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gilles deleuze post-scriptum sobre as sociedades de controle, Notas de aula de Tradução

GILLES DELEUZE. POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Vasco_da_Gama
Vasco_da_Gama 🇧🇷

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GILLES DELEUZE
POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE
Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.
Tradução de Peter Pál Pelbart
I. HISTÓRICO
Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos VIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX.
Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço
fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"),
depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a
prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de
Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, "pensei estar vendo condenados...". Foucault analisou muito bem o
projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço;
ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças
elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de
soberania cujo objetivo ef unções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a
produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão
parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também
conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da
Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola,
família. A família é um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros
competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria,
o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou
menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se
anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome
que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul
Virillo também analisa sem parar as formas ultra rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas
disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas
extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo
processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se
enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a
setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também
passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou
esperar, mas buscar novas armas.
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GILLES DELEUZE

POST-SCRIPTUM SOBRE AS SOCIEDADES DE CONTROLE

Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226. Tradução de Peter Pál Pelbart I. HISTÓRICO Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos VIII e XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas leis: primeiro a família, depois a escola ("você não está mais na sua família"), depois a caserna ("você não está mais na escola"), depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode exclamar, ao ver operários, "pensei estar vendo condenados...". Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar; distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania cujo objetivo ef unções eram completamente diferentes (açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra mundial: sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de ser. Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros competentes não param de anunciar reformas supostamente necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital, o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. Não cabe invocar produções farmacêuticas extraordinárias, formações nucleares, manipulações genéticas, ainda que elas sejam destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de confinamento, a setorização, os hospitais-dia, o atendimento a domicílio puderam marcar de início novas liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que rivalizam com os mais duros confinamentos. Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

II. LÓGICA

Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlatos, são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica, e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do "salário por mérito" tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa. Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como que de um deformador universal. Kafka, que já se instalava no cruzamento dos dois tipos de sociedade, descreveu em O processo as formas jurídicas mais temíveis: a quitação aparente das sociedades disciplinares (entre dois confinamentos), a moratória ilimitada das sociedades de controle (em variação contínua) são dois modos de vida jurídicos muito diferentes, e se nosso direito, ele mesmo em crise, hesita entre ambos, é porque saímos de um para entrar no outro. As sociedades disciplinares têm dois pólos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula que indica sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote - o rebanho e cada um dos animais - mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em "pastor" laico por outros meios). Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se

humanidade, pobres demais para a dívida, numerosos demais para o confinamento: o controle não só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas. III. PROGRAMA Não há necessidade de ficção científica para se conceber um mecanismo de controle que dê, a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que conta não é a barreira, mas o computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal. O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa. No regime das prisões: a busca de penas "substitutivas", ao menos para a pequena delinqüência, e a utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas. No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da "empresa" em todos os níveis de escolaridade. No regime dos hospitais: a nova medicina "sem médico nem doente", que resgata doentes potenciais e sujeitos a risco, o que de modo algum demonstra um progresso em direção à individuação, como se diz, mas substitui o corpo individual ou numérico pela cifra de uma matéria "dividual" a ser controlada. No regime da empresa: as novas maneiras de tratar o dinheiro, os produtos e os homens, que já não passam pela antiga forma-fábrica. São exemplos frágeis, mas que permitiriam compreender melhor o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. Uma das questões mais importantes diria respeito à inaptidão dos sindicatos: ligados, por toda sua história, à luta contra disciplinas ou nos meios de confinamento, conseguirão adaptar-se ou cederão o lugar a novas formas de resistência contra as sociedades de controle? Será que já se pode apreender esboços dessas formas por vir, capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente para serem "motivados", e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. Os anéis de uma serpente são ainda mais complicados que os buracos de uma toupeira.