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Este texto aborda a ludicidade como experiência interna de plenitude, baseado em estudos e experimentos pessoais. Ele defende que a atividade lúdica propicia uma experiência plena para o sujeito, alargando a compreensão de ludicidade como estado de consciência. O texto também discute as implicações da ludicidade na vida humana, sua relação com o desenvolvimento interno do sujeito e as diferentes abordagens psicanalítica, piagetiana e biossistêmica.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Não perca as partes importantes!
Este material foi obtido através do website de Cipriano Carlos Luckesi
uma abordagem a partir da experiência interna
Cipriano Carlos Luckesi^1
1. Sobre ludicidade
Primeiro sobre ludicidade. Usualmente os textos disponíveis, que abordam a questão da ludicidade, tratam-na, predominantemente, sob a ótica de seu papel na vida humana: no desenvolvimento humano, nos processos de ensino-aprendizagem, nos processos terapêuticos, na recreação, no divertimento, no lazer; ou, então, abordam repertórios de atividades lúdicas, descrevendo como realizá-las; e existem ainda muitos outros estudos sociológicos ou históricos sobre esse fenômeno. Pouco, porém, se tem tratado da ludicidade e das atividades lúdicas de um ponto de vista interno e integral. É esse o meu objetivo neste texto, na busca de oferecer uma melhor compreensão da definição que venho dando para esse fenômeno em meus escritos. A abordagem que estou utilizando para conceituar o fenômeno da ludicidade foca a experiência lúdica como uma experiência interna do sujeito que a vivencia. É desse ponto de vista que se segue tudo o que exponho abaixo, ou seja, não estou tratando de estudos externos da atividade lúdica, tais como os sociológicos, os etnográficos, os históricos ou os descritivos, que, sem sombra de dúvidas são sumamente importantes. Estou me confrontando com as seguintes perguntas: O que é a atividade lúdica para o sujeito que a vivencia? E, enquanto vivencia, que efeitos essa experiência lhe produz?
Importa observar que os conceitos, que aqui vamos tentar configurar, com um pouco mais de precisão, tem sido reiteradamente discutidos e aprofundados nas reuniões semanais do GEPEL – Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade, vinculado ao Programa de Pós-graduação da FACED/UFBA.
Em textos anteriores, a partir de estudos e experimentos pessoais com atividades lúdicas, além do ensino desses conhecimentos teórico-práticos na Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia, tenho procurado defender uma compreensão específica da ludicidade e das atividades lúdicas, que estão a merecer uma melhor configuração, assim como aprofundamentos teóricos e práticos.
Essa necessidade veio mais ainda à tona, quando, recentemente, em nossa Pós-Graduação, pude assistir a defesa de uma dissertação, da autoria de uma orientanda minha, na qual a mestranda fez uso dos conceitos por mim formulados sobre o que é ludicidade e sobre as atividades lúdicas. Parecia-me que os membros da Banca não compreendiam o que ela falava, ou, devido estarem vinculados a outras exigências conceituais sobre esse fenômeno, não conseguiam colocar-se disponíveis para “uma escuta sensível” do que ela estava expondo.
(^1) Doutor em Educação, Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, FACED/UFBA, vice-coordenador do GEPEL – Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Ludicidade, vinculado à linha de Pesquisa Filosofia, Linguagem e Praxis Educativa, do Programa de Pós-Graduação em Educação - FACED/UFBA.
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Assim sendo, vi-me na obrigação de tentar uma melhor delimitação conceitual daquilo que expus anteriormente sobre esse tema. É isso que me proponho fazer, neste escrito, no limite das compreensões que tenho, neste momento; o que quer dizer que, mesmo agora, não tenho, de forma alguma, a pretensão de apresentar uma configuração conceitual de ludicidade e das atividades lúdicas, que possa atender a todas as demandas dos leitores. Estou, aqui, mais uma vez, ensaiando abordar esse fenômeno, que é complexo e múltiplo em suas manifestações.
Em 1998, escrevi um texto intitulado “Desenvolvimento dos estados de consciência e ludicidade”, no qual explicitava a seguinte compreensão da ludicidade: “Tomando por base os escritos, as falas e os debates, que tem se desenvolvido em torno do que é lúdico, tenho tido a tendência em definir a atividade lúdica como aquela que propicia a ‘plenitude da experiência’. Comumente se pensa que uma atividade lúdica é uma atividade divertida. Poderá sê-la ou não. O que mais caracteriza a ludicidade é a experiência de plenitude que ela possibilita a quem a vivencia em seus atos”^2
No ano de 2000, retomei esse conceito de ludicidade em um artigo que escrevi para a coletânea Educação e Ludicidade , por mim organizada, como primeira publicação do GEPEL, intitulado “Educação, ludicidade e prevenção de neuroses futuras: uma proposta pedagógica a partir da Biossíntese”. Nessa oportunidade, assim, me expressei: “O que a ludicidade traz de novo é o fato de que o ser humano, quando age ludicamente, vivencia uma experiência plena. Com isso, queremos dizer que, na vivência de uma atividade lúdica, cada um de nós estamos plenos, inteiros nesse momento; nos utilizamos da atenção plena, como definem as tradições sagradas orientais. Enquanto estamos participando verdadeiramente de uma atividade lúdica, não há lugar, na nossa experiência, para qualquer outra coisa além dessa própria atividade. Não há divisão. Estamos inteiros, plenos, flexíveis, alegres, saudáveis. Poderá ocorrer, evidentemente, de estarmos no meio de uma atividade lúdica e, ao mesmo tempo, estarmos divididos com outra coisa, mas aí, com certeza, não estaremos verdadeiramente participando dessa atividade. Estaremos com o corpo aí presente, mas com a mente em outro lugar e, então, nossa atividade não será plena e, por isso mesmo, não será lúdica.
“Brincar, jogar, agir ludicamente, exige uma entrega total do ser humano, corpo e mente, ao mesmo tempo. A atividade lúdica não admite divisão; e, as próprias atividades lúdicas, por si mesmas, nos conduzem para esse estado de consciência. Se estivermos num salão de dança e estivermos verdadeiramente dançando, não haverá lugar para outra coisa a não ser para o prazer e a alegria do movimento ritmado, harmônico e gracioso do corpo. Contudo, se estivermos num salão de dança, fazendo de conta que estamos dançando, mas de fato, estamos observando, com o olhar crítico e julgativo, como os outros dançam, com certeza, não estaremos vivenciando ludicamente esse momento”^3.
(^2) Cipriano Carlos Luckesi, “Desenvolvimento dos estados de consciência e ludicidade”, in Interfaces da Educaç ão, Cadernos de Pesquisa – Núcleo de Filosofia e História da Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, UFBA, vol. 2, no. 1, 1998, pág. 09-25. (^3) Cipriano Carlos Luckesi, “Educação, ludicidade e prevenção das neuroses futuras: uma proposta pedagógica a partir da Biossíntese”, in Educação e Ludicidade , Coletânea Ludopedagogia Ensaios 01, organizada por Cipriano Carlos Luckesi, publicada pelo GEPEL, Programa de Pós-Graduação em Educação, FACED/UFBA, 2000, p. 21.
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Interior Exterior
Eu
Nós
Ele
Ele
Estético
Ético
Comportamental
Sistêmico
Coletivo
Individual
O quadro acima nos auxilia na compreensão do que o autor propõe: cada ser humano, em suas experiências, vivencia quatro dimensões que são: 1. individual/interior, 2. individual/exterior,
Com isso, podemos compreender que o ser humano, em todas as suas experiências, realiza-se e expressa-se em suas quatro dimensões, ainda que não possamos, ao mesmo tempo, estar conscientes de todas elas, da: individual, externa, visível, observável, comportamental (dimensão individual externa, representada no gráfico pelo quadrante superior direito); ao mesmo tempo, interna, que tem a ver com sentimento, com mente, com a compreensão interna, interpretativa, hermenêutica do sujeito (dimensão interna representada no gráfico pelo quadrante superior esquerdo). Contudo, ainda essa experiência também se dá no coletivo comunitário, o que significa, na dimensão subjetiva, que a situa no contexto dos valores, da cultura e da comunidade dentro do qual ele está inserido (dimensão subjetiva coletiva, representada, no gráfico, pelo quadrante inferior esquerdo); e, por último, se dá na dimensão coletiva objetiva, sistêmica, constituindo uma rede interobjetiva de relações observáveis (dimensão externa coletiva, representada no gráfico, pelo quadrante inferior direito).
A dimensão interior individual é aquela onde o ser humano vivencia uma experiência, dentro de si mesmo, na dimensão do Eu , ou seja, a dimensão espiritual, estética; dimensão que garante o crescimento individual interno, através das múltiplas fases de desenvolvimento, que vão do pré-pessoal, pelo pessoal para o transpessoal. Esse é o campo do pensar filosófico, da espiritualidade, da introspecção psicológica, da criação artística, da percepção estética,...
A dimensão interior coletiva é aquela onde o ser humano vivencia sua experiência de comunidade, dos valores e sentimentos de viver e conviver com o outro e com os outros,
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vivência da cultura e dos valores comuns, que dirigem a vida. É a dimensão do Nós de nossa experiência, onde se faz presente a formação e a vivência da ética e da moral. É o campo da sensação, dos sentimentos e da vivência com o outro, do convívio, da ética, da moral,...
A dimensão individual externa expressa, objetivamente, nossa experiência individual interna, através das manifestações do nosso corpo, dos nossos sistemas fisiológicos (nervoso, circulatório, respiratório) e do nosso comportamento psicossocial. São elementos que podem ser estudados objetivamente, via os meios de mensuração. É o campo do Ele individual. Esse é o campo da fisiologia, anatomia, neurofisiologia, ciências comportamentais,...
A dimensão coletiva externa se dá nas relações sistêmicas que constituem nossa vida, através das relações interobjetivas. As múltiplas relações que agem e reagem entre si, constituindo sistemas de elementos e variáveis que determinam dialeticamente nosso modo de ser e de viver. É o campo do Ele coletivo , que pode ser estudado objetivamente sob a ótica do funcionamento dos sistemas. Esse campo é estudado pela sociologia, pela história social, pela política, pelas abordagens sistêmicas em geral.
O campo do Eu só pode ser percebido, estudado e compreendido pela interpretação. O campo do Nós só pode ser verdadeiramente assimilado, estudado e compreendido pela vivência mútua da cultura, com todos os seus valores, que só podem ser apreendidos adequadamente por quem os vivencia. É praticamente impossível um forasteiro tornar-se igual aos nativos. Ele se aproxima, ensaia, chega perto, mas não se torna um igual. Ele será sempre um forasteiro que foi admitido como “um dos nossos”. O campo do Ele, por outro lado, seja o individual ou o coletivo, pode e deve ser apreendido pelos sistemas de mensuração e/ou demonstração objetivos. Wilber diz que os campos do Ele individual e coletivo poderiam ser reunidos em um único campo --- o do Ele ---, pois que ambos são apropriados e compreendidos objetivamente, como o outro, independente de cada um de nós.
Assim sendo, uma experiência integral do ser humano é aquela que o realiza em suas quatro dimensões --- que permitem a vivência da estética e da espiritualidade, assim como a experiência ética, ambas assentadas sobre a materialidade externa da constituição bio- psicológica, de um lado, e dos sistemas sociais e históricos de relações, de outro.
Dentro deste quadro de referência, as atividades lúdicas (não a ludicidade), como todos e quaisquer outras experiência humanas, poderão ser abordados a partir de cada um desses quatro quadrantes. Ou seja, uma atividade lúdica, enquanto atividade propriamente dita, é vivida nas quatro dimensões e, por isso poderá ser abordada, também, nos quatro quadrantes. É exatamente devido a experiência dar-se (realizar-se) nas quatro dimensões, que ela pode assim ser abordada. Ou seja, uma atividade, lúdica ou não, dar-se-á nas quatro dimensões e deste modo deverá ser abordada. Será abordada pela ótica do quadrante superior esquerdo, a ótica interna do sujeito que realiza e vivencia essa atividade. Poderá ainda ser abordada pela ótica do quadrante inferior esquerdo --- sob a ótica da convivência com os outros e da cultura ---, o que permitirá vivenciar e desvendar os sentimentos comunitários, resultantes do presente ou de um longo processo de heranças sócio culturais, através dos quais, esses sentimentos adquiriram um sentido ou está adquirindo um sentido novo neste momento de convivência. Por último, essa atividade lúdica poderá ser abordada como um fenômeno social,
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superior direito) a atividade é descrita como lúdica, porém, não necessariamente ela trará a mesma experiência de plenitude para todos os sujeitos que a vivenciam, ainda que o grupo seja um condicionante fundamental para a entrega em uma atividade lúdica, como sinalizamos anteriormente. Poderá sinalizar uma dor que, recentemente ou de há muito, estava dentro da pessoa, convidando-a a buscar uma saída saudável para isso, que está impedindo o seu fluir normal na vida.
A dor interna que a atividade lúdica, objetivamente definida como lúdica, elicia, em uma prática, não é lúdica, por si, no sentido que vimos compreendendo ludicidade, porém, a vivência dessa experiência que mobiliza a dor pode ser um ponto de partida para a transformação da própria experiência fragmentada em busca da experiência plena. Nesse sentido, as atividades que são objetivamente tomadas como lúdicas e que, por alguma razão interna da pessoa, possam fazer emergir alguma dor, limite ou dificuldade, possibilita ao sujeito uma oportunidade da cura dessa dor, dificuldade ou limite interno. Por cura, aqui, estamos entendendo uma oportunidade de fazer contato com um aspecto doloroso de sua vida, mas que, também e ao mesmo tempo, aponta para um aspecto saudável de si mesmo – da alegria, do prazer, da convivência, da não-rigidez,...
Em síntese, ao afirmar que a atividade lúdica traz uma oportunidade de experiência plena, importa estar atento para o “olhar” a partir do qual estamos afirmando isso: a dimensão do eu, do interno. E é em função dessa visão que defendo a idéia de que vivência lúdica propicia ao sujeito uma experiência de plenitude, devido ela ir para além dos limites do ego , que gosta de descrições específicas de cada coisa, que serve-se permanentemente do julgamento, que se fixa em posições tomadas como as únicas certas,... A descritiva comportamental individual e/ou coletiva, assim como os valores comunitários, que sustentam essa experiência, compõem o entorno dessa sensação de experiência plena, a serem tratadas por outros âmbitos do conhecimento, como vimos acima.
2. Sobre as atividades lúdicas e sua função no desenvolvimento interno de cada um
No que se segue, estaremos apresentando três possibilidades de usos das atividades lúdicas na vida do ser humano, a partir de três abordagens diferentes: psicanalítica, piagetiana e biossistêmica. Poderiam ser outras --- tais como as de Wallon, de Vigotsky e outros ---, porém escolhi estas três, que a meu ver, são suficientes para dar corpo à compreensão que estamos estabelecendo de ludicidade.
A compreensão sobre as atividades lúdicas, especialmente sobre a sua constituição sócio- histórica e sobre os seus papéis na vida humana, tem origem em várias áreas do conhecimento. Assim, existe uma história do brinquedo, uma sociologia do brinquedo, um estudo folclórico do brinquedo, um estudo psicológico do brinquedo,... Desses estudos, retiramos algumas conclusões que nos ajudaram e nos ajudarão a compreender o papel e uso das atividades lúdicas na vida humana, tendo presente, neste texto, que estamos em busca de
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compreender como, possivelmente, pode dar-se e operar internamente no sujeito a vivência das experiências lúdicas.
2.1. As heranças freudianas
Freud compreendeu que o brinquedo^8 é o caminho real para o inconsciente da criança, assim como o sonho é o caminho real para o inconsciente do adulto. Ou seja, a experiência do brincar tem seu lado interno; que se expressa no externo. A meta de Freud, como sabemos, foi desvendar e compreender as operações do inconsciente através de suas manifestações externas.
A partir daí, o próprio Freud^9 e seus discípulos próximos e distantes, tais como Ana Freud (filha de Freud), Melanie Klein^10 , Bruno Bettelheim^11 , D.W. Winnicott^12 , Arminda Aberastury^13 , André Lapierre^14 e tantos outros produziram diversas compreensões psicanalíticas e possibilidades de usos das atividades lúdicas.
A Psicanálise, em sua atuação terapêutica, aposta na restauração do passado e na construção do presente e do futuro. Freud afirma que temos em nós duas forças fundamentais: as forças regressivas, que nos atém fixados no passado e as forças progressivas, que nos mantém voltados para o futuro. As forças regressivas são aquelas que tem como seu epicentro as nossas fixações neuróticas ou traumáticas do passado, que nos impedem ou dificultam o nosso viver fluído no presente, assim como nossas aberturas para o futuro. Elas se manifestam por nossas respostas emocionais automáticas do dia a dia, que nos dificultam o estar bem conosco mesmos (intrapessoalmente) e em nossos relacionamentos (interpessoalmente). As forças progressivas, por outro lado são aquelas que nos chamam para o futuro, para as nossas possibilidades de organização pessoal e de ser^15.
(^8) Brinquedo, aqui, deve ser entendido com um largo espectro de compreensão, que inclui os brinquedos como objetos materiais, assim como os brincares, tanto os que são transmitidos pela herança sociocultural como aqueles que a criança inventa e vivencia espontaneamente a cada momento. (^9) Importa observar que Freud não se dedicou diretamente ao trabalho psicanalítico com crianças, ainda que tenha estudado muito o mundo infantil para compreender o adulto. Deixou um estudo de caso intitulado “Análise da fobia de um menino de cinco anos”, Edição Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud , Rio de Janeiro, Editora Imago, volume X p. 11-158. (^10) Existem traduções das obras de Ana Freud e de Melanie Klein pela Imago Editora do Rio de Janeiro. (^11) Bruno Bettelheim, Uma vida para seu filho , Rio de Janeiro, Editora Campus. (^12) D.W. Winnicott, O brincar e a realidade , Rio de Janeiro, Imago Editora (^13) Arminda Aberastury, Psicanálise da Criança , Porto Alegre, Editora Artes Médicas. (^14) André Lapierre, Fantasmas corporais e prática psicomotora , S. Paulo, Editora Manole; A simbologia do movimento , Porto Alegre, Editora Artes Médicas; Psicanálise e análise corporal da relação , São Paulo, Editora Lovise. (^15) Sobre isso, Bruno Bettelheim, em Uma vida para seu filho , op. cit., 18a (^) edição, pág. 145-145 diz: “A maior importância da brincadeira está no imediato prazer da criança, que se estende num prazer de viver. Mas a brincadeira tem duas faces adicionais, uma dirigida para o passado e outra para o futuro, como o deus romano Jano. A brincadeira permite que a criança resolva de forma simbólica problemas não resolvidos do passado e enfrente direta ou simbolicamente questões do presente. É também a ferramenta mais importante que possui para se preparar para o futuro e suas tarefas”.
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parte para proceder essa compreensão. E, mais que isso, para aceitar a comunicação que está vindo através de uma brincadeira, pois que nem sempre estamos preparados e dispostos para acolher o que está ocorrendo. Por vezes, as brincadeiras de nossas crianças nos desagradam, mas o que será que elas estão nos revelando, nos dizendo ou querendo nos dizer? É isso que a Psicanálise nos ensina: observe como as crianças estão brincando, seus atos estão revelando o seu interior.
Existe um famoso relato de Freud (neste momento, não estou sendo capaz de identificar em que obra está), onde ele relata a experiência de ter ido visitar um amigo e enquanto estava a sós com uma criança pequena, observou que ela atirava um carretel de linha e, a seguir, puxava-o; quando atirava o carretel, fechava o semblante e, quando o trazia de volta, abria em sorriso. Após, atentamente, observar essa experiência, Freud realizou a seguinte leitura: a criança estava tentando compreender como a mãe desaparecia e, depois, aparecia novamente; e o sentimento de tristeza pelo afastamento da mãe e a alegria pelo seu retorno. A experiência interna revelava-se em uma manifestação externa. E foi a partir desse ponto que Freud fez sua leitura interpretativa da experiência (certamente válida) da criança.
Mas, o ato de brincar não só é revelador do inconsciente, ele também é catártico, ou seja, ele é liberador. Enquanto a criança brinca, ela, ao mesmo tempo, expressa e libera os conteúdos do inconsciente, procurando a restauração de suas possibilidades de vida saudável, livre dos bloqueios impeditivos. E, por vezes, os bloqueios já estão tão fixados, que eles impedem a criança até mesmo de brincar; fato este que estará nos sinalizando para uma atenção mais cuidadosa para esta criança.
Por outro lado, as atividades lúdicas, por serem atividades, na visão de Bruno Bettelheim, e eu pessoalmente concordo plenamente com ele, são instrumentos da criação da identidade pessoal, na medida em que elas, nessa perspectiva, estabelecem uma ponte entre a realidade interior e a realidade exterior. Esse é o lado construtivo das atividades lúdicas. Pelas atividades em geral e pelas atividades lúdicas em específico, a criança aproxima-se da realidade, criando a sua identidade. O princípio do prazer equilibra-se com o princípio da realidade, na criança, através das atividades lúdicas. Elas são o meio pela qual as crianças fazem o trânsito do mundo subjetivo simbiótico com a mãe para o mundo objetivo da lei do pai^19 , criando o seu modo pessoal de ser e estar no mundo, criando sua identidade pessoal; ou se se quiser, sua individualidade. Assim sendo, o brincar, para as crianças, não será só o caminho real para o inconsciente doloroso, mas também para a construção interna da identidade e e da individualidade de si mesmo.
Será que as atividades lúdicas seriam o caminho real só para a inconsciente e a identidade e individualidade da criança, ou do adulto também? Vivenciar atividades lúdicas, tenho observado eu, é também um caminho tanto para o inconsciente quanto para a construção de identidade e individualidade saudável dos adultos. Por vários anos, venho ensinando e trabalhando com atividades lúdicas com meus alunos na Pós-Graduação em Educação, na
(^19) Ver D.W. Winnicott, em O Brincar e a Realidade , op. cit., sôbre a questão dos fenômenos e dos objetos transicionais.
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Faculdade de Educação, da Universidade Federal da Bahia^20 e tenho tido a oportunidade de ver como, também para adultos, as atividades lúdicas podem ser um caminho real, ao mesmo tempo, para o inconsciente reprimido assim como para a criatividade e, consequentemente, para a criação de uma individualidade mais saudável. Ou seja, também para os adultos, as atividades lúdicas são catárticas, o que quer dizer liberadoras das fixações do passado e construtoras das alegrias do presente e do futuro.
Essa abordagem, a partir das contribuições da Psicanálise, se integra na visão de ludicidade como possibilidade de vivência da plenitude da experiência? Tomando por base os fundamentos do pensamento de Wilber, que expusemos acima, podemos compreender que o que ocorre dentro da criança configura-se no quadrante superior esquerdo, na dimensão do EU, a dimensão interna. O que ocorre nessa dimensão, nós, de fato, não podemos saber, a menos que a criança, de alguma forma, nos revele. É a sua experiência interior. Os atos externos poderão ser descritos comportamentalmente, mas a experiência interna é de quem a vive e nós só podemos nos aproximar dela, da forma mais apropriada, pela partilha e, mais distantemente, por uma analogia com a nossa própria experiência. Então, tendo vivido experiências semelhantes, podemos compassiva e empaticamente, sentir o que se passa dentro do outro. Seremos, então, ressonantes à experiência do outro e, deste modo, poderemos, aproximadamente, compreender o que está ocorrendo em seu interior. Ou pela interpretação, a partir de um olhar externo sobre as manifestações da criança ou do adulto, enquanto vivencia sua experiência; mas, aí, será sempre uma interpretação externa, ainda que, se for realizada com cuidado e amorosidade, poderá ser muito útil no acompanhamento do processo de desenvolvimento do outro.
Assim sendo, cada criança, adolescente, ou adulto, enquanto vivencia uma experiência lúdica, a vivencia como experiência plena dentro de si, em seu interior, contudo, externamente, podemos descrevê-la, o que não necessariamente nos permitirá nos apropriarmos daquilo que se deu ou se dá nessa experiência plena interna do indivíduo.
2.2. As heranças piagetianas
Em Piaget, os jogos são compreendidos como recursos fundamentais dos quais o ser humano lança mão em seu processo de desenvolvimento, possibilitando a organização de sua cognição e seu afeto, portanto a organização do seu mundo interior na sua relação com o mundo exterior.
O tema que Jean Piaget sempre se colocou, ao longo de sua vida de pesquisas sobre a inteligência humana, foi: como se dá o conhecimento? Como se constrói, no ser humano, o processo do conhecer? E sua resposta permanente foi: através das atividades. O ser humano, como um ser ativo, aprende por meio de sua ação. Age e compreende, por meio de uma
(^20) Iniciei meu trabalho com o estudo, ensino e com a prática das atividades lúdicas, em 1992. Fazem, pois, dez anos que venho me dedicando a essa temática.
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fazem, especialmente os adultos; ou seja, ela está mais voltada para apreender o mundo exterior.
A seguir, aproximadamente, entre os dois e os seis anos de idade, a criança dedicar-se-á aos jogos simbólicos; é a fase que o autor denomina de pré-operatória. Nesse período, dão-se os jogos simbólicos, onde predomina a assimilação. São os jogos da fantasia, período em que as crianças gostam muito de brincar de “faz de conta”. O mundo exterior, então, é permanentemente “assemelhado” ao mundo interior. Não importa, assim, a realidade como ela é; o que importa é o que ela pode parecer que é. Um lápis, que, na realidade, é um lápis, pode ser muitas coisas na fantasia: um cavalo, um ônibus, um carro, um avião, um barco, ou simplesmente um objeto para ser mastigado,... É também nesse período que as crianças gostam muito das estórias, dos contos de fada, das estórias imaginadas; mas, também, fabulam muito, constroem suas próprias estórias. Criam e recriam personagens e estórias. Esse é o período em que Piaget diz que predominam os jogos simbólicos.
Os jogos de regras vão predominar a partir dos seis/sete anos de idade para a frente, período denominado, inicialmente de operatório concreto (sete aos doze anos) e, depois, de operatório formal (a partir aproximadamente dos doze anos). É o período da aproximação e da posse da realidade. Em torno dos cinco, seis e sete anos, a criança vai se aproximando mais da realidade, onde se defronta não mais com as fantasias, mas sim, com os próprios dados do mundo real, o que implica em regras reais que dão forma ao mundo. É nesse período que Freud situou, especialmente, a manifestação mais plena do Complexo de Édipo, período onde fortemente as regras e papéis sociais colocam para a criança os limites das relações sociais. É por essa idade que meninos e meninas iniciam a brincar com elementos que exigem regras definidas: brincar de casinha, pai mãe, médico, advogado, enfermeira, etc. Ainda que em forma de brincadeira, são os elementos da vida real que vem à tona. Daí para frente as crianças, os pré-adolescentes, os adolescentes e os adultos jogarão jogos de regras. Esses, como os anteriores jogos auxiliarão a criança, o adolescente e o adulto aprender a operar com os entendimentos dos raciocínios abstratos e formais.
Nessa seqüência de possibilidades de jogar --- exercício, simbólico e de regras ---, a aquisição das habilidades menos complexas servirão de base para as que exigem elementos mais complexos para o agir. Assim, quem só possui a capacidade para praticar os jogos de exercício, por si, não terá condições de praticar os outros tipos de jogos, que exigem estruturas mentais e lógicas mais desenvolvidas e complexas. Todavia, aquele que já chegou ao estágio dos jogos simbólicos poderá, perfeitamente, praticar os jogos do estágio anterior (os jogos de exercício). O mesmo ocorrendo com as outras etapas do desenvolvimento e seus respectivos jogos. Isso que dizer que quem pode o menos não pode o mais; porém, quem pode o mais, pode o menos também.
A partir dessas rápidas noções sobre os jogos em Piaget, podemos concluir que, para este autor, os jogos, como atividades lúdicas, servem de recursos de autodesenvolvimento. Piaget vê os jogos como atividades que vão propiciando o caminho interno da construção da inteligência e dos afetos, na medida em que manteve-se atento a sua permanente pergunta: como o conhecimento se dá, ou seja, como é construída a capacidade do conhecer, que é interna?
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Tendo por base a compreensão piagetiana dos jogos, podemos perceber a sua significação para a vida das crianças, para os pré-adolescentes, para os adolescentes e para os adultos, na perspetiva de subsidiar o desenvolvimento interno, que significa a ampliação e a posse das capacidades de cada um. Assim sendo, podemos e devemos nos servir das atividades lúdicas na perspectiva de obtermos resultados significativos para o desenvolvimento e formação dos nossos educandos. Conhecendo a teoria e as suas possibilidades práticas, temos em nossas mãos instrumentos fundamentais para dirigir a nossa prática, propiciando oportunidades aos nossos educandos de internamente se construirem. Com essa teoria em nossas mãos, podemos saber o que fazer com as atividades lúdicas em cada fase de desenvolvimento de uma criança, um adolescente ou um adulto. Piaget nos ajuda a não colocar o carro antes dos bois. Faz-nos compreender que é preciso estar atentos ao tempo e às possibilidades de realizar e incorporar uma determinada ação.
Enquanto Freud esteve atento mais aos processos emocionais trabalhados pelo brinquedo e pelo jogo, Piaget esteve mais atento aos aspectos cognitivos trabalhados por esses mesmos recursos, sem que tenha descuidado dos aspectos afetivos e morais. Enquanto a psicanálise esteve mais atenta (não exclusivamente) à reconstrução da experiência emocional, Piaget esteve mais atento ao processo de construção dos conhecimentos e da afetividade. Todavia, ambos são de fundamental importância para quem deseja trabalhar com atividades lúdicas, seja na educação familiar, na educação escolar, na educação extra-escolar, seja na terapia.
Aqui, também, podemos observar que a atividade lúdica só poderá trazer a sensação de experiência plena, na dimensão do sujeito que a vivencia. Praticar jogos de exercício, jogos simbólicos ou jogos de regras só poderá ser pleno para quem os pratica, mas parece que todos os que os praticam com inteireza, integridade e presença, chegam a esse cume de sensação de plenitude, o que nos permite admitir que as atividades lúdicas podem e devem ser utilizadas como recursos para a busca de um crescimento o mais saudável possível.
3. Atividades lúdicas e a restauração do equilíbrio entre as camadas embrionárias constitutivas do ser humano
Para este tópico, vou servir-me de conhecimentos originários da Biossíntese, que é uma área de conhecimentos criada por David Boadella, um psicoterapêuta somático inglês, no decorrer da década de setenta, e vem sendo permanentemente recriada por ele nesses últimos trinta anos. A Biossíntese não trata de ludicidade, mas estarei aproveitando alguns de seus conceitos básicos, fazendo pontes para compreender o significado interno da vivência de experiências lúdicas.
O ser humano é constituído, embrionáriamente, por três camadas, denominadas germinativas: endoderma, mesoderma e ectoderma^22. Em torno do décimo quarto dia após a concepção, as
(^22) Neste tópico, estarei me servindo bastante do estudos de David Boadella, no seu livro Correntes da Vida , já citado anteriormente.
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dele, infelizmente, tem se feito pelo caminho do desequilíbrio entre essas camadas e essas qualidades. Esses desequilíbrios, manifestados pelas qualidades opostas acima indicadas, que são e/ou foram adquiridos no decorrer da própria experiência da vida de cada um, poderão ser restaurados para novas formas de equilíbrio, através de atividades terapêutico-educativas ou educativo-tepaêuticas, que restabeleçam o fluxo energético entre as partes componentes do ser humano, assim como entre as suas qualidades de sentir, pensar e agir, equilibradamente. Para entrar no contato mais profundo consigo mesmo, o ser humano tem necessidade de estar em contato com o visceral, com o sentimento, que, posteriormente, é compreendido e elaborado no pensamento e atuado ou realizado pelo movimento. Estabelecer e/ou restaurar o equilíbrio entre os órgãos originários das camadas germinativas do ser humano significa, também, restaurar o equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir; mas o contrário, também tem sua verdade: a experiência de restaurar o equilíbrio entre o sentir, o pensar e o agir, através da transformação de crenças, também podem atuar e atuam na reequilibração das camadas biológicas constitutivas do ser humano.
Usualmente, em nossa sociedade, nós damos pouco lugar aos sentimentos. Em função de nossa herança iluminista, queremos aprender e ensinar somente pelo processo cognitivo e, em função de nosso comprometimento com a produtividade, buscamos sempre mais e mais atividades. Com isso, nossa experiência de sentir permanece relegada ao segundo plano; ou ao terceiro, quarto,... último plano! Portanto, nosso caminho predominante é viver no desequilíbrio dos nossos elementos constitutivos, psíquicos e corporais, ao mesmo tempo.
Que isso tem a ver com atividades lúdicas? As atividades lúdicas, por serem atividades que conduzem a experiências plenas e, conseqüentemente, primordiais, a meu ver, possibilitam acesso aos sentimentos mais indiferenciados e profundos, o que por sua vez possibilita o contato com forças criativas e restauradoras muito profundas, que existem em nosso ser. A vivência dessas experiências, vagarosamente, possibilita a restauração das pontes entre as partes do corpo, assim como a restauração do equilíbrio entre os componentes psíquicos- corporais do nosso ser. Na atividade lúdica, o ser humano, criança, adolescente ou adulto, não pensa, nem age, nem sente; ele vivencia, ao mesmo tempo, sentir, pensar e agir. Na vivência de uma atividade lúdica, como temos definido, o ser humano torna-se pleno, o que implica o contato com e a posse das fontes restauradoras do equilíbrio.
No caso, agir ludicamente, de imediato, conduz para o contato com o sentimento, que se situa, fisiologicamente, nos remanescentes do endoderma em nosso corpo, o local do contato com as sensações e sentimentos mais profundos de cada um de nós, que por sua vez, abre as portas do ectoderma e do mesoderma, garantindo o pensar e o agir. Os alquimistas definiam o nosso abdomen como a fornalha, onde tudo se transforma. É para aí que as atividades lúdicas nos conduzem; para a fornalha dos nossos sentimentos e das nossas emoções, aos quais serve nosso pensamento e nossa ação. É nessa fornalha que encontramos as fontes restauradoras da vida, porque ainda muito primordiais, primais, básicas.
Como as atividades lúdicas, desde que vivenciadas, podem ser um suporte na construção ou na restauração do equilíbrio energético do ser humano? David Boadella diz que nós seres humanos somos constituídos por polaridades e a principal de todas as polaridades é a que se refere ao interior e ao exterior. O interior é nossa Essência, o Âmago do ser nosso, o centro
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dos anseios, de nossa alma. O exterior é o nosso corpo, nossa personalidade, é o campo da energia. O âmago é o Âmago, ele não pode ser manipulado; ele é o que É. Com ele, nós só podemos manter contato e esse contato é curativo, quando ocorre, devido estar para além de todo pensamento, de todo julgamento, de todo “ego”. Nossa essência é curativa porque é divina. Mas a energia, que é externa, é força e nos permite viver e agir; ela é um potencial, que, quando atualizada em nossas experiências cotidianas, pode estar ordenada ou desordenada. Ela necessita de ser ordenada para permitir nosso contato com nossa Essência. Assim sendo, caso ela seja só um potencial, ainda, podemos construí-la ordenadamente pela aprendizagem e pela educação; caso ela já esteja construída de alguma forma, ordenada ou desordenadamente, podemos reconstruí-la de forma mais adequada e funcional, tendo em vista nos possibilitar um suporte externo para entrarmos em contato com nossa Essência, nosso Âmago.
Quando ordenamos ou reordenamos nosso campo energético, ele permite um contato com nosso Âmago, com nossa Essência. E esse contato, como dissemos é curativo, na medida em que ele, desde que estabelecido, reverbera para todas as nossas experiências de vida. E esse contato com Âmago, na maior parte das vezes, será rápido e fugaz, mas será um contato e a partir dele, nossa vida vai se transformando e tornando-se o que necessita de ser. As atividades lúdicas ordenam ou reordenam o campo de nossa energia e, por isso, em momentos fugazes ou mais duradouros, nos permitem um contato com nossa Essência, por menor que seja. Com o tempo e com repetidas experiências plenas, para além do ego, vamos podendo manter um contato mais permanente com nossa Essência, vamos sendo capazes de sustentar essa experiência.
Para compreender o que é contato com o Âmago do nosso ser, transcrevo a história de vida que se segue. No caso, é preciso ter isso claro, é uma experiência a partir de uma doença, que permitiu um contato com a Essência; contudo o contato com a Essência não necessita de ser feito pela dor; pode e, acredito, deve ser através da alegria, da beleza, da experiência plena propiciada pela vivência de atividades lúdicas no decorrer da vida. O texto só nos serve para compreender o que é contato com a Essência e não para compreender o que é ludicidade; porém vale a pena lê-lo; é ilustrativo. Essa história de vida foi relatada por Rachel Naomi Remen, em seu livro As bênçãos do meu avô - histórias de relacionamento, força e beleza , Editora Sextante
Como parte de uma pesquisa, pedi a setenta e três médicos que classificassem por ordem de importância uma lista de vinte e um valores: primeiro de acordo com o que era mais importante em seu trabalho; segundo, na vida pessoal. A lista incluía itens como admiração, controle, sabedoria, competência, amor, poder, solidariedade, alegria, fama, sucesso, e bondade. Não recebi duas listas idênticas. Ao contrário, muitas eram totalmente diferentes, A bondade, por exemplo, era o número dois na lista de valores pessoais e número quinze na lista de valores do trabalho da mesma pessoa. Competência ocupava o primeiro lugar na lista da vida profissional e ficava em último na vida pessoal do mesmo médico. Muitos ficaram impressionados ao constatar que viviam de uma maneira diferente daquela que acreditavam. A tarefa chamou a atenção deles para esse fato pela primeira vez. Ao discutir os resultados, um surpreendente número de médicos afirmou que achava
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- Desde o instante em que acordei daquela cirurgia, Rachel, tive certeza, sem a menor sombra de dúvida, de que estava vivendo uma vida que não era minha. Sofri muitas pressões dos meus pais para alcançar o sucesso. Eles estavam muito orgulhosos por eu ter escapado da dura vida que levavam há tantas gerações. No início, eu me senti envolvido pelo desafio, querendo muito vencer. Meu pai era um agricultor, assim como meu avo e meu bisavô. Ele detestava o trabalho que fazia, mas eu sou diferente. Eu compreendo a terra. Ela é importante para mim. Conheço este trabalho como conheço a mim mesmo. Sinto que pertenço a este lugar de uma maneira que jamais senti em qualquer outro.
Nós nos sentamos na varanda de sua casa, admirando o imenso mar verde formado pelas videiras que dançavam gentilmente ao sabor do vento. Rosas contornavam a cerca da casa. O mundo dos negócios estava a anos-luz de distância. Como se pudesse ler meus pensamentos, ele me disse, com um sorriso nos lábios:
- Meu lema costumava ser: "Faça do meu jeito ou desapareça". Eu me sinto muito orgulhoso de estar vivendo pessoal e profissionalmente, de acordo com os meus desejos. Foi difícil enxergar que eu tinha me vendido de uma maneira tão completa que nem conseguia perceber.
A busca da integridade é um processo contínuo que requer nossa atenção constante. Um colega médico, descrevendo sua própria busca da autenticidade, contou-me que vê a vida como se fosse uma orquestra. Lutar por sua integridade o faz lembrar do momento em que, antes do concerto, o maestro pede ao oboísta que toque um lá. No início ouve-se um barulho caótico, causado pelos músicos que tentam harmonizar seus instrumentos a partir daquela nota. Porém, à medida que cada um deles se aproxima do tom, o barulho diminui e, quando finalmente tocam juntos, há um momento de paz, um sentimento de volta ao lar.
- É assim que eu sinto - ele me disse - Estou sempre afinando a minha orquestra. Em algum lugar dentro de mim existe um som que é só meu e eu luto todos os dias para ouvi- lo e para afinar minha vida por ele. Algumas vezes, as pessoas e as situações me ajudam a ouvir minha nota com maior clareza. Outras vezes, elas dificultam a minha audição. Depende muito do meu compromisso em querer ouvir e da minha intenção de manter-me coerente com essa nota interior. Somente quando estou harmonizado com ela é que posso tocar a música misteriosa e sagrada da vida, sem corrompê-la com minha própria dissonância, minha própria amargura, meus ressentimentos e temores. Quer estejamos ouvindo ou não, no fundo de nossos corações a nossa integridade canta. É uma nota que só nossos ouvidos conseguem perceber. Algum dia, quando a vida nos deixar prontos para ouvi-la, ela vai nos ajudar a encontrar nosso caminho de volta para casa.
Além de ter dito que essa história de vida só servia para compreendermos o que é contato com o Âmago, e não para definir o que é ludicidade, pois, caso contrário, pareceria que estou defendendo que a dor (no caso, um câncer) seria o caminho para estabelecer esse contato do qual vimos falando, importa, ainda, observar que o final da história deixa transparecer que o contato verdadeiro com o Âmago vai acontecer algum dia, quando estivermos prontos. Não! Ele acontece sempre e durante toda nossa vida, nos momentos em que nossa energia esteja
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ordenada ou reordenada, pára permitir esse contato, que pode ser fugaz, rápido, como dissemos acima, mas contato^24. E, é isso que é importante.
Sobre a experiência da dor, que também pode nos colocar em contato com a Essência, talvez, pudéssemos dizer assim: a vida nos diz que, pela ludicidade, podemos estabelecer esse contato, mas, como somos recalcitrantes, a vida nos propicia um susto, que também pode ser curativo. Contudo, porque esperar por esse susto?
Encerrando esse texto, novamente retornamos ao nosso conceito de ludicidade como oportunidade de experiência plena interna, podemos observar que quem terá que fazer o percurso da experiência lúdica, para que ela seja plena, é o próprio sujeito da ação.
Objetivamente, poderemos ter muitas descritivas e análises das atividades lúdicas, que são profundamente importantes para nossa compreensão das coisas, mas só o sujeito, enquanto vivente, poderá experimentar a ludicidade como experiência plena em seus atos; e como essa experiência pode nos tornar criadores e recriadores de nossa vida, de uma maneira mais saudável.
Poderíamos continuar nos servindo de múltiplos outros estudos para compreender o significado e o uso das atividades lúdicas na vida humana e na educação. Mas, por enquanto, fiquemos por aqui.
4. Algumas observações, ainda
Enquanto anteriormente, eu citava um trecho de escritos passados meus sobre a compreensão da ludicidade, dizia que uma “atividade lúdica poderia ser divertida ou não”. A expressão “ou não” merece, minimamente, uma explicitação.
Como tenho definido, reiteradamente, que a ludicidade é um estado interno de experiência plena, importa observar que as experiências divertidas podem ser lúdicas, como também não, assim como experiências não divertidas podem ser lúdicas.
Por exemplo, uma atividade muito comum em grupos de pessoas, seja de crianças, adolescentes ou adultos, é colocar alguém na berlinda e iniciar um processo de tirar o riso de todos a partir de selecionar e ridicularizar um ato, um modo de ser ou uma experiência dessa pessoa. Os apelidos, na maior parte das vezes, provêem dessa experiência. Uma mulher alta recebe o nome de “garça”, um magro recebe o nome de “palitinho”, e outros mais. Será que essas pessoas se sentem bem sendo assim chamadas? Mas, todos continuam a chamá-la dessa forma, sempre achando graça; e, quando a graça acabar, por hábito, a pessoa levará esse nome por muitos anos ainda ou pelo resto da vida.. Ocorre isso também a partir de um gesto
(^24) Essa observação sobre esse ponto da história foi levantado em reunião do nosso Grupo de Estudos, por Washington Oliveira, doutorando de nosso Programa.