

Capítulo II

No dia seguinte, foi aberto o testamento com todas as formalidades legais. O conselheiro nomeava testamenteiros Estácio, o Dr. Camargo e o padre Melchior. As disposições gerais nada tinham que fosse notável: eram legados pios ou beneficentes, lembranças a amigos, dotes a afilhados, missas por sua alma e pela de seus parentes.

Uma disposição havia, porém, verdadeiramente importante. O conselheiro declarava reconhecer uma filha natural, de nome Helena, havida com D. Ângela da Soledade. Esta menina estava sendo educada em um colégio de Botafogo. Era declarada herdeira da parte que lhe tocasse de seus bens, e devia ir viver com a família, a quem o conselheiro instantemente pedia que a tratasse com desvelo e carinho, como se de seu matrimônio fosse.

A leitura desta disposição causou natural espanto à irmã e ao filho do finado. D. Úrsula nunca soubera de tal filha. Quanto a Estácio, ignorava menos que a tia. Ouvira uma vez falar em uma filha de seu pai; mas tão vagamente que não podia esperar aquela disposição testamentária.

Helena, de Machado de Assis

pesar nem reserva. A questão pecuniária pesou menos que tudo no espírito do moço; não pesou nada. A ocasião era dolorosa demais para dar entrada a considerações de ordem inferior, e a elevação dos sentimentos de Estácio não lhe permitia inspirar-se delas. Quanto à camada social a que pertencia a mãe de Helena, não se preocupou muito com isso, certo de que eles saberiam levantar a filha até à classe a que ela ia subir.

No meio das reflexões produzidas pela disposição testamentária do conselheiro, ocorreu a Estácio a conversa que tivera com o Dr. Camargo. Provavelmente era aquele o ponto a que aludira o médico. Interrogado acerca de suas palavras, Camargo hesitou um pouco; mas insistindo o filho do conselheiro:

— Aconteceu o que eu previa, um erro, disse ele. Não houve lacuna, mas excesso. O reconhecimento dessa filha é um excesso de ternura, muito bonito, mas pouco prático. Um legado era suficiente; nada mais. A estrita justiça...

— A estrita justiça é a vontade de meu pai, redargüiu Estácio. — Seu pai foi generoso, disse Camargo; resta saber se podia sê-lo à custa de direitos alheios.

— Os meus? Não os alego. — Se os alegasse seria pouco digno da memória dele. O que está feito, está feito. Uma vez reconhecida, essa menina deve achar nesta casa família e afetos de família. Persuado-me de que ela saberá corresponder-lhes com verdadeira dedicação...

— Conhece-a? inquiriu Estácio, cravando no médico uns olhos impacientes de curiosidade.

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— Vi-a três ou quatro vezes, disse este no fim de alguns segundos; mas era então muito criança. Seu pai falava-me dela como de pessoa extremamente afetuosa e digna de ser amada e admirada. Talvez fossem olhos de pai.

Estácio desejara ainda saber alguma coisa acerca da mãe de Helena, mas repugnou-lhe entrar em novas indagações, e tentou encarreirar a conversa para outro assunto. Camargo, entretanto, insistiu:

— O conselheiro falou-me algumas vezes no projeto de reconhecer Helena; procurei dissuadi-lo, mas sabe como era teimoso, acrescendo neste caso o natural impulso de amor paterno. O nosso ponto de vista era diferente. Não me tenho por homem mau; contudo, entendo que a sensibilidade não pode usurpar o que pertence à razão.

Camargo proferiu estas palavras no tom seco e sentencioso que tão natural e sem esforço lhe saía. A velha amizade dele e do finado era sabida de todos; a intenção com que falava podia ser hostil à família? Estácio refletiu algum tempo no conceito que acabava de ouvir ao médico, curta reflexão que por nenhum modo lhe abalou a opinião já assentada e expressa. Seus olhos, grandes e serenos, como o espírito que os animava, pousaram benevolamente no interlocutor.

— Não quero saber, disse ele, se há excesso na disposição testamentária de meu pai. Se o há, é legítimo, justificável pelo menos; ele sabia ser pai; seu amor dividia-se inteiro. Receberei essa irmã, como se fora criada comigo. Minha mãe faria com certeza a mesma coisa.

Camargo não insistiu. Sobre ser esforço baldado dissuadir o moço daqueles sentimentos, que aproveitava já agora discutir e condenar teoricamente

Helena, de Machado de Assis

fez entre seus companheiros de estudos. Entregara-se à ciência com ardor e afinco. Aborrecia a política; era indiferente ao ruído exterior. Educado à maneira antiga e com severidade e recato, passou da adolescência à juventude sem conhecer as corrupções de espírito nem as influências deletérias da ociosidade; viveu a vida de família, na idade em que outros, seus companheiros, viviam a das ruas e perdiam em coisas ínfimas a virgindade das primeiras sensações. Daí veio que, aos dezoito anos, conservava ele tal ou qual timidez infantil, que só tarde perdeu de todo. Mas, se perdeu a timidez, ficara-lhe certa gravidade não incompatível com os verdes anos e muito própria de organizações como a dele. Na política seria talvez meio caminho andado para subir aos cargos públicos; na sociedade, fazia que lhe tivessem respeito, o que o levantava a seus próprios olhos. Convém dizer que não era essa gravidade aquela coisa enfadonha, pesada e chata, que os moralistas asseveram ser quase sempre um sintoma de espírito chocho; era uma gravidade jovial e familiar, igualmente distante da frivolidade e do tédio, uma compostura do corpo e do espírito, temperada pelo viço dos sentimentos e pela graça das maneiras, como um tronco rijo e reto adornado de folhagens e flores. Juntava às outras qualidades morais uma sensibilidade, não feminil e doentia, mas sóbria e forte; áspero consigo, sabia ser terno e mavioso com os outros.

Tal era o filho do conselheiro; e se alguma coisa há ainda que acrescentar, é que ele não cedia nem esquecia nenhum dos direitos e deveres que lhe davam a idade e a classe em que nascera. Elegante e polido, obedecia à lei do decoro pessoal, ainda nas menores partes dela. Ninguém entrava mais corretamente numa sala; ninguém saía mais oportunamente. Ignorava a ciência das nugas, mas conhecia o segredo de tecer um cumprimento.

Helena, de Machado de Assis

Na situação criada pela cláusula testamentária do conselheiro, Estácio aceitou a causa da irmã, a quem já via, sem a conhecer, com olhos diferentes dos de Camargo e D. Úrsula. Esta comunicou ao sobrinho todas as impressões que lhe deixara o ato do irmão. Estácio procurou dissipar-lhas; repetiu as reflexões opostas ao médico; mostrou que, ao cabo de tudo, tratava-se de cumprir a derradeira vontade de um morto.

— Bem sei que não há já agora outro remédio mais que aceitar essa menina e obedecer às determinações solenes de meu irmão, disse D. Úrsula, quando Estácio acabou de falar. Mas só isso; dividir com ela os meus afetos não sei que possa nem deva fazer.

— Contudo, ela é do nosso mesmo sangue. D. Úrsula ergueu os ombros como repelindo semelhante consangüinidade. Estácio insistiu em trazê-la a mais benévolos sentimentos. Invocou, além da vontade, a retidão do espírito de seu pai, que não havia dispor uma coisa contrária à boa fama da família.

— Além disso, essa menina nenhuma culpa tem de sua origem, e visto que meu pai a legitimou, convém que não se ache aqui como enjeitada. Que aproveitaríamos com isso? Nada mais do que perturbar a placidez da nossa vida interior. Vivamos na mesma comunhão de afetos; e vejamos em Helena uma parte da alma de meu pai, que nos fica para não desfalcar de todo o patrimônio comum.

Nada respondeu a irmã do conselheiro. Estácio percebeu que não vencera os sentimentos da tia, nem era possível consegui-lo por meio de palavras. Confiou ao tempo essa tarefa. D. Úrsula ficou triste e só. Aparecendo Camargo

Helena, de Machado de Assis

Helena estava a concluir os estudos; semanas depois determinou a família que ela viesse para a casa. D. Úrsula recusou a princípio ir buscá-la; convenceu- a disso o sobrinho, e a boa senhora aceitou a incumbência depois de alguma hesitação. Em casa foram-lhe preparados os aposentos; e marcou-se uma tarde de segunda-feira para ser a moça trasladada a Andaraí. D. Úrsula meteu-se na carruagem, logo depois de jantar. Estácio foi nesse dia jantar com o Dr. Camargo, no Rio Comprido. Voltou tarde. Ao penetrar na chácara, deu com os olhos nas janelas do quarto destinado a Helena; estavam abertas; havia alguém dentro. Pela primeira vez sentiu Estácio a estranheza da situação criada pela presença daquela meia-irmã e perguntou a si próprio se não era a tia quem tinha razão. Repeliu pouco depois esse sentimento; a memória do pai restituiu-lhe a benevolência anterior. Ao mesmo tempo, a idéia de ter uma irmã sorria-lhe ao coração como promessa de venturas novas e desconhecidas. Entre sua mãe e as demais mulheres, faltava-lhe essa criatura intermediária, que ele já amava sem conhecer, e que seria a natural confidente de seus desalentos e esperanças. Estácio contemplou longo tempo as janelas; nem o vulto de Helena apareceu ali, nem ele viu passar a sombra da habitante nova.

Capítulo III

Na seguinte manhã, Estácio levantou-se tarde e foi direito à sala de jantar, onde encontrou D. Úrsula, pachorrentamente sentada na poltrona de seu uso, ao pé de uma janela, a ler um tomo do Saint-Clair das ilhas , enternecida pela centésima vez com as tristezas dos desterrados da ilha da Barra; boa gente e moralíssimo livro, ainda que enfadonho e maçudo, como outros de seu tempo. Com ele matavam as matronas daquela quadra muitas horas compridas do

Helena, de Machado de Assis

inverno, com ele se encheu muito serão pacífico, com ele se desafogou o coração de muita lágrima sobressalente.

— Veio? perguntou Estácio. — Veio, respondeu a boa senhora, fechando o livro. O almoço esfria, continuou ela, dirigindo-se à mucama que ali estava de pé, junto da mesa; já foram chamar... nhanhã Helena?

— Nhanhã Helena disse que já vem. — Há dez minutos, observou D. Úrsula ao sobrinho. — Naturalmente não tarda, respondeu este. Que tal? D. Úrsula estava pouco habilitada a responder ao sobrinho. Quase não vira o rosto de Helena; e esta, logo que ali chegou, recolheu-se ao aposento que lhe deram, dizendo ter necessidade de repouso. O que D. Úrsula pôde afiançar foi somente que a sobrinha era moça feita.

Ouviu-se descer a escada um passo rápido, e não tardou que Helena aparecesse à porta da sala de jantar. Estácio estava então encostado à janela que ficava em frente da porta e dava para a extensa varanda, donde se viam os fundos da chácara. Olhou para a tia como esperando que ela os apresentasse um ao outro. Helena detivera-se ao vê-lo.

— Menina, disse D. Úrsula com o tom mais doce que tinha na voz, este é meu sobrinho Estácio, seu irmão.

— Ah! disse Helena, sorrindo e caminhando para ele. Estácio dera igualmente alguns passos.

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maior correção e harmonia de feições, e a sociedade bem podia contentar-se com a polidez de maneiras e a gravidade do aspecto. Uma só coisa pareceu menos aprazível ao irmão: eram os olhos, ou antes o olhar, cuja expressão de curiosidade sonsa e suspeitosa reserva foi o único senão que lhe achou, e não era pequeno.

Acabado o almoço, trocadas algumas palavras, poucas e soltas, Helena retirou-se ao seu quarto, onde durante três dias passou quase todas as horas, a ler meia dúzia de livros que trouxera consigo, a escrever cartas, a olhar pasmada para o ar, ou encostada ao peitoril de uma das janelas. Alguma vez desceu a jantar, com os olhos vermelhos e a fronte pesarosa, apenas com um sorriso pálido e fugitivo nos lábios. Uma criança, subitamente transferida ao colégio, não desfolha mais tristemente as primeiras saudades da casa de seus pais. Mas a asa do tempo leva tudo; e ao cabo de três dias, já a fisionomia de Helena trazia menos sombrio aspecto. O olhar perdeu a expressão que primeiro lhe achou o irmão, para tornar-se o que era naturalmente, mavioso e repousado. A palavra saía-lhe mais fácil, seguida e numerosa; a familiaridade tomou o lugar do acanhamento.

No quarto dia, acabado o almoço, Estácio encetou uma conversa geral, que não passou de um simples duo , porque D. Úrsula contava os fios da toalha ou brincava com as pontas do lenço que trazia ao pescoço. Como falassem da casa, Estácio disse à irmã:

— Esta casa é tão sua como nossa; faça de conta que nascemos debaixo do mesmo teto. Minha tia lhe dirá o sentimento que nos anima a seu respeito.

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Helena agradeceu com um olhar longo e profundo. E dizendo que a casa e a chácara lhe pareciam bonitas e bem dispostas, pediu a D. Úrsula que lhas fosse mostrar mais detidamente. A tia fechou o rosto e secamente respondeu:

— Agora não, menina; tenho por hábito descansar e ler. — Pois eu lerei para a senhora ouvir, replicou a moça com graça; não é bom cansar os seus olhos; e, além disso, é justo que me acostume a servi-la. Não acha? continuou ela, voltando-se para Estácio.

— É nossa tia, respondeu o moço. — Oh! ainda não é minha tia! interrompeu Helena. Há de sê-lo quando me conhecer de todo. Por enquanto somos estranhas uma à outra; mas nenhuma de nós é má.

Estas palavras foram ditas em tom de graciosa submissão. A voz com que ela as proferiu, era clara, doce, melodiosa; melhor do que isso, tinha um misterioso encanto, a que a própria D. Úrsula não pôde resistir.

— Pois deixe que a convivência faça falar o coração, respondeu a irmã do conselheiro em tom brando. Não aceito o oferecimento da leitura, porque não entendo bem o que os outros me lêem; tenho os olhos mais inteligentes que os ouvidos. Entretanto, se quer ver a casa e a chácara, seu irmão pode conduzi-la.

Estácio declarou-se pronto para acompanhar a irmã. Helena, entretanto, recusou. Irmão embora, era a primeira vez que o via, e, ao que parece, a primeira que podia achar-se a sós com um homem que não seu pai. D. Úrsula, talvez porque preferisse ficar só algum tempo, disse-lhe secamente que fosse. Helena acompanhou o irmão. Percorreram parte da casa, ouvindo a moça as explicações