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J. D. Salinger e O Apanhador no Campo de Centeio no Sistema Literário dos EUA, Notas de estudo de Literatura

Este artigo analisa a inserção de j. D. Salinger no sistema literário dos estados unidos, destacando o funcionamento e a consolidação desta organização cultural após a segunda guerra mundial, os processos de edição e publicação de o apanhador no campo de centeio e a recepção do romance por parte do público e da crítica especializada. O autor destaca que o romance permitiu a participação de salinger no conjunto literário de seu país, pois este texto foi produzido de forma consciente e retrata o contexto histórico em que foi concebido.

O que você vai aprender

  • Como a recepção do romance por parte do público e da crítica especializada influenciou a carreira de J. D. Salinger?
  • Como o sistema literário dos Estados Unidos se desenvolveu histórica e culturalmente?
  • Quais foram os processos de edição e publicação de O apanhador no campo de centeio?
  • Qual foi a recepção inicial da obra de J. D. Salinger na academia?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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usuário desconhecido 🇧🇷

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Estudos Anglo-Americanos
número 37 - 2012
J. D. SALINGER, O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO E A
PLENA AUTONOMIA DO SISTEMA / CAMPO LITERÁRIO NOS ESTADOS
UNIDOS
SHARMILLA O’HANA RODRIGUES DA SILVA
Universidade Federal do Piauí (UFPI)
RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a inserção de J. D. Salinger no movimento literário
estadunidense, destacando o funcionamento e a consolidação desta organização cultural no período
após a segunda grande guerra, os processos de edição e de publicação de O apanhador no campo de
centeio e a recepção do romance pelo público e pela crítica especializada. Para isso, parte-se do
conceito de “sistema literário” elaborado pelo crítico brasileiro Antonio Candido e da noção de
“campo literário” desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Acredita-se que o romance
permitiu a participação de seu autor no conjunto literário de seu país, pois este texto foi produzido de
forma consciente, com as interrupções de Salinger nos processos de edição e publicação, e retrata o
contexto histórico no qual foi concebido, tendo grande aceitação por parte do público e da crítica
através dos anos.
PALAVRAS-CHAVE: Sistema literário; Campo literário; Literatura estadunidense; J. D. Salinger; O
apanhador no campo de centeio.
ABSTRACT: The objective of this article is to analyze J. D Salinger’s insertion in the US literary
movement, highlighting the operation and consolidation of this cultural organization after World War
II, the edition and publication processes of The Catcher in the Rye and this novel’s reception by
readers and critics. To fulfill this, the article departs from the concept of “literary system” elaborated
by the Brazilian critic Antonio Candido, and the notion of “literary field” developed by French
sociologist Pierre Bourdieu. The novel allowed Salinger’s involvement in the US literary set because
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J. D. SALINGER, O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO E A

PLENA AUTONOMIA DO SISTEMA / CAMPO LITERÁRIO NOS ESTADOS

UNIDOS

SHARMILLA O’HANA RODRIGUES DA SILVA Universidade Federal do Piauí (UFPI)

RESUMO: O objetivo deste artigo é analisar a inserção de J. D. Salinger no movimento literário estadunidense, destacando o funcionamento e a consolidação desta organização cultural no período após a segunda grande guerra, os processos de edição e de publicação de O apanhador no campo de centeio e a recepção do romance pelo público e pela crítica especializada. Para isso, parte-se do conceito de “sistema literário” elaborado pelo crítico brasileiro Antonio Candido e da noção de “campo literário” desenvolvido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. Acredita-se que o romance permitiu a participação de seu autor no conjunto literário de seu país, pois este texto foi produzido de forma consciente, com as interrupções de Salinger nos processos de edição e publicação, e retrata o contexto histórico no qual foi concebido, tendo grande aceitação por parte do público e da crítica através dos anos.

PALAVRAS-CHAVE: Sistema literário; Campo literário; Literatura estadunidense; J. D. Salinger; O apanhador no campo de centeio.

ABSTRACT: The objective of this article is to analyze J. D Salinger’s insertion in the US literary movement, highlighting the operation and consolidation of this cultural organization after World War II, the edition and publication processes of The Catcher in the Rye and this novel’s reception by readers and critics. To fulfill this, the article departs from the concept of “literary system” elaborated by the Brazilian critic Antonio Candido, and the notion of “literary field” developed by French sociologist Pierre Bourdieu. The novel allowed Salinger’s involvement in the US literary set because

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its text was produced in a conscious way, with Salinger’s interruptions on edition and publication processes, and it expresses the historical context where it was conceived, having great acceptance by readers and critics throughout the years.

KEYWORDS: Literary system; Literary field; US literature; J. D. Salinger; The Catcher in the Rye.

Considerações iniciais

Em 1951, J. D. Salinger foi considerado um fenômeno literário e um de seus personagens foi transformado em ícone cultural. Resultado de, pelo menos, dez anos de dedicação, Holden Caulfield é o protagonista do único romance do escritor estadunidense. A obra, encarada por muitos como uma visão do pós-guerra (GRAHAM, 2010: 2), traz um adolescente que narra, em primeira pessoa, situações aparentemente comuns que vivera na cidade de Nova York. O que chocou, e talvez ainda cause alguma reação negativa, é a maneira que Caulfield, ou Salinger, o faz. Em meio a bebidas, cigarros, prostitutas, palavrões e rebeldia, o jovem analisa o quanto a sociedade em que vive está repleta de pessoas falsas, que seguem as mesmas estruturas sociais como requisito para a felicidade. No novo império em ascensão, o idealizado American way of life merece finalmente ser vivido e a população precisa fingir que está tudo bem. É compreensível, então, que naquele momento de conformismo geral de tantos, de inconformismo de uns poucos e de reconstrução de uma tradição, o texto de Salinger tenha dividido a opinião pública. De um lado, o generation gap no qual os jovens buscavam “fazer- se ouvir”, descrentes do bom resultado que um comportamento que excluía a autenticidade poderia trazer. De outro, pais e críticos literários preocupados com a influência negativa de um garoto que parecia defender a anarquia. De forma paradoxal, a censura e a aceitação

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interação humana e a interpretação da realidade (CANDIDO, 2010: 12-13). Por isso, a necessidade, por parte daqueles que produzem literatura, de uma continuidade ou da transmissão de um “padrão”. As obras devem ser contextualizadas para que sejam compreendidas como parte de um todo. Ou seja, [...] as obras não podem aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstraímos as circunstâncias enumeradas; aparecem, por força da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboração de outras, formando, no tempo, uma tradição. (CANDIDO, 1997: 24).

Bourdieu (1996: 63-64), ao tratar da autonomia do campo literário na França, designando o romance A educação sentimental , de Gustave Flaubert, como precursor do feito, defende que tal texto é produto de determinada estrutura social. O objetivo do sociólogo é reconstruir as origens do espaço social apresentado por Flaubert para compreender melhor a visão que este escritor tinha da realidade em que vivia. Comparando com a obra de Salinger, pode-se dizer que ele usou Holden Caulfield para expressar sua opinião sobre as consequências da guerra: a perda da verdade e da sensibilidade por parte daquela maioria da população estadunidense que tinha o American way of life como seu ideal. Nos Estados Unidos, o sistema literário teria se originado já a partir do período que é denominado Neoclassicismo (1776-1820), com mais força no primeiro quartel do século XIX. Apesar de não haver um movimento organizado de escritores e um grande público consumidor de suas obras, Washington Irving e James Fenimore Cooper são considerados os autores dos primeiros best-sellers do país. Seus textos, com bastante “cor local”, como convinha ao seu nascente país, foram traduzidos para várias línguas e, mesmo não vivendo

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profissionalmente de literatura, percebe-se a preocupação de ambos os autores de tratar os anseios da nova sociedade através da ficção. Mas foi durante o Romantismo (1820-1870), principalmente com Edgar Allan Poe, Nathaniel Hawthorne, Herman Melville e Walt Whitman, que poetas, contistas e romancistas venderam muitos exemplares de suas obras. Sobre este momento, afirma Nabuco (2000: 67): “como um afluente de grande riqueza, a produção literária dos Estados Unidos começou então a desaguar na literatura de língua inglesa [e] procurava cada dia mostrar-se mais si mesma”. O campo literário estadunidense iniciava aí seu processo de consolidação. Relatando a influência da literatura nesta fase, Nabuco (2000: 81) ainda cita Uncle Tom’s Cabin , de Harriet Beecher Stowe, como o texto de maior repercussão e o mais lido em solo estadunidense, devido principalmente ao seu apelo emocionante pelo fim da escravidão. O caminho, então, é aberto para o Realismo (1860-1914) e para escritores hoje consagrados – Mark Twain, Henry James, Stephen Crane e Theodore Dreiser, por exemplo – que se dividiram em expressar as dificuldades do sul escravocrata e do norte urbano. Um pouco antes de Salinger, no período entre as duas guerras mundiais, tem-se, com o Modernismo (1914-

  1. e, por consequência, com T. S. Eliot, F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, William Faulkner e John Steinbeck, a descrição da sociedade frente às mudanças capitalistas que também afetam os indivíduos. Até o início da década de 1940, o mercado livreiro sobrevivia da venda de títulos específicos e não atraía grandes investimentos (DESSAUER, 1979: 20). Para os escritores, editores e outros profissionais que atuavam na venda de livros, era uma experiência de luta pela sobrevivência, pois o principal consumidor, aquele de interesse geral, ainda não tinha interesse pelos livros disponíveis. As grandes livrarias não possuíam filiais, pois, desde a grande depressão na década de 1930, os leitores diminuíram e, na tentativa de tornar seus preços mais acessíveis, os empresários perderam seus lucros (DESSAUER, 1979: 20).

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The New Yorker para o sucesso de O apanhador no campo de centeio. Este, por sua vez, atraiu novos leitores e permitiu que contos do autor outrora publicados fossem adquiridos para releituras. Apesar da aposentadoria do exército, pode-se dizer que Salinger viveu quase exclusivamente de literatura. Desde os vinte anos de idade, ele publicava ou tentava publicar seus textos, e durante o período que esteve na guerra, aproveitava alguns momentos livres para escrever. O apanhador no campo de centeio foi o livro que fez toda a fama do escritor – além, claro, de seu comportamento evasivo diante dos media. Desde sua publicação, em 1951, até 2010, o livro vendeu uma média de 250 mil exemplares anuais. Enquanto alguns de seus fãs reuniram alguns de seus primeiros contos em uma coletânea ou realizaram adaptações para o cinema e para a TV, outros escreveram músicas e livros, demonstrando o poder das palavras de Holden Caulfield. Logo, não seria pretensão estender a este texto de Salinger o seguinte comentário feito sobre a obra de Machado de Assis: “[...] Ela tem, sobretudo, a possibilidade de ser reinterpretada à medida que o tempo passa, porque, tendo uma dimensão profunda de universalidade, funciona como se se dirigisse a cada época que surge” (CANDIDO, 2010: 65). No campo literário, uma obra só é compreendida totalmente quando historicizada. Ou seja, quando inserida em um contexto histórico especifico. Bourdieu (1996: 118) cita como característica da autonomia de seu objeto de estudo, a “referência de personagem de romance a personagem de romance” – uma alusão que sugere o desenvolvimento dos gêneros. Em O apanhador no campo de centeio , Holden Caulfield se recusa a ser David Copperfield, protagonista do romance homônimo de Charles Dickens. Rejeitando sua fonte, Salinger mostra-se profundamente influenciado por ela.

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2. O apanhador no campo de centeio e seu processo de edição e publicação

Na primeira metade do século XIX, surgiram os catálogos de livros editados e publicados nos Estados Unidos. Este movimento, iniciado com a Bibliotheca Americana em 1839, serviu para reunir os livreiros do país na criação de um mercado editorial em todo o mundo, pois “O povo americano, ávido de mais leitura, começava a adquirir um quarto de milhão de exemplares dos romances que lhe ganharam o agrado” (NABUCO, 2000: 77). Essa pequena revolução na produção de textos impressos e periódicos literários foi o que praticamente transformou o objeto livro em produto de massa. Como resultado, os Estados Unidos permaneceram mais de um século e meio como líderes da produção de livros em todo o mundo, sendo Nova York a cidade de maior concentração dessa indústria. Foi ainda na época de W. Irving e J. F. Cooper que os editores estabeleceram “regras” para o seu ofício, exigindo sua participação no processo de criação da obra de cada escritor. Em 1939, Salinger se matriculou no curso de escrita criativa de Whit Burnett, editor da Story , revista de contos fundada oito anos antes. Apesar da pouca idade, o periódico de grande prestígio já havia publicado textos de Tennessee Williams, Norman Mailer e Truman Capote. Burnett se transformou no mentor de Salinger, orientando-o na redação e publicação de seus contos. Foi ele quem insistiu que seu aluno deveria se concentrar na produção de um romance. Porém, o escritor foi representado por Dorothy Olding, agente de Agatha Christie. Os agentes literários, em resumo, são responsáveis por encontrar um grande editor interessado em administrar, comercializar e divulgar o texto de seu cliente. Eles são os primeiros leitores do livro e devem fazer críticas, quando necessárias, para tornar mais fácil a aceitação de um manuscrito. Um agente literário: [...] faz a ponte entre autor e editor por um caminho mais curto e rápido. [...] Muitos agentes [...] já trabalharam em editoras e sabem exatamente como é a

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escritores de alta competência profissional e até de verdadeiro talento dedicaram-se a ele de preferência. (NABUCO, 2000: 102)

Devido a critérios rígidos, entre 1940 e 1941, a revista The New Yorker recusou sete contos de Salinger, mas elogiou seu estilo diferente de escrita. A primeira estória aceita, Slight Rebellion off Madison, só foi publicada cinco anos depois. Foi esse texto que iniciou sua desconfiança com os editores, a essência literária pretendida foi adaptada ao mundo dos negócios e o escritor nunca ficou satisfeito com a versão final (SLAWENSKI, 2001, p. 46). Entretanto, Salinger estava decidido a realizar as exigências do seu sonho de consumo. Foi o sucesso do conto A Perfect Day for Bananafish , em 1948, a primeira narrativa sobre a família Glass, que lhe garantiu um contrato definitivo na revista e um novo editor, Gus Lobrano. Dependendo dos egos envolvidos, a relação entre editores e escritores podia ser conflituosa. Havia constantes reclamações de transformações radicais em um manuscrito. Depois de vendidos os direitos autorais, o autor não era mais o único “dono” do texto. Talvez isso acontecesse desde o início de criação de sua obra. As negociações eram tão intensas e constantes que era difícil que escritor e editor não fossem melhores amigos. Dessa maneira: Apesar de todas as suas dificuldades com os editores e das queixas a respeito dos seus métodos, Salinger compulsivamente procurou o apoio de uma série de editores ao longo de sua carreira, chegando com freqüência a confundir a relação pessoal com a profissional. Quando considerava que uma decisão de negócios lhe era desfavorável, encarava isso como uma traição pessoal. (SLAWENSKI, 2011: 301).

Em 1950, Salinger conheceu James Hamilton, presidente da editora inglesa Hamish Hamilton. Ele queria obter os direitos dos contos do escritor estadunidense para publicá-los na

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Grã Bretanha, mas Salinger lhe ofereceu o romance que estava escrevendo, que era justamente O apanhador no campo de centeio. Ao concluí-lo, a primeira companhia que procurou em seu país foi a Harcourt Brace, que recusou o manuscrito alegando que o comportamento de Holden Caulfield era inadequado. Por fim, Dorothy Olding enviou o texto para a Little, Brown and Company e para a revista The New Yorker. Nesta última, a desconfiança estava nos talentos das crianças Caulfield, o que as tornava inverossímeis. Em seguida, a escolhida Little, Brown and Company contratou a New American Library para a produção da versão de bolso de O apanhador no campo de centeio. No projeto gráfico, James Avati deveria fazer uma ilustração de Holden para a capa, mas Salinger reprovou a ideia. Outro designer foi chamado e criou talvez a capa da edição mais vendida: sobre um forte vermelho, apenas o título e o nome do autor em letras amarelas. Reafirmando sua personalidade difícil, o escritor disse que não queria qualquer promoção do livro para os críticos e a imprensa ou qualquer outro tipo de publicidade. Para Dessauer (1979: 29), o sucesso de um livro depende, antes de qualquer outro aspecto, de seu processo de publicação – que vai desde a concepção do objeto livro até sua distribuição aos leitores. E também como em todo o mundo, o consumo de livros nos Estados Unidos é pequeno, apesar de os livros de bolso venderem bem mais que os de capa dura. Enquanto estes fazem parte de uma cultura de intelectuais, aqueles são considerados produtos de um “mercado de massa” (DESSAUER, 1979: 30), onde se encaixa o best-seller. O apanhador recebeu atenção exagerada de seus editores, que lhe garantiram um enorme sucesso. Recomenda-se que o escritor trabalhe junto com a editora na promoção do livro. Isto é, que também faça contato com críticos e jornalistas. Escritores escrevem para ser lidos e são os profissionais dos media de comunicação que tornam essa leitura viável, pois são eles os mediadores entre autor, texto e leitores. Após várias discussões, Salinger permitiu a

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apanhador no campo de centeio. Para ele, nenhuma dessas referências conseguia captar as emoções do leitor. Holden era uma personificação espiritual, não passível de análises que, para o escritor, eram racionais. Assim: Em vez de aceitar as resenhas positivas e continuar desprezando as negativas, Salinger atacava todas elas. Achava-as pedantes e pretensiosas. Nenhuma, dizia ele, expressava como a novela [na tradução, Luis Reyes Gil refere-se ao “romance” de Salinger como “novela”] fazia o leitor se sentir de fato, e condenava até as resenhas mais apaixonadas por analisarem o Apanhador num nível intelectual, despojando desse modo a novela de sua intrínseca beleza. Assim, embora a opinião crítica com certeza tivesse muita importância para Salinger, ele não condenava os críticos por atacarem-no pessoalmente, e sim por sua incapacidade de sentir a experiência de O apanhador no campo de centeio. E por esse pecado hipotecava-lhes seu eterno desdém. (SLAWENSKI, 2001: 205).

A crítica de rodapé, presente em periódicos, é alvo da apreciação de um número maior de leitores, mas nem por isso requer um estilo menos objetivo por parte de seu autor. Para Candido (1997: 31), a crítica surge das impressões pessoais que causam as mais diferentes emoções. Essas, quando manifestadas, transmitem verdade e são logo aceitas pelos leitores. Elas também são resultado de um extenso e cuidadoso trabalho de pesquisa que considera o texto literário como parte de um todo, que precisa ser inserido em contextos variados para produzir outras interpretações, mas não pode ser reduzida a uma única abordagem. Para o teórico, a objetividade surge da subjetividade. Antes do surgimento da TV, era a crítica ou o jornalismo literário que orientava a escolha e a leitura do livro a ser lido e foi através dela que muitos pais e professores proibiram suas crianças e adolescentes de ter

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acesso a O apanhador no campo de centeio , o que para alguns era uma forma de censura. Eles acreditavam que o objetivo de Salinger era influenciar, de forma negativa, seus leitores. Dessa forma: [...] A dosagem adequada de palavras impressas elevaria o espírito – ajudando a transmitir a tradição – , enquanto qualquer excesso poderia destruí-lo – tornando impossível o simples ato de discernimento. Ora, a ameaça real trazida pela abundância de livros residia na multiplicidade de interpretações que poderiam surgir da consulta livre à biblioteca, interpretações que de resto não mais dependeriam da palavra-autoridade do mestre, podendo ser imaginada pelos estudantes-leitores. (ROCHA, 2011: 126).

As críticas a O apanhador no campo de centeio foram, nos primeiros cinco anos após sua publicação, todas de rodapé. O romance foi analisado por especialistas e por leigos, em jornais e revistas. Alguns críticos, como o da revista Time , elogiavam a obra e seu autor, já conhecido pelos seus contos, escrevendo que o romance só comprovava seu talento. Os julgamentos negativos reprovavam, principalmente, a linguagem de Holden Caulfield, repleta de gírias e palavrões. Isto seria um exemplo de “crítica linguística”, uma das variedades de crítica que Coutinho (2008: 119) enumera. Segundo ele, quando reduzida a uma única abordagem, a crítica simplifica o valor estético da obra e, por consequência, sua recepção. O primeiro ensaio sobre O apanhador no campo de centeio e sobre a obra de Salinger no meio acadêmico data de 1956 e foi intitulado “J. D. Salinger: Some Crazy Cliff” cujos autores eram Arthur Heiserman e James E. Miller. A partir daí, Holden Caufield foi, frequentemente, comparado aos protagonistas de outros romances, como The Adventures of Huckleberry Finn , de Mark Twain, e David Copperfield , de Charles Dickens. Heiserman e Miller associam a aventura de Holden a uma forma moderna de epopéia, em que o herói

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na época, foi resultado de sua indicação no Clube do livro do mês. Entretanto, as gerações seguintes continuaram idolatrando Salinger e seu único romance. E se Flaubert dá início em 1869 ao campo literário em seu país, Salinger faz parte da plena autonomia do mesmo nos Estados Unidos um século depois. Ambos procuravam um tom realista em suas narrativas, a essência literária, independente de qualquer influência humana, e que as mesmas retratassem o momento que viviam. Além disso, aproxima-os também A educação sentimental e O apanhador no campo de centeio , romances que não têm preço, resultados de atos totalmente artísticos, e não podem ser pagos por isso. O que agrega valor a ambos os textos é sua relação “[...] pelo menos negativamente, com a totalidade do universo literário no qual está[ão] inscrito[s] e do qual assume[m] completamente as contradições, as dificuldades e os problemas” (BOURDIEU, 1996: 118).

Considerações finais

Autor, texto, leitor. São estas três entidades que dão início à configuração do sistema literário de Candido e do campo literário de Bourdieu. Em ambos, a consolidação de facto só ocorre quando os interlocutores têm consciência de suas funções neste processo e veem a obra literária como produto da realidade social. Por coincidência, O apanhador no campo de centeio surgiu no momento em que o sistema / campo literário nos Estados Unidos se consolidou de maneira mais plena. Percebe-se aí que Salinger tinha consciência do momento histórico em que publicava seus textos, onde a ilusão parecia predominar e quando esta mesma ilusão somada ao conformismo passaram a ser, aí pelos anos 1950, os sentimentos cultivados pelo American way of life. Aparentemente tudo parecia estar em seu lugar – menos talvez a consciência histórica e literária de um escritor como Salinger à luz do seu protagonista.

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A literatura precisava denunciar o mal-estar causado pelo conflito e os passos sem destino que dava a nova sociedade. Várias pessoas estão envolvidas neste movimento: o escritor, que descreve o contexto histórico-cultural em que vive, o leitor que faz interpretações também a partir do contexto no qual está inserido, e, entre os dois, editores, agentes e críticos

  • sem os quais seria muito difícil a circulação de uma grande quantidade de livros. É claro que Holden Caulfield não foi a única voz da desilusão e da desorientação causadas pela Segunda Grande Guerra. Ele fazia parte de um grupo preocupado, ao que parece, com o novo e superficial caminho a ser seguido por (quase) todos nos Estados Unidos. Baseando-se no estilo de vários ídolos, dentre eles Hemingway e Fitzgerald, Salinger criou um personagem singular, polêmico e autêntico. Holden Caulfield permitiu a inserção de seu criador no sistema literário de seu país quando, anos após sua publicação, mostrou ser de fato o retrato de uma época. As opiniões variadas e nem sempre favoráveis a respeito da obra não impediram seu sucesso de vendas, alavancadas por publicidade e estímulos à leitura. Salinger, porém, tentou evitar o Clube do livro do mês e as críticas, procurando proporcionar uma experiência direta e não manipulada entre o leitor e seu texto. É possível que, diante das várias abordagens surgidas sobre sua obra, Salinger tenha conseguido seu intento, pois foi a partir dessa leitura espiritual que Holden Caulfield deixou de ser um personagem literário para tornar-se um legado cultural no imaginário de todo um país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, Andrey do. “Quem é o agente literário?” In: ______. Mercado editorial : guia para autores. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2009. p. 11-13.

BESSA, Maria Cristina. “O pós-modernismo”. In: ______. Panorama da Literatura Norte Americana : dos primórdios ao período contemporâneo. São Paulo: Alexa Cultural, 2010. p. 93-131.