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Inovações técnicas e manufaturas: a percepção da mudança no mundo lusófono. Resultado de um amplo processo de transformações sociais, a Revolução Industrial ...
Tipologia: Notas de aula
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Indústrias, inovações técnicas e políticas públicas: o debate luso-brasileiro. (c.1670 – 1870) Nelson Mendes Cantarino
Resumo
O surgimento da indústria transformou não apenas a produção pelas técnicas fabris, mas trouxe também alternativas à própria sociedade moderna com suas divisões em estamentos, suas instituições de regulação econômica e seu modelo de trocas comerciais. Novos conhecimentos científicos, máquinas e organizações da mão de obra e do trabalho impactaram o Antigo Regime. A sociedade luso-brasileira não ficou imune a esse processo. Como uma força de segunda grandeza, Portugal necessitava de uma reformulação de sua base produtiva, com novas práticas regulamentando e controlando seu comércio colonial. Nesta divisão de competências, o Reino passou por um esforço manufatureiro com o intuito de garantir sua soberania frente aos interesses econômicos de outras potências. Independente, o Império do Brasil se inseriu na economia internacional através da agro exportação. Mas esforços de difusão de tecnologias e da produção fabril ocorreram em diversos momentos do século XIX. Neste artigo destacaremos como a indústria foi regulada e estimulada pela Coroa portuguesa e, posteriormente, pelo Estado brasileiro e por organizações da sociedade civil no período imperial, sem perder de vista o debate intelectual por trás das políticas públicas de incentivo à produção fabril.
Inovações técnicas e manufaturas: a percepção da mudança no mundo lusófono
Resultado de um amplo processo de transformações sociais, a Revolução Industrial é identificada por suas máquinas e pelas inovações técnicas em certos setores da manufatura britânica durante a segunda metade do século XVIII. A complementação das bases materiais deste avanço técnico pode ser associada ao aumento, no longo prazo, da produtividade agrícola e do crescimento demográfico que o acompanhou. Além disso, a consolidação do comércio baseada nas práticas mercantilistas acarretou uma maior disponibilidade de capitais e novas formas de financiamento e crédito.
Outro aspecto central no desenvolvimento das inovações produtivas foi a associação entre pesquisa científica, conhecimento útil e tecnologia. Sob a influência da obra de Francis Bacon (1561-1626), generalizou-se a crença de que o progresso material e o crescimento econômico poderiam ser alcançados com o aperfeiçoamento do conhecimento humano acerca dos fenômenos naturais e da disponibilização deste saber a todos aqueles capazes de o utilizar na produção. Esta seria a base de uma noção poderosa: a de que o progresso social pode ser alcançado pelas “artes úteis”, aquilo que posteriormente ficaria conhecido como ciência e tecnologia (Mokyr 2011, p. 40).
A sociedade britânica teria se engajado em um programa baconiano composto de três componentes fundamentais. Primeiro, o consenso em torno de pesquisas que deveriam expandir o conhecimento humano e sua compreensão das leis do universo e da natureza através de métodos científicos e de novos equipamentos. Segundo, uma agenda de investigações deveria ser direcionada para questões capazes de resolver problemas práticos, estabelecendo aprimoramentos técnicos. Terceiro, o custo de acesso ao conhecimento deveria ser o mais baixo possível, não apenas por sua disseminação, mas pela criação de instituições capazes de normatizar e divulgar seus resultados (Mokyr 2011, p. 40-41; Mokyr 2017, p. 280- 283).
Indústrias, inovações técnicas e políticas públicas: o debate luso-brasileiro. (c.1670 – 1870)
Dentro dos parâmetros das práticas mercantilistas, uma das soluções aventadas foi controlar a saída da moeda metálica introduzindo manufaturas no Reino. Assim como outros Estados que já haviam lançado medidas de estímulo para a produção fabril, Portugal deveria conter a importação de bens manufaturados em seu território.
Pragmáticas e regalias foram promulgadas para impulsionar a produção de tecidos e artigos para consumo doméstico, trocando as importações pelos produtos da terra. Os lanifícios foram privilegiados com o estabelecimento de fábricas em regiões tradicionalmente associadas à manufatura de lã e com maior disponibilidade de matéria-prima, como as regiões da Serra da Estrela e o Alentejo. Vendas e lojas foram estabelecidas no porto de Lisboa para o comércio dos tecidos. Estrangeiros foram autorizados a se estabelecer no Reino para fomentar manufaturas de luxo. Uma oficina de vidros venezianos e outra de sedas capitaneada pela família Duclos receberam privilégios como isenções fiscais e locais para instalações de edifícios (Pedreira, 1994, p. 27).
A Coroa também normatizou produções manufatureiras como o do linho cânhamo, redigindo regimentos para sua reorganização e com incentivos à plantação e centralização da matéria-prima. Feitorias já existentes, como as de Santarém, Moncorvo e Coimbra, passaram a ter o papel de coordenar a produção dispersa. Estas forneciam o linho cânhamo aos cordoeiros instalados em edifícios que funcionavam como núcleos manufatureiros supervisionados por um feitor. Segundo o Regimento da Feitoria de Linho Cânhamo de Coimbra , o feitor deveria visitar todos os dias, ao menos duas vezes, as rodas de tear, emendando erros ou imperfeições da produção.^3
Segundo Jorge Pedreira, a reorganização dos lanifícios ficou completa com a publicação do Regimento da Fábrica dos Panos^4 , que regulamentou os parâmetros de qualidade e o controle pela Coroa de uma indústria “dispersa e rebelde à organização em corporações de ofícios” e que possuía uma dinâmica própria dividida em trabalho doméstico e manufaturas, com produções caseiras e pequenas oficinas. (Pedreira, 1994, p. 27).
Mas o esforço de fomento da indústria encontrou adversários poderosos naqueles cujos interesses eram diretamente afetados por práticas protecionistas e de restrição do comércio. Por exemplo, a aristocracia e o alto clero, privados do luxo e da ostentação das manufaturas importadas, os grandes comerciantes associados ao comércio colonial, com seus produtos coloniais tarifados nos mercados europeus e o Santo Ofício, desgostoso do uso de capitais cristão novos nas manufaturas. Essa forte oposição foi acompanhada de limitações financeiras como a escassez de capitais, a falta de qualificação técnica e a contração de recursos do Tesouro Régio (Hanson, 1986, p. 200).
Se o empenho manufatureiro foi uma resposta à evasão de divisas, esta deixou de ser um problema iminente com as primeiras tímidas entradas de ouro das minas e com a retomada do consumo de tabaco e do açúcar nas praças europeias. Era a riqueza da América embasando a prosperidade do Reino já na última década do século XVII. Além disso, a produção de vinho reinol começa a se destacar no comércio com a Inglaterra concorrendo diretamente com os similares franceses.
(3) Regimento da Feitoria de Linho Cânhamo de Coimbra, 15 de março de 1659, Cap. II. Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), Reservados, Coleção Pombalina, Códice 476, fls. 233-237. (4) Regimento da fábrica dos panos de Portugal, ordenado no ano de 1690. Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), cota RES-1518-18-V. Disponível em: http://purl.pt/14991/1/index.html#/7/html. Acesso em: 10 ago. 2018.
Nelson Mendes Cantarino
Esta retomada do comércio de reexportação dos produtos coloniais, a valorização dos vinhos portugueses no mercado inglês e a necessidade de reposicionar a Monarquia portuguesa em uma Europa dividida pela Guerra de Sucessão na Espanha (1701-1713) aproximou a Corte de Lisboa do governo de Londres. Essa aliança foi sacramentada no Tratado de Methuen (1703). O “tratado dos panos e vinhos” é um ponto polêmico na trajetória das manufaturas portuguesas. Contemporâneos como d. Luís da Cunha (1662-1749) denunciaram o acordo como deletério aos interesses da indústria e prejudicial ao comércio, o que diminuiria o prestígio da Coroa aumentando sua subordinação comercial e militar em relação à Londres.
A crítica estava dentro dos parâmetros mercantilistas, onde o binômio riqueza-poder era a referência para Estados que se mediam pela superioridade comercial e militar. Uma balança comercial positiva, com incentivos para a exportação de manufaturados, com tarifas aduaneiras para a importação dos mesmos, com o controle das matérias primas e tributação sobre sua exportação eram práticas corriqueiras (Cardoso, 2003, p. 12).
Contextualizando o tratado às suas circunstâncias é possível matizar a crítica dos contemporâneos e algumas interpretações historiográficas. A convenção tinha um caráter preferencial, por um lado Lisboa se comprometeu a extinguir proibições aos lanifícios ingleses, por outro Londres concedeu uma alíquota preferencial aos vinhos portugueses com o abatimento de um terço nos direitos de importação taxados sobre os vinhos franceses. O compromisso era perpetuo, com uma clausula garantindo o destrato caso o acordado fosse descumprido por um dos signatários. Não havia clausulas estabelecendo a importação de panos livre de direitos ou a proibição da importação de outras qualidades de panos de origens diversas (Pedreira, 2003, p. 145).
Como efeito do tratado, nas cidades litorâneas e na Corte as manufaturas importadas acabaram por suprir a demanda. No entanto, a maior parte da população era constituída por famílias camponesas e indivíduos com baixos rendimentos, vivendo em comunidades de difícil acesso devido à ausência ou a precariedade dos caminhos. Sua demanda por manufaturados era restrita, pouco diversificada e voltada para a subsistência.
No campo, a procura era satisfeita por produção própria, pelas oficinas locais ou das proximidades. As especializações de ofícios industriais eram reduzidas e sem muita distinção de ocupações: pedreiros, carpinteiros, sapateiros, tecelões e alfaiates, capazes de nutrir a procura em suas localidades e nas vizinhanças. Não havia uma divisão complexa do trabalho e nem estímulos para a inovação de técnicas mais produtivas. Essa debilidade acabou por afastar a competição dos produtos estrangeiros e deu sobrevida a essas manufaturas incipientes.
Este panorama sofreu mudanças a partir do longo ministério de Sebastião José de Carvalho e Melo (1750-1777). O futuro Marquês de Pombal buscou diminuir a presença e o impacto do comércio inglês na economia portuguesa em um esforço visando a superação do impacto do terremoto de 1755, a diminuição das remessas do ouro americano e os obstáculos para a expansão do comércio colonial. Com o objetivo de facilitar a acumulação de capitais por negociantes portugueses, Carvalho e Melo mobilizou práticas mercantilistas para reforçar a arrecadação fiscal do Estado e reduzir os desequilíbrios da balança comercial (Maxwell, 1996, p. 67).
Para Jorge Borges de Macedo, não é possível corroborar a leitura de uma governança pombalina atenta ao planejamento industrial. Se ocorreram subsídios por parte da Real Junta do Comércio deste Reino
Nelson Mendes Cantarino
Mecânica. Até agora não achei essa palavra, senão no sentido, que se segue, (A mecânica geral dos termos, & nomes dos principaes instrumentos, com que se exercitão as Artes mais nobres, como a Pintura, Escultura, &c. Lobo, Corte na Aldea, 194.) (Bluteau, 1728, v. V, p. 379). A referência citada é a obra de Francisco Rodrigues Lobo (1580-1621) Corte na Aldeia e Noites de Inverno , publicada originalmente em 1619. Inspirado no Il Cortegiano (1528) de Baldassare Castiglione (1478-1529), a obra é formada por dezesseis diálogos com o objetivo didático de guiar a vida cortesã retirada em Casas provinciais, sem uma Corte estabelecida em Lisboa. Entre várias dicas de etiqueta, o texto apresenta a distinção entre as “artes mais nobres” e os “ofícios aviltantes”, sendo os últimos diretamente associados aos ofícios mecânicos.
Bluteau apresenta o vocábulo mecânico em diversas acepções. A primeira derivada do grego Machini , significando instrumento com o qual “se faz qualquer coisa”. A segunda - “com mais sutileza que razão” - associava o termo com o verbo latino machor , utilizado para destacar as habilidades de um artífice ao produzir um objeto. Também foram lembrados os usos que os matemáticos de então faziam: a arte e a ciência por meio dos quais alavancas, rodas, roldanas, cunhas, parafusos constituíam o que autores romanos como Plínio, o Velho (23-79), chamavam de machinalis , mecanismos hidráulicos, astronômicos, bélicos ou de outros usos para dominar a natureza. Finalmente, Bluteau associou a palavra em oposição as artes liberais, como trabalho manual especializado, mas com uma adjetivação baixa, humilde, sórdida (Bluteau, 1728, v. V, p. 379 - 380).
A obra de Bluteau apresenta significados próximos de uma referência central do período, o Dictionnaire universel du commerce, d'histoire naturelle et des arts et metiers, redigido por Jacques Savary des Brûlons (1657-1716) e publicado entre os anos de 1723 - 1730. Uma adaptação para o português foi elaborada por Alberto Jacqueri de Sales (1731-1791) e editado postumamente em 1813. Sales foi o segundo lente da Aula de Comércio estabelecida por Pombal. Possivelmente manuscritos de seu dicionário circularam entre os alunos que estavam se qualificando para atuar na praça de Lisboa.
Jacqueri de Sales apresenta o vocábulo fábrica como arte, artifício, lavor, mercadorias ou outras produções beneficiadas pela indústria dos homens. Outra referência era aos edifícios e oficinas onde os gêneros de manufatura eram produzidos (Sales, 1813, t. II, fl. 366). Manufatura além de um sinônimo de fábrica estava associado a um dos ramos que constituem o comércio. Também era “a arte que dá forma aos produtos naturais”, o conhecimento que permite aos homens nutrirem suas necessidades de consumo. Sales valorizou o impacto das manufaturas na diversificação da oferta de produtos no comércio e o valor que este trato poderia trazer aos rendimentos da Coroa e dos agentes na sociedade. Outra reflexão interessante para o contexto no qual o documento foi redigido foi o da mudança do padrão de consumo pela diversificação dos produtos ofertados. A expansão da produção manufatureira e do comércio com mercadorias de valores mais elevados seria um estímulo para o aumento da produção em outros setores da economia (Sales, 1813, t. III, fls. 171 - 191). Máquinas estavam associados aos engenhos, instrumentos e “poderes mecânicos” que aumentam a força humana. Estes equipamentos, baseados nos conhecimentos da filosofia natural, eram compostos ordinariamente por alavancas, rodas, eixos, parafusos e outras partes (Sales, 1813, t. III, fls. 195 - 198).
Talvez o maior empecilho para a difusão da indústria em Portugal não fosse relacionado ao capital e os investimentos. A percepção pejorativa do trabalho manual e de todos ofícios associados a artífices especializados limitou o interesse e a oportunidade dos portugueses de atuarem como industriais. Além
Indústrias, inovações técnicas e políticas públicas: o debate luso-brasileiro. (c.1670 – 1870)
disso, na primeira metade do século XVIII, o interesse e o preparo científico não eram requisitos fundamentais para os contemporâneos da “primeira revolução industrial. ” O padrão técnico das invenções estava mais associado ao saber-fazer, ao learning by doing , ao empirismo na produção mecânica, a originalidade, a habilidade construída no cotidiano do processo de produção, com sua compreensão das relações de causas e efeitos. A teimosia, a falta de aversão ao risco e a imaginação também eram fundamentais. As relações entre ciência, processo técnico e grandes aportes de capital são mais comuns depois dos anos de 1850, e mesmos estas não eliminaram os homens práticos, autodidatas, os inventores de talento (Madureira; Matos, 2005, p. 125).
A percepção acerca da indústria já era outra no final do setecentos. O fomento pombalino com seu novo controle institucional – a Junta do Comércio, os juízes conservadores e dos privilégios, atuando como supervisores – e a legislação com regulamentos e contratos definidores de obrigações, direitos e parâmetros técnicos normatizaram a produção industrial. Além disso, o Estado incentivou a atuação de técnicos estrangeiros não apenas os financiando ou outorgando o título de “real fábrica”, um grande reconhecimento da Coroa aos esforços desses agentes, mas atuando diretamente e gerindo estabelecimentos estatais. (Madureira; Matos, 2005, p. 130).
O próprio conhecimento técnico foi aprimorado com a reforma educacional da Universidade de Coimbra (1772) e com a criação da Academia Real das Ciências de Lisboa (1779). A base científica necessária para a compreensão dos fenômenos naturais, para pesquisas empíricas e a formação de quadros técnicos para a administração dos negócios públicos e o aproveitamento das riquezas do Império trouxeram um novo olhar acerca da indústria. Um exemplo é o luso-brasileiro Antônio de Moraes Silva (1755-1824). Graduado em direito civil e canônico em Coimbra após a reforma, Moraes Silva reformou a lexicografia e acrescentou vocábulos, definições, entendimentos e descrições na obra de Rafael Bluteau. Seu Diccionario da Lingua Portugueza composto pelo Padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro , cuja a primeira edição é de 1789, pode ser uma porta de entrada para os novos entendimentos em torno da indústria.
Desdobrando os significados de Bluteau, Moraes Silva classifica o termo indústria com mais detalhes: não apenas ter destreza ou dominar alguma arte, mas lavrar, fazer “obras mecânicas” e “tratar negócios civis”. O termo industrial não é apenas um adjetivo associado à indústria, como também é relacionado a artífices mecânicos e serviçais. O verbo industriar mantêm o sentido de manha, mas adquire o significado de “industriar em artes e mecânicas”. Os vocábulos transitam entre os reconhecimentos pejorativos de trabalhos infames para os sentidos associados a produção, com ênfase na criação de mercadorias e da governança econômica (Moraes Silva, 1789, v. II, p. 153 - 154).
As palavras mecânica e mecânico explicitam a diversificação de significados de forma direta. Com a primeira, Moraes Silva ainda faz menção ao Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo com a qualidade daquilo que é mecânico e não nobre, mas também faz referência a ciência que trata das máquinas, de sua construção e dos preceitos por trás de seu funcionamento. A diferença marcante é que agora a mecânica também se refere “coletivamente as manufaturas e artes, a indústria nacional.” O mecânico é associado ao “não nobre”, aos oficiais de manufatura e aos mestres de ofícios manuais (Moraes Silva, 1789, v. II, p. 179).
As manufaturas não são relacionadas ao trabalho manual, do latim manufacĕre – manus , ‘mão’ + verbo latino facĕre , ‘fazer’. Seu sentido tornou-se mais moderno como “fábrica, mecânica, oficina de artesãos” e associado aos produtos de lanifícios e seda, como chapéus e panos. O verbo manufaturar foi
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do perdimento, em tresdobro, do valor de cada uma das ditas manufaturas, ou teares, e das fazendas, que nelas, ou neles houver (...) (Alvará de 5 de janeiro de 1785).^5 Em um artigo publicado originalmente em 1967, Fernando Novais defendeu que o Alvará explicitava a “oposição de interesses nos dois lados do Sistema Colonial”. Nesta perspectiva, as produções manufatureiras da América portuguesa eram obstáculos para a expansão das exportações do Reino. Por um lado, o crescimento fabril de Portugal necessitava do mercado consumidor da colônia, por outro os colonos demonstravam os primeiros sinais relutantes de um desenvolvimento econômico autônomo ao Sistema Colonial (Novais, 2005, p. 65 - 66).
O documento expunha o argumento de que o aumento de fábricas na América portuguesa era em detrimento da produção agrícola e das atividades mineradoras, principalmente devido a escassez de mão de obra. Caberia aos súditos americanos a ênfase na lavoura, cujos produtos eram a base do comércio exclusivo entre colônia e metrópole.
Nas Minas Gerais das últimas décadas do setecentos, um caso bem estudado pela historiografia, havia registros do cultivo de algodão e de consumo de uma produção manufatureira de tecidos para uso doméstico. Em 1775, o então governador das Minas escrevia para Lisboa alertando a Coroa sobre a existência de “estabelecimentos fabris” na Capitania. Os mineiros estavam deixando de comprar os gêneros importados do Reino para consumir têxteis manufaturados em suas propriedades e assim vestiam não apenas a si e à suas famílias, mas também sua escravaria. Entre os produtos estavam panos e estopas, linho, algodão e alguns produtos de lã (Libby, 2002, p. 265).
O exemplo mineiro é importante para a reflexão em torno de questões mais profundas: quais eram os efeitos da industrialização em sociedades agrícolas? No caso mais extremo, como uma sociedade escravista respondia aos estímulos da produção manufatureira, mesmo que esta fosse incipiente?
Na América o trabalho escravo não foi incompatível com a produção industrial. A especificidade do mundo colonial e de sua principal mão de obra pode ser analisada a partir de alguns questionamentos: as fábricas que empregavam o trabalho compulsório dos negros tinham em seu horizonte taxas de lucros razoáveis como resultado de seus investimentos de capital? O trabalho escravo era eficiente e economicamente viável como alternativas aos modelos de trabalho fabril livre? Quais eram as vantagens competitivas das fábricas que usavam a mão de obra escrava? Quais eram as fontes de capital dos industriais proprietários de escravos? Usando como modelo a indústria do sul dos EUA no século XIX, os estabelecimentos que empregavam escravos tinham retornos satisfatórios para o investimento de capital, com uma média de 6% nas indústrias em geral. Os cativos não eram menos eficientes que os trabalhadores assalariados, com sua produtividade controlada pela violência do senhor ou por recompensas materiais. No caso norte-americano, o senhor ainda tinha a possibilidade de explorar os membros da família escrava: as mulheres e as crianças. Outro dado de impacto é a valorização do aluguel dos cativos frente ao valor da jornada dos assalariados. Em relação aos custos, escravos e assalariados deveriam ser supervisionados em suas atividades. Os escravos adaptavam-se ao uso de técnicas, as funções específicas e as rotinas fabris (Danieli Neto, 2006, p. 21 - 29).
(5) http://historiacolonial.arquivonacional.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3674&catid=145& Itemid=286. Acesso em: 7 out. 2018.
Nelson Mendes Cantarino
O caso do sul dos EUA não se aplica automaticamente ao nosso, seja pelo contexto temporal, seja pelo padrão técnico de suas manufaturas. No entanto alguns aspectos podem ser utilizados como referência. Por exemplo, o modelo de capitalização das fábricas que empregavam escravos. No longo prazo, os cativos induziriam desgastes financeiros nos caixas dos empreendimentos, pois sua mobilidade e flexibilidade eram reduzidas frente aos trabalhadores assalariados. Não era tão fácil assimilar novos escravos no empreendimento, seu treinamento para ofícios específicos poderia ser lento e sua dispensa em momentos de queda da produção era impossível. A força de trabalho servil poderia ser inelástica e sobre capitalizada, transformando o capital circulante em fixo. Esta restrição ao capital poderia resultar em menores investimentos, baixo desenvolvimento técnico e pouca competitividade (Danieli Neto, 2006, p. 34 ).
Alguns contemporâneos percebiam os impactos deletérios da escravidão para as manufaturas e para a introdução de novos métodos produtivos com maquinário moderno na economia brasileira. José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), em sua longa Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislatura do Império do Brasil sobre a escravatura alertava aos parlamentares dos riscos do trabalho escravo:
(...) que a escravatura deve obstar nossa indústria, basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se vêem precisados pela fome ou pobreza a aperfeiçoar sua indústria, ou melhorar sua lavoura. Demais, continuando a escravatura a ser empregada exclusivamente na agricultura, e nas artes, ainda quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no país, em pouco tempo, como mostra a experiência, deixam de trabalhar na terra com seus próprios braços e, logo que podem ter dois ou três escravos, entregam-se à vadiação e desleixo, pelos caprichos de um falso pundonor. As artes não se melhoram; as máquinas, que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares (Andrada e Silva, 1823, p. 29). No entanto, ao estudar o exemplo de Minas Gerais no século XIX, Douglas Libby defende que com o declínio da economia mineradora a população cativa da região aumentou e sua atuação foi diversificada em diversas atividades. Não direcionada para a agro exportação, com setores ligados ao abastecimento e a atividades fabris domésticas, sua força de trabalho era majoritariamente escrava. Usando como exemplo a mina de Morro Velho, Libby comprova que a companhia responsável – a St. John d’El Rey Mining Company – utilizava escravos em sua produção, trabalhadores que também eram alugados a outros produtores em diversas ocasiões, seja nos ciclos de plantio e colheita agrícolas, seja na mineração, diminuindo o custo fixo da escravidão. Além disso, vários escravos eram especializados e manejavam equipamentos modernos, permitindo uma produtividade elevada e ganhos ascendentes aos industriais (Libby, 1983, p. 97 - 111).
O arranque industrial do século XVIII – a protoindustrialização – é associado ao processo de produção de uma grande quantidade de bens manufaturados destinados a mercados de longa distância ou coloniais. Sua mão de obra era de custo baixíssimo e de origem camponesa. Diversas pré-condições viabilizaram esse processo, entre elas mudanças nas relações feudais de dominação, o crescimento do comércio regional europeu e uma tendência para o aumento populacional decorrente da implementação de métodos mais produtivos na agricultura. Senhores com menos poderes tendiam a comutar direitos em serviços, promovendo atividades artesanais e outros afazeres não agrícolas. A demanda de um comércio revitalizado estimulava os mercadores a cooptar a mão de obra subutilizada na agricultura e desassociada de regulamentos corporativos (Libby, 2002, p. 239).
Nelson Mendes Cantarino
que o contrário decidam, como se deles fizesse expressa, e individual menção, sem embargo da Lei em contrário (...) (Alvará de 1º de abril de 1 808 ).^6 O alvará possui uma argumentação econômica que enfatizava aspectos do acréscimo da produtividade, do aperfeiçoamento técnico e do aumento do valor da produção local. Podemos perceber a relevância da indústria como um setor produtivo autônomo na prosperidade geral da economia do Império. Esta é uma leitura que já estava baseada em interpretações da economia política como as de José da Silva Lisboa (1756-1835). Autor prolífico e ardoroso defensor da Coroa, Silva Lisboa redigiu diversos textos que buscavam influenciar e orientar as políticas públicas. Em um texto publicado anos depois sua definição de indústria é apresentada de forma sintética:
Indústria , no sentido ordinário dos economistas, e estadistas, significa a tarefa de um país exercida nas mãos de obras engenhosas, e nos artefatos de lavor mais refinado. Assim se diz, que uma nação tem muita indústria, quando tem muitas manufaturas e fábricas, a que, como por excelência, se tem dado o título de artes e empresas industriais, denominando-se pela mesma razão nações industriosas as que se distinguem em estabelecimentos dessa natureza. Até se tem personificado o gênio da indústria, restringindo-se ao recinto e laboratório das oficinas; como se o espírito de invenção se amortizasse ao ar livre dos campos, mares, e portos da terra, onde aliás também se veem os prodígios da inteligência humana nas artes e máquinas ligadas à agricultura, mineração, e náutica, que pressupõem muitos conhecimentos das obras e das leis da natureza (Lisboa, 1819, p. 164). Tanto o Alvará de 1º de abril como a definição de Silva Lisboa já valorizam o papel do trabalho como base da geração de riquezas e do preço das mercadorias. É possível perceber a inspiração da obra de Adam Smith (1723-1790) na perspectiva de que a prosperidade das nações era resultado na interação de múltiplas atividades produtivas e não apenas da agricultura. Essa valorização do trabalho e da diversificação produtiva é destacada por Silva Lisboa:
(...) Também se entende o termo indústria, como em geral, sinônimo de trabalho; e se chama industrioso a qualquer constante e ativo trabalhador. Usa-se igualmente daquele termo para expressar a agência dos que não trabalham na agricultura, nem têm terras, nem capitais que lhe dêem réditos, ainda que aliás prestem serviço útil à sociedade. Estes (diz-se) vivem de indústria (Lisboa, 1819, p. 165). A nova conjuntura do início do oitocentos abriu espaço para repensar o papel da indústria no império. Se o Alvará de 1º de abril de 1808 permitiu a retomada da atividade fabril no território brasileiro, o Alvará com força de lei de 28 de abril de 1809 regulou seu funcionamento. Este segundo alvará pretendia compensar os industriais reinóis por suas perdas com o fluxo de bens britânicos que inundaram o Brasil após a abertura dos portos. Mas na perspectiva dos reinóis sua estratégia era duvidosa: ao mesmo tempo que estabelecia o ordenamento jurídico dos investimentos em inovações técnicas, equiparava legalmente como “nacionais” as fábricas instaladas no Reino e na América.
O Alvará regulamentou isenções alfandegárias para aqueles dispostos a arriscar seu capital nas manufaturas. O objetivo era dispensar do pagamento do imposto de importação aqueles que trouxessem novas máquinas e insumos para sua produção. Todos os portos do império português deveriam isentar a matéria prima utilizada na produção manufatureira. A única contrapartida exigida dos fabricantes era a comprovação do uso desses insumos nas manufaturas. Além disso, ficavam isentas de taxas de exportação
(6) Apud Arruda (2008, p. 159).
Indústrias, inovações técnicas e políticas públicas: o debate luso-brasileiro. (c.1670 – 1870)
todo bem manufaturado produzido nos territórios da Coroa. Os industrializados do Reino teriam isenção total nas alfândegas americanas, desde que comprovadas suas origens (Malavota, 2011, p. 79).
A Coroa também regulou as compras governamentais determinando que todos os fardamentos da tropa seriam adquiridos de fornecedores nacionais, fossem reinóis ou brasileiros. Uma loteria seria criada para levantar ao menos 60.000 cruzados, correspondentes a 24:000.000$000 réis, a serem investidos em fábricas e manufaturas, especialmente têxteis – lã, algodão e seda – e metalurgia. Os recursos seriam doados pelo poder público a fundo perdido sob a promessa de serem empregados nestas atividades fabris (Malavota, 2011, p. 80).
No entanto, a contribuição mais arrojada do alvará foi o incentivo à introdução de novos bens e processos produtivos na indústria. A percepção de um contínuo aprimoramento técnico do processo fabril era considerada condição sine qua non para o desenvolvimento das manufaturas e das rendas do Estado. Ficaram estabelecidas então a concessão de patentes e outros benefícios aos inventores e introdutores de novas técnicas e equipamentos nas fábricas do Estado do Brasil. O parágrafo sexto do alvará é explícito nas normas para concessão de patentes:
Sendo muito conveniente que os inventores e introdutores de alguma nova máquina e invenção nas artes gozem do privilégio exclusivo, além do direito que possam ter ao favor pecuniário, que sou servido estabelecer em benefício da indústria e das artes, ordeno que todas as pessoas que estiverem neste caso apresentem o plano de seu novo invento à Real Junta do Comércio; e que esta, reconhecendo-lhe a verdade e fundamento dele, lhes conceda o privilégio exclusivo por quatorze anos, ficando obrigadas a fabricá-lo depois, para que, no fim desse prazo, toda a Nação goze do fruto dessa invenção. Ordeno, outrossim, que se faça uma exata revisão dos que se acham atualmente concedidos, fazendo-se público na forma acima determinada e revogando-se todas as que por falsa alegação ou sem bem fundadas razões obtiveram semelhantes concessões (Alvará de 28 de abril de 1809). Nícia Vilela Luz afirma que um liberal como José da Silva Lisboa não menosprezava a importância de auxílios e garantias àqueles que buscassem investir em inovações na manufatura. Os altos custos relacionados à “introdução de grandes máquinas” e o incentivo para minimizar custos de oportunidade tornavam necessário uma certa dose de protecionismo. O temor de Silva Lisboa era que a proteção aos manufaturados brasileiros acabasse por prejudicar, ou mesmo arruinar as exportações dos gêneros agrícolas brasileiros, centrais para a prosperidade do Estado. Era um tênue equilíbrio entre a autossuficiência industrial e os interesses políticos e econômicos da Coroa e da elite econômica (Luz, 1976, p. 22).
Anglófilo declarado, Silva Lisboa associou diretamente o fortalecimento da indústria e a prosperidade econômica do império com uma agenda ilustrada de aperfeiçoamento técnico e de incentivo ao ensino das ciências naturais. Seu intento era transpor um programa baconiano para a realidade luso- brasileira. Isso demandaria a criação de instituições de ensino e o apoio régio:
Conhecimento é poder : grande verdade, e insigne expressão do celebrado antigo chanceler de Inglaterra Bacon! S.A.R. está bem persuadido, que as luzes das ciências, dirigindo todas as artes e indústrias, e mostrando as naturais relações da sociedade, estabelecem a boa ordem civil, e não só dão esplendor, mas também sustento dos impérios. (...) as nações e governos de mais luzes sempre exerceram real supremacia, ou decisiva preponderância e influência, sobre outros Estados menos ilustrados. (...) Por isso S.A.R. não só tem mantido os estudos públicos de belas letras, e da filosofia, que havia no Brasil; mas já ordenou o estabelecimento de outros de alta literatura, para o ensino das ciências matemáticas, e por um plano (que logo virá à luz) talvez o mais vasto, e o mais bem harmonizado, de instrução pública, em todas as repartições da milícia e marinha, que nos são de necessidade imediata.
Indústrias, inovações técnicas e políticas públicas: o debate luso-brasileiro. (c.1670 – 1870)
erigidos prédios para o estabelecimento da Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema. Sua produção deveria suprir a demanda de outras manufaturas estabelecidas no Brasil e, se possível, permitir a exportação para outros mercados. O investimento inicial contava com recursos da Real Fazenda, que disponibilizou capitais correspondentes ao valor de cem escravos, de cem bois, as terras e matas necessárias para o início de suas atividades. A Coroa não seria a única investidora do empreendimento. O capital da empresa seria complementado com a comercialização nos mercados do Rio de Janeiro e de São Paulo de 128 lotes de ações a 800 mil réis cada. O salário dos trabalhadores especializados e dos diretores seria pago pelo Estado durante quatro anos, tudo na tentativa de tornar o empreendimento mais atraente aos investidores (Danieli Neto, 2006, p. 91).
A política manufatureira defendida até então pela Coroa foi afetada pela assinatura do tratado de 19 de fevereiro de 1810, a contrapartida econômica de um acordo de aliança mais abrangente com a Grã- Bretanha. (Cantarino; Oliveira, 2017, p. 106-108). Após a abertura dos portos, os gêneros secos importados foram taxados em 24% ad valorem. Os protestos dos produtores reinóis acabaram por estabelecer meses depois uma tarifa preferencial para os gêneros secos portugueses de 16%. O Tratado de Navegação, Comércio e Amizade, negociado pelo diplomata britânico Lorde Strangford (1780-1855), fixou tarifas mais baixas para os produtos britânicos, taxados em 15% ad valorem , e forneceu ainda a possibilidade de estabelecer um porto franco em Santa Catarina. Aos portugueses restaria os mesmos 16% e aos produtos de outros competidores, os proibitivos 24% ad valorem (Villalta, 2016, p. 130).
Estas medidas foram um forte golpe nas manufaturas de Portugal. Em 1821, os britânicos dominavam o fornecimento de manufaturados de algodão para o Brasil com 67% da importação de tecidos. Por outro lado, a agricultura brasileira passou a fornecer algodão em rama para o complexo manufatureiro britânico. Neste novo contexto de eliminação dos laços de exclusividade com o Reino, com o fim das reexportações do produto a partir dos portos reinóis, as exportações de algodão em rama brasileiro valorizaram-se em impressionantes 1.102%. Eram as reexportações coloniais que garantiam os superávits das balanças de comércio de Portugal com os mercados consumidores europeus. Estas despencaram 54% gerando sucessivos déficits nos anos entre 1810 e 1819. Piorando a situação, as exportações portuguesas para o Estado do Brasil decresceram em 52% após a abertura dos portos (Arruda, 2008, p. 65-74).
Segundo Valentim Alexandre, no quadriênio 1814-1818 ocorreu uma breve recuperação dos tráficos imperiais com reexportações portuguesas de produtos americanos atingindo 63% do valor médio exportado no quinquênio 1802-1807. Esta retomada pode ser explicada pelo contexto do fim das guerras napoleônicas, momento no qual as frotas de longo curso de diversos países, especialmente a marinha francesa, foram destruídas, o que impossibilitava as arribadas no Brasil. Após 1810, principalmente nos últimos anos da década, ocorreu mais uma queda brusca nos valores de reexportação dos gêneros brasileiros. Após a independência brasileira, no período entre 1825-1831, o decréscimo foi de 90% em relação aos valores médios dos anos anteriores a abertura dos portos. Portugal perdeu a que talvez era sua maior fonte de acumulação de capital, o que afetou as finanças públicas dependentes das rendas alfandegárias. As industrias portuguesas, ainda bastante artesanais, não eram capazes de competir com os produtos britânicos ofertados no Brasil (Alexandre, 2007, p. 120-121).
A reação dos reinóis ao tratado de 1810 foi de reforçar a leitura da economia política de viés mercantilista, reeditando nos meses e anos seguintes obras como as memórias de Duarte Ribeiro de Macedo, até a manifestações junto à Corte no Rio de Janeiro. A reposta do governo foi um documento assinado pelo
Nelson Mendes Cantarino
príncipe regente datado de 7 de março de 1810 dirigido ao clero, nobreza e povo de Portugal. Este manifesto é interessantíssimo, pois defende uma inversão de papeis entre a antiga Metrópole e o território americano. Após um breve relato da conjuntura que obrigou a família real zarpar para a América, o manifesto passa a justificar o tratado de comércio com a Grã-Bretanha. O argumento central era o de que o tratado foi uma necessidade para criar um “Império nascente”:
(...) e para criar um Império nascente, fui servido adotar os princípios mais demonstrados de sã economia política, quais o da liberdade e franqueza do comércio, o da diminuição dos direitos das Alfândegas, unidos aos princípios mais liberais, e de maneira que promovendo-se o comércio, pudessem os cultivadores do Brasil achar melhor consumo para os seus produtos, e que daí resultasse o maior adiantamento na geral cultura, e povoação deste vasto território do Brasil, que é o essencial modo de o fazer prosperar, e de muito superior sistema restrito e mercantil, pouco aplicável a um país, onde mal podem cultivar-se por ora manufaturas, exceto as mais grosseiras, e as que seguram a navegação, e a defesa do Estado (Manifesto de 7 de março de 1810, dirigido ao clero, nobreza e povo de Portugal, justificando o tratado de comércio com a Inglaterra, p. 168). Os súditos reinóis sabiam que a concorrência dos manufaturados britânicos seria fatal para seus interesses no Brasil. Confrontando possíveis críticas, o documento apresenta uma inversão no argumento da especialização produtiva entre as diversas partes do Império. Talvez fosse o caso de o território europeu especializar-se na agricultura:
Não cuideis que a introdução das manufaturas Britânicas haja de prejudicar a vossa indústria. É hoje verdade demonstrada que toda a manufatura que de nada paga pelas matérias primas que emprega e que têm fora parte disto os quinze por cento dos direitos das Alfândegas a seu favor, só se não sustenta quando ou o País não é próprio para ela, ou quando ainda tem aquela acumulação de cabedais que exige o estabelecimento de semelhante manufatura. O Emprego dos vossos cabedais é por agora justamente aplicado na cultura das vossas terras, no melhoramento das nossas vinhas, na bem entendida manufatura do azeite, na cultura dos prados artificiais, na produção de sedas, que já vos mostrei pelos meus esforços paternais, serem comparáveis às melhores da Europa, sucessivamente depois ireis adiantando as manufaturas que nunca até aqui no Reino, apesar dos gloriosos esforços dos senhores Reis meus predecessores, prosperam ao ponto que deviam pelo sistema restrito, que se adotou, e então conhecereis que esta indústria, nas aparência tardia, é a única sólida, e a que toma fortes raízes, e que progredindo pelos devidos passos intermediais, chega a maior auge e lança então aqueles luminosos raios, que fazem os olhos do vulgo, o que ainda a homens de superiores luzes fizeram crer, que as manufaturas eram tudo, e que para consegui-las o sacrifício da mesma agricultura era útil e conveniente (Manifesto de 7 de março de 1810, dirigido ao clero, nobreza e povo de Portugal, justificando o tratado de comércio com a Inglaterra, p. 169). Toda política de proteção, privilégios e incentivos da Coroa não teria resultado em uma indústria produtiva e com capacidade de competir fora do mercado colonial. Mesmo com direitos alfandegários favoráveis, a indústria portuguesa não era páreo para os similares britânicos. Além disso, mesmo com o acordo foram mantidas isenções de direitos e reservas de mercado, como o direito de fornecimento do vestuário da tropa. Mas a política de fomento iria mudar para bases liberalizantes:
Para fazer que os vossos cabedais achem útil emprego na agricultura, e que assim se organize o sistema da vossa futura prosperidade, tenho dado ordens aos Governadores do Reino, para que se ocupem dos meios com que se poderão fixar os dízimos, a fim de que as terras não sofram um gravame intolerável; com que se poderão minorar ou alterar o sistema de jugadas, quartos e terços; com que se poderão fazer resgatáveis os foros, que tanto peso fazem as terras, depois de postas em cultura; com que poderão minorar-se, ou suprimir-se, os forais, que são em algumas partes do Reino de um peso intolerável, o que
Nelson Mendes Cantarino
como negociante, deputado do Tribunal do Comércio e secretário da Junta do Comércio, Fábricas e Navegação. Seu prestígio o levou a ocupar uma cadeira no Conselho do Imperador e o posto de guarda- roupa da Casa Imperial, tendo falecido em 1844 (Sacramento Blake, 1883, v. 3, p. 260).
O contexto da criação da Sociedade foi o de prorrogação dos acordos com a Grã-Bretanha e do aumento da pressão de Londres sobre o tráfico de escravos africanos. Em 23 de novembro de 1826 foi assinada uma convenção que determinava a ilegalidade deste comércio transatlântico dentro de um prazo de três anos após a ratificação do acordo, o que efetivamente ocorreu em 13 de março de 1827. Um problema central então foi posto para os produtores brasileiros: como manter a produção agrícola e os níveis de produtividade em um futuro onde a expansão da mão de obra seria restringida?
Uma saída era aproximar as tecnologias disponíveis na época da produção agrícola e do comércio nacionais. Máquinas poderiam substituir braços, aumentando a produtividade, a qualidade das mercadorias e a lucratividade dos agentes econômicos. Ignacio Álvares Pinto de Almeida também fez coro ao que era considerado uma intrusão dos britânicos nos interesses domésticos da Nação. Difundir o maquinário e seus usos seria um estímulo a soberania nacional:
Reconhecendo, meus Srs., que ser um dever do Cidadão, que ama sua Pátria, prestar, quanto cabe em suas forças, todos os ofícios, que possam cooperar para a felicidade Nacional; e convencido de que nenhum País floresce, e se felicita sem Industria, por ser ela o móvel principal da prosperidade, e da riqueza, tanto pública, como particular de uma Nação culta, e realmente independente; convencido igualmente de que os Maquinismos são poderosos auxiliadores da Industria, cujos benéficos resultados se derramam sobre todas as classes da Sociedade, e desejando por tanto conciliar estes princípios de verdade incontrastável a benefício do Brasil, que me deu o berço, e onde a Industria sufocada por mais de três séculos, demanda todos os socorros, eu trabalho desde 1820 para que se crie entre nós esta Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional, cujo fim principal é auxiliar a indústria, mormente pelo que respeita à aquisição de Maquinismos, que, expostos ás visitas do Público, façam-se conhecidos, possam ser copiados, e desafiem os interesses dos nossos Agricultores, e dos nossos Artistas: para que por meio delas consigam minorar os trabalhos de mão d’obra, obtendo ao mesmo tempo com mais facilidade, perfeição, e menos despesas maior soma de produtos (Almeida, 1828, p. 3). A Sociedade Auxiliadora participou de diversas atividades almejando o objetivo da difusão tecnológica. O de maior impacto foi certamente a publicação do periódico O Auxiliador da Indústria Nacional , publicado por cinquenta e nove anos, entre 1833 e 1892. Em suas páginas vemos um projeto pedagógico consciente de dar utilidade ao conhecimento científico, divulgando novas técnicas e culturas:
As vantagens dos progressos das luzes são incontestáveis: as ciências físicas não existem realmente, senão depois que seguem uma marcha certa e util. A Astronomia, a Geografia, a Navegação, a Química, e todas as Artes, que lhe são dependentes, têm, como a Geologia, sido submetidas aos cálculos, depois que se fundarão na observação. Mineralogia, auxiliada pela Geometria, e pela Analise, em vez de ser uma Ciência de pura curiosidade, tornou-se indispensável; e já a Botânica e a Zoologia se unirão para acelerarem os progressos da Agricultura. (...) He para concorrer a estes progressos, e para aparecer a realização de bens, que só a propagação das luzes pôde produzir no Brasil, que a Sociedade Auxiliadora da Industria Nacional aqui estabelecida empreende esta publicação periódica de Memorias e Noticias interessantes a todas as classes industriosas Possa a sua empresa ser bem acolhida dos Brasileiros interessados na prosperidade do Império; e possam igualmente coadjuva-la com as suas observações e experiências, aqueles nossos Concidadãos, que por seu Patriotismo devem concorrer a gloria da nossa Pátria pelo melhoramento da nossa nascente indústria (O Auxiliador da Indústria Nacional 1833, n. 1, p. 10).
Indústrias, inovações técnicas e políticas públicas: o debate luso-brasileiro. (c.1670 – 1870)
O Auxiliador percebia a agricultura como o principal setor da produção brasileira. Mas suas páginas ajudaram a divulgar entre seus leitores termos técnicos, científicos e uma certa familiaridade com máquinas e equipamentos modernos. A transformação semântica iniciada ainda no século XVIII com Bluteau e Morais Silva, com os novos sentidos dos vocábulos relacionados a máquinas, a mecânica e ao conhecimento industrial, já encontravam nas páginas do periódico suas acepções contemporâneas. Associações e adjetivações depreciativas e aviltantes ao trabalho especializado, aos ofícios mecânicos, não estão presentes. Novos termos associados ao ato de inovar, inventar ou criar novos métodos e equipamentos são utilizados em sentidos meramente econômicos.
Estas acepções já podem ser percebidas no Diccionario da Lingua Brasileira (1832) do goiano Luís Maria da Silva Pinto (1775-1869). Editado um ano antes do início da publicação do Auxiliador , o novo dicionário utilizou apenas pontualmente alguns sentidos antigos dos vocábulos econômicos. Mecânico é o concernente a mecânica ou a um entendido na ciência da mecânica, mas ainda é associado ao “não nobre”. Mecanismo é a estrutura interna de qualquer máquina, ou a disposição das partes de um corpo físico, sua dinâmica de movimentos. A mecânica é relativa à parte da Matemática, e ao conhecimento que ensina a construir máquinas, a calibrar suas forças e compreender o movimento dos corpos. Também é associado a linguagem própria de cada ciência (Silva Pinto 1832, vocábulos ME-MEC).
A ciência não é mais associada a retórica ou ao saber teológico, mas a conhecimento e erudição. Cientificamente e científico são adjetivos concernentes às ciências e ao conhecimento específico. (Silva Pinto, 1832, vocábulos SCI-SCO). Fábrica é uma organização, mas também uma construção ou estrutura. É o local onde se fabricam manufaturas e podem ser relacionadas ao trabalho e artificio. Fabricante é um substantivo para aquele realiza o ato de fabricar , sendo este último o ato de construir, edificar, cultivar a terra, de dominar as artes fabris – adjetivo para produção mecânica – e, quando associado a moeda, ao ato de cunhar numerário. (Silva Pinto, 1832, vocábulos EXU-EZT). Invenção é a ação de inventa r, traçar, de achar de novo, o engenho para inventar; inventor é aquele que possui talento para inventar, que é engenhoso (Silva Pinto, 1832, vocábulos INV.). Nestes vocábulos as acepções de viés religiosos são definitivamente abandonadas.^9
As acepções do vocábulo fabricante são abordadas em detalhe por José Ferreira Borges (1786-1838) em seu Dicionário Jurídico Comercial (1856). Sinônimo de manufactores , eram aqueles que “por virtude de máquinas, de mecânica, ou de artifícios” transformam matérias primas em objetos com outras formas e qualidades. Borges argumenta que os fabricantes aumentam o valor da produção da terra valorizando suas mercadorias. Além disso, Borges vaticina que “um Estado pode subsistir sem comércio, mas sem manufaturas não pode florescer” (Borges, 1856, p. 159).
O início da década de 1840 era o prazo final de validade dos acordos comerciais com a Grã- Bretanha. A pauta econômica do debate público passou a girar em torno de uma nova política alfandegária e de seus efeitos na produção e no comércio brasileiros. Impostos alfandegários eram a base da arrecadação e das receitas estatais. Novas tarifas eram a oportunidade de repensar isenções fiscais, de restabelecer as
(9) O vocábulo tecnologia não aparece em sua grafia antiga – technologia ou technología – em nenhum dos dicionários citados. No Dicionário Houaiss existe um comentário etimológico datando em 1783 o primeiro uso do termo em português. Sua origem vem dos radicais gregos tekhno – de tékhnē no sentido de ‘arte, artesanato, indústria, ciência – ; e logía – de lógos, no sentido de ‘linguagem, proposição’. Como referência a bibliografia do verbete apresenta a obra de Zake Tacla. O livro da arte de construir. São Paulo: Unipress, 1984. Cf. Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2009.