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Interação do Direito Internacional e Direito Interno no Brasil: A Inserção de Tratados, Resumos de Direito

Este texto discute a interação do direito internacional com o direito interior no brasil, especificamente sobre a inserção de tratados no direito brasileiro. O autor aborda as fontes do direito internacional, a interação entre o direito internacional e direito interior, e exemplos de tratados incorporados no direito brasileiro. Além disso, ele discute a publicidade de tratados internacionais no brasil e a relação entre tratados e leis especiais.

O que você vai aprender

  • Qual é a natureza jurídica de tratados no Brasil?
  • Como as normas de direito internacional interagem com as normas de direito interior?
  • Quais são as fontes do direito internacional no Brasil?

Tipologia: Resumos

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 71
Inserção dos tratados no direito brasileiro
LUIZ OLAVO BAPTISTA
Luiz Olavo Baptista é Professor Titular da
Faculdade de Direito – USP, Doutor da Universidade
de Paris II e Chefe do Departamento de Direito
Internacional da FADUSP.
SUMÁRIO
1. A inserção dos tratados no sistema jurídico
brasileiro. 2. Efeitos dos tratados na ordem interna
brasileira. 3. Hierarquia entre lei e tratado. 4.
Revogação da lei pelo tratado. 5. As normas
derivadas do Mercosul.
O processo de globalização da economia, os
movimentos de integração econômica e o desen-
volvimento do direito internacional daí decor-
rente trazem à baila a necessidade de se estudar
a interação do direito internacional com o direito
interno, especialmente no Brasil. Como todos
países de grandes dimensões, o nosso tende a
um certo isolacionismo e auto-suficiência que os
fatos sempre se encarregam de confrontar. Isso
tem ocasionado inúmeros problemas nos foros
internacionais, a maioria deles decorrente tão-
só do desconhecimento da existência de
obrigações do país para com os demais Estados
e dos efeitos e alcance destas. Tais obrigações,
na maior parte, decorrem de tratados.
Por outro lado, muitas pessoas não sabem
quando os tratados se tornam obrigatórios – se
é que se tornaram – e quais os passos para se
chegar a esse resultado. Isso também tem sido
fonte de confusão. Por isso é útil uma revisão
da legislação e da doutrina, a esse propósito, o
que se pretende com este texto.
As normas internacionais1 produzem efeitos
1 As fontes do direito internacional público,
tradicionalmente, são as referidas no art. 38 do
Estatuto da Corte Internacional de Justiça e incluem
o costume, os princípios gerais de direito
reconhecidos pelos principais sistemas jurídicos, a
jurisprudência internacional e os acordos passados
entre pessoas jurídicas de direito internacional
público.
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Brasília a. 33 n. 132 out./dez. 1996 71

Inserção dos tratados no direito brasileiro

LUIZ OLAVO BAPTISTA

Luiz Olavo Baptista é Professor Titular da Faculdade de Direito – USP, Doutor da Universidade de Paris II e Chefe do Departamento de Direito Internacional da FADUSP.

SUMÁRIO

1. A inserção dos tratados no sistema jurídico brasileiro. 2. Efeitos dos tratados na ordem interna brasileira. 3. Hierarquia entre lei e tratado. 4. Revogação da lei pelo tratado. 5. As normas derivadas do Mercosul.

O processo de globalização da economia, os movimentos de integração econômica e o desen- volvimento do direito internacional daí decor- rente trazem à baila a necessidade de se estudar a interação do direito internacional com o direito interno, especialmente no Brasil. Como todos países de grandes dimensões, o nosso tende a um certo isolacionismo e auto-suficiência que os fatos sempre se encarregam de confrontar. Isso tem ocasionado inúmeros problemas nos foros internacionais, a maioria deles decorrente tão- só do desconhecimento da existência de obrigações do país para com os demais Estados e dos efeitos e alcance destas. Tais obrigações, na maior parte, decorrem de tratados. Por outro lado, muitas pessoas não sabem quando os tratados se tornam obrigatórios – se é que se tornaram – e quais os passos para se chegar a esse resultado. Isso também tem sido fonte de confusão. Por isso é útil uma revisão da legislação e da doutrina, a esse propósito, o que se pretende com este texto. As normas internacionais^1 produzem efeitos

(^1) As fontes do direito internacional público, tradicionalmente, são as referidas no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça e incluem o costume, os princípios gerais de direito reconhecidos pelos principais sistemas jurídicos, a jurisprudência internacional e os acordos passados entre pessoas jurídicas de direito internacional público.

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internacionais^2 obrigando tão-só Estados^3 ou organizações internacionais^4 para com os demais Estados ou organizações internacionais se decorrerem de tratado e, como os contratos, apenas para os respectivos signatários, salvo o consentimento expresso dos terceiros^5. As normas de direito interno, por sua vez, só por exceção produzem efeitos extraterritoriais (daí se falar em extensão territorial da soberania, o poder de legislar sendo emanação desta).

Isso torna necessária a interação entre esses dois tipos de regras, visando a sua operaciona- lidade e coerência.

Entre as normas internacionais, só exami- naremos aqui a categoria dos tratados. A expressão tem vários sinônimos: acordo, convenção, protocolo, etc., todos designando a mesma coisa. Os tratados são contratos entre pessoas de direito público internacional^6.

Cumpridos determinados requisitos, podem ser incorporados aos sistemas jurídicos nacionais e passam a integrá-los, produzindo efeitos no interior destes. Isso ocorre porque as obrigações que geram podem vir a afetar, de algum modo, a legislação do Estado signatário, seja modificando-a diretamente, ou criando certos limites para o exercício da competência legislativa. Isso, entretanto, faz-se mediante procedi- mentos, previstos pelo sistema jurídico a que se incorporarão, para a inserção das novas regras no direito interno. Vejamos como o direito brasileiro trata da matéria.

  1. A inserção dos tratados no sistema jurídico brasileiro

A Constituição Federal prevê a aprovação pelo Legislativo (art. 49, I) e, posteriormente, a promulgação pelo Executivo, que também

ratificará o tratado. A ratificação é ato dirigido aos demais signatários e à comunidade de Estados, confirmando o compromisso condicional que foi a assinatura da convenção ou tratado. Ao ser levado à aprovação, o tratado já foi objeto de negociações e, após estas, assinado. É remetido ao Poder Legislativo com o pedido de aprovação. A submissão ao controle legislativo desse ato do Executivo é antiga tradição no direito brasileiro^7. A razão desta tradição é explicada pelo Professor Vicente Marotta Rangel: “com a audição dos poderes Executivo e Legislativo, atende-se à consideração de que o tratado possui a natureza de lei e se respeita, por outro lado, o princípio da distinção dos poderes governamentais”^8. A aprovação na Câmara dos Deputados deve ser por maioria absoluta de votos^9. Segue-se um projeto de decreto legislativo, que será enviado ao Senado, que o aprovará ou rejeitará. Se a aprovação for sem emendas, o Presidente do Senado promulga o decreto legislativo^10. Se houver emendas, volta à Câmara, cabendo a esta decidir se as aceita. O Presidente do Senado, em qualquer caso, promulgará o decreto legislativo. Com a edição do decreto legislativo, formaliza-se a aprovação do acordo. Seguem-se a promulgação^11 e a ratificação^12 , a primeira por decreto, que incorpora o tratado ao direito brasileiro, atos esses privativos do Presidente da República^13.

(^2) Como dizia Anzilotti, elas “não podem influir

sobre o valor obrigatório das normas internas, e vice- versa”. Cours de Droit International. Tradução francesa segundo a 3ª edição italiana. Paris : Sirey,

  1. 3v. p. 50. (^3) ICJ Reports, 1952, p. 112. (Caso da Anglo Iranian Oil, Grã Bretanha vs. Irã). (^4) ICJ Reports, 1962, p. 330. (Caso do Mandato sobre a África do Sul Ocidental, outorgado pela Liga das Nações). (^5) Convenção de Viena sobre o Direito dos

Tratados, art. 35. (^6) Para uma definição mais precisa, v. Reuter,

op. cit. Nota e Rezek, op. cit. Nota.

(^7) VALLADÃO, Haroldo. Conceito moderno de ratificação de tratados e convenções. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional , Rio de Janeiro, v. 35-36, p. 53 e seg. (^8) Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais. Boletim da Soc. Brasileira de Direito Internacional , nº 45-46, jan./dez. 1967. p. 29 e seg. (^9) CF, art. 47. (^10) RIS, Título IX, Cap. IV, art. 48, item 28. (^11) Celso de A. Mello classifica a ratificação como “a fase mais importante do processo de conclusão dos tratados”. Direito Internacional Público. 10. ed. Rio de Janeiro : Renovar, 1994. v. 1, p. 142-3. (^12) Como disse Jules Basdevant em um voto na CIJ ( Raports , 1952, p. 69) “...a redação e assinatura de um acordo internacional são os atos por meio dos quais se expressa a vontade dos Estados contratantes; a ratificação é o ato pelo qual a vontade assim expressa é confirmada pela autoridade competente, com o propósito de dar-lhe força obrigatória” (trad. livre). (^13) CF, art. 84, VIII.

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No Brasil, desde a Constituição de 1988, temos algumas regras de direito internacional que, introduzidas no direito brasileiro, não mais podem ser revogadas, pois estão sob o império da chamada cláusula pétrea. São as que nascem dos tratados sobre direitos e garantias individuais e que, por isso, geram direitos subjetivos dos cidadãos. Assim, os direitos daí decorrentes (e não os tratados que os declararam) não podem mais ser abolidos ou revogados.

As demais normas de direito internacional têm a mesma hierarquia das leis e, por isso, obedecem às mesmas regras que estas em matéria de vigência. É preciso sempre, por isso, indagar qual o conteúdo e a quem se dirige o comando emanado do acordo, para saber se dele decorrem ou não direitos subjetivos e para quem. Quando o comando for endereçado ao Executivo e este obrigou-se a tomar determinada providência que gera direito para os residentes no Brasil, estes, cidadãos ou não, terão direito subjetivo a exigir que se cumpra o mandamento. Ao contrário, se o Poder Executivo obri- gou-se a determinado ato – por exemplo, uma norma do Mercosul que determina que os Estados-membros criem equipes plurinacionais nas respectivas fronteiras –, os cidadãos não podem exigir, em juízo, o cumprimento dessa providência; só a pode reclamar qualquer dos Estados-membros ou a organização internacional Mercosul. Assim ocorreu, em outro âmbito, um bom exemplo com o tratado que criou a Organização Internacional do Café que, até esta data,^24 não havia sido promulgado pelo Presidente da República – e por isso ainda não entrou em vigor. Contém dispositivo pelo qual os membros esforçar-se-ão por proibir a venda e a propaganda, sob o nome de café, de produtos que contenham menos do equivalente a 90 por cento de café verde como matéria- prima básica. Essa regra estabelece uma obrigação de meios, e não de resultados, para os Estados-membros e não gera direito subjetivo para os súditos deste tratado, que são, para os efeitos desta cláusula, terceiros. O comando, nesse caso, é endereçado tão-só aos Estados, e a estes cabe editar as normas ou tomar as providências necessárias para que ele se cumpra. Só os demais Estados signatários têm o direito de reclamar o cumprimento do tratado, e isso mesmo nos limites da possibilidade jurídica (e, creio, política) do Estado.

Há também tratados que contêm duplo endereçamento: aos Estados e aos súditos destes, pois a uns atribuem deveres e a outros direitos. É o caso da Convenção sobre Asilo Territorial de Caracas^25 , na qual os signatários se obrigam a respeitar certas regras relativas ao asilo e que redundam em benefícios para os asilados, os quais terão o direito de se socorrer do tratado em relação a estas últimas regras. Finalmente, exemplificando tratado que regula a conduta das pessoas residentes nos territórios dos Estados signatários (e, por isso, referente a direitos subjetivos), temos o vetusto Código Bustamante^26 , cujas regras endere- çam-se diretamente às pessoas, que desse modo podem exigir a sua execução. Realmente, como ensina o Ministro Francisco Rezek^27 : “Custa-se entender, dessarte, a tão repetida dúvida sobre produzirem, ou não, os tratados efeitos sobre os indivíduos e sobre as pessoas jurídicas de direito privado_._ ” Com efeito, basta buscar, no teor do tratado devidamente introduzido na ordem interna, o endereçamento de seu conteúdo, para saber se está ou não endereçado às pessoas ou tão-só ao Estado. Os tratados, assim, integram a ordem interna, com diversas funções. Cabe indagar se têm a mesma hierarquia das leis.

  1. Hierarquia entre lei e tratado

Os tratados, uma vez inseridos no direito brasileiro, passam a ser considerados como leis e a produzir os efeitos destas sobre as demais leis^28. Sem dúvida, no sistema brasileiro, como é cediço, e bem explicou o Professor Vicente Marotta Rangel^29 , estão em nível hierárquico inferior ao da Constituição e, portanto, sujeitos ao controle de constitucionalidade. Com efeito, se a norma de direito interna- cional foi introduzida no direito interno para

(^24) Agosto de 1996.

(^25) X Conferência Interamericana, 28 de março de 1954, aprovada pelo Dec. Legislativo 34, de 12- 8-64, ratificada a 14-1-65, promulgada pelo Decreto 55.929, de 14 de abril de 1965. (^26) Código Interamericano de Direito Privado, firmado em Havana e promulgado pelo Decreto 18.871 de 13 de agosto de 1929. (^27) Direito dos Tratados , p. 394. (^28) Há outros sistemas jurídicos que dão prevalência aos tratados não só sobre as leis, mas até mesmo sobre a Constituição. (^29) cf. nota 8.

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nele operar como se fora lei, não haveria por que dar-lhe hierarquia superior. A hierarquia é a mesma, exceto no caso, muito especial, das leis complementares. Efetivamente, o sistema brasileiro estabelece uma distinção entre as chamadas leis complementares – que dependem de quorum especial para sua aprovação – e as leis ordinárias. Aquelas primam sobre estas. Por isso mesmo, como já dito no caso da Convenção 158 da OIT^30 , o tratado, ainda que verse matéria típica de lei complementar, não passa do nível da lei ordinária, até porque o quorum para sua aprovação não é alcançado. Para que faça efeito – ainda que promulgado –, far-se-á mister a edição de lei comple- mentar^31 que incorpore seus preceitos no direito brasileiro.

Dessarte, como os tratados têm a mesma hierarquia das leis ordinárias, cabe verificar como são derrogados por estas e se elas são derrogadas pelos primeiros.

  1. Revogação da lei pelo tratado

Desde o Direito Romano, aplica-se o princípio lex superior derrogat inferiori , isto é, uma norma de hierarquia superior (quanto ao seu conteúdo ou quanto a sua origem) revoga as normas inferiores. A lei mais nova revoga a mais antiga se tiverem ambas a mesma hierarquia; a que tem um conteúdo geral, quando cria um novo regime, revoga a especial anterior; e a especial derroga (isto é, revoga parcialmente) a geral anterior. Com efeito, entre os artigos da LICC, encontramos o 2º, que dispõe:

“Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior. § 2º A lei nova que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes não revoga nem modifica a lei anterior.

(^30) cf. Maristela Basso e Luiz Olavo Baptista, Revista de Direito do Trabalho Genesis , n. 44. Curitiba, p. 217 e seg. n. 44, ago. 1996. (^31) A afirmação é do autor, que não encontrou

precedente judicial para apoiá-la.

§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.” Essas são as regras que, no direito brasileiro, regulam a matéria da vigência e eficácia das leis no tempo. Encontramos, na doutrina, opiniões abali- zadas em favor dessa sistemática, começando por Clóvis Beviláqua^32 e passando por muitos outros, como Paulo de Lacerda^33 , Vicente Rao^34 , a Professora Maria Helena Diniz, atual Titular

(^32) BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. São Paulo : Ed. Paulo de Azevedo, 1959. v. 1, p. 82.: “Também, se as leis especiais regulam um instituto ou uma relação particular, é princípio de direito que a lei geral posterior lhe permite a continuação, quando não a revoga, explícita ou implicitamente, porque a regra divergente já existia e, se devesse desaparecer, di- lo-ia, claramente, a lei nova, ou disporia de modo a contrariá-la, regulando o mesmo assunto .” Diz mais, que “o código refere-se à revogação e à derrogação. O primeiro desses vocábulos tem uma significação geral, compreendendo os casos em que a lei nova faz cessar, por completo, a eficácia da lei anterior, ou apenas lhe suprime algum dispositivo. Quando a revogação abrange toda a lei, toma o nome de ‘ab- rogação’ e quando é parcial se diz ‘derrogação’. Digesto. 50, 16, fr. 102: Derogatur legi aut abrogatur. Derrogatur legi, cum pars de trahitur; abrogatur legi cum prosus detrahitur (Modestino). Estabelecendo o código antítese entre ‘revogação’ e ‘derrogação’, tornou aquela sinônima de ‘ab-rogação’, isto é, tomou a palavra na sua significação mais ampla”. (^33) LACERDA, Paulo de. Manual. v.1, p. 319-

  1. Para quem trata-se “de um empreendimento legislativo muito mais vasto, que abrange toda a matéria relativa a todas as disposições gerais e especiais e em que não se cogita, pois, de meras alterações, senão de reforma integral da disciplina jurídica que afeta a matéria no seu conjunto. Assim o ânimo do legislador não é conservar o sistema antigo, mas, pelo contrário, substituí-lo por outro novo, que estabelece. Em conseqüência, o legislador entende aniquilar totalmente as leis reguladoras da matéria, sem distinguir entre gerais e especiais, como condição inelutável para a implantação de um regime jurídico integral diferente”. Observa, ainda, a esse respeito, o mesmo Paulo de Lacerda, que: “Quando a nova norma vier a regular diversa e inteiramente a matéria regida pela anterior, esta poderá ser tida como revogada, seja geral ou especial, pois haverá aniquilamento total das leis reguladoras da matéria, sem distinguir entre gerais e especiais, como condição inelutável para a implantação de um regime jurídico integral diferente” (grifei). (^34) Art. 4º da antiga Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro e art. 2º, § 2º, da Lei atual, que reciprocamente se completam.

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Constituição. Por isso mesmo, não pode o legislador ordinário interditar-se o direito de ab-rogar os atos legislativos que editou, imobilizando, dessa forma, as legislaturas seguintes.” O problema para nós, entretanto, é saber se no conflito temporal, entre as normas oriundas de tratados (incorporados ao sistema jurídico) e as normas internas, ocorre a revogação de uns por outras, e vice-versa. A resposta varia de um sistema jurídico para outro na medida em que, tendo o tratado, no Brasil, a mesma hierarquia das leis, os princípios relativos à revogação serão os mesmos. Como recorda a Professora Maria Helena Diniz:

“Nos conflitos entre norma de direito internacional e norma de direito interno, que ocorrem quando uma lei interna contraria um tratado internacional, a jurisprudência consagrará a superiori- dade da norma internacional sobre a interna, se esses conflitos forem subme- tidos a um juízo internacional. Mas, se forem levados à apreciação do juízo interno, poderá reconhecer: A) a autoridade relativa do tratado e de outras fontes jurídicas na ordem interna, entendendo-se que o legislador interno não pretendeu violar o tratado, exceto os casos em que o fizer clara- mente, hipótese em que a lei interna prevalecerá; B) a superioridade do tratado sobre a lei mais recente em data, como fez, por exemplo, o Tribunal de Luxembur- go ao decidir que: a) “en cas de conflit entre les dispositions d’un traité international et celles d’une loi interne postérieure, la loi internationale doit prévaloir sur la loi nationale” (Cour Supérieure, cas, criminelle, 8 juin 1950, Pas. Luxembourgeoise, 15:41), e b) “en cas de conflit entre les dispo- sitions d’un traité international et celles d’une loi interne, même posté- rieure, la loi internationale doit prévaloir sur la loi interne”(Cour Supérieure, appel. correctionnel, 21 juil. 1951, Pas. Luxembourgeoise, 15:235); C) a superioridade do tratado sobre

a norma interna, ligando-a, porém, a um controle jurisdicional da constitu- cionalidade da lei.”^39 Ocorre que há uma obrigação de direito internacional que persiste para o Estado perante os demais signatários do tratado. A edição da nova norma de direito interno então poderia ser vista como uma determinação para que se denuncie o tratado, podendo-se mesmo falar em denúncia implícita e violação das obrigações assumidas. O Ministro Rezek nos fala da certeza da revogação ou ab-rogação da norma interna anterior pelo tratado posterior^40. É o mesmo ra- ciocínio, segundo ele, que fez com que o STF entendesse que a lei posterior revoga o tratado anterior^41 “sem embargo das conseqüências do descumprimento do tratado no plano interna- cional”. O caso a que se refere é o célebre RE 80.004, decidido entre setembro de 1975 e junho de 1977^42. Por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário nº 80.004, a que já se referiu anteriormente, cristalizou-se o entendimento de que a lei, provinda do Congresso, só pode ter sua vigência interrompida se ferir dispositivo da Constituição, e nesta não há nenhum artigo que declare irrevogável uma lei positiva brasileira pelo fato de ter sua origem em um tratado. Do contrário, disse o relator Ministro Cunha Peixoto, teríamos, então – e isto, sim, seria inconstitucional –, uma lei que só poderia ser revogada pelo Chefe do Poder Executivo, através da denúncia do Tratado. Portanto, ou o tratado não se transforma, pela simples ratificação, em lei ordinária, no Brasil, ou, então, poderá ser revogado ou modificado pelo Congresso, como qualquer outra lei. Nessa mesma linha de orientação, ainda nesse caso, o Ministro Cordeiro Guerra, após observar que no próprio direito americano, onde se reconhece ao tratado o caráter de “ supreme law of the land ”, não se veda a posterior elabo- ração legislativa a ele contrária, concluiu: “argumenta-se que a denúncia é o meio próprio de revogar um tratado interna- cional. Sim, no campo do direito inter- nacional, não, porém, no campo do

(^39) DINIZ, Maria Helena. Lei de introdução ao Código Civil brasileiro interpretada. São Paulo : Saraiva, 1994. p. 63 e seg. (^40) REZEK, J. F. Direito Internacional Público. São Paulo : Saraiva, 1993. p. 104. (^41) Ibid. p. 106. (^42) RTJ 83/809-848.

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direito interno. Quando muito poderiam, em face da derrogação do tratado por lei federal posterior, ensejar reclamação de uma outra parte contratante perante o governo, sem contudo afetar as questões de direito interno. Fosse a denúncia internacional o único meio de nulificar um tratado, e não se compreenderia pudesse o STF negar-lhe validade por vício de inconstitucionalidade”. O Professor Jacob Dolinger, comentando este acórdão, diz, com a habitual percuciência, que:

“Excetuadas as hipóteses de tratado- contrato, nada havia na jurisprudência brasileira quanto à prevalência de tratados sobre a lei promulgada poste- riormente, e, portanto, equivocados todos os ilustres autores acima citados que lamentaram a mudança na opinião da Suprema Corte. A posição do STF através dos tempos é de coerência e resume-se a dar o mesmo tratamento à lei e ao tratado, sempre prevalecendo o diploma posterior , excepcionados os tratados fiscais e de extradição, que por sua natureza contratual exigem denúncia formal para deixarem de ser cumpridos.”^43 Os autores criticados pelo ilustre inter- nacionalista fundavam sua opinião no Recurso Extraordinário nº 71.154-Paraná, publicado no Diário Oficial da União de 25- 8-71, cujo relator foi o eminente Ministro Oswaldo Trigueiro. Ali julgou-se a revoga- ção da lei interna por tratado superveniente, tendo o relator citado três precedentes no sentido do primado do tratado em face da lei anterior. Recordou o julgamento da Apelação Cível nº 9.587, de 21-8-51, na qual o STF decidiu que o tratado revoga as leis que lhe são anteriores: não pode, entretanto, ser revogado pelas posteriores se estas não o fizerem expres- samente ou se não o denunciarem. Disse que o mesmo ponto de vista foi adotado na Apelação Cível nº 7.872, julgada em 11-10-73, assim como no Recurso Extraordinário nº 58.713, publicado em 19-12-66. Deixou claro, entretanto, o Ministro Trigueiro, ao concluir o seu voto acima citado, que,

“em virtude dos preceitos constitucionais citados, a definitiva aprovação do tratado, pelo Congresso Nacional, revoga as disposições em contrário da legislação ordinária”. Dessa forma, os princípios relativos à revogação de normas de igual hierarquia aplicam-se tanto aos tratados como às leis. Ou seja, o tratado posterior revoga a lei anterior, nos mesmos casos em que esta seria revogada por uma outra lei.

  1. As normas derivadas do Mercosul

O advento da legislação decorrente dos com- promissos internacionais assumidos pelo Brasil no Tratado de Assunção e no Protocolo de Ouro Preto, que instituíram o Mercosul, teve o efeito de gerar um novo regime aplicável na produ- ção e comercialização de mercadorias, impres- cindível a uma zona aduaneira comum. Como se sabe, esses tratados criaram uma organização internacional – o Mercosul. Submeteram à livre circulação de mercado- rias^44 a zona de livre comércio formada pelos quatro países signatários, tendo instituído a tarifa externa comum para as mercadorias de fora da região. Mas essa inserção se faz de modo coopera- tivo. A reciprocidade^45 , em decorrência do Tratado de Assunção, deve-se aplicar na ordem interna , enquanto nesta se implementam, efetivamente, os mecanismos integracionistas. As instituições de integração, de caráter cooperativo, possuem mecanismos próprios que exigem que as condutas dos Estados se adap- tem ao objetivo comum, no caso, de criação do Mercosul^46. Esse processo de integração fez com que as normas de cada país, em certos casos, tivessem de ser afastadas em favor das normas básicas do direito da integração, relacionadas com a livre circulação de mercadorias. Com efeito, uma zona aduaneira comum implica livre circulação de mercadorias e ausência de barreiras tarifárias e não-tarifárias. Realmente, não existiria uma zona de livre

(^43) Direito Internacional privado (Parte Geral) Rio de Janeiro : Renovar, 1993. p. 102. O mesmo autor, na obra citada, p. 93, lembra uma série de outros acórdãos no mesmo sentido do RE 80.004.

(^44) Tratado de Assunção, art. 1º. (^45) A propósito VIRALLY, Michel. La réciprocité en droit international. RCADI , v. 3, n. 122, 1967. p. 28. (^46) A propósito, do autor no livro Mercosul e suas Instituições , pendente de publicação pela Editora Maltese.

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Portanto, o direito derivado no Mercosul confunde-se com as próprias ordens jurídicas nacionais, naquilo que os Estados entenderem por bem incorporar, entre as decisões dos órgãos comuns.^51 Vamos, então, encontrar também o caso das diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul, que eram originárias de decisões do

Conselho do Mercosul, que, depois, foram incorporadas ao Protocolo de Ouro Preto e que agora integram a nossa legislação. Foi esse, também, o caso de decisões originadas de resoluções das reuniões dos Ministros da Justiça, que depois vieram a se tornar protocolos sobre a jurisdição em matéria contratual, ou sobre a cooperação judicial.

(^51) A Ordem Jurídica do Mercosul. Porto Alegre :

Liv. dos Advogados, 1996. p. 60.