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historia da antropologia, Notas de estudo de Antropologia

antropologia, historia da antropologia

Tipologia: Notas de estudo

2019

Compartilhado em 16/08/2019

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,Goiânia, v. 3, n. 2, p. 321-345, jul./dez. 2005.
ROQUE DE BARROS LARAIA*
D
DA CIÊNCIA BIOLÓGICA
À SOCIAL: A TRAJETÓRIA
DA ANTROPOLOGIA
NO SÉCULO XX
Resumo: a Antropologia surgiu no início do século XIX como uma ciência
biológica. A partir da sexta década do século foi se transformando em uma
ciência social, graças ao trabalho dos evolucionistas britânicos. Foi somente
no século XX, graças à teoria da cultura, que ela realmente se transforma
em uma ciência social. Este artigo trata dessa trajetória.
Palavras-chave: antropologia biológica, história da antropologia, teoria
da cultura
urante séculos, no Ocidente, o homem foi considerado um
ser à parte da natureza, o último ato de uma criação divina,
uma espécie de anjo caído, banido do paraíso terrestre em
função do pecado original. Foi o naturalista sueco Lineu (1707-
1778) que em sua classificação zoológica derrubou o homem
de seu pedestal sobrenatural e o colocou bem no meio da
natureza, na ordem dos primatas. Em sua classificação, ele
divide a espécie Homo em Sapiens e Sylvestris, colocando neste
último ramo o orangotango.
O ato iconoclasta de Lineu se dá no contexto do
século XVIII, quando a explicação da natureza do homem é
fortemente influenciada pelo desenvolvimento da biologia.
Contemporâneo de Lineu, o conde de Buffon se torna o fun-
dador da antropologia, quando em 1749 começa a publicar a
sua grande obra Histoire naturelle genérále et particulière des
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Goiânia, v. 3, n. 2, p. 321-345, jul./dez. 2005. ,

ROQUE DE BARROS LARAIA*

D

DA CIÊNCIA BIOLÓGICA

À SOCIAL: A TRAJETÓRIA

DA ANTROPOLOGIA

NO SÉCULO XX

Resumo: a Antropologia surgiu no início do século XIX como uma ciência biológica. A partir da sexta década do século foi se transformando em uma ciência social, graças ao trabalho dos evolucionistas britânicos. Foi somente no século XX, graças à teoria da cultura, que ela realmente se transforma em uma ciência social. Este artigo trata dessa trajetória.

Palavras-chave: antropologia biológica, história da antropologia, teoria da cultura

urante séculos, no Ocidente, o homem foi considerado um ser à parte da natureza, o último ato de uma criação divina, uma espécie de anjo caído, banido do paraíso terrestre em função do pecado original. Foi o naturalista sueco Lineu (1707-

  1. que em sua classificação zoológica derrubou o homem de seu pedestal sobrenatural e o colocou bem no meio da natureza, na ordem dos primatas. Em sua classificação, ele divide a espécie Homo em Sapiens e Sylvestris , colocando neste último ramo o orangotango. O ato iconoclasta de Lineu se dá no contexto do século XVIII, quando a explicação da natureza do homem é fortemente influenciada pelo desenvolvimento da biologia. Contemporâneo de Lineu, o conde de Buffon se torna o fun- dador da antropologia, quando em 1749 começa a publicar a sua grande obra Histoire naturelle genérále et particulière des

Goiânia, v. 3, n. 2, p. 321-345, jul./dez. 2005. ,

animaux , na qual relaciona os problemas que considera como de especial interesse antropológico: a espécie, sua existência e variações; relações entre os homens e os animais; e as raças humanas (COMAS, 1957, p. 22). Foi ele o primeiro estudioso a utilizar a palavra raça com referência ao homem. As idéias biológicas desenvolvidas a partir do século XVIII atingem o seu clímax em 1849, com a publicação da Origem das Espécies, de Charles Darwin. É exatamente nessa época, no início da segunda metade do século XIX, que a antropologia começa a se con- solidar como disciplina acadêmica. É até então uma ciência natural, definida como “a ciência comparativa do homem, que trata de suas diferenças e das causas das mesmas, no que se refere à estrutura, função e outras manifestações da huma- nidade, segundo o tempo variedade, lugar e condição”. A antropologia física, como começou a ser chamada quando surgiram as ramificações, era considerada por Paul Broca, um de seus fundadores, a história natural do gênero Homo. Assim, era natural que o seu discurso fosse fortemente influen- ciado por conceitos biológicos e, especialmente, por paradigmas evolucionistas. As diversidades de comportamento e de de- senvolvimento social, constatadas entre as diferentes socie- dades humanas, levavam os antropólogos a buscar explicações científicas. Estas eram baseadas em um determinismo bioló- gico. Os homens agem diferenciadamente porque são biolo- gicamente diferentes e essas divergências são resultantes de um processo evolutivo. Algumas raças já teriam percorrido todas as etapas desse processo e, por isso, consideradas supe- riores. Outras estariam no meio do caminho, algumas delas ainda não superaram as primeiras etapas, portanto são consi- deradas inferiores. Sem dúvida, são idéias convenientes para a época porque davam uma sustentação científica para antigas idéias racistas. Esta argumentação se torna, então, útil para uma Europa que procura ampliar o seu espaço de dominação mediante a política colonialista que caracterizou a história do século XIX.

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moderno pensamento antropológico inicia-se no século XVIII - justamente na época do iluminismo – com Montesquieu (1689- 1755), na França, e com os filósofos morais escoceses, como David Hume (1711-1776) e Adam Smith (1723-1776). Com efeito, Montesquieu, em seu livro De l’Esprit des Lois (1748), considerava que as partes integrantes de uma sociedade e seu meio ambiente estão funcionalmente vinculados a todas as demais partes, antecipando assim – mesmo com o risco de um determinismo ambiental – os princípios do estruturalis- mo funcional formulados na primeira metade do século XX por antropólogos ingleses. Hume e Smith, por sua vez, con- sideravam que as sociedades humanas eram sistemas naturais ou, em outras palavras, derivavam da natureza humana e não do contrato social. Estas idéias, apesar de muitas refutações, persistem até hoje, como veremos ainda neste texto. A partir do filósofo inglês John Locke (1632-1714) e de Jean Jacques Rousseau (1712-1778) evidencia-se cada vez mais que as ações humanas são fruto de uma aprendiza- gem e independem de determinações biológicas. Locke, em seu livro Ensaio acerca do Entendimento Humano (1690), es- creveu que a mente humana não é mais do que uma caixa vazia por ocasião do nascimento, dotada de uma capacidade ilimitada de obter conhecimento. Refutava, assim, as idéias correntes no senso comum (e que ainda se manifestam até hoje) da existência de princípios ou verdades impressas here- ditariamente na mente humana. Rousseau, por sua vez, em seu Discurso sobre a Origem e o Estabelecimento da Desigual- dade entre os Homens (1775) também atribuiu um grande papel à educação, chegando mesmo ao exagero de acreditar que esse processo teria a capacidade de completar a transição entre os grandes macacos e os homens. Na sexta década do século XIX, temos os primei- ros sinais de ruptura de uma parte da antropologia rumo a sua definição como uma ciência social. É verdade que ain- da predomina um discurso fortemente biológico e a meto- dologia utilizada deriva do evolucionismo de Darwin. No entanto, os novos antropólogos não têm a sua origem nas

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ciências naturais, mas, sim, na Filosofia ou no Direito. Os seus trabalhos têm como objetivo buscar a gênesis das mo- dernas instituições jurídicas e sociais. Para isso, sem sair de seus gabinetes de estudo, utilizavam dados coletados por terceiros (viajantes, missionários, funcionários coloniais etc.) sobre os povos denominados primitivos, que consideravam então como sobreviventes de um período arcaico da histó- ria da humanidade. Consideravam que esses povos estari- am ainda vivendo as mesmas etapas de desenvolvimento que os europeus tinham vivido há milhares de anos. Buscavam com base na história dos povos primitivos a compreensão das instituições sociais contemporâneas. Alguns deles in- cluíam nessa busca a história de civilizações antigas como Roma, Grécia ou Egito, utilizando-se dos documentos es- critos pelos primeiros historiadores. O primeiro livro publicado nesse período foi o de Sir Henry Maine (1822-1888), Ancient Law (O Direi- to Antigo), 1861. Ele considerava que a grande revolução social tinha sido a transformação da sociedade baseada no status em sociedade de contrato. Em outras palavras, que- ria dizer que a sociedade humana evoluiu a partir do mo- mento em que as relações sociais deixaram de ser reguladas apenas por papéis sociais, atribuídos pelo parentesco, e passaram a ser realizadas também através de ações contratuais, firmadas entre homens de grupos familiares ou sociais diferentes. Sem esta transformação seria difícil imaginar a existência das sociedades modernas. Também em 1861 foi publicado o livro de J.J.Bachoffen (1815-1887), Das Mutterrecht (O Direito Materno), que defendia a tese de que as primeiras socieda- des eram matriarcais. Afirmava que o matriarcado tinha sido precedido por um período de intensa promiscuidade sexual, no qual as mulheres eram usadas arbitrariamente pelos ho- mens. Da revolta das mulheres, – fato este sugerido a Bacho- ffen pelo mito das Amazonas – teria surgido uma sociedade em que o poder se concentrava em mãos femininas. Segundo Bachoffen, essa etapa teria sido uma forma transitória que

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etnográfico, é este todo complexo que inclui conhecimen- tos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como mem- bro de uma dada sociedade. Ele reafirmava o que foi formu- lado por Locke, quase dois séculos antes. Em 1871, do outro lado do Atlântico, Lewis Morgan (1818-1881), jurisconsulto americano que teve contato com os índios Iroqueses, no estado de Nova York, publicou Systems of Consanguininity and Affinity of the Human Family (Siste- mas de consangüinidade e afinidade da família humana). Foi um dos primeiros autores a chamar a atenção para o fato, até então praticamente desconhecido, dos sistemas de parentes- cos variarem de sociedade para sociedade. Até então, acredi- tava-se que as diferenças entre os sistemas de parentesco eram decorrentes da diversidade lingüística e não uma diferença estrutural como foi constatado. Como outros evolucionistas, aceitava a idéia de uma etapa inicial da história da humani- dade na qual imperava uma grande promiscuidade sexual. O seu livro conseguiu grande popularidade por ter inspirado o trabalho de Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado , 1884. Estes precursores da moderna Antropologia cultu- ral, como vimos, não deixavam de ser os primeiros frutos de um evolucionismo que, naquele momento, representava um progresso, pois já admitia a unidade da espécie humana. As diferenças existentes entre as sociedades eram explicadas por estarem situadas em diferentes graus de evolução. Imagina- va-se, então, um continuum em cujas extremidades se situa- vam, de um lado, as sociedades mais atrasadas e, de outro, as mais adiantadas. Apesar de Tylor sempre reafirmar a igualda- de biológica da espécie humana, o evolucionismo acabou, ainda que involuntariamente, fornecendo munição para os racistas ao construir uma escala de evolução. Esta escala foi interpretada como um sistema hierarquizado de classificação das diferentes sociedades humanas, agravada pelo uso inade- quado do conceito de raça e de sua divisão em superiores e inferiores.

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As críticas ao evolucionismo que surgiram posterior- mente se centraram na suposição de que o desenvolvimento das sociedades humanas se dera mediante uma única linha – daí o termo evolucionismo unilinear. Em outras palavras, cada sociedade deveria passar pelas mesmas etapas de evolução que foram ultrapassadas pelas sociedades do mundo ocidental. Ou seja, como a invenção da roda foi considerada um fator decisi- vo para o desenvolvimento da civilização ocidental, ela foi con- siderada como um pré-requisito para o desenvolvimento de qualquer civilização. Os Astecas construíram uma grande ci- vilização sem jamais ter inventado a roda. Do ponto de vista da metodologia da pesquisa, o evolucionismo significou a hegemonia do trabalho de gabi- nete, com a utilização exclusiva de fontes secundárias para a elaboração dos seus trabalhos. Tylor, por exemplo, preocu- pava-se em fazer uma crítica exaustiva das fontes que consul- tava, procurando assegurar a veracidade dos fatos narrados e, muitas vezes, expurgando-os de seus exageros. Na última década do século XIX, começavam a ser abaladas tanto a hegemonia da antropologia biológica, quanto a do método evolucionista. Para isso, muito contribuiu Franz Boas (1858-1942). Nascido na Alemanha, Boas foi inicialmente um cientista natural que participou de uma expedição geográfica a Baffin Land (1883-1884), no Canadá, quando entrou em con- tato com os índios Inuit (mais conhecidos como Esquimó). In- teressou-se, então, pela Antropologia, tornando-se o primeiro professor de Antropologia da Universidade de Columbia, cargo que ocupou por mais de 40 anos. Tornou-se responsável pela formação de numerosos antropólogos americanos, entre eles Ruth Benedict e Margareth Mead.

O SÉCULO XX E A ANTROPOLOGIA CULTURAL

O século XX, para a Antropologia cultural, come- çou de fato em 1896, quando Boas publicou o seu artigo The Limitation of Comparative Method in Anthropology (As limi- tações do método comparativo em Antropologia), no qual

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bros das expedições a serem organizadas: ‘Considerações so- bre o método a ser seguido na observação de povos selva- gens’. Nesse guia, Gerando procurou demonstrar que esse tipo de observação é a maneira mais fácil de determinar as leis essenciais da natureza humana. A Sociedade dos Observadores do Homem, contu- do, não sobreviveu ao período que se encerra com as guerras napoleônicas. Além disso, pesava contra ela o seu caráter amadorístico e, especialmente, a falta de um suporte teórico. Uma parte do corpo teórico dos seguidores de Boas também não era uma novidade. O postulado da unidade bio- lógica da espécie humana, contrastando com a grande diver- sidade cultural, já tinha sido formulado 400 anos antes de Cristo por Confúcio: ‘A natureza dos homens é a mesma; são os seus hábitos que os mantêm separados’. Com a sua crítica ao método evolucionista e com sua ênfase à unidade da men- te humana, Boas começa a derrubar a hegemonia da explica- ção biológica. Em outras palavras, os homens não são iguais porque estão em etapas diferentes da evolução biológica, mas porque optaram por seguir caminhos diversos, criando dife- rentes sistemas culturais. Este posicionamento foi possível graças à definição do conceito de cultura que foi realizada por Edward Tylor, como vimos. É necessário salientar que, desde o final do século XVIII, o termo germânico Kultur era utilizado para simboli- zar todas as grandes conquistas do espírito humano, como a música, a literatura etc., como o termo francês Civilization referia-se especilamente às conquistas materiais da humanida- de, como a máquina a vapor etc.. O mérito de Tylor, ao cons- truir a sua definição de cultura, foi o de sintetizar estes dois termos no vocábulo inglês Culture que, segundo ele, ‘tomado em seu amplo sentido etnográfico é este todo complexo que inclui conhecimento, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade’. Em outras palavras, tudo o que o homem faz independe de uma transmissão genética, mas, sim, do fato de pertencer a uma sociedade. Com esta defini-

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ção, repetimos, Tylor abrangia em uma só palavra todas as possibilidades de realização humana, além de marcar forte- mente o caráter de aprendizado da cultura em oposição à idéia de aquisição inata, transmitida geneticamente. Em 1871, como vimos, Tylor definiu cultura como sendo todo o comportamento aprendido, tudo aquilo que independe de uma transmissão genética, como diríamos hoje. Em 1917, Alfred Kroeber (1876-1960) acabou de romper todos os laços entre o cultural e o biológico, postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo, em seu artigo “O superorgânico”. Completava-se, então, o proces- so iniciado por Lineu. Tylor e Kroeber ampliaram, ainda mais, o distanciamento entre os domínios culturais e bioló- gicos. O anjo caído foi diferenciado dos demais animais por ter a seu dispor duas notáveis propriedades: a possibilidade da comunicação oral e a capacidade de fabricação de ins- trumentos, capazes de tornar mais eficiente o seu aparato biológico. Em suma, a nossa espécie tinha conseguido, no decorrer de sua evolução, estabelecer uma distinção de gê- nero e não apenas de grau em relação aos demais seres vi- vos. Os fundadores da antropologia, mediante essa explicação, tinham repetido a temática quase universal dos mitos de origem – muito freqüente na mitologia sul-americana – pois a maioria destes se preocupa muito mais em explicar a se- paração da cultura da natureza do que com outras especu- lações de ordem cosmogônica. Assim, quando Boas estabeleceu o trabalho de cam- po como procedimento central do método antropológico, os pesquisadores passaram a dispor de um instrumento conceitual importante para explicar a diferença de comportamento en- tre as diferentes sociedades humanas. Obviamente, o conceito de cultura passou a ser o principal instrumento dos antropólogos seguidores de Boas, rotulados como membros da chamada Escola Cultural Ame- ricana e das que dela derivaram, como, por exemplo, a da Cultura e Personalidade, o ponto de interseção mais próxi- mo da Antropologia com a Psicologia. Esta tendência culturalista

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instinto materno? e o instinto paterno? Pois bem, como falar em instinto materno, quando sabemos que em muitas socie- dades o infanticídio é um padrão cultural. Não precisamos ir longe, até há pouco tempo, em uma sociedade indígena do Brasil Central, as mulheres não podiam ter mais do que três filhos. Era uma imposição religiosa. Não conhecendo nenhuma técnica de evitação, elas cumpriam o preceito matando as crianças no momento do nascimento. Na Roma antiga, o pai tinha o poder de vida e morte sobre os filhos e, de fato, usa- vam-no quando um filho cometia uma falta considerada gra- ve. Estes dois comportamentos, tão estranhos para nós, não seriam possíveis se existisse um instinto que impedisse a sua consumação. O fato é que as pessoas costumam confundir, freqüentemente, padrões culturais com instintos biológicos. Na segunda metade do século XX – talvez em fun- ção dos horrores da 2ª guerra mundial – o relativismo passou a ser fortemente contestado. Segundo Geertz (1926-2006), os seus adversários apontaram uma série de conseqüências decorrentes: subjetivismo, niilismo, incoerência, maquiave- lismo, estupidez ética, cegueira estética etc. E, além disso, acrescentaram a essas acusações a “descrença da existência do mundo físico, de achar que as trivialidades são tão boas quanto a poesia, de ver Hitler apenas como um sujeito de atos pouco convencionais” etc. Geertz (2001, p. 48) em seu capítulo Anti Anti-Relativismo, mostra que esta é uma discussão rele- vante para a Antropologia, porque, afinal, foi pela idéia de relativismo, ainda que mal definida, que ela perturbou a paz intelectual geral , com a mensagem de que como as pessoas vêem as coisas de maneiras diferentes e as fazem de modo diverso, em outras partes do mundo, “a confiança em nossas próprias opiniões e atitudes e nossa determinação de fazer os outros partilhá-las tem uma base muito precária” (GEERTZ, 2001, p. 49). Embora, já no raiar do século XXI, tenhamos que conviver com o embate entre os anti anti-relativistas e os anti-relativistas, é preciso recordar, como faz Geertz, que não foi o relativismo que matou as visões conservadoras da histó-

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ria, foram os fatos etnográficos que os antropólogos trouxe- ram de suas viagens. Foi graças ao relativismo que foi possí- vel insistir que “vemos a vida dos outros através das lentes que nós próprios polimos e que os outros nos vêem através das deles”. Assim, procedendo, a Antropologia combateu to- das as formas de maniqueismo e mostrou “que as normas da razão não foram estabelecidas pela Grécia nem a evolução da moral se consumou na Inglaterra”. E Geertz (2001, p. 66-

  1. conclui: “Se quiséssemos verdades caseiras, deveríamos ter ficado em casa.”

AS PERSISTÊNCIAS DAS IDÉIAS DA BIOLOGIA

Era de se supor que, com o advento do século XX, a hegemonia da Teoria da Cultura estivesse bem estabelecida no campo antropológico. Entretanto a história não é bem assim. Não foi fácil ignorar a influência de muitos precursores das Ciências Sociais, como Montesquieu (1711-1776), Saint-Simon (1760-1825) e Auguste Comte (1798-1857), que considera- vam que as sociedades humanas eram sistemas naturais. Con- seqüentemente, pregavam que, para a compreensão delas era necessário descobrir as leis sociais que determinavam o seu comportamento. Estas leis deviam ser da mesma natureza da- quelas que regem os reinos animais e vegetais e o próprio mundo físico. Assim, apesar de tudo o que foi dito durante muito tempo, a antropologia continuou na busca de uma identifica- ção com as ciências naturais. Tal procedimento era coerente com o fato de que o primeiro espaço conquistado para a sua atuação foi justamente o dos museus de história natural, parti- lhados também pela zoologia, geologia, botânica etc. Em 1937, A.R.Radcliffe-Brown (1888-1955), um dos mais importantes antropólogos britânicos da primeira metade do século XX, organizou, na Universidade de Chica- go, um seminário para estudar

a possibilidade de uma ciência natural das sociedades humanas, isto é, que se aplicasse aos fenômenos da vida social da humani-

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uma derivação dos instintos biológicos. O que diferencia o homem dos animais é exatamente a capacidade que tem de não se satisfazer apenas com estas necessidades. Um animal bem alimentado e protegido está satisfeito, mas um homem na mesma condição não necessariamente está. De fato, a humanidade aprendeu até mesmo a sacrificar parte de sua satisfação biológica para poder realizar as suas mais diferen- tes fantasias. Um exemplo bem próximo de nós: uma parte considerável dos recursos investidos no Carnaval são desvia- dos voluntariamente da satisfação de melhores condições de habitação e alimentação. Na Antropologia moderna, encontramos autores como Robin Fox (1934-) e Leonel Tigers (1937-) que adotam estas posições, embora de uma forma mais moderada, em seu livro The Imperial Animal (1974) (O Animal Imperial). As suas tentativas de aproximar a antropologia das ciências naturais passam pelo paralelismo entre a evolução biológica e a evolu- ção cultural, pela comparação do comportamento animal com o comportamento humano. Tal posicionamento encontrou, no entanto, uma forte reação especialmente por parte de Marshall Sahlins (1977, p. 107), em seu livro The use and abuse of biology, conclui que a aceitação da sociobiologia nos levaria a “abando- nar todo o entendimento do mundo humano como significa- tivamente constituído, e, assim fazendo, abandonarmos a esperança de conhecer a nós mesmos”. Sahlins (1977) considera, ainda, que a teoria da sociobiologia tem uma forte dimensão ideológica, profunda- mente relacionada com o competitivo capitalismo ocidental. Isso nos leva, sem dúvida, a explicações racistas. Os bem- sucedidos são aqueles que estão biologicamente mais bem preparados para o sucesso, ou seja aqueles que pertencem a raças consideradas superiores. Fazendo um parêntese, esta não é uma explicação nova entre nós. Em 1922, Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) correlacionava caracteres morfológicos com atributos mentais, como bem explicita em seu livro A evolução do povo brasileiro quando, referindo-se às diversas etnias procedentes da África, afirma que possuem

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uma diversidade de caracteres morfológicos que são acompanha- dos por uma igual diversidade de atributos mentais [...]. Assim, os felanins são dóceis, pacíficos, afetos à obediência e à humilda- de (VIANNA, 1956, p. 139).

Atualmente, prevalece a idéia de que a antropologia e as demais ciências sociais fazem parte de um conjunto que utiliza uma metodologia diferente da empregada pelas ciências naturais. Estas últimas dependem da observação de fenômenos que se re- petem na natureza ou podem ser reproduzidos em laboratórios. As ciências sociais, ao contrário, estudam fenômenos que não podem ser repetidos em laboratórios e a observação direta dos mesmos é passível de interpretações diferentes por parte dos observadores. As ciências naturais utilizam-se de instrumentos precisos de ob- servação e medição, capazes de assegurar uma grande objetivida- de que independe da qualidade do pesquisador. Nas ciências sociais, estes instrumentos não existem e a observação depende grandemente de quem observa e pode ser distorcida por equívocos decorrentes da falibilidade de seus sentidos e, sobretudo, pela precariedade do suporte teórico do observador. Um ponto importante que separa as ciências sociais das naturais é que as primeiras, como afirma DaMatta, tra- balha com fenômenos que estão bem perto do observador, pois estes estudam eventos humanos. Isso é radicalmente di- ferente de estudar baleias, apocináceas ou cometas. Os cien- tistas sociais dialogam com os seus informantes e podem ser por estes contestados. Assim, para DaMatta (1981, p. 27),

a raiz das diferenças entre as ciências naturais e sociais fica localiza- da, portanto, no fato de que a natureza não pode falar diretamente com o investigador, ao passo que cada sociedade humana conhecida é um espelho em que a nossa própria existência se reflete.

CULTURA: AVALIAÇÃO E PERSPECTIVA

Cultura passou a ser, assim, desde o início do sé- culo, um conceito chave para a antropologia, tornando-se

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agindo e impondo as suas regras no interior de fenômenos que não dependem primariamente dela (LEVI-STRAUSS, 1976, p. 62).

Levi-Strauss buscou assim reconstruir a formulação da primeira regra social. Apesar de ter tomado como ponto de par- tida o biológico, ele reafirma o postulado básico da Teoria da Cultura de que o comportamento humano é resultado das re- gras que o homem cria, como membro de uma dada sociedade, e não decorrentes de determinações biológicas. É isso que sepa- ra a humanidade da animalidade: um animal acuado pelo medo age instintivamente, como determina o seu código genético: enfia o rabo entre as pernas e foge; um homem na mesma situação, por maior que seja o seu medo, vai agir de acordo com as regras de sua cultura, mesmo que isso possa significar a sua morte. Exemplos clássicos que comprovam esta afirmação são os kamikase, pilotos japoneses da segunda guerra mundial e os terroristas sui- cidas palestinos da atualidade. Ao distinguir o comportamento humano do animal, a antropologia reafirma a separação entre o biológico e o so- cial. O seguinte texto de Boas, citado acima como criador do particularismo histórico – e que tanto enfatizou o conceito de cultura –, clarifica o que dissemos no parágrafo anterior:

É peculiar ao homem a grande necessidade de condutas, no que diz respeito à sua relação com a natureza e com seus semelhantes. En- quanto entre os animais o comportamento de toda espécie é estereo- tipado ou, como dizemos, instintivo, não aprendido, e somente em extensão diminuta variável e dependente da tradição local, a con- duta humana não é estereotipada no mesmo sentido e não pode ser chamada de instintiva. Ela depende da tradição local e é aprendida [...]. Em outras palavras, a cultura humana é diferenciada do mundo animal pelo poder da razão e ligada a ele, pelo uso da língua. É igualmente peculiar ao homem a avaliação das ações de um pon- to de vista ético e estético (MOURA, 2000, p. 97).

Antes e depois de Levi-Strauss, outros antropólogos discutiram o conceito de Cultura. Já em 1952, Alfred Kroeber

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e C. Kluckhon, em um artigo conjunto denominado “Culture: a critical review of concepts and definitions” (Cultura: uma resenha crítica dos conceitos e definições), colecionaram 165 definições do conceito. Praticamente todos os antropólogos importantes criaram a sua própria definição que os dois auto- res classificaram em seis categorias: descritiva, histórica, normativa, psicológica, estrutural e genética. No entanto, em qualquer uma dessas categorias, em nenhum momento essas numerosas definições tornaram sem efeito a definição clássica de Tylor. Algumas delas a enriqueceram, como a de Leslie White (1949), quando afirma que a ordem cultural é constituída de eventos que são dependentes de uma faculdade peculiar à es- pécie humana, a capacidade de usar símbolos. Também a de White que, por ocasião de uma ampla discussão sobre a ori- gem da cultura – na qual predominaram explicações de ordem metafísica ou de história conjectural – apresentou uma solu- ção simples e bastante satisfatória ao afirmar que a cultura surgiu no momento em que o cérebro do homem tornou-se capaz de produzir símbolos. Cerca de vinte anos depois, Geertz, a figura mais importante do intepretativismo americano, considerou que esta proliferação de definições do conceito serviram muito mais para estabelecer uma confusão do que ampliar os seus limites. Segundo ele, a tarefa mais importante da antropolo- gia seria a de diminuir a amplitude do conceito e transformá- lo em um instrumento mais especializado e mais poderoso, teoricamente. Geertz, com certeza, contribuiu para este es- forço. No entanto, antes de nos referirmos propriamente à sua contribuição, é oportuno fazer uma avaliação da Teoria da Cultura, no início do último quartel do século XX. Apropriamo-nos do esquema elaborado por Roger Keesing, em seu artigo Theories of Culture” (1974) no qual classifi- ca as tentativas de obter uma precisão conceitual em duas categorias de teorias: as que consideram cultura como um sistema adaptativo; e as teorias idealistas de cultura. A pri- meira categoria foi amplamente difundida nos Estados Uni- dos, especialmente nos anos 1950, por antropólogos