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A transformação da psicologia nos estados unidos, especialmente com o movimento funcionalista, que surgiu no final do século xix. O texto destaca a influência de psicólogos como william james e john dewey, e as escolas de chicago e columbia, explorando as diferenças entre a psicologia funcionalista e a psicologia estruturalista. O documento também aborda a influência do darwinismo e a crítica à introspecção como método de pesquisa.
Tipologia: Trabalhos
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A psicologia no século XIX, especialmente como se produzia na Alemanha no final daquele século (centro mundial da produção acadêmica e institucional deste saber nesse período), é completamente estranha ao nosso quadro atual. Trata-se de uma psicologia que: a) Devota-se à pesquisa pura, em contraste com o quadro recente que enfatiza o aspecto prático de intervenção nos mais diversos campos. b) Toma como objeto de estudo a nossa experiência comum consciente, objeto suficientemente problematizado por correntes relevantes como a psicanálise e o behaviorismo. c) Devota-se a este objeto através da suspeita de ilusão de nossa experiência comum, problema herdado da física e da filosofia do século XVII, sem buscar, naquele momento, qualquer forma de ajustamento dos indivíduos. d) Utiliza nesse exame da nossa experiência uma forma particular de introspecção controlada em que os sujeitos teriam que ser mentalmente sãos e treinados para fazer a descrição mais precisa dos elementos básicos dessa experiência comum, as sensações. e) Por conta das exigências do método, não estuda os sujeitos comuns (muito menos crianças, animais e loucos); estuda outros psicólogos devidamente treinados na profissão de fé da fisiologia para chegarem aos meandros da nossa experiência mais pura. Mais ingênua.
O objetivo deste capítulo é expor a transformação desse quadro da psicologia, tal como operada especialmente nos Estados Unidos graças ao movimento funcionalista, composto por psicólogos como Granville Stanley Hall (1844-1924), James McKeen Cattell (1860-1944), James Mark Baldwin (1831-1934) e William James (1842-1910), além de escolas como a de Chicago, composta por John Dewey (1859-1952), James Angell (1869-1949) e Harvey Carr (1873-1954), e a de Colúmbia, integrada por Edward Lee Thorndike (1874-1949) e Robert Sears Woodworth (1869-1962). Para compreender tal transformação, é necessário de início estabelecer uma distinção básica entre essa orientação funcionalista norte-americana surgida na virada do século XIX para o século XX e um projeto da psicologia enquanto ciência e técnica da adaptação que, de um modo mais amplo, se faz presente de modo maciço na atualidade. De fato, esse projeto delimita-se a partir tanto desse movimento funcionalista como das psicologias diferencial e comparada, surgidas na Inglaterra (cf. capítulo 6). Nesses movimentos, graças ao empuxo darwinista, demarca-se uma psicologia interessada na adaptação, evolução e variação das atividades mentais. Contudo, ao longo da história da psicologia, esse modelo se dissemina, transcende os seus movimentos originais e se dissolve no campo psicológico, dando a uma expressiva parte desse campo sua feição atual enquanto saber voltado para as práticas de ajustamento. Que forças históricas conduziram de forma mais específica a esse projeto? Como o movimento funcionalista norte-americano lhe conferiu uma feição mais organizada e sistemática, apesar de sua tão comentada falta de sistematicidade? Estas são as questões que serão tratadas na seqüência deste capítulo. Comecemos pela primeira questão, a saber, que condições presentes em solo norte-americano teriam constituído, de forma específica, essa forma de fazer psicologia. Dentre várias situações que concorreram para a irrupção desse projeto, destacamos duas: a) as necessidades políticas e administrativas decorrentes de um processo de modernização avançado próprio àquele país; e b) as características do sistema universitário norte-americano no final do século XIX. No que tange à modernização, pode-se dizer que, especialmente em meados do século XIX, assiste-se nos Estados Unidos, de modo semelhante a alguns países europeus, a um galopante processo de urbanização que se expande da costa leste em direção à oeste, por meio do avanço industrial e de uma série de transformações institucionais, como a expansão do sistema escolar. Esse processo demandou uma série de novos ajustes, exames e controles sobre os indivíduos, que Foucault (1977) denominaria poder disciplinar (cf.
Um segundo grupo, composto por psicólogos genuinamente norte- americanos, como Granville Stanley Hall, James McKeen Cattell e James Mark Baldwin, freqüentou a Roma da psicologia do século XIX (Leipzig, na Alemanha) visando à obtenção da bênção institucional de seu papa (Wilhelm Wundt). Mas essa rígida formação não aplacou interesses diversos do modo germânico de produzir psicologia. Baldwin (em Princeton), por exemplo, tendo passado apenas um breve período em Leipzig (1885), foi um dos autores que, de modo mais evidente, adotou o pensamento darwinista, voltando-o para temas como o desenvolvimento infantil. Cattell, mesmo tendo sido o primeiro assistente de Wundt em 1883, ao retornar para Columbia dedicou- se ao trabalho de aperfeiçoamento de medidas mentais para a classificação dos indivíduos, crucial para a constituição dos testes mentais (cf. capítulo 16). Stanley Hall, apesar de ser, sob orientação de William James, o primeiro doutor em psicologia nos Estados Unidos em 1878, e o primeiro aluno americano de Wundt (em 1879), ao retornar para a Universidade de Clark promove a implantação de uma série de novas áreas e de um conjunto de novas instituições. É desta forma que se dedica a áreas como a psicologia da infância, adolescência e velhice, a psicologia da educação, o sexo e a religião. Funda revistas (como a American Journal of Psychology ) e associações (como a American Psychological Association – a mais importante dos Estados Unidos), além de ser responsável pelo convite, em 1909, para a vinda de Sandor Ferenczi, Gustav Jung e Sigmund Freud para expor em linhas gerais a psicanálise (cf. capítulo 23), ou, nas palavras do último, “trazer a peste para a América”. Um terceiro grupo de psicólogos, composto por William James (em Harvard) e por John Dewey (nas universidades de Michigan, Minesota e Chicago), dispensa claramente as bênçãos da matriz germânica e implanta essa disciplina em território norte-americano a seu próprio modo. As primeiras tentativas de sistematização da psicologia sob a nova orientação couberam a estes autores: Dewey, com seu livro Psychology (1886), e James, com seu The Principles of Psychology (1890), mesmo que esses textos tivessem um aspecto pouco sistemático para os padrões germânicos (Wundt considerava Os princípios de psicologia de James como pura literatura). O livro-texto de James, ainda que posterior ao trabalho de Dewey (os primeiros artigos de James datam de 1878), foi fundamental para a constituição de um primeiro esboço do movimento funcionalista. Examinemos no próximo item como se esboçam a psicologia e, em especial, a filosofia de James.
Para fins didáticos, é possível dividir a obra de WILLIAM JAMES em dois momentos: um psicológico (que vai da década de 1870 à de 1890) e outro filosófico (da década de 1890 até o final de sua vida). O primeiro período tem como marco inicial a criação de um pequeno laboratório de psicologia, em 1875, na Universidade de Harvard (ao qual James, na verdade, nunca devotou grande interesse), ou, ainda no mesmo ano, o seu primeiro curso de psicologia, sobre As relações entre a fisiologia e a psicologia. Nesse período, o ponto culminante de sua produção teórica é, sem dúvida, a publicação em 1890, após 12 anos de elaboração minuciosa, de OS PRINCÍPIOS DE PSICOLOGIA. Nesse tratado de mais de mil páginas encontram-se as principais idéias de James sobre tópicos tais como “hábito”, “atenção”, “fluxo do pensamento” e “ self ”. Vejamos um pouco de alguns destes temas, a começar pelo último. Em primeiro lugar, James interroga os limites daquilo que é chamado de “ self ”, “eu” ou “ego” (os três termos são usados de forma intercambiável, sem distinção conceitual nítida), em oposição ao mundo circundante. Em sua concepção, o self não é algo como uma esfera polida, com um espaço interior no qual cabem coisas, e mergulhada em um mundo que a delimita externamente. O eu, afirmou James, é apenas “o nome de uma posição”; uma espécie de perspectiva individual privilegiada a partir da qual o mundo é medido em suas distâncias. Em segundo lugar, James concebe tais distâncias
hábitos como na modificação de hábitos antigos; segundo, a apresentação do hábito como uma versão possível das ações adaptativas de um organismo em referência a um meio; ou seja, a ênfase sobre os aspectos funcionais do hábito; terceiro, a possibilidade de alteração dos hábitos pela ação voluntária e os efeitos ético-morais a ela correspondentes. Os dois primeiros tópicos são especialmente relevantes para o tema em questão. No primeiro tópico, está presente um elemento central que é o do contraponto regular da preocupação de James em conceber o hábito em solo fisicalista, com seu interesse em determinadas implicações de cunho ético. Fundamentalmente, ele lança metáforas naturalistas de efeitos teóricos e morais poderosos. Ou seja, James enuncia, com base em um vocabulário biológico, definições sintéticas de seus conceitos principais, mas de sintaxe suficientemente ampla para que ele próprio, mais adiante, estenda largamente suas possibilidades de significação. Sua metáfora central nesse conjunto de textos é a de que “um hábito adquirido, do ponto de vista fisiológico, é nada mais que uma nova via de descarga formada no cérebro pela qual, desde então, certas correntes aferentes tendem a seguir” (James, 1892: 137). No segundo tópico, James revela a posição darwiniana ao destacar a utilidade adaptativa do hábito. Ao dissertar sobre os “efeitos práticos do hábito”, ele é claro: “Primeiro, o hábito simplifica nossos movimentos, os faz acurados e diminui a fadiga. […] Segundo, o hábito diminui a atenção consciente com a qual realizamos nossos atos” (James, 1892: 140-141). E, na continuidade, James enuncia sua segunda metáfora naturalista: “Hábitos dependem de sensações não atendidas” (James, 1892: 143). O fundamental aqui é notar o quanto é importante para um organismo a aquisição e manutenção da habilidade, ou capacidade, de fazer a atenção consciente repousar. Em outras palavras, não atender a uma sensação equivale a ascender a um tipo particular de repouso. Deixando a cargo do hábito toda uma série de atividades mais ou menos cotidianas ou banais, embora fundamentais à conservação da vida diária, o organismo reserva à vida mental plenamente consciente outras tarefas e esforços. Retomando o que se convencionou chamar aqui de primeira metáfora naturalista, é possível colocar em suspenso a nomeclatura neurofisiológica e sustentar a afirmação mais simples de que um hábito é uma via. Ao se destituir a metáfora de termos como “correntes elétricas” e “descargas cerebrais”, abre-se campo para uma imagem de self menos comprometida com o vocabulário da neurofisiologia. Não é que James tenha deixado de lado a fisiologia, mas, ao reduzir o seu interesse pela psicologia experimental, passa a falar do corpo,
utilizando-se mais dos termos da linguagem do dia-a-dia do que do vocabulário médico. Então, essa imagem de self , potencialmente delineada no segmento mais maduro da obra de James, tem como centro de referência conceitual um corpo humano e suas ações, mas não restringe seu alcance semântico à gramática do fisicalismo. Em suma, os conceitos de self , fluxo do pensamento e hábito fornecem indicações teóricas suficientes para a sustentação da importância de James para o funcionalismo: na obra desse autor, o foco está sempre colocado sobre a função e não sobre supostas “propriedades” de um organismo dotado de psiquismo. Dito de outra forma, na perspectiva jamesiana, o que um organismo é, ou deixa de ser, decorre das funções que exerce e das interações com um dado ambiente. No entanto, como Dewey (1940) ressalta, a psicologia dos Princípios de James ainda não é plenamente funcional. Suas intenções funcionalistas se expressam na adoção parcial da máxima oriunda de Herbert Spencer segundo a qual os fenômenos biológicos e psicológicos se irmanam nos processos adaptativos entre as relações internas e externas ao organismo. Ou ainda no balanceamento desta máxima com a proposta darwinista de seleção ao acaso das variações do organismo. Essa psicologia seria prenhe de boas intenções, mas seria travada por obstáculos, como um certo dualismo entre um sujeito conhecedor e os objetos a serem conhecidos, postulados como entidades naturais e dadas previamente à tarefa do conhecimento. Mesmo que este dualismo seja advogado como atitude do psicólogo, seria um entrave a um funcionalismo que toma essas entidades como construídas nas ações do organismo (Dewey, 1940: 343 e 354). Contudo, é na filosofia de James (à qual se dedica a partir da década de 1880) e, mais especificamente, no seu pragmatismo que a orientação funcionalista ganha força. Para termos de modo mais claro essa mudança em seu trabalho, devemos recorrer a algumas definições prévias de sua filosofia. Passemos a palavra ao próprio autor. Sobre o pragmatismo, este seria “primeiramente um método, e em segundo lugar, uma teoria genética do que se entende por verdade” (James, 1907: 25). Em seu primeiro sentido, significa: “A atitude de olhar além das primeiras coisas, dos princípios, das “categorias”, das supostas necessidades; e de procurar pelas últimas coisas, frutos, conseqüências, fatos” (James, 1907: 21). Atuaria de forma a […] extrair de cada palavra o seu valor de compra prático, pô-la a trabalhar dentro da corrente de nossa experiência. Desdobra-se então menos como uma solução do que como um programa para mais trabalho,
psicólogo eu hesitaria em atrair para mim a torrente de críticas metafísicas, provocadas pelos autores pragmatistas […] De qualquer forma, sustento apenas que os dois movimentos decorrem de motivação lógica semelhante e, para sua vitalidade e propagação, dependem de forças muito semelhantes (Angell, 1906: 622). Contudo, mais concretamente, que implicações o pragmatismo tem para a constituição dos funcionalismos? A tese aqui defendida é que, dentro desses novos referenciais, a consciência e a experiência não são mais abordáveis no afã analítico de decompô-las em seus elementos mínimos, a fim de distinguir a verdade das ilusões (como almejava a psicologia alemã). Como não há verdade prévia, mas apenas efeitos de verdade, deve-se tomar a experiência consciente a partir de seus processos e efeitos. É desta maneira que ela passa a ser considerada a partir da sua função em um duplo sentido: enquanto um processo dinâmico (um ato) e como processo orgânico dotado de finalidade adaptativa. Aqui, a experiência consciente se coloca conforme uma nova questão: para que serve? Como opera? Qual é a sua função biológica? Ainda que o objeto da psicologia se assemelhe bastante ao da psicologia alemã, a experiência passa a ser vista a partir de uma nova questão (a adaptação), através de métodos diversificados que fogem da monotonia da introspecção controlada (os métodos comparativos com os animais, as psicometrias, a observação natural) e regulada por um novo modelo de cunho estritamente darwinista. Essa guinada é crucial na história da psicologia porque encarna o sujeito da experiência, avalizado pela psicologia clássica como sujeito dos erros ou das ilusões do conhecimento em um corpo vivo. Se a psicologia clássica, mesmo apoiada na fisiologia sensorial, estudou a nossa experiência imediata a partir do referencial de verdade da experiência mediata da física, tomando esse sujeito desencarnado do conhecimento como modelo, o funcionalismo denunciou essa ilusão, passando a conceber a verdade e a ilusão como processos da vida, adaptação e desadaptação. Em outras palavras, a fisiologia cede à biologia a função de ciência-guia da psicologia. Com isso, a relação da consciência com o mundo passa a ser de adaptação e não mais de adequação (como estabelecido pela psicologia alemã). Vejamos de modo mais detalhado a encarnação desse projeto da psicologia no próximo item.
Neste momento, podemos nos deparar mais claramente com a questão proposta no início do artigo, a saber: como o movimento funcionalista norte-americano deu uma feição mais organizada e sistemática ao projeto da psicologia enquanto ciência e técnica de adaptação. Apesar de não possuir o caráter engessado de um sistema como o voluntarismo de Wundt ou o estruturalismo de Titchener (cf. capítulo 5), os princípios funcionais se convertem em escolas no final do século XIX, e justamente em duas das mais novas universidades americanas: Chicago e Columbia. A primeira, como visto, com Dewey (que se manteve ligado à psicologia apenas até a passagem para o século XX), Angell e Carr; e a segunda com Thorndike e Woodworth. Nessas escolas marca-se o que poderíamos designar como orientação funcionalista propriamente dita. O que seria essa abordagem? Deve-se lembrar, antes de tudo, que nesse período inicial da psicologia institucionalizada nenhum psicólogo se distinguia nitidamente dos demais por sua escola, isolando-se do convívio com os demais, ou utilizando algo como uma etiqueta ou crachá, revelando a sua orientação. O que caracterizava uma escola era então o convívio institucional de um grupo de psicólogos que operavam mais ou menos dentro de uma mesma linha, como no caso dessas escolas funcionalistas. De mais a mais, deve-se lembrar que o batismo dessa escola deve-se ao grande opositor dessa abordagem e paladino da psicologia germânica nos Estados Unidos, Titchener, na tentativa de distinção entre as abordagens estrutural e funcional. Apesar de estas não serem vistas como antagônicas, demarcam uma tomada da consciência mais voltada para a decomposição em seus elementos (abordagem estrutural, mais semelhante à anatomia), ou mais direcionada para seus processos e efeitos adaptativos (abordagem funcional, mais próxima à fisiologia), ou ainda voltada para a história da evolução dos seus componentes (abordagem genética, análoga à embriologia). Contudo, essa distinção se aprofunda, dividindo o campo da psicologia americana. Como foi se especificando a nascente psicologia funcional? Na seqüência, demarcaremos algumas características dessa psicologia, tal como se apresenta nas suas duas principais escolas. A Escola de Chicago servirá de linha mestra, ainda que a de Columbia se imponha em certos temas. A primeira característica dessa psicologia é a sua assistematicidade. Certamente isso facilitou a sua difusão e a delimitação de modo mais amplo da psicologia como ciência e técnica de adaptação. Esse caráter assistemático é reconhecido por seus próprios membros, como Angell (1906: 617-618):
o funcionalismo constitui uma psicologia explicativa, e não apenas descritiva dos elementos mentais. Ou seja, o funcionalismo não se ocupa com a listagem dos átomos mentais, como fazia a psicologia clássica alemã. Isto se deve a uma opção não só de estudo, como também doutrinária, presente por exemplo na teoria da corrente da consciência de James. É desta forma que um pensamento não se torna semelhante a outro por seu conteúdo, mas por envolver um mesmo processo. Além do mais, se a função última da consciência é a adaptação, são as funções e não os elementos mentais que devem ser alvo de investigação. A crítica a uma psicologia dos elementos, a par da realizada por James (1890), especialmente em seu capítulo A teoria dos materiais do Espírito , foi seguida por Angell (1903) e Dewey (1896). Enquanto o primeiro recusa a possibilidade de uma psicologia elementar calcada em átomos mentais, o segundo, no texto inaugural da Escola de Chicago, recusa a compartimentalização do reflexo em unidades estanques. Uma vez que o reflexo diz respeito a uma unidade funcional intrinsecamente coordenada e voltada para a adaptação, qualquer divisão seria um mero artifício, e jamais poderia ser tomada em termos substanciais. Para Dewey (1896: 398), […] a concepção comum da teoria do arco reflexo, em vez de um caso de simples ciência, é uma sobrevivência do dualismo metafísico, inicialmente formulado por Platão, e de acordo com o qual a sensação é uma moradora ambígua na terra fronteiriça entre a alma e o corpo, a idéia (ou processo central) é puramente psíquica, e o ato (ou movimento) é puramente físico. Assim, a teoria do arco reflexo não é nem física (ou fisiológica) nem psicológica; é uma suposição mista de materialismo e espiritualismo […] O fato é que o estímulo e resposta não são distorções de existência, mas distinções teleológicas, isto é, distinções de função, ou papel desempenhado, com referência a buscar ou manter um fim. A crítica de Angell (1903) é mais contundente. Coloca em xeque toda a possibilidade de uma psicologia estruturada em elementos mentais do mesmo modo que a anatomia e a morfologia se calcam em estruturas espaciais. Em primeiro lugar, a metáfora falha em seu aspecto essencial, uma vez que os átomos mentais ou sensações não possuem o caráter espacial. Na verdade, a analogia só se manteria a respeito de uma “complexidade” de ambos os conjuntos. Em segundo lugar, o aspecto temporal também diferencia os elementos psíquicos dos anatômicos, uma vez que os primeiros teriam duração instantânea. Para inviabilizar de vez a analogia, é posta em questão a possível identidade entre as sensações elementares. Contudo, Angell vai mais além e questiona a própria existência desses elementos psíquicos. Em primeiro lugar, remonta à “falácia do psicólogo”,
destacada por James (1890), para quem não se pode confundir a “experiência do psicólogo” em termos de introspecção com a experiência efetiva da nossa vida cotidiana. A primeira diria respeito a um artefato elaborado com fins de compreender a segunda. Não seria, pois, real. Mesmo enquanto recurso metodológico, a atomização não seria procedente, dada a sua artificialidade. Neste aspecto, a tese da “corrente da consciência” de James seria mais fértil. É deste modo que o aspecto estrutural do psiquismo, para Angell, deve ser buscado não nos seus supostos elementos, mas nas funções, atos ou processos mentais. É assim que a psicologia deve reconhecer, em sua análise estrutural, não elementos como sensações ou sentimentos, mas atos como julgar, perceber, recordar. É neste sentido que, para Angell, a psicologia se torna mais funcional do que a biologia, pois não apenas o funcional precede e produz o estrutural, como também ambos representam duas fases de um mesmo fato. Voltando então aos significados do termo função, cabem algumas considerações sobre seu segundo sentido. Se há um conceito capital no funcionalismo, este é o de adaptação. Função aqui é vista como utilidade promovida em uma situação adaptativa. Se a noção de adaptação se associa às de ajustamento e de equilíbrio, a de função representa a utilidade, a finalidade biológica cumprida por este equilíbrio. Ela põe o funcionalismo em contato direto com o evolucionismo biológico, diferenciando-o da psicologia clássica alemã. Enquanto esta buscava avaliar o ajustamento da nossa experiência aos objetos experimentados, o funcionalismo intenta estudar a adaptação do organismo a seu meio ambiente através da sua experiência. Neste caso, são estudados outros indivíduos além dos adultos ocidentais sadios e treinados experimentalmente, como fazia a psicologia clássica. É isto que permite e justifica uma psicologia animal, uma psicologia do anormal e uma psicologia do desenvolvimento. O conceito de função como adaptação é, por conseguinte, um conceito claramente importado da biologia. Entretanto, ocorre uma inflação deste, levando-o a perder seu sentido original. De fato, a consciência como instância adaptadora é vista não somente como adaptada (produto da evolução filogenética), mas inclusive como adaptante (fator de evolução individual e solucionadora dos impasses na vida dos indivíduos). Adapta o organismo ao meio, ao selecionar, em função de um fim por ela fixado, uma dentre várias possibilidades de ação oferecidas pelo sistema nervoso. Como sugere James (1890), isto ocorre porque o cérebro humano é um órgão complexo e, portanto, sujeito ao acaso, carecendo da consciência em situações problemáticas. Para que o corpo se adapte ao meio, é preciso, pois, que a consciência tenha para si
seria apenas uma forma social justa, mas antes de tudo uma forma natural, ao mesmo tempo arcaica e moderna. A Escola de Columbia, por sua vez, toma a adaptação em sentido mais comportamental e ancorada em aspectos motivacionais. Thorndike, em seus experimentos sobre a inteligência animal, não supõe mais a solução dos problemas como governada por uma consciência selecionadora de respostas, mas um conjunto casual de respostas que são selecionadas por seus efeitos de satisfação. Esta é a sua clássica Lei do Efeito. Ao substituir a consciência pelo acaso, não apenas adequa o seu modelo ao darwinista, como abre caminho para o behaviorismo (cf. capítulo 11). Aqui o ajuste do organismo ao meio se realiza através de um conjunto de mecanismos casuais, mecânicos e passíveis de controle, concedendo portanto plenos poderes aos psicólogos, enquanto engenheiros da conduta. Contudo, essa retirada da consciência do seu palco central na psicologia não implica a adoção de um modelo estímulo-resposta (E-R) por parte da Escola de Columbia. Woodworth, pleiteando a importância do organismo (O) e dos seus estados motivacionais, propõe para a psicologia um modelo E-O-R. Na consideração dos estados internos, o funcionalismo de Columbia troca a consciência pelos impulsos do organismo. Mesmo com essas considerações da Escola de Columbia, a abordagem funcionalista de adaptação é marcada ainda por um ligeiro desvio em relação a sua matriz darwinista. Entretanto, outras características no seu uso corrente pela psicologia funcional alargam mais ainda esse desvio. A adaptação, confor- me já insinuado, não se refere apenas a um processo filogenético (na evolução das espécies), mas, antes de tudo, ontogenético (ligado à adaptação individual). Trata-se, pois, mais da adaptação do indivíduo do que da espécie. De mais a mais, o conceito de adaptação deixa de expressar uma relação de sobrevivência (referente à taxa de reprodução da espécie) em um meio, e passa a significar uma “melhor vivência neste”, tornando-se, pois, um conceito qualitativo. Essa melhor vivência, esse equilíbrio, não se refere apenas a um meio físico, mas antes de tudo a um meio social. Estar adaptado é antes de tudo estar ajustado às demandas do meio social, sejam elas quais forem. A necessidade de estar conforme ao meio social justifica-se pela extrapolação de um conceito biológico a um significado social. É confiando no valor deste conceito que os psicólogos em sua prática zelarão pelo “equilíbrio social”. Portanto, a idéia original de função, como utilidade promovida para sobrevivência do organismo, é transportada para um contexto psicossocial. Isto ocorre quando ela é acoplada à idéia de utilidade, e por fim substituída, favorecendo um uso “asséptico” desta noção. Contudo, como lembra
Canguilhem (1956: 119), o homem aqui não é mais o julgador, mas o meio de promoção de uma utilidade, no caso, a social. Assim, a psicologia funcional conduz a uma concepção instrumental do ser humano. Conforme visto no capítulo 1, a vida se torna o grande vetor na determinação e disciplinarização dos indivíduos. Segundo Canguilhem (1956: 120), o homem não seria mais uma inteligência servida por órgãos, mas uma mera consciência a serviço destes. Desta maneira, o homem é apenas um dentre os seres vivos e a consciência somente um órgão, ainda que especial, no seu ajuste ao meio natural-social. Mas a psicologia funcional não se interessa apenas pelo estudo da adaptação. Ela deseja igualmente se transformar num instrumento de adaptação, promovendo-a. E isto ocorre mais uma vez graças à postura pragmatista, na qual o valor de um conhecimento está calcado em suas conseqüências práticas. É desta forma que não apenas o conhecimento comum deve se mostrar vital, mas principalmente o do psicólogo. Só que a utilidade buscada não diz respeito ao indivíduo, mas à sociedade como um todo. Portanto, o meio social não é apenas regulador, mas também finalidade da adaptação. A adaptação psicológica visa, então, ajustar a sociedade a si própria, através do manejo dos indivíduos, especialmente os desadaptados. A utilidade-função, assim, não se manifesta de forma individual e solta. Ela é antes de tudo regulada pelas normas sociais. O psicólogo entra nesse contexto como um engenheiro social da utilidade, buscando promover, à moda UTILITARISTA, o maior bem possível. Transforma-se assim a utilidade individual em patrimônio social. Essa abordagem ao mesmo tempo utilitarista e biológica conduz também a uma abordagem dos indivíduos através de sua variação em um grupo, como expresso nos testes mentais (cf. capítulo 16). É deste modo que o funcionalismo não trabalha só com leis gerais, mas com a diferença, ainda que referida ao grupo. É essa diferença que favorece que, no meio social, de forma análoga ao natural, alguns indivíduos mais adaptativos sejam selecionados pelos testes mentais. Deste modo, o psicólogo e seus testes recriam nas instituições a lei do mais apto, supondo um prolongamento das funções da vida na sociedade. Mas o psicólogo, em sua prática, não só reproduz a natureza em sua função de seleção, mas principalmente na de adaptação e ajustamento. Não apenas ajustando os indivíduos aos novos meios sociotécnicos modernos, como as linhas de montagem fabris, mas também favorecendo uma adaptação ativa, como visto no exemplo da Escola Nova. Quando o behaviorismo (cf. capítulo O UTILITARISMO sustenta o primado do valor de utilidade sobre todos os demais, ou mesmo como este sendo o único valor ao qual os demais se reduzem. São representantes dessa filosofia Jeremy Bentham (1748- 1832), James Mill (1773-836)) e John Stuart Mill (1806-1873).
funcional e o projeto da psicologia como ciência e técnica de adaptação triunfaram. Alçando a psicologia à função de zeladora do bom uso e do ajustamento de nossas capacidades. Nada mais moderno...
Comparativamente com alguns países, como a Argentina, temos poucas traduções dos textos funcionalistas. Na coleção Os Pensadores , há volumes específicos sobre John Dewey e William James, onde constam alguns de seus textos psicológicos. John Dewey, em função dos interesses do movimento brasileiro da Escola Nova, teve vários textos pedagógicos traduzidos. Destes, destaca-se o seu último texto puramente psicológico, Como pensamos (1910). Alguns extratos de textos funcionalistas podem ainda ser encontrados em textos de história da psicologia como os de Boring e Herrnstein (1965) e os de Schultz e Schultz (1992). Dewey, J. (1959 [1910]) Como pensamos? São Paulo: Companhia Editora Nacional. Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (1971) Textos básicos da história da Psicologia. São Paulo: Herder/ EDUSP. Schultz, D. e Schultz, S. E. (1992) História da Psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. Neste tópico, vale a correlação do funcionalismo com, de um lado, a obra literária de Henry James (1843-1916) – irmão de William James e romancista – e, de outro, a pintura do também norte-americano Edward Hopper (1882-1967). No primeiro caso, temos uma literatura que não cansa de se aproximar e de se distanciar; de refletir e de divergir da psicologia e do pragmatismo jamesianos. Especialmente nos contornos mais fantásticos do romancista, que tangem às reflexões do filósofo sobre a relação entre a alma e o corpo (essa relação com a literatura de Henry James não exclui aproximações com vertentes mais naturalistas, como a de Henry Miller). No segundo caso, temos o realismo incômodo de Hopper que, sem apelo à abstração, mostra, como poucos, toda a estranheza da condição humana no mundo.
Angell, J. R. (1903) The relations of structural and functional psychology to philosophy. The Philosophical Review , 8 (3). ________ (1971 [1906]) O Funcionalismo. In: Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (orgs.) Textos básicos da história da Psicologia. São Paulo: Herder/EDUSP. Carr, H. (1965 [1930]) Funcionalismo. In: Psicologia del “acto”. Buenos Aires: Paidós. Dewey, J. (1971 [1896]) O conceito de arco reflexo. In: Boring, E. G. e Herrnstein, R. J. (orgs.) Textos básicos da história da Psicologia. São Paulo: Herder/EDUSP. _______ (1961 [1940]) Como se esfuma el sujeto en la psicologia de James. In: El hombre y sus problemas. Buenos Aires: Paidós. Canguilhem, G. (1973) O que é psicologia? In: Tempo Brasileiro, n. 30-31. Foucault, M. (1977) História da sexualidade I. A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal. Heidbreder, E. (1964 [1933]) Psicologias do século XX. Buenos Aires: Paidós. James, W. (1950 [1890]) The Principles of Psychology. 2 vols. Nova York: Dover. ________ (1992 [1892]) Psychology: briefer course. Nova York: The Library of America. ________ (1979 [1905]) Ensaios em Empirismo Radical. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. ________ (1979 [1907]) Pragmatismo. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. Marx, M. e Hillix, W. (1963) Teorias e sistemas psicológicos. São Paulo: Cultrix. Schultz, D. e Schultz, S. E. (2000 [1992]) História da Psicologia moderna. São Paulo: Cultrix. Titchener, E. (1898) Structural and functional psychology to philosophy. In: The Philosophical Review, 8 (7).