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Hermann Hesse | O lobo da estepe | Christian Rocha, Notas de estudo de Música

1955 by Hermann Hesse. Direitos de publicação exclusivos em ... uma expressão de que ele próprio usualmente se valia, o Lobo da Estepe. Seria ocioso indagar.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Tucupi
Tucupi 🇧🇷

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Título original: Der Steppenwolf Tradução: Ivo Barroso 1955 by Hermann Hesse Direitos de publicação exclusivos em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA, S. A. Rua Argentina 171-20921-380 Rio de Janeiro, RJ-Tel. 585 20 00 e EDICIONES ALTAYA, S. A. Números Atrasados: Serviço ao leitor: Pça. Alfredo Issa, 18 - Centro, fone: (011) 230 92 99. Rio de Janeiro: R. Teodoro da Silva, 821 - Grajaú, Fones: (021) 577 42 25 e 577 23 55. Distribuição exclusiva em bancas para todo o Brasil: Fernando Chinaglia Distribuidora S/A, R. Teodoro da Silva, 907, fone (021) 57777 66, Fax (021) 577 63 63, Rio de Janeiro, RJ. ISBN: 85-01-15416- Depósito Legal: B. 42. 229/ Impresso em Espanha - Printed in Spain Impressão e encadernação: Printer Industria Gráfica, S. A.

Sumário

  • Prefácio do Editor
  • ANOTAÇÕES DE HARRY H ALLER / Só para loucos
  • T RATADO DO L OBO DA ESTEPE / Só para loucos
  • Nota do Autor

do Editor

ESTE LIVRO contém as anotações que nos ficaram daquele a quem chamávamos, para usar uma expressão de que ele próprio usualmente se valia, o Lobo da Estepe. Seria ocioso indagar se este manuscrito necessita ou não de um prefácio; seja como for, de minha parte julgo imperioso acrescentar, às do Lobo da Estepe, algumas páginas em que procurarei plasmar as recordações que me ficaram de sua pessoa. Bem pouco é o que sei a seu respeito, sendo-me particularmente desconhecidos o seu passado e a sua origem: conservo, entretanto, de sua personalidade uma forte impressão e — cumpre-me declará-lo — bastante simpática, apesar de tudo. O Lobo da Estepe era um homem de cerca de 50 anos que, certa vez, faz alguns anos, apareceu em casa de minha tia à procura de um quarto mobiliado para alugar. Interessou-se por um compartimento no andar superior, bem como

por um dormitório contíguo ao mesmo. Voltou dias depois, trazendo consigo duas malas e uma grande caixa com livros, e morou conosco durante cerca de nove ou dez meses. Vivia muito sossegado e para si. Não fora a proximidade de nossos dormitórios nos proporcionar ocasionais encontros na escada e no corredor, e não nos teríamos conhecido, pois o homem era de fato insociável. E insociável a tal ponto que assim, estou para dizer, eu jamais observara em quem quer que fosse. Era realmente um Lobo da Estepe, conforme ele próprio, às vezes, costumava chamar-se: um ser estranho, selvagem e, ao mesmo tempo, tímido, muito tímido mesmo, pertencente a um mundo bem diverso do meu. Se bem que antes, graças aos nossos freqüentes encontros, já eu lobrigasse algum conhecimento sobre sua maneira de ser, foi só após inferi-lo dos escritos aqui deixados que vim a saber do profundo isolamento em que ele mergulhara, seguindo uma tendência natural e fatalística, que o levava a considerar conscientemente tal isolamento como uma imposição de seu Destino. Creio mesmo que o retrato que dele formei em função de seus escritos seja, na essência, bem semelhante àqueloutro (embora mais difuso e sem precisão de detalhes) que me ficou de nosso trato pessoal. Por casualidade eu me encontrava presente no momento em que o Lobo da Estepe entrou pela primeira vez em casa de minha tia e com esta contratou o aluguel do apartamento. Chegou exatamente à hora do almoço; os pratos ainda estavam sobre a mesa e eu dispunha de algum tempo livre antes de ter de regressar ao escritório. Não posso esquecer a estranha impressão que me causou nesse primeiro encontro. Fez soar a campainha e avançou pela porta de vidro do vestíbulo, em cuja semi-escurídão minha tia foi perguntar-lhe o que desejava. Mas, antes de dar uma resposta ou dizer o nome, ele, o Lobo da Estepe, ergueu a cabeça afilada e de cabelos curtos, olfateou avidamente o ar, exclamando: "Hum! Que cheiro bom aqui!" Riu em seguida, e minha boa tia riu-se também.

traordinário e novo o alugar um quarto e conversar normalmente em alemão, estando, no íntimo, ocupado com outras coisas bem diversas daquelas. De certo modo esta foi minha impressão, que teria sido ainda pior se não a corrigissem e delineassem as expressões de seu rosto, pois foi sobretudo a face daquele homem o que nele me agradou desde o princípio. Apesar daquela impressão de estranheza, sua fisionomia me agradou. A expressão fisionômica era, de certa forma, peculiar e triste, mas ao mesmo tempo esperta, inteligente, fatiga-da e espiritual. Ocorre que, para dispor-me mais facilmente à reconciliação, havia em sua cortesia e amabilidade — embora parecessem obtidas mediante algum esforço — uma total ausência de orgulho; ao contrário mesmo, havia nelas algo de comovente, de quase suplicante, para o que só mais tarde encontrei explicação, mas que desde logo me predispôs a seu favor. Antes que terminasse a inspeção de ambos os comparti-mentos e de levar a cabo o trato, já o meu tempo de almoço se havia esgotado e eu devia regressar ao trabalho. Despedi-me e deixei-o com minha tia. Quando voltei de tarde a casa, disse-me ela que o senhor havia finalmente alugado o quarto e que para lá se mudaria dentro em breve, tendo-lhe pedido, contudo, para não comunicar a sua entrada à polícia, pois a um homem doente como ele seriam incômodas essas formalidades e andanças pelas delegacias e tudo o mais. Lembro-me perfeitamente da admiração que tal fato me causou e de como recriminei à minha tia por ter concordado com tal exigência. Esse temor à polícia era compatível demais com seu ar esquisitão e pouco amistoso, para não me despertar suspeitas. Fiz ver à minha tia que concordar com aquele pedido pessoal poderia, em tais circunstâncias, acarretar-lhe sérios aborrecimentos, e que, portanto, não devia em hipótese alguma aquiescer. Mas fiquei logo sabendo que ela prometera satisfazer-lhe o desejo e que havia, além disso, deixado fascinar-se pelo singular personagem. Na verdade, para com todos os hóspedes, acabava por demonstrar sentimentos hu-

manos, amistosos, de tia, e muitas vezes maternais, do que alguns souberam aproveitar-se bem. E logo nas primeiras semanas ficou patente que, enquanto eu tinha muito a reprovar no novo inquilino, minha tia cada vez mais o colocava sob sua calorosa proteção. Como não me agradasse o fato de não se ter feito comunicação alguma à polícia, quis inteirar- me pelo menos do quanto minha tia indagara acerca do estranho, de sua origem e de suas pretensões. Já era algo que sabia, embora o homem pouco demorasse após minha saída. Disse-lhe que pretendia ficar na cidade alguns meses, freqüentar a biblioteca e visitar os monumentos notáveis. Minha tia não se mostrou satisfeita ao saber que a locação se faria por tão curto prazo, mas evidentemente ele já a havia conquistado, a despeito de sua singular apresentação. Em suma, os quartos já estavam alugados e minhas advertências haviam chegado tarde. — Por que achou bom o cheiro daqui? — perguntei. Ao que minha tia, que às vezes tinha bons pressentimentos, respondeu: — Sei perfeitamente por quê. Nossa casa cheira a limpeza, a ordem, a uma vida amistosa e decente, e isso lhe agradou muito. Parece que há muito tempo não sentia isso e já estava lhe fazendo falta. — Mas — perguntei — se ele não está acostumado a uma vida ordenada e decente, que poderá acontecer? Que fará a senhora se ele não for asseado e emporcalhar tudo, ou se voltar para casa todas as noites bêbado? — Isso veremos — retrucou ela, e eu deixei o caso morrer por aí. Meus receios, na verdade, não tinham fundamento. O inquilino, embora não levasse de modo algum vida ordenada e racional, nunca nos molestou nem prejudicou em nada, e até hoje nos lembramos dele com prazer. Mas intimamente, na alma, esse homem nos perturbou e prejudicou, tanto à minha tia quanto a mim, e, a bem dizer, até hoje ainda não

cem de toda ambição, que nunca desejam brilhar nem persuadir aos demais nem arvorar-se em donos da verdade. Lembro-me, já nos últimos tempos de sua estada conosco, de um conceito dessa natureza, que nem chegou a ser mesmo um conceito, mas antes unicamente um olhar. Foi quando um célebre historiador e crítico de arte, de renome europeu, anunciou uma conferência na Universidade local e logrei persuadir o Lobo da Estepe a que fosse assisti-la, embora não me demonstrasse nenhum prazer em ir. Fomos juntos e nos sentamos um ao lado do outro no salão do auditório. Quando o orador subiu à tribuna e começou a elocução, decepcionou, pela maneira presumida e frívola de seu aspecto, a muitos de seus ouvintes, que o haviam imaginado algo assim como um profeta. E quando então começou a falar e, à guisa de introdução, endereçou aos ouvintes palavras lisonjei-ras, agradecendo-lhes por haverem comparecido em tão grande número, nesse exato momento o Lobo da Estepe me lançou um olhar instantâneo, um olhar de crítica àquelas palavras e a toda a pessoa do conferencista, oh! um olhar inesquecível e tremendo, sobre cuja significação poder-se-ia escrever um livro inteiro! O olhar não apenas criticava o orador e destruía a celebridade daquele homem com sua ironia esmagadora embora delicada; não, isso era o de menos. Havia nesse olhar um tanto mais de tristeza que de ironia; era na verdade, um olhar profundo e desesperadamente triste, com o qual traduzia um desespero calado, de certo modo irremediável e definitivo, que já se transformara em hábito e forma. Não só transverberava com sua desesperada claridade a pessoa do vaidoso orador, ironizava e punha em evidência a situação do momento, a expectativa e a disposição do público e o título um tanto pretensioso da anunciada conferência — não, o olhar do Lobo da Estepe penetrava todo o nosso tempo, toda a afetação, toda a ambição, toda a vaidade, todo o jogo superficial de uma espiritualidade fabricada e frívola. Ah! lamentavelmente o olhar ia mais fundo ainda, ia além das simples imperfeições e desesperanças de nosso tempo, de nossa

espiritualidade, de nossa cultura. Chegava ao coração de toda a Humanidade;

expressava, num único segundo, toda a dúvida de um pensador, talvez a de um

conhecedor da dignidade e sobretudo do sentido da vida humana. Esse olhar dizia: '

'Veja os macacos que somos! Veja o que é o homem!" E toda a celebridade, toda a

inteligência, toda a conquista do espírito, todo o afã para alcançar a sublimidade, a

grandeza e o duradouro do humano se esboroava de repente e não passava de frívolas

momices!

Com isto acabei me antecipando demasiadamente e, contra meu propósito e desejo,

vim a dizer o essencial que pretendia sobre Haller, quando, na verdade era minha

intenção revelar aos poucos sua imagem, à medida que fosse relatando o paulatino

conhecimento que tive a seu respeito.

Mas já que me adiantei tanto, poupo-me agora de falar mais extensamente sobre a

enigmática "estranheza" de Haller e de relatar como pressenti e fui gradativamente

conhecendo os fundamentos e a significação daquela "estranheza", daquele

descomunal e terrível isolamento. Assim é melhor, pois quero deixar à parte, tanto

quanto possível, minha própria personalidade. Não desejo expor meus conhecimentos,

nem escrever uma novela, nem desenvolver uma tese psicológica, mas simplesmente,

como testemunha, contribuir com algo para a imagem do homem singular que estes

manuscritos do Lobo da Estepe nos deixou configurada.

Já desde o primeiro olhar, ao entrar pela porta envidra-çada da casa de minha tia,

quando ergueu a cabeça à semelhança de um pássaro e aspirou o agradável odor da

casa, de certo modo pressenti a singularidade daquele homem, e a minha primeira

reação a tudo aquilo foi de repugnância. Tive a impressão (e minha tia, que ao

contrário de mim não é de modo algum uma intelectual, teve quase que a mesma

impressão) de que o homem estava enfermo, de que sofria de uma espécie qualquer de

enfermidade, da alma, do espírito ou do caráter, e me defendi contra tudo isso com

meu instinto de pessoa sã. Essa resistência, com o correr do tempo, foi-se

plo do impossível que é amar o próximo sem amor a si mesmo, de que o desprezo a si mesmo é em tudo semelhante ao acirrado egoísmo e produz afinal o mesmo desespero e horrível isolamento. Mas já é tempo de deixar à parte os pensamentos e falar de fatos reais. O que primeiro descobri a respeito de Haller — parte através de minha espionagem, parte através das observações de minha tia — dizia respeito ao seu sistema de vida. Era fácil perceber-se que se tratava de um pensador e de um homem chegado aos livros, que não exercia qualquer emprego ou ocupação. Permanecia muito tempo deitado; não raro só se levantava por volta do meio-dia e passava em trajo de dormir de seu quarto à sala de estar. Esse compartimento, uma espaçosa e agradável mansarda com duas janelas, tinha agora, com poucos dias, uma aparência bem diversa daquela do tempo de outros hóspedes. Com o passar dos dias, tornava- se cada vez mais cheio de objetos. Das paredes pendiam estampas, desenhos, fotografias recortadas de revistas, que eram freqüentemente substituídas por outras. Uma paisagem do Sul, fotografias de uma cidade alemã do interior, seguramente a terra de Haller, lá estavam pregadas à parede; aquarelas coloridas e luminosas, que, viemos a saber mais tarde, ele próprio havia pintado. Em seguida, a fotografia de uma bela e jovem mulher ou, antes, de uma moça. Por algum tempo esteve um buda siamês pregado à parede; depois foi substituído por uma reprodução da Noite, de Miguel Ângelo, e mais tarde por um retrato do Mahatma Gandhi. Os livros não só enchiam as estantes como também se amontoavam em toda parte, sobre a mesa, a linda e antiga escrivaninha, sobre o divã, as cadeiras, em volta do chão; livros tendo entre as páginas marcas de papel, que constantemente mudavam de lugar; livros que aumentavam sempre, pois o homem não só os trazia em quantidade das bibliotecas, como também os recebia em grandes pacotes pelo correio. O ocupante daquele quarto devia ser um erudito; com isso concertava bem o cheiro de cigarro que impregnava todo o ambiente e as

pontas caídas no chão e cinzeiros espalhados por toda parte. Entretanto, a maior parte dos livros não era de conteúdo científico, mas obras de poetas de todos os tempos e países. Permaneceram demoradamente sobre o divã, em que Haller passava o dia deitado, todos os seis grossos volumes de uma obra intitulada Viagem de Sofia, de Memel à Saxônia, aparecida nos fins do século XVIII. Uma edição das obras completas de Goethe e outra das de Jean-Paul pareciam bastante manuseadas, bem como as de Novalis, Lessing, Jacobi e Lichtenberg. Alguns volumes de Dostoievski achavam-se cheios de papele-tas anotadas. Sobre a grande mesa, entre os muitos livros e revistas, havia freqüentemente um vaso de flores; e sempre andava também por ali uma caixa de aquarelas coberta de pó, ao lado do cinzeiro e — para não deixar sem menção — por toda parte garrafas de bebida. Uma delas, recoberta de palha, estava freqüentemente cheia com vinho tinto italiano, que ele adquiria numa taberna das vizinhanças; às vezes, achava-se ali também uma garrafa de borgonha ou de mála-ga, e vi desaparecer em tempo bastante reduzido quase todo o conteúdo de um grande frasco de kirsh, que depois foi afastado para um canto da sala, onde se cobriu de poeira, sem que o restante chegasse ao fim. Não quero justificar-me da espionagem exercida, e devo confessar que, nos primeiros tempos, todos esses sinais de uma vida cheia certamente de interesses espirituais, porém dissipada e desordenada ao mesmo tempo, me causavam horror e desconfiança. Não sou apenas um burguês que vive mo-rigeradamente acostumado ao seu trabalho e com seu tempo bem dividido, mas ainda um abstêmio e uma pessoa que não fuma, donde aquelas garrafas no quarto de Haller me agradarem ainda menos do que o resto de sua desordem espiritual. Tão irregular quanto ao sono e ao trabalho, era o estranho em relação às suas comidas e bebidas. Havia muitos dias em que não saía absolutamente e não tomava outra coisa senão o café da manhã; com freqüência minha tia encontrava como único resto de suas refeições uma casca de banana; outras

muito bonitas e estavam sempre muito bem cuidadas e irrepreensivelmente limpas, o

que também a mim já havia chamado a atenção.

__Veja o senhor — continuou Haller. — Esse pequeno

vestíbulo, com o pinheirinho, exala um odor tão prodigioso que não consigo passar

por aqui sem me deter um pouco. A casa da senhora sua tia recende ao asseio e à

limpeza mais extremados, porém o vestíbulo do pinheirinho embaixo vive tão

brilhantemente limpo, tão encerado, tão isento de pó que chega a resplandecer

perturbadoramente. Sou levado a respirar a plenos pulmões. O senhor não sente esse

odor? O odor da cera do assoalho, em que há reminiscências de terebintina juntamente

com o cheiro do mogno, as folhas das plantas irrigadas e tudo o mais, recorda um

aroma de superlativo asseio burguês, de cuidado e precisão, de cumprimento das

obrigações e fidelidade às mínimas coisas. Não sei quem mora naquele andar, mas por

trás daquela porta de vidro deve existir um paraíso de limpeza e imaculada civilidade,

de ordem e firme apego a pequenos hábitos e deveres.

Como eu me calasse, prosseguiu:

— Por favor, não creia que eu fale com ironia! Meu caro senhor, nada mais longe de

minha intenção que zombar dessa ordem e desses pequenos hábitos. É bem verdade

que vivo num mundo bem diverso desse, e talvez não esteja em condições de viver

um dia que seja num quarto com tal pinheirinho. Mas, ainda que não passe de um

velho e arredio Lobo da Estepe, também nasci de uma mulher, e minha mãe era uma

senhora burguesa, que cultivava flores, cuidava dos quartos, escadas, móveis e

cortinas, e se esforçava para dar, à sua casa e à sua vida, toda a ordem e asseio

possíveis. A essência da terebintina e o pinheirinho me fazem lembrar tudo isso, daí

por que me sento de vez em quando a contemplar esse pequeno jardim da ordem e me

alegro de que ainda existam coisas assim.

Quis levantar-se, mas como lhe custasse algum trabalho, não objetou quando me

dispus a ajudá-lo um pouco. Perma-

neci silencioso, mas deixando-me levar, como antes acontecera à minha tia, por um certo poder de sedução que o estranho homem às vezes costumava exercer. Lentamente, subimos, a escada juntos, e ao chegarmos à porta de seu quarto, já com a chave na mão, olhou-me de novo nos olhos, muito amavelmente, dizendo: — O senhor está vindo do trabalho? É verdade que disso nada entendo; vivo um tanto à margem, o senhor compreende... Mas creio que também lhe interessem os livros e coisas assim; sua tia me disse que o senhor completou seus estudos e que era um bom estudante de grego. Esta manhã encontrei uma frase em Novalis.. Permite-me que lha mostre? O senhor também há de gostar de vê-la. Fez-me entrar no quarto, que recendia a forte cheiro de fumo, tirou um livro de uma pilha deles, folheou-o, à procura. — Esta aqui também é boa, muito boa — disse. — Veja só esta frase: "O homem devia orgulhar-se da dor; toda dor é uma manifestação de nossa elevada estirpe." Magnífico! Oitenta anos antes de Nietzsche! Mas não é esta a passagem que eu pensava mostrar-lhe... Espere, aqui está. Ouça: "A maioria dos homens não quer nadar antes que o possa fazer.'' Não é engraçado? Naturalmente, não querem nadar. Nasceram para andar na terra e não para a água. E, naturalmente, não querem pensar: foram criados para viver e não para pensar! Isto mesmo! E quem pensa, quem faz do pensamento sua principal atividade, pode chegar muito longe com isso, mas, sem dúvida estará confundindo a terra com a água e um dia morrerá afogado. Eu estava fascinado e cheio de interesse, e fiquei mais um pouco em sua companhia; desde então passamos a falar-nos com frequência sempre que nos encontrávamos na escada ou na rua. Em tais ocasiões, a princípio sempre tinha a impressão de que ele me ironizava. Mas tal não era. Tinha por mim um verdadeiro respeito, da mesma forma como tinha pelo pinheirinho. Estava tão convicto e consciente de seu iso-