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A Mão Invisível do Mercado: Neoliberalismo e Obstáculos à Liberdade Econômica, Notas de aula de Riqueza

Este texto examina as ideias centrais do neoliberalismo, incluindo as virtudes organizadoras do mercado, a mão invisível de adam smith e os obstáculos que impedem a efetivação do sistema de liberdade natural. O documento aborda a história econômica dos séculos xvii e xviii, a tutela dos poderes públicos sobre a indústria e as leis que recerceavam a mobilidade e livre uso da força de trabalho.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

VictorCosta
VictorCosta 🇧🇷

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LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO - uma introdução comparativa1
REGINALDO C. CORRÊA DE MORAES2
A expressão "neoliberalismo" reúne duas coisas diferentes. Uma apela à novidade
(o prefixo neo). Outra sugere a retomada de tradição mais antiga, o liberalismo clássico,
dos séculos XVIII e XIX.
O neoliberalismo de nossos dias pode efetivamente ser encarado desse modo. É
um movimento de idéias que guarda paralelos com seu antecessor - e procura realçar tais
paralelos, até mesmo como uma forma de legitimar-se através da antiguidade das idéias. E
é também um novo movimento, frente a novos tempos e respondendo a novas questões -
e também apela, quando conveniente, a este lado "inovador e contemporâneo", ainda uma
vez como estratégia de legitimação.
Esse confronto pode ser útil à compreensão desse fenômeno. Por isso iniciaremos
descrevendo algumas dessas semelhanças e diferenças. Para entender melhor o que
de novo no neoliberalismo.
A primeira parte desta exposição, portanto, tratará de expor as idéias mestras do
liberalismo clássico, bem como os inimigos contra os quais se (a política mercantilista e as
corporações). A segunda parte, simetricamente, examinará as idéias centrais do
neoliberalismo - e os inimigos contra os quais se volta (Estado keynesiano, sindicatos e
welfare state, nos países desenvolvidos - e estado desenvolvimentista e "democracia
populista", nos países subdesenvolvidos). E, finalmente, trataremos de indicar alguns dos
rumos que, a nosso ver, precisam ser trilhados pela crítica (prática e teórica) dessa
ideologia.
I - O LIBERALISMO CLÁSSICO
Como se sabe, pedra fundamental do liberalismo costuma ser identificada com
Adam Smith, mais especialmente com a publicação de A Riqueza das Nações, em 1776,
1Este texto foi preparado inicialmente para uma palestra, proferida na Semana de Ciências
Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santo André (setembro de 1997). Foi em
seguida reescrito e emendado, mas conservou, em grande medida, o tom original.
2Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e bolsista do CNPq.
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LIBERALISMO E NEOLIBERALISMO - uma introdução comparativa^1

REGINALDO C. CORRÊA DE MORAES^2

A expressão "neoliberalismo" reúne duas coisas diferentes. Uma apela à novidade (o prefixo neo). Outra sugere a retomada de tradição mais antiga, o liberalismo clássico, dos séculos XVIII e XIX. O neoliberalismo de nossos dias pode efetivamente ser encarado desse modo. É um movimento de idéias que guarda paralelos com seu antecessor - e procura realçar tais paralelos, até mesmo como uma forma de legitimar-se através da antiguidade das idéias. E é também um novo movimento, frente a novos tempos e respondendo a novas questões - e também apela, quando conveniente, a este lado "inovador e contemporâneo", ainda uma vez como estratégia de legitimação. Esse confronto pode ser útil à compreensão desse fenômeno. Por isso iniciaremos descrevendo algumas dessas semelhanças e diferenças. Para entender melhor o que há de novo no neoliberalismo. A primeira parte desta exposição, portanto, tratará de expor as idéia s mestras do liberalismo clássico, bem como os inimigos contra os quais se (a política mercantilista e as corporações). A segunda parte, simetricamente, examinará as idéias centrais do neoliberalismo - e os inimigos contra os quais se volta (Estado keynesiano, sindicatos e welfare state, nos países desenvolvidos - e estado desenvolvimentista e "democracia populista", nos países subdesenvolvidos). E, finalmente, trataremos de indicar alguns dos rumos que, a nosso ver, precisam ser trilhados pela crítica (prática e teórica) dessa ideologia.

I - O LIBERALISMO CLÁSSICO

Como se sabe, pedra fundamental do liberalismo costuma ser identificada com Adam Smith, mais especialmente com a publicação de A Riqueza das Nações, em 1776,

(^1) Este texto foi preparado inicialmente para uma palestra, proferida na Semana de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Santo André (setembro de 1997). Foi em seguida reescrito e emendado, mas conservou, em grande medida, o tom original. 2 Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp e bolsista do CNPq.

com certeza um dos livros mais reeditados e citados dos tempos modernos. Trata-se de momento decisivo porque, a partir de então, uma série de idéias deixam se ser apenas intuições, reveladas aqui e ali, e começam a constituir um verdadeiro sistema de pensamento. Um sistema que afirma, convictamente, que o mundo seria melhor

  • mais justo, racional, eficiente e produtivo - se houvesse livre iniciativa, se as atitudes econômicas dos indivíduos (e suas relações) não fossem limitadas por regulamentos e monopólios estatais. Uma doutrina que prega a necessidade de desregulamentar e privatizar as atividades econômicas, reduzindo o Estado a funções bastante definidas. Estas funções constituem apenas parâmetros bastante gerais para as atividades livres dos agentes econômicos. São três, basicamente: a manutenção da segurança interna e externa, a garantia dos contratos e a responsabilidade por serviços essenciais de utilidade pública. Segundo a doutrina liberal, a procura do lucro e a motivação do interesse próprio estimulam o empenho e o engenho dos agentes, recompensam a poupança, a abstinência presente, e remuneram o investimento. Além disso, reconhecem a iniciativa criadora, incitando ao trabalho e à inovação. Criam um sistema ordenador (e co-ordenador) das ações humanas, identificadas com ofertas e demandas mediadas por um mecanismo de preços. Esse é um sistema que revelaria de modo espontâneo e incontestável as necessidades de cada um e de todos os indivíduos da sociedade; um sistema que também indicaria a eficácia da empresa e dos empreendedores, sancionando as escolhas individuais, atribuindo-lhes valores (negativos ou positivos).^3 As virtudes organizadoras e harmonizadoras do mercado são lapidarmente sintetizadas por Smith: "Assim é que os interesses e os sentimentos privados dos indivíduos os induzem a converter seu capital para as aplicações que, em casos ordinários, são as mais vantajosas para a sociedade (...). Sem qualquer intervenção da lei, os interesses e os sentimentos privados das pessoas naturalmente as levam a dividir e distribuir o capital de cada sociedade entre todas as diversas aplicações nela efetuadas, na medida do possível, na

(^3) BENTHAM irá declarar, em 1789: "A livre concorrência equivale a uma recompensa que se concede àqueles que fornecem as melhores mercadorias pelos preços mais baixos. Ela oferece uma recompensa imediata e natural, que uma multidão de rivais alimenta a esperança de conseguir, e atua com maior eficácia que um castigo distante, do qual cada um talvez espere escapar"

para gerar Eficiência, Justiça e Riqueza. Eficiência, porque propicia o uso mais eficaz das potencialidades proporcionadas pela natureza, distribui o trabalho de modo mais eficiente e mais econômico. Justiça, porque estimula a dedicação ao trabalho e recompensa a engenhosidade. E Riqueza, já que, pelo aumento geral de volume de produtos, difunde-se o benefício de modo geral. Os resultados, nos limites da liberdade, são a paz e a harmonia internacional. Contra quem se movem os pais fundadores do liberalismo? Quais são os obstáculos que impedem a efetivação do "sistema de liberdade natural", que eles acreditavam ser tão evidentemente vantajoso para todos, mas tão difícil de vislumbrar na história dos países que examinavam? Lembremos um comentário de conhecida e já clássica apresentaçã o do liberalismo europeu, escrita por Laski, há várias décadas 7. Ele afirma: "O que desapareceu na primeira metade do século XVII foi o entusiasmo por quaisquer regulamentações sociais e econômicas que não emanassem do Parlamento".

E mais adiante completa:

"(a Reforma) substituiu a Igreja pelo príncipe, como fonte das leis que regulavam o comportamento social. Locke e sua escola substituíram o príncipe pelo Parlamento, como mais adequado para dar às leis um propósito social. Adam Smith foi mais além e acrescentou que, com algumas exceções secundárias, não havia necessidade alguma do Parlamento interferir."

Levemos em conta esse comentário e coloquemos então de outra forma a pergunta anterior: segundo os pensadores liberais, quem, exatamente, regulamentava a livre iniciativa de modo tão visivelmente irracional, impedindo a emergência de indivíduos criativos e empreendedores? É ainda Smith quem descreve com mais vigor esse sistema de restrições e ordenamentos, deixando entrever os responsáveis pela sua manutenção: "É dessa forma que todo sistema que procura, por meio de estímulos extraordinários, atrair para um tipo especifico de atividade uma parcela de capital da sociedade superior àquela que naturalmente para ela seria canalizada, ou então que, re correndo a restrições extraordinárias, procura

p. 104. 7 Trata-se de O Liberalismo Europeu (ed. Mestre Jou, S.Paulo, 1973).

desviar forçadamente, de um determinado tipo de atividade, parte do capital que, caso contrário, naturalmente sena para ela canalizada, na realidade age contra o grande objetivo que tenciona alcançar. Ao invés de acelerar, retarda o desenvolvimento da sociedade no sentido da riqueza e da gran- deza reais e, ao invés de aumentar, diminui o valor real da produção o anual de sua terra e de seu trabalho."^8

A argumentação de Smith é clara. É necessário que a disciplina anônima da concorrência substitua a disciplina visível das hierarquias arcaicas - estejam estas hierarquias encarnadas em obrigações tradicionais e personalizadas do medievo ou nos regulamentos fixados pelas corporações e pelo estado mercantilista. Elogia-se a virtuosa mão invisível do mercado contra a viciosa mão visível do poder político. Os inimigos do progresso são facilmente identificáveis: os regulamentos estatais - mais especificamente, a política econômica dirigista do mercantilismo - e as corporações. São exemplos desse tipo de entrave os regulamentos sobre materiais, técnicas, preços e monopólios, sobre mão-de-obra (como a Lei inglesa dos aprendizes de 1563, as leis dos pobres unificadas em 1601, por Elisabeth, a Lei do domicílio, o Act of Settlement de 1662). Notar: O pensamento liberal nasce, fundamentalmente, como uma negação de outro mundo, outro sistema de valores e idéias. Pelo menos 1 em cada 4 páginas do Riqueza das Nações é dedicada à crítica do mercantilismo. Vejamos um pouco mais de perto o que é essa regulamentação mercantilista.

Os entraves mercantilistas

França e Inglaterra são os exemplos mais acabados e mais condenados pela crítica liberal nascente. De que se trata? Quem lê o clássico livro de Mantoux, sobre a revolução industrial na Inglaterra^9 , encontra o diagnóstico segundo o qual a história econômica dos séculos XVII e XVIII seria caracterizado por uma tutela dos poderes públicos sobre a indústria, "um regime estabelecido pelo costume e consagrado pela lei". Muitas vezes, alguns desses regulamentos e leis teriam sobrevivido, com ligeiras mudanças, desde a Idade Média, como o controle minucioso (e tortuoso) da vida

(^8) SMITH, Riqueza das Nações, ed. cit., pp. 46-47. (^9) MANTOUX, A Revolução Industrial no Século XVIII - estudo sobre os primórdios da grande

processos. E também aqui, aos meticulosos regulamentos sobre todas as esferas e momentos da vida econômica, somavam-se, necessariamente, sistemas complexos e pesados de vigilância sobre fabricantes e comerciantes, tornando visível a figura do soberano em cada átomo do reino.

As corporações

Mas a crítica liberal volta-se também contra as corporações de ofício e contra o privilegio dos mestres, já que constituíam entraves à liberdade passar de uma profissão a outra, ou simplesmente, de exercer um ofício que o indivíduo julgasse de seu interesse. Essas associações teriam, aos olhos de liberais como Smith, teriam o inconveniente supremo de constituírem canais obrigatórios de controle, planejamento e direção da produção artesanal, determinando qualidade das mercadorias, níveis de preços, quantidade, margem de lucro, regulamentando a abertura de novas lojas e pontos de venda, estabelecendo regras bastante estritas sobre os artesãos e a mão de obra em geral (normas de obrigatório cumprimento quanto à aprendizagem, emprego, salário e assistência). Smith bate duro nas corporações. Afirma que as reuniões da "pessoas da mesma profissão (...) terminam em uma conspiração contra o público, ou em algum incitamento para aumentar os preços" (SMITH, 1983,v.I,p.139). Se não se pode evitá-las, "nada se deve fazer para facilitá-las e muito menos para torná-las necessárias". Seriam facilitadas quando regulamentos obrigassem a inscrição dos membros de uma profissão num registro público, o que abre caminho a contatos e conluios. Seriam induzidas à necessidade quando regulamentos autorizassem os membros de uma profissão a impor taxas (estendendo portanto o acordo feito entre alguns, agora, para o universo de todos, no futuro). A mensagem de Smith é clara: a autoridade pública, ao invés de regulamentar a existência de corporações, deve atuar desestimulando sua manutenção e os regulamentos que delas emanam.

A ordem política liberal

A partir dessa matriz, constituída basicamente já nas últimas décadas do século XVIII, a tradição liberal desdobrou-se em dois grandes eixos de princípios programáticos:

  1. A procura do interesse pr óprio conduz ao ajustamento entre os indivíduos e a uma determinada harmonização dos diferentes esforços e vontades. Delineia -se a convicção na existência de "leis econômicas": as ações intencionais das pessoais produzem, de modo inintencional (e necessariamente de modo inintencional), regularidades semelhantes às leis de um sistema físico. Daí o casamento entre as dimensões descritiva e normativa do pensamento liberal clássico: as "natural laws" tendem a ser "benefical laws", desde que se tenha adequado ambiente institucional.
  2. O poder politico deve ser cuidadosamente limitado pela lei

Veja-se bem: é fundamental em todas as tradições liberais a convicção de que se deve limitar a intervenção do poder político (as ações do soberano - seja ele rei ou parlamento) para permitir que os indivíduos vivam como bem entendam. Aí figuram a defesa das liberdades individuais, a crítica da intervenção estatal, o elogio das virtudes reguladoras do mercado. O imaginário liberal recusa a figura do Estado-máquina que, de fora, intervém sobre a felicidade dos indivíduos. Mas também recusa as concepções organicistas da sociedade, baseadas na idéia de uma rígida hierarquia, que encarcera o indivíduo no seu estrato e o habitua a ações padronizadas. Volta-se contra figuras do pensamento antigo e medieval (geralmente identificadas com o platonismo e com São Tomás), negando haver fins objetivos e universais da existência humana. Não havendo nenhuma ideia de bem ou de felicidade sobre a qual os homens possam e devam entrar em a cordo, não pode a sociedade ser organizada em função desses valores, a não ser que alguns imponham sua própria escala, o que nos levaria ao despotismo. Cabe ao indivíduo o direito de escolher seus objetivos e seus caminhos. O único acordo admissível para o liberalismo é este: cabe organizar a sociedade de modo que cada um possa viver como bem entenda, procurar felicidade como quiser. Ademais, a diversidade não seria um mal a tolerar, mas um bem a promover. Esse é o veio forte do pensamento liberal, tal como se manifesta em vozes fundadoras como as de Smith, Mandeville, Ferguson, Hume: o homem é motivado pelo self -

nossos cientistas políticos. A terceira é mais complicada, e daria margem a muita controvérsia entre os liberais, nos dois últimos séculos. Porque Smith não diz exatamente como delimitar o espaço legitimo das obras e instituições publicas que o soberano poderia criar e manter. É certo que diz claramente que elas só existiriam se não houvesse possibilidade de oferta pelos interesses privados, o que é um critério bastante restritivo, mas cujos limites são difíceis de definir de uma vez pa ra sempre.

II. O NEOLIBERALISMO

Se a plataforma de lançamento do liberalismo clássico pode ser vista no Smith da Riqueza das Nações, o neoliberalismo tem seu manifesto fundador publicado em 1944: O Caminho da Servidão, de Friedrich von Hayek. Tem ainda sua festa de inauguração - a conferência que dá origem à Sociedade Mont Pèlerin, na Suíça, em 1947.^12

(^12) Há muitas e boas razões para que os neoliberais prefiram este livro e a famosa reunião de Mont Pelérin como refe rências básicas do seu movimento. À primeira vista, poderíamos recuar um pouco mais, com o Good Society, ensaio de Walter Lippmann publicado em 1937, e com o colóquio a ele vinculado (Paris, 1938). Mas o leitor de nossos dias pode perceber em Lippmann idéias e capítulos inteiros que a ortodoxia neoliberal veria como inaceitáveis e envergonhadas concessões ao dirigismo, ao estado-providência e ao keynesianismo ascendente. Não é o caso de estendermos agora esta nota, mas valeria a pena voltar a este item, em outra ocasião.

Livro de combate, provocativamente endereçado "aos socialistas de todos os partidos", O Caminho da Servidão não dirige seu fogo apenas contra os partidários da revolução e da economia globalmente planificada, mas a toda e qualquer medida política, econômica e social que indique a mais tímida simpatia ou concessão para com as veleidades reformistas, pretensões de "terceira via", etc. Lembremos, de passagem, que as eleições estavam próximas na Inglaterra, e o partido trabalhista, alvo visível de Hayek, preparava-se para ganhá-las (e ganhou, em 1945). Sublinhemos ainda este um traço que viria a ser marcante no fundamentalismo hayekiano: a insistência na necessidade de guardar intactos, radicalmente, os princípios da "sociedade aberta", centrados numa implacável crítica do Estado-providência, tido como destruidor da liberdade dos cidadãos e da competição criadora, bases da prosperidade humana. O liberalismo clássico havia assestado baterias contra o Estado Mercantilista e as corporações. Os novos cruzados da livre-iniciativa pretenderam desde logo construir um análogo daquele mundo, para justificar seu combate e apresentá-lo como a continuação de uma respeitável campanha anti-absolutista. Os inimigos agora recebem outros trajes, mas revelariam taras ancestrais

e perversões reiteradas. Um desses inimigos é o conjunto institucional composto por Estado-de-Bem- Estar, planificação, intervenção estatal na economia, tudo isso identificado com a doutrina keynesiana. O outro inimigo é localizado nas modernas corporações - os sindicatos e centrais sindicais, aliás também paulatinamente integrados (e esse é o problema...) no conjunto institucional anteriormente mencionado, já que, além de sabotar as bases da acumulação privada, através de reivindicações salariais, os sindicatos teriam empurrado o Estado a um crescimento parasitário, através da imposição de despesas sociais e investimentos sem perspectiva de retorno. Para os países latino americanos, uma tradução seria necessária: aqui o adversário estaria no Estado gerado pelo nacional- desenvolvimentismo cepalino, pelo populismo... e pelos comunistas, evidentemente. A partir de tal diagnóstico apocalíptico, a receita salvacionista não poderia ser outra: forte ação governamental contra os sindicatos e prioridade para uma política anti-inflacionária monetarista, doa a quem doer... Reformas de base, só que desta vez "market-oriented-reforms", reformas orientadas para e pelo mercado. Examinemos mais de perto este cenário - o mundo que nossos neoliberais vêem e rejeitam.

A crise das regulações

Comecemos lembrando que no Século XIX o "livre mercado" era, em verdade, um mundo imposto pela dominação inglesa. Era ainda o século em que estadistas e pensadores louvavam a concorrência, mas era também um período coroado por severas crises de superprodução e pela disputa de grandes potências na corrida para dominar impérios neocoloniais. Nessa cadência, as primeiras décadas do século XX iriam ser marcadas por guerras continentais e sequências de revoluções, clima que iria fortalecer, nos mais variados discursos intelectuais - jornalistas, políticos, intelectuais, romancistas e cineastas - o tema da "rebelião das massas", o perigo de um mundo que ficara permeável à presença da plebe na política. Para completar a conturbada cena, a monumental crise de 1929 daria ainda mais autoridade a saídas reguladoras que vinham sendo formuladas por liberais-reformistas, adeptos da regulagem estatal, desde o início do século. Brilharia, nessa ocasião, a filosofia social exposta por John Maynard Keynes no final de sua Teoria Geral, livro publicado em 1936, mas que, em várias de suas passagens, retomava problemas que Keynes vinha analisando desde os anos '20. Na doutrina keynesiana, o Estado manejaria grandezas macroeconômicas sobre as quais era possível acumular conhecimento e controle prático, regulando oscilações de emprego e investimento, de modo a moderar crises econômicas e sociais. O New Deal norte-americano e o Estado de Bem Estar europeu iriam testar (e aprovar durante bom tempo) a convivência do capitalismo com um forte setor público, negociações sindicais, politicas de

Espanhol, o segundo governo Miterrand, na França, os trabalhistas da Nova Zelândia). Os neoliberais preservaram sua ortodoxia na travessia do deserto. E voltaram à cena, na ocasião propícia. Estava no fim o período dos "Trinta Gloriosos", os bons tempos do capitalismo do pós-guerra. No início dos anos ´70, a reforma monetária cambial norte-americana dava o sinal: o dólar não teria mais conversão automática em ouro. Em 1974, registrava-se pela primeira vez a estagflação

  • para o conjunto dos países capitalistas desenvolvidos, juntavam-se inflação alta e estagnação. Mas ainda seriam necessários alguns anos de crise e de insistente pregação para que o novo ideário impusesse sua hegemonia. Em 1979, Margaret Thatcher conquista a Inglaterra. Em 1980 é a vez de Reagan, nos EUA. Em 1982, Helmut Kohl, na Alemanha. Para a América Latina as datas seriam outras. Pioneiros foram o Chile de Pinochet (1973) e a Argentina dos generais e do ministro Martinez de Hoz (1976). Outros países seguem choques e reformas similares: Bolívia, em 1985 (receita de Jeffrey Sachs, o mesmo da Polônia e Rússia); México, 1988, com Salinas de Gortari; 1989, novamente a Argentina, desta vez com Menen; 1989, Venezuela com Carlos Andrés Perez; Fujimori, no Peru, em 1990. Não me deterei aqui no exame dessa cadeia conceitual e das diferentes vertentes e escolas do neoliberalismo^15. Também não pretendo recompor a história política desse movimento de idéias, nos principais centros produtores de ideologia neoliberal.^16 Vou apenas mencionar alguns dos aspectos dessa história política e intelectual recente, aqueles que me parecem mais próximos e mais apelam à nossa memória mais imediata. A reconstrução é bastante seletiva, mas não aleatória, visando salientar alguns dos temas mais relevantes do pensamento político neoliberal.

A cruzada neoliberal

Muitos de nós ainda lembram que há alguns anos o governo brasileiro (gestão Collor de Mello) fez transitar pelas TVs uma campanha publicitária promovendo a política de privatização de empresas estatais. A sua mensagem poderia ser sintetizada nas seguintes idéias. O Estado deveria transferir ao setor privado as atividades produtivas em que indevidamente se metera, e deixar a cargo da disciplina do mercado as atividades regulatórias que em vão tentara estabelecer. Isto posto, o Estado passaria a

(^15) Tratei desses aspectos em "Exterminadores do Futuro - a lógica dos neoliberais", in Universidade e Sociedade número 6, julho de 1994, pp.6-11 e "A democracia mal comportada - a teoria política do neoliberalismo econômico", in Universidade e Sociedade, ano VI, n. 11, junho de 1996, pp. 121-129 16 Para quem se interesse por essa história, há dois importantes e minuciosos estudos. Richard Cockett analisa os centros de elaboração e difusão da doutrina neoliberal na Inglaterra: Thinking the Unthinkable - Think-Tanks and the Economic Counter-Revolution (1931-83) (Fontana Press/HarperCollins, Londres, 1995). Para o caso norte-americano, ver o livro de George Nash: The Conservative Intellectual Movement in the United States since 1945 (Basic Books, N. York, 1976).

ter melhores condições de dedicar-se com eficiência à sua verdadeira vocação, o assim chamado "setor social". Nas imagens da publicidade televisiva, o Estado, paquiderme balofo e abobalhado, seria submetido a regime de emagrecimento e ginástica, voltando esbelto e fagueiro, para cuidar das crianças e dos idosos. A palavra de ordem mais geral dessa avassaladora campanha pode ser resumida em duas exigências complementares: privatizar empresas estatais e serviços públicos e "desregulamentar", isto é, diminuir a interferência dos poderes públicos sobre os empreendimentos privados. Topicamente, os temas e ocasiões para esse ataque, mais genérico, são variados: protestos contra pressões fiscais apresentadas como insuportáveis, contra políticas redistributivas tidas como paternalistas e desastrosas, a extensão de atividades do setor publico a domínios afirmados como "naturalmente" privados, a regulamentação supostamente hipertrofiada dos contratos entre particulares (normas sobre aluguéis, direito do trabalho e previdência, mensalidades escolares, etc). Porém, quase ao mesmo tempo, a imprensa mais conservadora ia um pouco além e esgrimia uma antiga crítica ao "Estado-Providência", o argumento do efeito-perverso. Segundo esse arrazoado, buscando proteger o cidadão das desgraças da sorte, o Estado aparentemente benfeitor acabava na verdade produzindo um inferno de ineficácia e clientelismo, pesadamente pago pelo mesmo cidadão que à primeira vista procurava beneficiar.^17 E, efetivamente, nos últimos tempos, a frente de batalha foi estendida, passando-se a preconizar ou sugerir com mais insistência a privatização também das atividades sociais anteriormente apresentadas como beneficiárias do desmonte do Estado-empresário. Agora, educação, saúde e previdência estão sob o fogo cerrado da artilharia "modernizadora" e privatizante. Com frequência cada vez maior, polemistas neoliberais e ex-esquerdistas recém-convertidos dedicam seus esforços persuasivos à identificação das raízes de nossas desgraças socio- econômicas. Quais são as políticas erradas que levaram à estagnação econômica, à desigualdade social, ao clientelismo político e à edificação de uma máquina estatal corrupta? E quem foram os responsáveis pela adoção de tais práticas? As políticas nocivas são claramente identificadas: orçamentos públicos sobrecarregados, folhas de pagamento inchadas, emissões monetárias irresponsáveis, excessiva regulamentação sobre investimentos, recursos injetados em empresas estatais deficitárias e parasitárias, hostilidade

(^17) Albert Hirschman desenha interessante retrato de dois séculos de persuasão reacionária em A Retórica da Intransigência - perversidade, futilidade, ameaça (Companhia das Letras, S. Paulo, 1992). Os escritos de Friedrich von Hayek e da escola norte-americana da Public Choice atualizam, para nossos tempos, essa retórica do efeito perverso. Não menos interessante é o argumento presente nos documentos do Banco Mundial e do BID que analisam as políticas sociais no Terceiro Mundo - adotam essa estratégia persuasiva para mostrar o quanto seriam socialmente progressistas suas propostas de reformas-orientadas-para-o- mercado, e quanto seriam efetivamente conservadoras, corporativas e elitistas as posições "estatistas" em geral.

argumento. Ele parte da premissa que a própria criação de conjuntos humanos reduzidos à derrota (e mesmo à desaparição) é algo que se coloca acima e além da idéia de justiça, desde que não haja discriminação precisa dos atingidos pelo julgamento do mercado. Assume ainda a idéia de que sem dolo não há crime, ou de que sem intenção não há mal. Levado às últimas consequências, equivaleria a afirmar que se um motorista sai dirigindo seu carro embriagado e em alta velocidade, atropelando algumas pessoas, não pode ser propriamente atingido pelo julgamento da justiça (ao menos por esse crime), já que não tinha a intenção de matar ninguém, nem discriminou, antecipadamente, quem seria atingido pelo seu veículo... O mercado é apresentado ainda como juiz supremo da eficiência - será que é sempre o eficiente aquilo que é gerado pelo mercado? eficiente para quem? e dentro de qual horizonte de tempo (curto ou longo prazo)? É certo que determinadas atividades podem gerar baixos custos e altos lucros para um empreeendedor e preços convidativos para o consumidor - provocando, contudo, altos custos sociais e de longo prazo. Pode ser mais conveniente a curto prazo - para fabricantes e consumidores - o farto uso de embalagens plásticas. Quais as implicações disso para o meio-ambiente e para a saúde, a médio e longo prazo? Quando esses resultados da operação reguladora do mercado aparecerem, os danos já serão irreversíveis. Pode ser mais barato utilizar automóveis particulares para transitar na metrópole, mas os custos da poluição e dos congestionamentos podem inviabilizar a vida humana. Será o mercado regulador suficiente de tais escolhas? Apesar da aparente obviedade do entusiasmo neoliberal com o livre mercado, a reflexão sobre as chamadas "externalidades" ainda tem sentido. E, afinal, a ordem espontânea é mesmo espontânea? A história é necessariamente resultado das ações humanas porém não dos desígnios humanos, como pretende a fórmula de Ferguson reverenciada por Hayek e seus seguidores? A ordem institucional construída pela intervenção política deliberada, nos últimos três séculos, constituiu uma espécie de "desvio" na ordem evolutiva "natural"? Qual o critério para diferenciar evoluções "livres e naturais" daquelas "forçadas e artificiosas"? Um exame crítico dessas doutrinas é factível e necessário. É mesmo imprescindível refazer hoje, guardadas as proporções, a crítica da economia política e de suas imagens-conceitos. Outra questão muito importante: sempre foi e cada vez é mais forte, entre os neoliberais, a convicção de que liberdade e democracia são inconciliáveis. Hayek sempre chamou atenção para isso: a democracia ilimitada estimula a sanha das maiorias que não "dão certo" no mercado. Esta sanha se revelaria num assalto ao estado, através do sufrágio, impondo leis sociais e regulamentos que interferem no direito sagrado dos agentes econômicos, o direito de dispor livremente de suas rendas e propriedades, um velho tema de liberais como Benjamin Constant, Burke, Stuart Mill. A escola da Public Choice , de James Buchanan, faz disso um tema-padrão, aliás: a seu ver, as democracias operam necessariamente no vermelho e levam ao caos (econômico, político e até moral). Precisam

ser disciplinadas drasticamente... Outra questão: o enxugamento do Estado. Não deixa de ser sintomático o fato de que governos liberais traiam, repetidamente, os programas liberais, puros e duros. Foi assim, por exemplo, com Thatcher e Reagan, que ampliaram os gastos do Estado e a dívida pública. Ou ainda com o estado chileno, que controla rigorosamente os investimentos estrangeiros. A que se devem fatos como esses? Ainda um questionamento deve ser feito, relativo à geração de riqueza e estabilidade. A revista Newsweek - em artigos de meados de setembro, reproduzidos pelo sisudo e conservador Estado de S.Paulo (21/9/98) - aponta contradições dos milagrosos tigres asiáticos, impasses no outrora discurso otimista do FMI, proliferação da pobreza e das tensões sociais onde deveria reinar o paraíso do mercado fluorescente. É cada vez mais visível que a desregulamentação dos mercados financeiros (liberdade para trocas e movimentos de capitais e para a criação de derivativos financeiros) estimulou extraordinariamente, nos anos 80, uma avalanche de investimentos especulativos, muito mais rentáveis do que os investimentos produtivos. São óbvios os impactos disso sobre emprego e renda e, mais ainda, sobre a estabilidade política, social e econômica desses países (e, dadas as dimensões 'globalizadas' do mercado financeiro, sobre a estabilidade mundial). O desmonte do Estado-de-Bem-Estar-Social e o desmonte dos sindicatos - pela liberalização legal e policial do mercado de trabalho e pela extensão do desemprego/emprego precário, desregulamentado, flexível - têm constituído um sucesso político do neoliberalismo. Sucesso moral e ideológico também é visível. Milton Friedman há algum tempo dizia que era preciso criar um clima de opinião em que o capitalismo e o lucro não fossem vistos como pecados, cometidos com vergonha. O capital parece que perdeu o medo - e a vergonha de ser capital. É preciso levar isso em conta quando escolhemos um critério para medir sucessos e fracassos do neoliberalismo. Devemos pensar no objetivo que ele mesmo definiu para si: a capacidade de impor uma nova correlação de forças na sociedade e na opinião dominante (conquistar hegemonia), mesmo quando e onde se verifica evidente fracasso na realização da prometida recuperação econômica. Trata-se da legitimação de um programa, ou de um "ideal" político, talvez até mais do que uma solução prática para a estagnação econômica, solução esta que poderia ser testada, aí sim, com o uso de indicadores econômicos convencionais. Também deve ser esse um critério orientador para quem pretende combater o neoliberalismo: é nesse terreno que se dará a disputa pelos corações e pelas mentes. E quando se transformam em ação organizada, as idéias alteram, decisivamente, qualquer marcha supostamente inelutável da história (ou o fim de qualquer história).