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jung-wilhelm-o-segredo-da-flor-de-ouro.pdf, Notas de estudo de Psicologia

Em fins de 1929 C. G. Jung e o sinólogo Richard Wilhelm publicaram O. Segredo da Flor de Ouro, um livro de vida chinês (Dornverlag, Munique). O livro.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jacirema68
Jacirema68 🇧🇷

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C. G. JUNG & R. WILHELM
O SEGREDO DA FLOR DE OURO
UM LIVRO DE VIDA CHINÊS
Tradução de Dora Ferreira da Silva
e Maria Luíza Appy
ISBN 85.326.0382-3
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C. G. JUNG & R. WILHELM

O SEGREDO DA FLOR DE OURO

UM LIVRO DE VIDA CHINÊS

Tradução de Dora Ferreira da Silva e Maria Luíza Appy ISBN 85.326.0382-

Em fins de 1929 C. G. Jung e o sinólogo Richard Wilhelm publicaram O Segredo da Flor de Ouro, um livro de vida chinês (Dornverlag, Munique). O livro continha a tradução de um velho texto chinês, Tai I Ging Hua Dsung Dschi (O Segredo da Flor de Ouro), com seus próprios esclarecimentos e um comentário "europeu" de Jung. Anteriormente, no mesmo ano, os dois autores haviam publicado na Eu- ropàischen Revue V: 2/8 (Berlim, novembro) pp. 530-542, uma versão resumida do mesmo livro, sob o título de Dschang Scheng Schu: a arte de prolongar a vida humana, título alternativo da Flor de Ouro. No dia 10 de maio de 1930, Jung pronunciou em Munique um discurso comemorativo da morte de Richard Wilhelm, falecido a 1o. de março. Seguiram-se várias edições e em 1957 foi publicada uma quinta edição, completamente refundida (Rascher, Zurique), contendo um texto adicional de Liu Hua Yang, Hui Ming Ging: Livro da Consciência e da Vida, com prefácio de Salomé Wilhelm, viúva do sinólogo. Novas edições apareceram em 1965 (Rascher, Zurique) e 1974 (Walter, Olten). O "Necrológio de Richard Wilhelm" feito por Jung encontra-se em: Ges. Werke XV (1971). Nosso texto, diz C. G. Jung, promete "revelar o Segredo da Flor de Ouro, do grande Uno". A flor de ouro é a luz, e a luz do céu é o Tao. A flor de ouro é um símbolo mandálico que encontrei muitas vezes nos desenhos de meus pacientes. Ela é desenhada a modo de um ornamento geometricamente ordenado, ou então como uma flor crescendo da planta. Esta última, na maioria dos casos, é uma formação que irrompe do fundo da obscuridade, em cores luminosas e incandescentes, desabrochando no alto sua flor de luz (num símbolo semelhante ao da árvore de Natal). Tais desenhos exprimem o nascimento da flor de ouro, pois, segundo o Hui Ming Ging, a "vesícula germinal" é o "castelo de cor amarela", o "coração celeste", os "terraços da vitalidade", o "campo de uma polegada da casa de um pé", a "sala purpúrea da cidade de jade", a "passagem escura", o "espaço do céu primeiro", o "castelo do dragão no fundo do mar".

(texto na aba inicial do livro)

SUMÁRIO

Prefácio à segunda edição Em memória de Richard Wilhelm COMENTÁRIO EUROPEU DE C. G. JUNG

  1. Introdução A. Por que é difícil para o ocidental compreender o Oriente B. A Psicologia moderna abre uma possibilidade de compreensão
  2. Os conceitos fundamentais A. Tao B. O movimento circular e o centro
  3. Os fenômenos do caminho A. A dissolução da consciência B. Animus e anima
  4. A consciência desprende-se do objeto
  5. A realização (plenificação)
  6. Conclusão Exemplos de mandalas europeus TEXTO E COMENTÁRIOS DE RICHARD WILHELM Prefácio à quinta edição Origem e conteúdo do Tai I Gin Hua Dsung Dschi I. Proveniência do livro II. Os pressupostos psicológicos e cosmológicos da obra Tai I Gin Hua Dsung Dschi. O Segredo da Flor de Ouro I. A consciência celeste (coração) II. O espírito originário e o espírito consciente III. Movimento circular da luz e preservação do centro IV. Movimento circular da luz e modo de ritmar a respiração V. Equívocos durante o processo do movimento circular da luz VI. As vivências confirmadoras no processo do movimento circular da luz, VII. O caráter vivo do movimento circular da luz VIII. Fórmulas mágicas para viajar à distância Hui Ming Gíng. O livro da consciência e da vida I. Como deter as efluxões

II. As seis fases do movimento circular da luz segundo o código III. As duas linhas de força da função e do controle IV. O embrião do Tao V. O nascimento do fruto VI. Como formar o corpo transmudado VII. O rosto voltado para a parede VIII. A infinitude vazia

sido o texto da Flor de Ouro que me ajudou a encontrar a via correta. A alquimia medieval representa o traço de união entre a gnose e os processos do inconsciente coletivo que podem ser observados no homem de hoje.^1 Não posso deixar de mencionar de passagem certos mal-entendidos, até mesmo por parte de alguns leitores cultos deste livro. Afirmou-se várias vezes que a meta desta publicação era pôr nas mãos do público um método de alcançar a bem-aventurança. Numa total incompreensão do que digo em meu comentário, tais leitores tentaram imitar o "método" descrito no texto chinês. Esperemos que não sejam muitos os representantes deste baixo nível espiritual. Outro mal-entendido deu origem à opinião de que o comentário descrevia de certo modo o meu próprio método terapêutico, visando insuflar concepções orientais em meus pacientes, no intuito de curá-los. Não creio que haja em meu comentário algo que possa motivar tal suposição. Seja como for, essa opinião é errônea e se baseia na idéia amplamente difundida de que a psicologia foi inventada para um certo fim, não consti- tuindo uma ciência empírica. Pertence a esta categoria a opinião superficial e pouco lúcida de que o inconsciente coletivo é uma idéia "metafísica". Trata-se, isto sim, de um conceito empírico que deve ser equiparado ao conceito de instinto, o que se tornará claro para todo leitor atento. Na segunda edição acrescentei o discurso sobre RICHARD WILHELM, pronunciado na comemoração realizada em Munique, no dia 10 de maio de 1930. Ele fora publicado anteriormente na primeira edição inglesa de 1931.

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  1. O leitor poderá encontrar mais detalhes sobre o assunto em dois ensaios que publiquei no Eranos-Jahrbuch 1936 e 1937. [Este material encontra-se agora no livro: Psicologia e Alquimia, de C G. JUNG.]
  2. The Secret of the Golden Flower: A Chinese Book of Life.

C. G. JUNG

**EM MEMÓRIA DE RICHARD WILHELM 1 ***

Meus senhores e minhas senhoras: Não é tarefa simples falar sobre RICHARD WILHELM e sua obra, pois nossas trajetórias, partindo de pontos distantes, se entrecruzaram a modo de cometas. É provável que os senhores o tenham conhecido antes do que eu. Sua obra possui tal dimensão que ainda não consegui abrangê-la por completo. Nunca vi a China, que formou e enriqueceu seu pensamento, nem me é familiar sua língua, expressão viva do espírito chinês. Sinto-me como um estranho, exilado no imenso campo de saber e de experiência dentro do qual WILHELM atuava como um mestre em seu domínio. Ele, sinólogo, e eu, médico, nunca teríamos nos encontrado se tivéssemos permanecido fechados em nossa especialidade. Encontramo-nos, porém, na esfera humana que se inicia além das fronteiras acadêmicas. Foi aí que se deu nosso ponto de contacto e daí saltou a faísca que viria a ser um dos principais acontecimentos de minha vida. Por este motivo posso falar sobre WILHELM e sua obra, lembrando com profundo respeito esse espírito que lançou uma ponte entre Oriente e Ocidente, legando-nos a valiosa herança de uma cultura milenar, talvez destinada à destruição. WILHELM possuía a amplitude de conhecimento que só é alcançada por aqueles que ultrapassam a sua especialidade. Sua ciência tornou-se — ou melhor, foi desde o início — algo que se aplica a toda a humanidade. O que mais poderia tê-lo afas- tado do estreito horizonte europeu e do espírito missionário, mal conhecendo ainda o segredo da alma chinesa, senão o pressentimento da existência de tesouros ali escondidos, aos quais sacrificou seu preconceito europeu, devido a essa pérola preciosa?


  • Trad. de Rubem Bianchi e Inês Ferreira da Silva Bianchi.
  1. Esta palestra foi proferida a 10 de maio de 1930, em Munique, por ocasião da nomenagem prestada a RICHARD WILHELM, falecido a 1? de maio do mesmo ano. £oi Publicada inicialmente em: Neue Zürcher Zeitung CLI/1 (6 de março de 1930); Posteriormente em: Chinesisch-Deutscher Almanach (Frankfurt am Main, 1931); finalmen-Wj j^50 de: Das Gebeimnis der Golàenen Blüte. Ein chinesisches Lebensbucb (O Segredo da Flor de Ouro).

Devemos agradecer à capacidade criativa de WILHELM por pertencermos também a estes privilegiados. Ele colocou esta obra ao nosso alcance, não apenas através de um cuidadoso trabalho de tradução, como também pela sua experiência pessoal, de um lado como discípulo de um mestre chinês da velha escola, e de outro, como iniciado na psicologia da ioga chinesa, para o qual a aplicação prática do I Ging sempre representa uma experiência renovada. No entanto, juntamente com essas dádivas, WILHELM também nos incumbiu de uma tarefa, cuja dimensão podemos apenas imaginar, e dificilmente abranger. Quem teve a felicidade, como eu, de experimentar com WILHELM o poder divinatório do I GING não deve ignorar o fato de que tocamos num ponto arquimedíano, que poderia desencadear uma profunda mudança em nosso espírito ocidental. WILHELM legou-nos um quadro compreensível e colorido de uma cultura estrangeira. Mais importante, no entanto, é o fato de nos haver ínoculado o germe vivo do espírito chinês, capaz de modificar essencialmente nossa visão do mundo. Não permanecemos apenas como espectadores, admirados ou críticos, mas tornamo-nos participantes do espírito oriental, na medida em que tivermos experimentado a eficácia viva do I Ging. O princípio no qual se baseia o I Ging — se é que posso me expressar dessa forma — encontra-se aparentemente em profunda contradição com a concepção do mundo ocidental, científica e teleológica. Em outras palavras, ele é extremamente anticientífico e, arriscaria até dizer, proibido, uma vez que é incompreensível e foge ao nosso juízo científico. Há alguns anos atrás, o presidente da British Anthropological Society perguntou-me como eu explicaria o fato de um povo intelectualmente tão evoluído como o chinês nunca ter produzido uma ciência. Respondi que devia ser um engano, pois os chineses possuíam uma "ciência", cuja obra máxima era justamente o I Ging, mas que o princípio desta ciência, como muitas outras coisas na China, era frontalmente diverso do nosso modelo científico. A ciência do I Ging não se baseia no princípio da causalidade, mas em outro princípio, até o momento sem nome —. por não existir entre nós —, ao qual chamei experimentalmente de princípio da sincronicidade. Minhas pesquisas no campo da psicologia dos processos inconscientes levaram-me a procurar outras explicações para o esclarecimento de certos fenômenos da psicologia profunda, uma vez que o princípio da causalidade me parecia insuficiente. Descobri, inicialmente, que existem manifestações psicológicas paralelas que não se relacionam absolutamente de modo causai, mas

apresentam uma forma de correlação totalmente diferente. Tal conexão parecia basear- se essencialmente na relativa simultaneidade dos eventos, daí o termo "sincronicidade". Longe de ser uma abstração, o tempo se apresenta como continuidade concreta, contendo qualidades e condições básicas que podem se manifestar em locais diferentes com relativa simultaneidade, num paralelismo que não se explica de forma causai; por exemplo, na ocorrência simultânea de pensamentos, símbolos ou estados psíquicos similares. Um outro exemplo apontado por WILHELM refere-se à simultaneidade dos períodos de estilos chineses e europeus, cuja coincidência não pode ser explicada sob o ponto de vista da causalidade. A astrologia seria considerada como um exemplo mais abrangente de sincronicidade, se ela apresentasse resultados universalmente seguros. Existem, entretanto, alguns fatos comprovados por ampla estatística, que tornam a astrologia digna de questionamento filosófico. (Sem dúvida, seu valor psicológico é inexorável, pois representa a soma de todo o conhecimento psicológico da antigüidade). A possibilidade de se reconstruir o caráter de uma pessoa, a partir do mapa astral na hora do seu nascimento, comprova a relativa validade da astrologia. Lembremo-nos, entretanto, de que o mapa astral não depende absolutamente da constelação astronômica real, mas é baseado num sistema de tempo arbitrário, puramente conceituai. Em decorrência da precessão dos equinócios, o ponto da primavera há muito se deslocou astronomicamente de zero graus de Áries, de forma que o zodíaco astrológico, a partir do qual são calculados os horóscopos, não corresponde de maneira alguma ao zodíaco celeste. Se considerarmos a existência de diagnósticos astrológicos corretos, estes sem dúvida não se baseiam nas influências dos astros, mas em nossas hipotéticas qualidades do tempo. Em outras palavras, o que nasce ou é criado num dado momento adquire as qualidades deste momento. Esta é a fórmula básica para a prática do I Ging. Sabe-se que o conhecimento do hexagrama — que reproduz o momento — é obtido através da manipulação puramente causai das varetas ou moedas. As varetas caem conforme se apresenta o momento. A questão é: Conseguiram o velho rei Wen e o duque de Dschou, por volta do ano 1000 antes de Cristo, interpretar corretamente o desenho dessas varetas caídas ao acaso?^4 Somente a experiência pode demonstrar.

  1. Maiores esclarecimentos sobre o método e a história, v. I Ging I, p. 11 sgs. Dusseldorf, 1960

budistas acreditarem ser o momento para novas missões. Esta foi a tarefa que WILHELM pressentiu, reconhecendo quanto o Oriente poderia nos oferecer no sentido de suprir nossas necessidades espirituais. Dando uma esmola a um pobre, certamente não o estaremos ajudando, mesmo se for isso o que ele realmente deseja. No entanto, o ajudaríamos muito mais, se lhe indicássemos o caminho de um trabalho, através do qual ele se libertasse de sua miséria. Infelizmente os mendigos espirituais de nossos tempos estão por demais inclinados a aceitar as esmolas do Oriente e a imitar irrefletidamente seus costumes. Devemos estar prevenidos contra esse perigo. WILHELM também percebeu isso. O espírito da Europa não pode ser salvo apenas através de sensações ou estímulos novos. Se quisermos possuir a sabedoria, precisamos aprender a obtê-la. O que o Oriente tem a nos oferecer é simplesmente uma ajuda numa tarefa que devemos realizar. De que nos servem a sabedoria dos "Upanixades" e o conhecimento da ioga chinesa, se abandonamos nossos próprios fundamentos como se fossem erros ultrapassados, para nos lançarmos em terras estranhas como piratas sem pátria? Os conhecimentos do Oriente, sobretudo a sabedoria do I Ging, não terão nenhum sentido, se nos fecharmos para nossa própria problemática, estruturando nossas vidas a partir de preconceitos tradicionais, escondendo de nós mesmos nossa real natureza humana com suas trevas e subterrâneos. A luz desta sabedoria só brilha na escuridão e não sob os refletores da consciência e da vontade artificial dos europeus. Tal sabedoria surgiu dentro de um contexto, cujos horrores podemos imaginar, quando lemos sobre os massacres chineses ou sobre o obscuro poder das sociedades secretas da China, a infinita miséria e os vícios do povo chinês. Precisamos de uma vida tridimensional, se quisermos vivenciar a sabedoria chinesa. Para tanto precisaríamos, em primeiro lugar, da sabedoria européia sobre nós mesmos. Nosso caminho começa em nossa realidade e não nos exercícios de ioga, que nos desviam dela. Se quisermos ser discípulos dignos do mestre, precisamos continuar o trabalho de WILHELM, em seu sentido mais amplo. Assim como ele traduziu os tesouros espirituais do Oriente para uma visão ocidental, devemos transpor este sentido para a vida. Como sabemos, WILHELM traduziu o termo Tao por sentido. Transpor para a vida este sentido, ou seja, realizar o Tao, constitui a tarefa dos discípulos. Entretanto, o Tao não se realiza por palavras ou bons ensinamentos. Saberemos com certeza como ele surge entre nós ou ao nosso redor? Seria por imitação? Ou seria pela razão? Ou ainda por acrobacia da vontade? Observamos um destino implacável realizar-se no Oriente. Os canhões europeus

explodiram os portões da Ásia. A ciência e a técnica, o materialismo e a avidez ocidentais invadiram a China. Dominamos politicamente o Oriente. Os senhores ima- ginam o que aconteceu quando Roma subjugou o Oriente Médio? O espírito oriental avançou sobre Roma. Mitra tornou-se o deus-militar romano, e no mais ínfimo lugarejo da Ásia Menor surgiu uma nova Roma espiritual. Não seria possível acontecer algo semelhante nos dias de hoje, e sermos tão cegos como os romanos, que tanto se impressionavam com as superstições dos xqtkttoí (cristãos)? Devemos notar que Inglaterra e Holanda, as mais antigas potências colonizadoras do Oriente, são justamente as mais infectadas pela teosofia indiana. Sei que nosso continente está impregnado de símbolos orientais. O espírito do Oriente está realmente anteportas (à nossa porta). Parece-me, portanto, que a realização do Sentido, a busca do Tao, já se tornou uma manifestação do coletivo muito mais forte do que imaginamos. O fato, por exemplo, de que WILHELM e o indólogo HAUER^5 tenham sido convidados para realizar uma apresentação sobre a ioga no Congresso Alemão de Psicoterapia deste ano é, em minha opinião, um extraordinário sinal dos tempos. Imaginem o que representa um médico clínico, que se ocupa diretamente com o ser humano enfermo, entrar em contato com sistemas terapêuticos orientais! O Oriente penetra implacavelmente por todos os poros, atingindo a Europa em seu ponto mais vulnerável. Poderia ser uma peri- gosa infecção, mas talvez seja um remédio. O emaranhado babilônico do espírito ocidental produziu tal desorientação, que todos anseiam por verdades mais simples ou, pelo menos, por idéias que falem não somente ao intelecto, como também ao coração, trazendo clareza ao espírito observador e paz ao incessante turbilhão de sentimentos. Assim como na antiga Roma, importamos também toda sorte de superstições exóticas, na esperança de encontrarmos o remédio adequado à nossa enfermidade. O homem instintivamente reconhece que toda grande verdade é simples. Aquele, cujo instinto está atrofiado, imagina, por isso, que ela se encontre em simplificações baratas e trivialidades, ou, por outro lado, em razão de seu desapontamento, incorre no erro oposto de imaginar a verdade como algo infinitamente complicado e obscuro. Observamos em nossas massas anônimas o aparecimento de um movimento gnóstico que corresponde psicologicamente àquele de mil e novecentos anos atrás. Tal como hoje, antigos andarilhos solitários, entre os quais o grande APOLÔNIO, teciam fios espirituais, envolvendo Europa, Ásia e talvez até a longínqua Índia. A partir deste distanciamento histórico, reconheço em WILHELM um representante gnóstico que pôs a cultura da Ásia Menor em contato com o espírito helênico, fazendo brotar um mundo

sua tarefa, sua missão atingiu o apogeu e, infelizmente, também o seu fim. Segundo a lei da enantiodromia, dos fluxos contrários, tão bem interpretada pelos chineses, com o final de um ciclo dá-se o início de seu oposto. Assim, Yang em seu limite transforma-se em Yin, e o positivo, em negativo. Relacionei-me com WILHELM somente nos [ú anos de sua vida, mas pude observar que, com a conclusão últimos sua obra, o Ocidente passou a solicitá-lo cada vez mais, chegando 19 mesmo a importuná-lo. Por este motivo, sentia a sensação crescente de estar próximo de uma grande transformação, uma verdadeira convulsão, cuja natureza não conseguia compreender claramente. Tinha apenas a certeza de estar frente a uma crise decisiva. Paralelamente ao desenvolvimento espiritual, progredia sua doença física. Seus sonhos, impregnados de lembranças da China, e as imagens invariavelmente sombrias e tristes demonstravam o quanto o conteúdo oriental havia se tornado negativo. Quando um grande sacrifício é feito, o sacrificado necessita, em seu retorno, de um corpo saudável e resistente, que possa suportar o abalo de uma grande metamorfose. Por isso, uma crise espiritual de tal intensidade freqüentemente significa a morte, quando se defronta com um corpo debilitado pela doença. A faca do sacrifício encontra- se nesse momento nas mãos do sacrificado, e do sacrificador será exigida a morte. Como os senhores vêem, não contive minhas interpretações, pois como poderia falar de WILHELM sem dizer como eu o vivenciei? Na minha opinião, sua obra possui um inestimável valor; ela me esclareceu muito, comprovando aquilo que eu havia experimentado, desejado, pensado e feito no sentido de aliviar o sofrimento psíquico dos europeus. Para mim, foi uma experiência muito intensa ouvir através de suas palavras, numa linguagem lúcida e clara, o que eu obscuramente vislumbrara acerca do turbilhão do inconsciente europeu. Sinto-me, na verdade, tão enriquecido, que tenho a impressão de ter recebido dele mais do que qualquer outra pessoa. É por este motivo, que não vejo como presunção de minha parte o fato de ser eu quem deposite, neste momento, a gratidão e o respeito de todos nós no altar de sua memória. 20 COMENTÁRIO EUROPEU de C. G. Jung

  1. INTRODUÇÃO

A. POR QUE É DIFÍCIL PARA O OCIDENTAL COMPREENDER O

ORIENTE

Como ocidental, e sentindo à sua maneira específica, experimentei a mais profunda estranheza diante do texto chinês do qual se trata. É verdade que um certo conhecimento das religiões e filosofias orientais auxiliara de certo modo meu intelecto e minha intuição, a fim de compreendê-lo, assim como entendo os paradoxos das concepções religiosas primitivas em termos de "etnologia" ou de "religião comparada". Este é o modo ocidental de ocultar o próprio coração sob o manto da chamada compreensão científica. E o fazemos, em parte devido à misérable vanité des savants, que receia e rejeita com terror qualquer sinal de simpatia viva, e em parte porque uma compreensão simpatética pode transformar o contato com o espírito estrangeiro numa experiência que deve ser levada a sério. Nossa objetividade científica reservaria este texto para a perspicácia filológica dos sinólogos, preservando-o cuidadosamente de qualquer outra interpretação. Mas RICHARD WILHELM penetrou demais no segredo e na misteriosa vivência da sabedoria chinesa, para permitir que essa pérola intuitiva desaparecesse nas gavetas dos especialistas. É grande a minha honra e alegria de ter sido designado para fazer o comentário psicológico desse texto chinês. No entanto, este fragmento precioso que ultrapassa o conhecimento dos especialistas talvez corra o risco de ser tragado por outra gaveta científica. Menosprezar os méritos da ciência ocidental, porém, eqüivaleria a renegar as próprias bases do espírito europeu. De fato, a ciência não é um instrumento perfeito, mas nem por isso deixa de ser um utensílio excelente e inestimável, que só causa dano quando é tomado como um fim em si mesmo. A ciência deve servir e erra somente quando pretende usurpar o trono. Deve inclusive servir às ciências adjuntas, pois devido à sua insuficiência, e por isso mesmo, necessita de apoio das demais. A ciência é um instrumento do espírito ocidental e com ela se abre mais portas do que com as mãos vazias. É a modalidade da nossa compreensão e só obscurece a vista quando reivindica para si o privilégio de constituir a única maneira adequada de apreender as coisas. O Oriente nos ensina outra forma de compreensão, mais ampla, mais alta e profunda — a compreensão mediante a vida. Conhecemos esta última a modo de um sentimento fantasmagórico, que se exprime através de uma vaga religiosidade, motivo pelo qual preferimos colocar entre aspas a "sabedoria" oriental, remetendo-a para o domínio obscuro da crença e da superstição. Desta forma, ignoramos totalmente o "realismo" do Oriente. Não se trata porém de intuições sentimentais, de um misticismo excessivo que

brincar de ser "primitivo", a fim de fugir disfarçadamente de suas tarefas imediatas, de seu Hic Redox hic salta. Não se trata de macaquear o que é visceralmente estranho a nós, ou de bancar o missionário, mas de edificar a cultura ocidental que sofre de mil males; isto deve ser feito, no entanto, no lugar adequado, em busca do autêntico europeu, em sua trivia-lidade ocidental, com seus problemas matrimoniais, suas neuro- ses, suas ilusões político-sociais e enfim com sua total desorientação diante do mundo. Seria melhor confessar que não compreendemos este texto esotérico, ou então que não queremos compreendê-lo. Acaso não pressentimos que uma tal colocação anímica, que permite olhar fundo e para dentro, desprendendo-se do mundo, só é possível porque esses homens satisfizeram de tal modo as exigências instintivas de sua natureza, que pouco ou nada mais os impede de ver a essência invisível do mundo? E acaso a condição de possibilidade da libertação desses apetites, dessas ambições e paixões que nos detêm no visível, não reside justamente na satisfação plena de sentido das exigências instintivas, em lugar de uma repressão prematura determinada pela angústia? E não se liberta o olhar para o espiritual quando a lei da terra tiver sido obedecida? Quem conhecer a história dos costumes chineses ou então o I Ging através de um estudo minucioso saberá que esse livro sapiencial impregnou o pensamento chinês há milhares de anos. Alguém assim preparado não deixará de lado tais questões. E compreenderá também que as idéias do nosso texto não representam algo de extraordinário para a mentalidade chinesa, mas são conclusões psicológicas inevitáveis. Nos primeiros tempos da cultura cristã a que pertencemos, o espírito e a paixão do espírito eram pura e simplesmente os valores positivos pelos quais valia a pena lutar. Só no ocaso do medievalismo, isto é, no decorrer do século XIX, quando o espírito começou a degenerar em intelecto, surgiu uma reação contra o predomínio insuportável do intelectualismo; cometeu-se então — o que é perdoável —, o erro de confundir intelecto e espírito. Este último foi então acusado pelos delitos do primeiro (KLAGES). Na realidade, o intelecto apenas prejudica a alma quando pretende usurpar a herança do espírito, para o que não está capacitado de forma alguma. O espírito representa algo de mais elevado do que o intelecto, abarcando não só este último como os estados afetivos. Ele é uma direção e um princípio de vida que aspiram às alturas luminosas e sobre- humanas. A ele se opõe o feminino, obscuro, telúrico (Yin), com sua emocionalidade e instintividade que mergulham nas profundezas do tempo e nas raízes do continuum corporal. Tais conceitos representam, sem dúvida alguma, concepções puramente

intuitivas, mas indispensáveis se quisermos compreender a essência da alma. A China não pôde prescindir dessas concepções, pois tal como demonstra a história de sua Filosofia, nunca se afastou dos fatos centrais da alma a ponto de perder-se no engano de uma supervalorização e desenvolvimento unilaterais de uma função psíquica isolada. Por isso mesmo nunca deixou de reconhecer o paradoxo e a polaridade de tudo o que vive. Os opostos sempre se equilibram na mesma balança — sinal de alta cultura. Ainda que represente uma força propulsora, a unilateralidade é um sinal de barbárie. A reação que se iniciou no Ocidente contra o intelecto e a favor do eros ou da intuição constitui, na minha opinião, um sintoma de progresso cultural e um alargamento da consciência além dos estreitos limites de um intelecto tirânico. Longe de mim a intenção de menosprezar a enorme diferenciação do intelecto ocidental. Comparado a ele, pode-se dizer que o intelecto oriental é infantil (sem que isto tenha algo a ver com inteligência!). Se conseguíssemos elevar outra função, isto é, uma terceira função anímica à dignidade que, entre nós, se atribui ao intelecto, o Ocidente poderia ter a esperança de ultrapassar consideravelmente o Oriente. É lamentável, portanto, que o europeu se renegue a si mesmo para imitar o oriental, afetando aquilo que não é. Suas possibilidades seriam muito maiores se permanecesse fiel a si mesmo e se desenvolvesse a partir de sua essência tudo o que o Oriente deu à luz no decurso de milênios. Em geral, sob o ponto de vista irremediavelmente exterior do intelecto, é como se ignorássemos o valor daquilo que o Oriente tanto aprecia. O puro intelecto não apreende a importância prática que as idéias orientais têm para nós, motivo pelo qual pretende classificá-las como curiosidades filosóficas e etnológicas. Tal incompreensão vai tão longe que os próprios sinólogos ignoram o uso prático do I Ging, considerando este livro uma simples coletânea de fórmulas mágicas e abstrusas.

B. A PSICOLOGIA MODERNA ABRE

UMA POSSIBILIDADE DE COMPREENSÃO

Através da experiência prática abriu-se para mim um acesso totalmente novo e inesperado à sabedoria oriental. É bom ressaltar que eu não partira de um conhecimento, mesmo que insuficiente, da filosofia chinesa; pelo contrário, ao iniciar minha carreira de psiquiatra e psicoterapeuta, desconhecia por completo tal filosofia e só a experiência