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Marx: A Descoberta da Política e do Judaísmo na Universidade e na Vida, Notas de estudo de Cultura

A biografia de karl marx, nascido em 1818, filho de pais judaicos, que estudou na universidade e descobriu a política na gazeta renana. Através da colaboração com friedrich engels, marx começou a criticar a sociedade capitalista e se identificou como revolucionário. O documento também discute a importância da contribuição de engels para a formação da teoria materialista dialética de marx.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Marcela_Ba
Marcela_Ba 🇧🇷

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Introdução à obra de Marx
José Paulo Netto
A obra de Karl Marx, pela sua significação teórica, é um marco na cultura ocidental e, pelo seu
impacto sócio-histórico, tem relevância universal. Ele instaurou as bases de uma teoria da sociedade
burguesa que, nucleada numa ontologia social fundada no trabalho, permanece no centro das polêmicas
relativas à natureza, à estrutura e à dinâmica da sociedade em que vivemos; e a investigação a que
dedicou toda a sua vida foi norteada para subsidiar a ação revolucionária dos trabalhadores, cujo objetivo
- a emancipação humana supõe a ultrapassagem da ordem social comandada pelo capital.
Teórico e homem de ação, pesquisador e militante, Marx foi invocado, ao longo do século XX,
por aqueles que se empenharam na crítica radical da sociedade burguesa e nos processos prático-políticos
de libertação nacional, de luta antiimperialista e de construção socialista. Intelectuais da mais diferente
extração pautaram suas reflexões inspirados em Marx e milhões de homens e mulheres, jovens e velhos,
nas mais diversas latitudes, protagonizaram combates e experiências em nome de suas idéias ou de
idéias a ele atribuídas, uma vez que seu legado foi objeto de múltiplas interpretações, vulgarizações,
deformações etc. Reativamente, intelectuais conservadores desqualificaram a obra de Marx e líderes
burgueses demonizaram o seu pensamento. Idolatrado ou odiado, Marx foi um contemporâneo de todos
os que viveram o século XX.
A crise terminal do “socialismo real”, nos anos 1980-1990, por um momento pareceu levar Marx
para o museu das antiguidades. Mas foi apenas aparência, e momentânea: na entrada do século XXI, a
reiteração das crises econômicas, a barbarização da vida social nas nossas sociedades, a insustentabilidade
(até ecológica) do padrão de crescimento capitalista, o aprofundamento das desigualdades e a agudização
exponenciada e planetária da “questão social” fazem Marx retornar ao palco da história no calor da hora.
Nada indica que este senhor sairá de cena tão cedo.
É oportuno, portanto, examinar (ou reexaminar) o seu pensamento, recorrendo diretamente à fonte
original. Este volume pretende fornecer um elenco de textos marxianos que, com seu caráter expressivo
da totalidade da obra de Marx, estimule este exame (ou reexame) necessário, em alguma medida
subsidiado pelas informações contidas nas páginas desta Introdução.
Da vida universitária à política
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Introdução à obra de Marx

José Paulo Netto A obra de Karl Marx, pela sua significação teórica, é um marco na cultura ocidental e, pelo seu impacto sócio-histórico, tem relevância universal. Ele instaurou as bases de uma teoria da sociedade burguesa que, nucleada numa ontologia social fundada no trabalho, permanece no centro das polêmicas relativas à natureza, à estrutura e à dinâmica da sociedade em que vivemos; e a investigação a que dedicou toda a sua vida foi norteada para subsidiar a ação revolucionária dos trabalhadores, cujo objetivo

  • a emancipação humana – supõe a ultrapassagem da ordem social comandada pelo capital. Teórico e homem de ação, pesquisador e militante, Marx foi invocado, ao longo do século XX, por aqueles que se empenharam na crítica radical da sociedade burguesa e nos processos prático-políticos de libertação nacional, de luta antiimperialista e de construção socialista. Intelectuais da mais diferente extração pautaram suas reflexões inspirados em Marx e milhões de homens e mulheres, jovens e velhos, nas mais diversas latitudes, protagonizaram combates e experiências em nome de suas idéias – ou de idéias a ele atribuídas, uma vez que seu legado foi objeto de múltiplas interpretações, vulgarizações, deformações etc. Reativamente, intelectuais conservadores desqualificaram a obra de Marx e líderes burgueses demonizaram o seu pensamento. Idolatrado ou odiado, Marx foi um contemporâneo de todos os que viveram o século XX. A crise terminal do “socialismo real”, nos anos 1980-1990, por um momento pareceu levar Marx para o museu das antiguidades. Mas foi apenas aparência, e momentânea: na entrada do século XXI, a reiteração das crises econômicas, a barbarização da vida social nas nossas sociedades, a insustentabilidade (até ecológica) do padrão de crescimento capitalista, o aprofundamento das desigualdades e a agudização exponenciada e planetária da “questão social” fazem Marx retornar ao palco da história no calor da hora. Nada indica que este senhor sairá de cena tão cedo. É oportuno, portanto, examinar (ou reexaminar) o seu pensamento, recorrendo diretamente à fonte original. Este volume pretende fornecer um elenco de textos marxianos que, com seu caráter expressivo da totalidade da obra de Marx, estimule este exame (ou reexame) necessário, em alguma medida subsidiado pelas informações contidas nas páginas desta Introdução.

Da vida universitária à política

Marx nasceu a 5 de maio de 1818, em Tréveris (Renânia), segundo dos oito filhos de Heinrich Marx (1782-1838), um advogado que admirava Voltaire, e Henriette Pressburg (1787-1863) – ambos de ascendência judaica. Concluídos os seus estudos fundamentais na cidade natal, em outubro de 1835 Marx desloca-se para Bonn, em cuja universidade freqüenta o curso de direito. No ano seguinte, depois de ficar noivo, em segredo, de uma amiga de infância, Jenny von Westphalen (1814-1881), transfere-se para a universidade de Berlim. Aí tem suas primícias literárias (poesia, teatro), participa de um cenáculo de intelectuais hegelianos (o Doktorklub ) e trava relações, entre outros, com os irmãos Bauer (Bruno, 1809-1882 e Edgar, 1820-1886) e Karl Köppen (1808-1863). A pouco e pouco, seus interesses dirigem-se para a filosofia, estimulado por Bruno Bauer, que lhe sugere a carreira universitária. À época, a Alemanha, sem experimentar as transformações próprias à revolução burguesa, não se erguera como um Estado nacional moderno: a Confederação Germânica, sob o comando da Prússia, era um conjunto de quase quatro dezenas de Estados, com sistemas de representação política diversificados e restritivos, ausência de laicização, burocracias de raiz feudal e submetida à dominação da nobreza fundiária. Este atraso - a “miséria alemã”, notável quando se comparava a persistência do Antigo Regime na Confederação Germânica com a nova ordem social que se consolidava na França, Inglaterra, Bélgica e Estados Unidos contrastava com a grandeza da sua filosofia clássica, que culminara na obra de Hegel (1770-1831). A sombra de Hegel se projetava para além de sua morte: na cultura alemã, nas duas décadas que se seguiram à morte do filósofo, disputava-se a sua herança - de um lado, alinhavam-se aqueles que extraíam do seu sistema conclusões conservadoras, a “direita hegeliana”; de outro, os que retinham de sua obra o método dialético, adequado à apreensão do movimento histórico, os “jovens” que constituíam a “esquerda hegeliana”. O Doktorklub era um espaço privilegiado no âmbito dessa disputa, reunindo os “jovens” mais credenciados. É no marco dessa polêmica que Marx se volta para a filosofia: a 15 de abril de 1841 obtém o grau de doutor na Universidade de Jena, com uma dissertação sobre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. O projeto de ingressar no magistério superior, porém, torna-se inviável: com a ascensão de Frederico Guilherme IV ao trono prussiano (1840), uma vaga reacionária se afirma e atinge também a universidade – e Bruno Bauer é dela excluído (outubro de 1841). Resta a Marx o ingresso na atividade jornalística: a partir de abril de 1842, começa a colaborar com a Gazeta Renana. Este jornal, criado a 1º de janeiro de 1842 em Colônia, era uma iniciativa dos setores burgueses da Renânia que animavam o débil liberalismo alemão, opondo-se ao reacionarismo de Frederico Guilherme IV. Marx não compartilhava de ilusões liberais, mas suas convicções democráticas viam na Gazeta

propõe dois projetos imediatos: uma revisão do pensamento político de Hegel e a criação de um periódico que vincule a filosofia à intervenção política. A preocupação com o pensamento político de Hegel, fundamentalmente com a relação que o filósofo estabelecia entre Estado e sociedade civil, vinha de 1842. Mas é neste segundo semestre de 1843 que Marx examina a fundo a Filosofia do direito hegeliana num manuscrito (conhecido como Manuscrito de Kreuznach ou, ainda, Crítica da filosofia do direito público de Hegel , inédito até 1927) em que, sob a direta influência de Feuerbach, desconstrói as formulações hegelianas. Paralelamente, redige uma crítica, a que adiante nos referiremos, a Bruno Bauer, seu companheiro no Doktorklub. É também desses meses de 1843 o projeto de um novo periódico, elaborado em parceria com Arnold Ruge (1802-1880), hegeliano “de esquerda” cuja trajetória política não superaria o liberalismo. Em função desse projeto, Marx deixa a Alemanha em outubro e se estabelece em Paris, onde travará relações com o poeta Heinrich Heine (1797-1856) e com o influente socialista francês P.-J. Proudhon (1809-1865). O periódico – Anais Franco-Alemães – conhece apenas um número, editado em Paris em fevereiro de 1844. Marx e Ruge pretendiam vincular a elaboração política dos franceses à reflexão filosófica alemã. Para tanto, Marx e Ruge solicitaram a colaboração de pensadores franceses e alemães e é nele que comparece o texto de um jovem então vivendo na Inglaterra, que Marx conhecera rapidamente na redação da Gazeta Renana , Friedrich Engels (1820-1895) – o artigo do moço, “Esboço de uma crítica da economia política”, impressionará decisivamente a Marx, como veremos adiante. Nos Anais Franco-Alemães saem dois textos de Marx, que assinalam um giro no seu desenvolvimento teórico-político – assinalam, de fato, a sua incorporação do materialismo e o seu trânsito do radicalismo democrático à perspectiva revolucionária. No primeiro deles, Para a questão judaica – redigido ainda em Kreuznach e reproduzido parcialmente adiante, às pp....... -, Marx critica as formulações, recém-publicadas, de Bruno Bauer acerca da “questão judaica”. Muito brevemente, a “questão judaica” consistia nas restrições (operantes desde

  1. aos direitos políticos dos judeus na Alemanha – que lhes proibiam, por exemplo, o exercício de funções nos organismos de Estado. Para Bauer, agora vinculado a um grupelho conhecido como os livres de Berlim , a igualdade legal de direitos, própria da emancipação política, supunha um Estado ele mesmo emancipado da religião - no fundo, para Bauer, que defendia o Estado laico, o ateísmo era a condição para a emancipação política; assim, ele recomendava aos judeus, na sua luta pela igualdade de direitos, o combate prioritário à sua própria religião.

Marx afasta-se de seu ex-companheiro do Doktorklub porque considera a sua proposição insuficiente para a luta dos judeus; mas, sobretudo, critica Bauer pelo fato de conservar a questão em termos religiosos. Assumindo um ponto de vista materialista, Marx se nega a converter as questões mundanas (a emancipação política) em querelas religiosas (cristianismo/judaísmo): ao contrário, quer transformar estas últimas em questões mundanas (políticas). Por isso, Marx centra a atenção no Estado: mesmo quando este se laiciza (deixa de ser cristão e torna-se político stricto sensu ), instaurando-se como comunidade política, na qual o homem se reconhece como um ser público , a vida prática decorre mesmo é na sociedade civil, na qual o homem age como indivíduo , pessoa privada. E assim age porque movido pelo egoísmo, componente inevitável da vida social fundada na propriedade privada e nas relações mediadas pelo dinheiro - relações que já eram objeto da crítica de outro “jovem hegeliano” convertido ao comunismo e com o qual Marx mantinha relações, Moses Hess (1812-1875). Para Marx, essa cisão (emblemática do que chamará de alienação ) entre ser público/indivíduo, devida ao egoísmo, à necessidade prática e ao poder do dinheiro, realiza-se sob as condições da emancipação política (isto é: sem relações de dependência pessoal e com a igualdade formal de direitos) e sob o Estado político (inteiramente laico) – logo, o Estado político pode assegurar a emancipação política, mas não pode garantir a emancipação humana , que implica o fim da alienação (o poder da propriedade privada e do dinheiro) e garante a liberdade real e concreta de todos os homens. Marx descobre então que aquilo que outros chamarão depois de espírito do capitalismo está bem tipificado no judaísmo : o culto do poder do dinheiro. Mas, atenção: o judaísmo não é uma “característica” do “judeu” (e, portanto, não há, na posição de Marx, nenhum “anti-semitismo”) – é, antes, a característica da sociedade em que a distinção Estado político/sociedade civil, com a propriedade privada e as relações mediadas pelo dinheiro, apenas expressa, abertamente, a fratura do homem em ser público (o cidadão ) e indivíduo privado (o burguês ). É nesta linha de análise que, ao invés de considerar a “questão judaica” como um problema religioso, Marx afirma que “a emancipação social do judeu é a emancipação da sociedade relativamente ao judaísmo ”. Segundo Marx, “só quando o homem individual retoma em si o cidadão abstrato e, como homem individual – na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais -, se tornou ser genérico ; só quando o homem reconheceu e organizou as suas forces propres como forças sociais e, portanto, não separa mais de si a força social na figura da força política – [é] só então [que] está consumada a emancipação humana” (cf., adiante, a p....) 2. Entretanto, em Para a questão judaica , ele não tematiza as condições que podem conduzir à emancipação humana, o que fará no outro texto publicado

(^2) Os números que, daqui em diante, vierem entre colchetes remetem às páginas deste volume.

condição de intelectual, que lhe impõe requisições específicas (teóricas), vincula-se ao proletariado assumindo a sua perspectiva de classe e os seus interesses emancipatórios universais. É já este Marx comunista que se põe uma tarefa teórica específica: se percebera, desde os Manuscritos de Kreuznach , que a compreensão do Estado supunha a compreensão da sociedade civil, agora – em 1844 – dirige-se à análise do que chamará de “anatomia da sociedade civil”. Para esta análise, não bastam considerações filosóficas; é preciso explorar outra via – e o rumo das suas investigações foi definido pela mencionada contribuição de Engels aos Anais Franco-Alemães : o artigo enviado da Inglaterra indicou a Marx que um conhecimento profundo e radical da sociedade civil só poderia ser elaborado com base na crítica da Economia Política. É por influência de Engels, que se tornara comunista antes dele, que Marx descobre a Economia Política e, a partir de abril de 1844, dedica-se intensivamente ao estudo dos seus teóricos (A. Smith, D. Ricardo, J. Mill, Mac-Culloch, Boisguillebert, Say, Sismondi). Um dos principais resultados desse primeiro encontro de Marx com a Economia Política são os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 (inéditos até 1932). Neste conjunto de três manuscritos, redigidos entre abril e agosto de 1844 e a que está apenso um importante excurso sobre a Fenomenologia do Espírito , de Hegel, registra-se um momento seminal da reflexão marxiana: ainda sem se apropriar da riqueza teórica da Economia Política, Marx começa a elaborar a sua concepção ontológica do homem como ser prático e social. Ele desenvolve sua reflexão situando o trabalho como a objetivação primária através da qual o homem se auto-constituiu e concebe a essência humana como estrutura radicalmente histórica , cujo aviltamento se expressa na alienação , que tem suas raízes especialmente na propriedade privada. Marx mostra como o trabalho assalariado aliena o trabalhador de si mesmo, dos outros homens e da natureza tanto quanto aliena também o capitalista (cf., adiante, a p...). Mas a ultrapassagem da alienação só pode ser uma necessidade para os trabalhadores: a supressão da propriedade privada, com o comunismo, é o “momento da emancipação e da recuperação humanas” – o comunismo, pois, não é o fim da história, mas a forma da sociedade humana (cf., adiante, a p...). Os Manuscritos de 1844 começam a dar concreticidade ao humanismo de Marx: a crítica das categorias da Economia Política, neles iniciada, está direcionada para o projeto da emancipação humana que pode constituir uma livre sociabilidade que confira aos indivíduos a consciência do seu pertencimento ao gênero humano. Já estavam redigidos tais manuscritos quando, em finais de agosto, retornando da Inglaterra, Engels visitou Marx em Paris. Este foi, de fato, um encontro histórico: dando início a uma amizade que os uniria por toda a vida, inaugurou uma exemplar colaboração intelectual e política. Se ambos tinham chegado ao comunismo por vias diversas, a esta altura havia entre eles uma autêntica comunhão de idéias e de projetos.

O mais imediato era uma crítica às teses sustentadas pelos livres de Berlim - o grupelho liderado por Bruno e Edgar Bauer, que, a partir de finais de 1842, deixando para trás suas anteriores posturas oposicionistas, derivaram para um aberto antipoliticismo, postulando para a filosofia o papel de uma “crítica crítica” elitista e anarquizante. Redigido principalmente por Marx entre setembro/novembro de 1844 e publicado em fevereiro de 1845, o irônico e contundente A sagrada família ou Crítica da crítica crítica. Contra Bruno Bauer e consortes centra-se na crítica dos antigos “jovens hegelianos”, especialmente nas suas concepções idealistas – o livro, realmente, dá início ao balanço da filosofia pós- hegeliana que Marx e Engels desenvolveriam logo mais. Em contraposição àquelas concepções, Marx não só consolida a sua postura materialista, mas prossegue na crítica da Economia Política e na sinalização do protagonismo histórico da classe operária (cf., adiante, as pp...). Os dias de Marx em Paris, contudo, estavam contados. Com efeito, a Prússia, ao longo de 1844, pressionou o governo francês para impedir a circulação do Avante! ; atendendo a tais pressões, Guizot, Ministro do Interior, ordenou a expulsão dos principais colaboradores do jornal e assim, em princípios do ano seguinte, Marx é obrigado a exilar-se na Bélgica – residirá em Bruxelas de fevereiro de 1845 a março de 1848. Aí, a sua reflexão avançará e chegará a um novo estágio, fomentado pelo estreitamento de seus vínculos com organizações de trabalhadores e pelas polêmicas que mantém com socialistas contemporâneos – num andamento que logo o tornará conhecido e respeitado nos círculos revolucionários. Em Bruxelas, Marx continua estudando num ritmo assombroso (ocupa-se da Economia Política, dos “socialistas utópicos”, de demografia e da história da maquinaria, da tecnologia e do desenvolvimento bancário). Todo esse acúmulo vai subsidiar a base para dois documentos fundamentais da arquitetura da obra marxiana. O primeiro, as Teses sobre Feuerbach (reproduzido integralmente adiante, às pp....), foi redigido por Marx na primavera de 1845, permanecendo inédito até 1888, quando Engels o divulgou; as onze teses marxianas não apenas reavaliam criticamente o materialismo de Feuerbach, antes valorizado por Marx – mas nelas se funda a concepção materialista dialética que seria desenvolvida intensivamente no segundo documento, escrito por Marx e Engels em novembro de 1845/abril de 1846, A ideologia alemã. Inédita até 1932, A ideologia... é muito mais que um balanço crítico da filosofia alemã pós- hegeliana: nela comparecem, pela primeira vez explicitamente, as originais concepções teórico- metodológicas que fundarão a teoria social de Marx (cf., adiante, as pp...). Não há risco de exagero se se afirma que, com as Teses ... e com A ideologia ..., Marx ascende a um novo patamar do seu itinerário intelectual – já domina o arcabouço do método de investigação que refinará ao longo dos dez anos seguintes. Cabe notar que a este nítido progresso teórico de Marx não é alheia a viagem de estudos que, com Engels, fez à Inglaterra no verão (julho-agosto) de 1845.

Londres, reúnem-se noutro congresso delegados de vários países europeus, entre 29 de novembro e 8 de dezembro, com a presença de Marx e Engels. Os dois, eleitos para a direção central da Liga , são incumbidos de redigir o seu manifesto programático – é assim que, entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, eles se dedicam à elaboração do Manifesto do partido comunista , cujos primeiros três mil exemplares, em alemão, são publicados – sem a identificação dos autores, o que se faria dois anos depois

  • em Londres, na última semana de fevereiro de 1848. O documento (reproduzido integralmente adiante, às pp...) é profundamente inovador na tradição de “manifestos” inaugurada pelo que o Professor Hobsbawm chamou de era das revoluções : é o primeiro, entre todos, que apresenta uma programática sócio-política embasada teoricamente. As suas propostas não partem de uma prospecção utópica de um futuro a ser construído pela dedicação eticamente generosa de uma vanguarda ilustrada, mas da análise das possibilidades concretas postas na dinâmica histórica pelo desenvolvimento real da situação presente. Por isso, o comunismo não aparece somente como a aspiração a uma sociedade “em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos” [...]; antes, é uma possibilidade concreta que se inscreve na dinâmica da realidade: o evolver da sociedade burguesa põe objetivamente a alternativa comunista (pelo florescer das forças produtivas, pela exigência de uma força de trabalho crescentemente organizada, pela interdependência de todos os países através da criação do mercado mundial e, sobretudo, pela radicalização da contradição entre a produção progressivamente socializada e a apropriação privada do excedente econômico). A análise realizada no Manifesto parte dos fundamentos materiais que, na sociedade burguesa, põem a possibilidade do comunismo e opera com as categorias teóricas que a pesquisa marxiana veio elaborando a partir de 1844 – assim, a referencialidade central radica na determinação do desenvolvimento histórico como dinamizado pelas lutas de classes , do regime do capital como fundado na exploração e da sua natureza contraditória e historicamente transitória , do Estado como um poder de classe e da revolução como processo protagonizado por massas de homens e mulheres conscientemente organizados , sob a direção da classe operária. Ao longo dos anos seguintes, Marx afinará suas categorias heurísticas, retificará várias delas à base de novas pesquisas e descobertas e da experiência histórica, articulará novas categorias - ou seja: no Manifesto ..., as bases da sua teoria social ainda não se apresentam plenamente fundamentadas. Mas a referencialidade central aqui indicada manter-se-á sem alterações substantivas: até o fim de seus dias, Marx – nunca animado por uma esperança profética ou mística, mas sempre movido por convicções teóricas e políticas – sustentará tal referencialidade.

Revolução e exílio

Em fevereiro de 1848, quase simultaneamente à publicação do Manifesto , a revolução explode em Paris e logo se espraia pelo continente. Faísca que incendeia a pólvora acumulada desde a reação promovida pela Santa Aliança, o processo eversivo abala o edifício europeu de ponta a ponta, experimenta auges e refluxos por quase dezoito meses, envolve exigências sócio-econômicas, demandas políticas e aspirações nacionais e se conclui pela derrota das forças mais progressistas. 1848 foi um divisor de águas e adquiriu significado histórico-universal: esgotada a sua vocação emancipatória, a burguesia retrai-se no espaço do conservadorismo (ou do reformismo conservador) e o proletariado emerge na história como classe para si ; no plano ídeo-cultural, a herança ilustrada da Modernidade, à direita, é ferida pelo emergente irracionalismo, ao centro degrada-se no positivismo e, à esquerda, é criticamente recolhida pelos socialistas revolucionários. No plano político, no epicentro francês, a subsequente vitória eleitoral de Luís Napoleão demonstrou que conquistas democráticas podem ser neutralizadas e, na Europa Central e Oriental, foi breve a primavera dos povos - mas o mundo mudou. A Liga dos Comunistas imerge no turbilhão e Marx faz a experiência da revolução a quente. O governo provisório da República Francesa cancela a sua ordem de expulsão e, nos primeiros dias de março, está em Paris; no fim do mês, organiza o retorno à Alemanha dos membros da Liga e redige, com Engels, as Reivindicações do Partido Comunista na Alemanha , panfleto logo divulgado e que constitui o primeiro programa concreto do proletariado numa revolução democrática. Regressado à Alemanha, Marx, entre abril e maio, prepara em Colônia o lançamento da Nova Gazeta Renana , “órgão da democracia”, de que será o redator-chefe e que circulará de junho de 1848 a maio de 1849 – o jornal será de fato o dirigente da ala proletária na revolução e núcleo orientador da Liga (no interior da qual, aliás, se expressam divergências). Ademais das tarefas de redator-chefe e de editorialista, Marx, assim como Engels, firmou expressiva quantidade de artigos no periódico. Na seqüência da brutal repressão à insurreição do proletariado parisiense, que, entre 23 e 26 de junho de 1848, pôs na ordem do dia a instauração da república democrática e social , a contra-revolução se articula em escala européia. Na Alemanha, a partir de setembro, sucedem-se escaramuças que sinalizam uma agudização das lutas de classes e Marx se joga em febril atividade organizativa, tornada ainda mais urgente dadas as vitórias da contra-revolução na Áustria, em outubro. Em novembro, Frederico Guilherme IV ensaia a repressão; depois de relativa acalmia nos primeiros meses de 1849, em maio os conflitos se agravam e explodem insurreições em várias cidades alemãs - Marx se desloca para algumas delas, conclamando as forças democráticas e proletárias à unidade para a resistência. No fim de maio, com a generalização da ofensiva contra-revolucionária que prenuncia a derrota total do movimento, Marx é obrigado a retirar-se para a França, enquanto Engels ainda teima em combater de armas nas mãos.

se arrastar até 1852 e Marx mostra-se incansável na defesa de seus camaradas – redigiu, em dezembro de 1852, um panfleto ( Revelações sobre o processo dos comunistas de Colônia ), publicado em janeiro de 1853, em que desmonta a farsa judiciária preparada pela reação. Entre 1850 e 1852, como é freqüente em face de derrotas políticas significativas, as divergências entre os exilados e no interior da própria Liga se acentuam e se convertem em antagonismos, levando a dissidências e a sectarismos, ademais de tagarelices, maledicências e cizânias (clima simultaneamente frívolo e doentio, que Marx e Engels ridicularizam num texto, Os grandes homens do exílio , escrito em maio-junho de 1852 e só publicado em 1930). Então, Marx e Engels – que, entrementes, mediante as suas análises de conjuntura, convenceram-se de que o momento revolucionário de 1848 estava esgotado – decidem dissolver a seção londrina da Liga dos Comunistas (17 de novembro de 1852), o que, de fato, significou o fim da organização. Entendendo, a partir de suas análises, que a hora da reação chegara, Marx e Engels afastam-se de inócuas atividades partidárias. Engels já deixara Londres em novembro de 1850, para se estabelecer em Manchester; ali, trabalhará até 1869 numa indústria têxtil de que sua família era co-proprietária – e com seus ganhos contribuirá para a sobrevivência de Marx e sua família, e isto de forma sistemática a partir de finais dos anos 1860. Até lá, Marx viverá dos parcos e irregulares rendimentos propiciados por sua atividade jornalística (para jornais ingleses, do continente e norte-americanos), experimentando situações de penúria e de miséria, literalmente vexatórias.

1857/1865: um tour de force intelectual

Sob péssimas condições de vida e trabalho, Marx retoma seus estudos sistemáticos de Economia Política, valendo-se especialmente do acervo documental do British Museum , de que se torna freqüentador assíduo. Àquelas condições somam-se os primeiros sinais da deterioração de sua saúde (em março de 1853, manifestou-se-lhe uma hepatite), que se agravaria com o passar dos anos. As obrigações que tem como jornalista tomam-lhe tempo precioso e levam-no a interromper as suas pesquisas, mas lhe oferecem a oportunidade de analisar questões da Europa Meridional e Central e do Oriente, bem como de acompanhar o movimento bancário e bursátil e o comércio internacional - e tudo isso se reflete na sua larga e intensa produção jornalística. Por outro lado, a colaboração com Engels, mesmo com este em Manchester, não se reduz: a correspondência entre ambos, notavelmente regular e volumosa a partir de 1853, revela a fecundidade e a relevância dessa interação intelectual para a consecução da obra marxiana. Marx sempre trabalhou obsessivamente: o “Mouro”, seu apelido entre os mais próximos, lê tudo, devora livros, panfletos, jornais, documentos, publicações científicas. Poliglota, senhor de um estilo

castigado, tem uma sede de saber fáustica, mas não é um erudito ou um pensador enciclopédico, cujos interesses vão da literatura clássica à matemática – antes, assemelha-se aos homens cultos do Renascimento, capazes de integrar totalizadoramente os conhecimentos numa visão de mundo radicalmente antropocêntrica. O período 1857-1865 – nos quais realiza o tour de force intelectual de que resultarão suas principais descobertas teóricas – é expressivo do que acabamos de afirmar. Foi uma quadra de enorme desgaste pessoal – e não só pelas precárias condições de vida já assinaladas. No fim dos anos 1850, a difícil relação, aliás nunca rompida, que mantinha com F. Lassale (1825-1864), escritor e publicista de esquerda muito influente na Alemanha, experimenta forte tensionamento. À mesma época, Karl Vogt (1817-1895), que se descobriu depois ser um agente de Napoleão III, divulgou um panfleto denegrindo a honra dos revolucionários e a Liga dos Comunistas , com acusações particularmente dirigidas a Marx – que perdeu tempo, saúde e energia para desmistificar a provocação no livro O senhor Vogt (publicado em 1860). Pois é nestes anos que Marx, em sua plena maturidade intelectual e política, apoiado no acúmulo de quase quinze anos de estudos, levará a cabo, em três momentos, um tour de force que consolidará a sua crítica da Economia Política e as bases da sua teoria social. A irrupção da crise econômica de 1857, com seu impacto mundial, pressionou Marx a dedicar-se à redação da obra que prometia desde a segunda metade dos anos 1840 a seus amigos (e a editores), uma Crítica da Economia Política – redação sempre postergada. De julho de 1857 a março de 1858, produzirá, num trabalho insano, um plano para a obra e os manuscritos só integralmente publicados em 1939-1941 sob o título Elementos fundamentais para a crítica da economia política. Rascunhos. 1857-1858 (cuja decisiva “introdução” reproduzimos parcialmente adiante, às pp...). A crítica da Economia Política, seu método e objeto, o exame histórico- sistemático das suas categorias, o tratamento do valor e a sua expressão monetária, o complexo capital/trabalho, a exploração do trabalho e a alienação – todos esses constituintes do modo de produção capitalista são examinados no seu movimento dialético. Nesses manuscritos tem-se, sem dúvidas, o que Rosdolsky caracterizou como a gênese e a estrutura d´ O capital – ainda que sob uma forma bruta e incompleta. A partir de alguns dos resultados parciais até aí alcançados, Marx preparou, entre agosto e novembro de 1858, o livro que publicaria em junho do ano seguinte: Para a crítica da Economia Política. Afinada e polida, a exposição marxiana (precedida de um prefácio antológico, de que oferecemos um extrato mais adiante, às pp...) contém dois enxutos capítulos: no primeiro, é analisada a estrutura da mercadoria e no segundo, a do dinheiro e da circulação monetária. Num segundo momento, entre 1861 e 1863 - quando foi obrigado a ocupar-se também com a defesa de L. A. Blanqui (1805-1881), revolucionário francês perseguido por Luís Bonaparte, com as

interromperam-na várias vezes, e em abril de 1867 o texto estava pronto – numa tiragem de mil exemplares, saiu em Hamburgo, pela editora de Otto Meissner, em meados de setembro de 1867: O capital. Crítica da economia política. [vc já citou o título. Precisa repetir?] Era somente o Livro I, centrado no processo de produção do capital – de todo o enorme conjunto de manuscritos, apenas este Livro I foi preparado para publicação por Marx. Nem esta primeira versão, todavia, pode ser considerada definitiva: para a segunda edição (1873), Marx fez adições significativas ao texto – de fato, o Livro I só adquiriu sua feição última a partir da quarta edição alemã (1890), com a revisão de Engels a partir de outras anotações de Marx. Marx prosseguiu seu trabalho até por volta de 1880, mas não chegou nunca a uma redação final. Dois anos após a morte de Marx, ou seja: em 1885, saiu o Livro II, cujo objeto é o processo de circulação do capital , editado por Engels. [editado por Engels, mas Marx preparou o essencial]. E só quase dez anos depois, em 1894, veio à luz o Livro III, que trata do processo global da produção capitalista – a demora da publicação deveu-se ao estado dos materiais deixados por Marx, bastante desarticulados; por isso, no caso deste Livro III, cabe dizer que Engels foi muito mais que um editor, intervindo notavelmente na sua estruturação. O Livro IV, uma história crítica do pensamento econômico (as teorias da mais-valia ), veio à luz entre 1905 e 1910, sob a responsabilidade de Kautsky, numa edição bastante precária (somente nos anos 1950 foi possível contar com uma edição confiável) 6. Em síntese: essa opus magnum permaneceu de fato inconclusa – afora o Livro I, o restante d’ O capital é menos uma obra finalizada que um projeto/processo em curso, inacabado , por mais que o esforço sistematizante de Engels (cujo mérito, quanto a isto, nunca será exagerado) produza impressão diferente. [Eu não diria isso: Marx não preparou o texto final, mas criou os conceitos já conteudisticamente, ainda que não formalmente, entrelaçados. Nenhum dos conceitos da versão final é de Engels.] Não cabe, aqui, esboçar qualquer “resumo” d´ O capital^7 - mas é preciso dizer algo mais sobre a sua estrutura. O Livro I, O processo de produção do capital , trata basicamente da relação de produção determinante do modo de produção capitalista: a exploração do trabalho assalariado pelo capital. A análise parte da “célula” do MPC [da primeira vez, é preciso pôr por extenso], a mercadoria, expõe os efeitos da mercantilização universal das relações sociais (o fetichismo), desvela a natureza do valor, mostra a transformação do dinheiro em capital, determina a peculiaridade da mercadoria força-de- trabalho, distingue capital constante de capital variável, descobre a essência da exploração do trabalho e precisa a sua natureza no trato da mais-valia – e traz à luz a lei geral da acumulação capitalista (de todas essas categorias e processos oferecemos extratos adiante, às pp...). O Livro II, O processo de circulação

(^6) A maioria das edições d´ O capital , desde então, trata este Livro IV como obra autônoma – tem-se, pois, geralmente, duas “obras”: O capital , composto pelos livros I, II e III (em seis volumes, nas duas versões brasileiras [na da Abril são só cinco]) e Teorias da mais-valia 7 , enfeixando o conteúdo do Livro IV (na única versão brasileira, em três volumes). Para “resumos” ou condensações d´ O capital , cf., adiante, a Bibliografia de Marx.

do capital , apreende, na análise do movimento do capital , as metamorfoses do capital e os seus ciclos; a rotação do capital e a circulação da mais-valia, a reprodução e a acumulação são examinadas do ponto de vista da circulação. [Importante aqui são as três metamorfoses do capital: dinheiro, produtivo, mercantil.] O Livro III, O processo global da produção capitalista , culmina a análise do modo de produção capitalista: Marx estuda-o como unidade indissolúvel de produção e circulação ; a vigência efetiva da lei do valor é verificada e as formas concretas do capital (inclusive a do “capital produtor de juros”) são estudadas em seu movimento; Marx também se ocupa da renda fundiária e, ainda, dos limites imanentes à produção capitalista, bem como da alternativa do “reino da liberdade” (também oferecemos adiante, pp...., extratos dessas elaborações). No Livro IV, o dedicado às teorias da mais-valia , para além da análise crítica do pensamento econômico (Steuart, os fisiocratas, Smith, Ricardo, Sismondi et alii ), Marx tematiza a questão fundamental do trabalho produtivo e improdutivo (cf., adiante, as pp...). A análise exaustiva do modo de produção capitalista é a condição necessária para a compreensão totalizadora da sociedade burguesa, que nele se funda – afinal, desde A ideologia alemã , para Marx o conhecimento da sociedade demanda o conhecimento de como os homens organizam a produção material das condições da sua vida social. A crítica da economia política propicia o conhecimento dessa produção e, a partir dela, pode se desenvolver adequadamente a investigação sobre as instituições sociais e políticas, o ethos e a cultura, que exigem tratos [abordagens] específicos. Marx, em 1857, determinou com precisão o método que permite o conhecimento do modo de produção capitalista – aquele que “consiste em elevar-se do abstrato ao concreto”, no qual “as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento” (cf., adiante, a p...) - por isto, o leitor não encontrará n´ O capital definições e sim determinações, cada vez mais ricas e mais inclusivas na reconstrução teórica do movimento real do capital. A crítica da economia política é, pois, a condição para a teoria social, capaz de reconstruir reflexivamente a dinâmica da sociedade; resumidamente, é sobre ela que se pode elaborar o conhecimento das classes sociais, suas relações e seu movimento, do poder político, da cultura etc. Estas instâncias ou níveis da vida social dispõem de legalidades e especificidades próprias, mas a sua inteligibilidade está hipotecada à compreensão do modo de produção. O capital , portanto, não nos oferece inteiramente a teoria social de Marx – que está contida tanto nesta obra quanto naquelas que a precedem e sucedem -, mas o seu fundamento. Temos insistido em que O capital é uma obra inacabada. Devemos observar o duplo caráter desse inacabamento: de um lado, Marx não concluiu nem expôs o conjunto da pesquisa a que procedeu; de outro, o seu objeto (o modo de produção capitalista) não se esgotou ou desapareceu historicamente – prosseguiu e prossegue se desenvolvendo, instaurando novos processos e gestando novas categorias. Mais de um século depois da morte de Marx, é compreensível que O capital não baste para apreender o modo

formulações que, determinadas e concretizadas com as descobertas operadas na pesquisa que levou a´ O capital , permitem o conhecimento verdadeiro (logo, para Marx, crítico e revolucionário) da sociedade burguesa – conhecimento sem o qual os esforços para a sua superação seguramente revelar-se-ão frustrados. De fato, o conhecimento da estrutura da sociedade burguesa era, para Marx, essencial à iniciativa revolucionária. Se recusava essa sociedade por suas iniqüidades, ele não considerava que uma fundamentação ética era suficiente para substituí-la por uma ordem social em que a igualdade garantisse a liberdade (o valor último pelo que sempre lutou) – seu realismo político conduziu-o a buscar na teoria as armas da crítica, sem a qual toda crítica das armas é ilusória.

A Internacional , o assalto ao céu e a social democracia alemã

Desde a grande crise econômica de 1857, Marx previra que o movimento operário europeu disporia de condições para recuperar-se das derrotas de 1848-1849 – para ele, a crise abria uma conjuntura favorável à retomada das lutas. Sua projeção confirmou-se plenamente quando, refletindo a mobilização proletária na Europa Ocidental, em Londres, a 28 de setembro de 1864, representantes do operariado inglês, francês e emigrado decidiram criar a Associação Internacional dos Trabalhadores^8. Marx, presente a esta reunião fundacional, foi eleito para o Conselho Geral (instância decisória mais alta) e designado um dos redatores dos estatutos (e do programa) da organização. Em 1º de novembro, o Conselho Geral aprovou o texto oferecido por Marx para a documentação oficial e mais a sua Mensagem inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores. Graças à Internacional , Marx, afastado da ação política desde a dissolução da Liga dos Comunistas , voltou ativamente a ela: foram notáveis o entusiasmo e o empenho com que assumiu a sua função dirigente na organização. O entusiasmo não se devia apenas à reinserção da classe operária na cena política – devia-se sobretudo ao fato de estar em jogo uma perspectiva internacionalista para o movimento proletário e revolucionário, questão sempre central para Marx. Quanto ao seu empenho nas tarefas dirigentes (as reuniões do Conselho Geral, a orientação das lutas, a redação de documentos, o combate ao espírito de seita, a propaganda, a organização das várias seções nacionais etc.), era tanto mais redobrado quanto mais heterogênea se apresentava a composição da Internacional – e Marx jogava toda a sua energia para garantir-lhe uma unidade fundada numa consciente posição de classe. Durante a vida

(^8) Depois conhecida como Primeira Internacional , porque sucedida pela Internacional Socialista , criada em Paris, em 1889 e designada como Segunda Internacional – a crise desta (1914) e a Revolução Bolchevique (1917) propiciaram a fundação da Internacional Comunista (1919-1943), logo identificada como Terceira Internacional – na oposição ao stalinismo, Trotski criaria, em 1938, a Quarta Internacional. Cumpre lembrar que, em 1951, dirigentes social-democratas [sem hífen] deram vida a uma nova organização que, sob a denominação de Internacional Socialista , aglutina hoje partidos nominalmente de esquerda de todos os continentes.

breve da organização, toda a intervenção de Marx visou a um objetivo estratégico: assegurar a sua unidade classista e internacionalista. Este objetivo, de fato, não foi alcançado por completo: a crescente influência de Marx e suas idéias, simultânea à grande expansão da organização no final dos anos 1860, não impediu conflitos importantes, jamais inteiramente solucionados nos vários congressos da Internacional^9. Desses conflitos, o mais significativo opôs a Marx o anarquista russo Mikhail Bakunin (1814-1876), que, em 1869, criou a Aliança Democrática Socialista ; contra ele e seus seguidores, aliás, Marx e Engels redigiram o documento As pretensas cisões na Internacional (1872) e Marx colaborou no texto, também dirigido contra o anarquismo, de 1873, escrito por Engels e Paul Lafargue (1842-1911, genro de Marx), A Aliança Democrática Socialista e a Associação Internacional dos Trabalhadores. Em 1872, o congresso da Internacional reunido em Haia decidiu pela expulsão de Bakunin e seus seguidores e transferiu o Conselho Geral de Londres para Nova Iorque (1872) e a Conferência da Filadélfia (1876) acabou por dissolver a organização. Então, Marx concluíra que ela já não correspondia às necessidades do movimento revolucionário – e, para esta conclusão, contribuiu a Comuna de Paris , primeira experiência de poder operário, para Marx um verdadeiro assalto ao céu. Estourando a guerra franco-prussiana a 15 de julho de 1870, após a derrota de Sedan (2 de setembro) instaurou-se a república na França e o governo provisório tentou negociar, inutilmente, com Bismarck, que sitiou Paris. Um novo governo, chefiado por Adolphe Thiers (1797-1877), político reacionário que fora primeiro-ministro do deposto Napoleão III, assinou uma paz ominosa – rechaçada pelos trabalhadores de Paris, que não depuseram as armas e, em março de 1871, proclamaram a Comuna , que resistiu heroicamente às forças de Thiers (apoiadas pelos prussianos) até maio, quando elas entraram em Paris e, numa repressão inaudita, massacraram covardemente dezenas de milhares de communards. Marx, que em nome da Internacional , ainda em setembro de 1870, advertira os trabalhadores parisienses contra qualquer insurreição prematura, pôs-se a organizar a solidariedade a eles, denunciou as barbaridades cometidas por Thiers e mobilizou a Internacional na defesa da Comuna , notadamente contra as calúnias que a imprensa da época fez ecoar contra ela. Marx, porém, não se ateve apenas aos aspectos mais salientes dessa primeira e meteórica experiência de poder operário e democracia direta: analisou-a profunda e detalhadamente, extraindo dela inferências (em especial, as relativas à questão do Estado) que avaliou como decisivas para o projeto revolucionário – e o fez na última das três Mensagens que preparou para serem emitidas pelo Conselho Geral da Internacional , entre julho de 1870 e maio de 1871. É desta mensagem, A guerra civil na França , que oferecemos extratos adiante, às pp....

(^9) Os congressos da Internacional reuniram-se em 1866 (Genebra), 1867 (Lausanne), 1868 (Bruxelas), 1869 (Basiléia) e Haia (1872).