




























































































Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Prepare-se para as provas
Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity
Prepare-se para as provas com trabalhos de outros alunos como você, aqui na Docsity
Os melhores documentos à venda: Trabalhos de alunos formados
Prepare-se com as videoaulas e exercícios resolvidos criados a partir da grade da sua Universidade
Responda perguntas de provas passadas e avalie sua preparação.
Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium
Comunidade
Peça ajuda à comunidade e tire suas dúvidas relacionadas ao estudo
Descubra as melhores universidades em seu país de acordo com os usuários da Docsity
Guias grátis
Baixe gratuitamente nossos guias de estudo, métodos para diminuir a ansiedade, dicas de TCC preparadas pelos professores da Docsity
Este texto explora a relação entre poder e saber, analisando a perspectiva de nietzsche sobre a ideia de que o conhecimento é subjugado pelo poder político. Além disso, discute a evolução da sociedade disciplinar no final do século xviii e início do xix, onde novos controles sociais foram necessários devido à distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola. O texto também questiona se a psicanálise pode ser considerada uma ciência que questiona o poder.
Tipologia: Resumos
1 / 171
Esta página não é visível na pré-visualização
Não perca as partes importantes!
Departamento de Letras JURIDICAS
MICHEL FOUCAULT Registro n 02.
A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS 2a^ edição 2a^ reimpressão Rio de Janeiro 2001
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE Católica - DEPARTAMENTO DE LETRAS Copyrigtht 1973 by Departamento de Letras PUC-Rio A editora utilizou a tradução e supervisão final do texto coordenada pelo Departamento de Letras da PUC-Rio para publicação nos Cadernos daPUC- Rio, n°16, 1974.
Tradução Sumário
Roberto Cabral de Meio Machado e Eduardo Jardim Morais Supervisão final de texto [texto perdido]
(tradução Roberto Cabral de Meio Machado e Eduardo Jardim Morais,
supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes... Rio de Janeiro: Nau Ed., 1999.
Tradução de: La vérité et les formes juridiques Conferencias de Michel Foucault na PUC-Rio de 21 a 25 de maio de 1973 ISBN 85-85936-26-6 1. Direito — Filosofia. 1. Título.
96-029 1 CDU 34.01 Editora Trarepa Ltda.
Av. Na Senhora de Fátima, 155 — Centro Eng° Paulo de Frontin — RJ — CEP 26650-
Telefax: (21) 542 4272— emaiil: nau@aiternex.com.br Não encontrando este livro na livraria pedir via fax ou
e-mail.
**
O que gostaria de dizer-lhes nestas conferencias são coisas possivelmente inexatas, falsas, errôneas, que apresentarei a título de hipótese de trabalho; hipótese de trabalho para um trabalho futuro. Pediria, para tanto, sua indulgencia e, mais do que isto, sua maldade. Isto é, gostaria muito que, ao fim de cada conferencia, me fizessem perguntas, críticas e objeções para que, na medida do possível e na medida em que meu espírito não é ainda rígido demais, possa pouco a pouco adaptar-me a elas; e que possamos assim, ao final dessas cinco conferências, ter feito, em conjunto, um trabalho ou eventualmente algum progresso.
Apresentarei hoje uma reflexão metodológica para introduzir esse problema, que sob o título de A Verdade e as Formas Jurídicas, pode-lhes parecer um tanto enigmático.
Tentarei apresentar-lhes o que no fundo é o ponto de conver gência de três ou quatro séries de pesquisas existentes, já exploradas, já inventariadas, para confrontá-las e reuni-las em uma espécie de pesquisa, não digo original, mas pelo menos, renovadora.
Em primeiro lugar, uma pesquisa propriamente histó rica, ou seja: como se puderam formar domínios de saber a partir de práticas sociais? A questão é a seguinte: existe uma
7
tendência que poderíamos chamar, um tanto ironicamente, de marxismo acadêmico, que consiste em procurar deque maneira as condições econômicas de existência podem encontrar na consciência dos homens o seu reflexo e expressão. Parece-me que essa forma de análise, tradicional no marxismo universitá rio da França e da Europa, apresenta um defeito muito grave:
o de supor, no fundo, que o sujeito humano, o sujeito de conhecimento, as próprias formas do conhecimento são de certo modo dados prévia e
O segundo eixo de pesquisa é um eixo metodológico, que poderíamos chamar de análise dos discursos. Ainda aqui existe, parece-me, em uma tradição recente mas já aceita nas universidades européias, uma tendência a tratar o discurso como um conjunto de fatos linguísticos ligados entre si por regras sintáticas de construção.
Há alguns anos foi original e importante dizer e mostrar que o que era feito com a linguagem — poesia, literatura, filosofia, discurso em geral — obedecia a um certo número de leis ou regularidades internas — as leis e regulari dades da linguagem. O caráter linguístico dos fatos de lingua gem foi uma descoberta que teve importância em determinada época.
Teria então chegado o momento de considerar esses fatos de discurso, não mais simplesmente sob seu aspecto linguístico, mas, de certa forma — e aqui me inspiro nas pesquisas realizadas pelos anglo-americanos — como jogos (games), jogos estratégicos, de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta. O discurso é esse conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos e estratégicos em outro. Essa análise do discurso como jogo estratégico e polêmico é, a meu ver, um segundo eixo de pesquisa.
Enfim, o terceiro eixo de pesquisa que lhes proponho, e que vai definir, por seu encontro com os dois primeiros, o ponto de convergência em que me situo, consistiria em uma reelaboração da teoria do sujeito. Essa teoria foi profundamen te modificada e renovada, ao longo dos últimos anos, por um certo número de teorias ou, ainda mais seriamente, por um certo número de práticas, entre as quais, é claro, a psicanálise se situa em primeiro plano. A psicanálise foi certamente a prática e a teoria que reavaliou da maneira mais fundamental 9
a prioridade um tanto sagrada conferida ao sujeito, que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes.
Há dois ou três séculos, a filosofia ocidental postulava, explícita ou implicitamente, o sujeito como fundamento, como núcleo central de todo conhecimento, como aquilo em que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia explodir. Ora, parece-me que a psicanálise pôs em questão, de maneira enfática, essa posição absoluta do sujeito. Mas se a
psicanálise o fez, em compensação, no domínio do que pode ríamos chamar teoria do conhecimento, ou no da epistemolo gia, ou no da história das ciências ou ainda no da história das idéias, parece-me que a teoria do sujeito permaneceu ainda muito filosófica, muito cartesiana e kantiana, pois ao nível de generalidade em que me situo, não faço, por enquanto, diferen ça entre as concepções cartesiana e kantiana.
Atualmente, quando se faz história — história das idéias, do conhecimento ou simplesmente história atemo nos a esse sujeito de conhecimento, a este sujeito da represen tação, como ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e a verdade aparece. Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história. É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir.
Para retomar meu ponto de partida, podemos ver como, em uma certa tradição universitária
ou acadêmica do marxismo, esta concepção filosoficamente tradicional do
sujei to não foi ainda sustada. Ora, a meu ver isso é que deve ser feito:
a constituição histórica de um sujeito de conhecimento através
de um discurso tomado como um conjunto de estratégias que fazem parte das práticas
sociais.
Esse é o fundo teórico dos problemas que gostaria de levantar.
Pareceu-me que entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade, as práticas jurídicas, ou mais precisamente, as práticas judiciárias, estão entre as mais importantes.
origem de um determinado número de formas de verdade. Tentarei mostrar- lhes como certas formas de verdade podem ser definidas a partir da prática penal. Poiso que chamamos de inquérito (enquête)— inquérito tal como é e como foi praticado pelos filósofos de século XV ao século XVIII, e também por cientistas, fossem eles geógrafos, botânicos, zoólogos, economistas — é uma forma bem caracte rística da verdade em nossas sociedades.
Ora, onde encontramos a origem do inquérito? Nós a encontramos em uma prática política
e administrativa de que irei falar-lhes, mas a encontramos também em prática
judiciá ria. E foi no meio da Idade Média que o inquérito apareceu como forma de pesquisa
da verdade no interior da ordem jurídica. Foi para saber exatamente quem
fez o quê, em que condições e em que momento, que o Ocidente elaborou as complexas
técnicas do inquérito que puderam, em seguida, ser utilizadas na ordem científica
e na ordem da reflexão filosófica.
Da mesma forma, no século XIX também se inventaram, a partir de problemas jurídicos, judiciários, penais, formas de análise bem curiosas que chamaria de exame (examen) e não mais de inquérito. Tais formas de análise deram origem à Sociologia, à Psicologia, à Psicopatologia, à Criminologia, à Psicanálise. Tentarei mostrar-lhes como, ao procurarmos a origem destas formas, vemos que elas nasceram em ligação direta com a formação de um certo número de controles políticos e sociais no momento da formação da sociedade capitalista, no final do século XIX.
Temos assim, em linhas gerais, a formulação do que será tratado nas conferências seguintes. Na próxima, falarei sobre o nascimento do inquérito no pensamento grego, em algo que
nem é totalmente um mito, nem inteiramente uma tragédia — a história de Édipo. Falarei da história de Édipo não como ponto de origem, de formulação do desejo ou das formas do desejo do homem, mas, ao contrário, como episódio bastante curioso da história do saber e ponto de emergência do inqué rito. Na conferência subsequente, tratarei da relação que se estabeleceu na Idade Média, do conflito, da oposição entre o regime da prova (e e o sistema do inquérito. Finalmente, nas duas últimas falarei do nascimento do que chamo o exame ou as ciências de exame que estão em relação com a formação e estabilização da sociedade capitalista.
No momento, gostaria de retomar, de forma diferente, as reflexões metodológicas
puramente abstratas de que falava há pouco. Teria sido possível, e talvez mais honesto,
citar apenas um nome, o de Nietzsche, pois o que digo aqui só tem sentido se relacionado à
obra de Nietzsche que me parece ser, entre os modelos de que podemos lançar
mão para as pesquisas que proponho, o melhor, o mais eficaz e o mais atual. Em Nietzsche,
parece-me, encontramos efetivamente um tipo de discurso em que se faz a
análise histórica da própria formação do sujeito, a análise histórica do nascimento de um
certo tipo de saber, sem nunca admitir a preexistência de um sujeito de
conhecimento. O que me proponho agora é seguir na obra de Nietzsche os lineamentos que
nos podem servir de modelo para as análises em questão.
Tomarei, como ponto de partida, um texto de Nietzsche datado de 1873, e só publicado postumamente. Diz o texto:
Schopenhauer come teu o erro de procurar a origem — Ursprung— da religião em um sentimento metafísico, que estaria presente em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial. Nietzsche afirma: eis uma análise da história da religião que é totalmente falsa, pois admitir que a religião tem origem em um sentimento metafísico significa, pura e simplesmente, que a religião já estava dada, ao menos em estado implícito, envolta nesse sentimento metafísico. Ora, diz Nietzsche, a história não é isso, não é dessa maneira que se faz história, não é dessa maneira que as coisas se passaram.
Pois a religião não tem origem, não tem Ursprung, ela foi inventada, houve uma Eifindungda religião. Em um dado momento, algo aconteceu que fez aparecer a religião.
A religião foi fabricada. Ela não existia anteriormente. Entre a grande continuidade da Ursprung descrita por Schopenhauer e a ruptura que caracteriza a E de Nietzsche há uma oposição fundamental.
Falando a respeito da poesia, sempre na Gaia Ciência, Nietzsche afirma haver quem
procure a origem, Ursprung, da poesia, quando na verdade não há Ursprung da poesia,
há somente uma invenção da poesia. Um dia alguém teve a idéia bastante curiosa de utilizar
um certo número de propriedades rítmicas ou musicais da linguagem para
falar, para impor suas palavras, para estabelecer através de suas palavras uma certa relação
de poder sobre os outros. Também a poesia foi inven tada ou fabricada.
Existe ainda a famosa passagem no final do primeiro discurso de A Genealogia da Moral, em que Nietzsche se refere a essa espécie de grande fábrica, de grande usina, em que se produz o ideal. O ideal não tem origem.
Ele também foi inventado, fabricado, produzido por uma série de mecanismos, de pequenos mecanismos.
A invenção — Erfindung— para Nietzsche é, por um lado, uma ruptura, por outro, algo que possui um pequeno começo, baixo, mesquinho, inconfessável. Este é o ponto crucial da Erflndung. Foi por obscuras relações de poder que a poesia foi inventada. Foi igualmente por puras obscuras rela
14
15
ções de poder que a religião foi inventada. Vilania portanto de todos estes começos quando são opostos à solenidade da origem tal como é vista pelos filósofos. O historiador não deve temer as mesquinharias, pois foi de mesquinharia em mesquinharia, de pequena em pequena coisa, que finalmente as grandes coisas se formaram.
À solenidade de origem, é necessário opor, em bom método histórico, a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações, dessas invenções.
O conhecimento foi, portanto, inventado. Dizer que ele foi inventado é dizer que ele não
tem origem. É dizer, de maneira mais precisa, por mais paradoxal que seja,
que o conhecimento não está em absoluto inscrito na natureza huma na. O conhecimento
não constitui o mais antigo instinto do homem, ou, inversamente, não há no comportamento
huma no, no apetite humano, no instinto humano, algo como um germe do conhecimento.
De fato, diz Nietzsche, o conheci mento tem relação com os instintos, mas não
Este éo primeiro sentido que pode ser dado à idéia de que o conhecimento é uma invenção e não tem origem. Mas o outro sentido que pode ser dado a esta afirmação seria o de que o conhecimento, além de não estar ligado à natureza humana, de não derivar da natureza humana, nem mesmo é aparentado, por um direito de origem, com o mundo a conhecer. Não há, no fundo, segundo Nietzsche, nenhuma semelhança, nenhu ma afinidade prévia entre conhecimento e essas coisas que seria necessário conhecer.
Em termos mais rigorosamente kantia nos, seria necessário dizer que as condições de experiência e as condições do objeto de experiência são totalmente heterogêne as.
Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da filosofia ocidental, quando até mesmo Kant foi o primeiro a dizer explicitamente que as condições de experiência e do objeto de experiência eram idênticas. Nietzsche pensa ao contrário, que entre conhecimento e mundo a conhecer há 16 17
tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza huma na. Temos, então, uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natu reza.
O conhecimento não tem relações de afinidade com o mundo a conhecer, diz Nietzsche frequentemente. Citarei apenas um texto da Gaia Ciência (parágrafo 109): “O caráter do mundo é o de um caos eterno; não devido à ausência de necessidade, mas devido à ausência de ordem, de encadeamen to, de formas, de beleza e de sabedoria”. O mundo não procura absolutamente imitar o homem, ele ignora toda lei. Abstenhamo-nos de dizer que existem leis na natureza. É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem for mas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer esse mundo. Não é natural à natureza ser conhecida.
E assim como entre instinto e conhecimento encontra mos não uma continuidade, mas uma relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação etc., da mesma forma, entre o conhecimento e as coisas que o
conhecimento tem a conhecer não pode haver nenhuma relação de continui dade natural. Só pode haver uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento só pode ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas.
Parece-me haver, nessa análise de Nietzsche, uma dupla ruptura muito importante com a tradição da filosofia ocidental e cuja lição devemos conservar. A primeira é a ruptura entre o conhecimento e as coisas. O que, efetivamente, na filosofia r
ocidental assegurava que as coisas a conhecer e o próprio conhecimento estavam em relação de continuidade? O que assegurava ao conhecimento o poder de conhecer bem as coisas do mundo e de não ser indefinidamente erro, ilusão, arbitrari edade? O que garantia isto na filosofia ocidental, senão Deus? Deus, certamente, desde Descartes, para não ir mais além e ainda mesmo em Kant, é esse princípio que assegura haver uma harmonia entre o conhecimento e as coisas a conhecer. Para demonstrar que o conhecimento era um conhecimento funda do, em verdade, nas coisas do mundo, Descartes precisou afirmar a existência de Deus.
Se não existe mais relação entre o conhecimento e as coisas a conhecer, se a relação entre o conhecimento e as coisas conhecidas é arbitrária, de poder e de violência, a existência de Deus não é mais indispensável no centro do sistema de conhe cimento. Na mesma passagem da Gaia Ciência em que evoca a ausência de ordem, de encadeamento, de formas, de beleza do mundo, Nietzsche pergunta precisamente:
“quando cessaremos de ser obscurecidos por todas essas sombras de deus, quando conseguiremos desdivinizar com pletamente a natureza?”
A ruptura da teoria do conhecimento com a teologia começa de maneira estrita com uma análise como ade Nietzsche.
Em segundo lugar, diria que, se é verdade que entre o conhecimento e os instintos — tudo o que faz, tudo o que trama o animal humano — há somente ruptura, relações de domina ção e subserviência, relações de poder, desaparece então, não mais Deus, mas o sujeito em sua unidade e soberania.
Spinoza, onde este opunha inteiligere, compreender, a ridere, lugere, detestari. Spinoza dizia que, se quisermos compreender as coisas, se quisermos efetivamente compreendê-las em sua natureza, em sua essência e portanto em sua verdade, é neces sário que nos abstenhamos de rir delas, de deplorá-las ou de detestá-las. Somente quando estas paixões se apaziguam pode mos enfim compreender. Nietzsche diz que isto não somente não é verdade, mas é exatamente o contrário que acontece. Inteiigere, compreender, não é nada mais que um certo jogo, ou
melhor, o resultado de um certo jogo, de uma certa composição ou compensação entre ridere, rir, lugere, deplorar, e detestari, detestar.
Nietzsche diz que só compreendemos porque há por trás de tudo isso o jogo e a luta desses três instintos, desses três mecanismos, ou dessas três paixões que são o rir, o deplorar e o detestar (o ódio). Com relação a isso é preciso considerar algumas coisas.
Inicialmente, devemos considerar que essas três paixões, ou esses três impulsos — rir,
detestar e deplorar — têm em comum o fato de serem uma maneira não de se aproximar
do objeto de se identificar com ele, mas, ao contrário, de conservar o objeto à distância, de
se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele, de se proteger
dele pelo riso, desvalorizá-lo pela deploração, afastá-lo e eventualmente destruí-lo pelo
ódio. Portanto, todos esses impulsos que estão na raiz do conheci mento
e o produzem têm em comum o distanciamento do objeto, uma vontade de se afastar dele e
de afastá-lo ao mesmo tempo, enfim de destruí-lo. Atrás do conhecimento há
uma vontade, sem dúvida obscura, não de trazer o objeto para si, de se assemelhar a ele,
mas ao contrário, uma vontade obscura de se afastar dek e de destruí-lo,
maldade radical do conhecimen to.
Chegamos assim a uma segunda idéia importante. A de que esses impulsos — rir, deplorar,
detestar — são todos da ordem das más relações. Atrás do conhecimento, na
raiz do conhecimento, Nietzsche não coloca uma espécie de afeição, de impulso ou de
paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer, mas, ao contrário, impulsos
que nos colocam em posição de ódio, desprezo, ou temor diante de coisas que são
ameaçadoras e presunçosas.
20
21
Se esses três impulsos — rir, deplorar e odiar — chegam a produzir o conhecimento não é, segundo Nietzsche, porque se apaziguaram como em Spinoza, ou se reconciliaram, ou chegaram a uma unidade. É, ao contrário, porque lutaram entre si, porque se confrontaram. É porque esses impulsos se comba teram, porque tentaram, como diz Nietzsche,
prejudicar uns aos outros, é porque estão em estado de guerra, em uma estabilização momentânea desse estado de guerra, que eles chegam a uma espécie de estado, de corte onde finalmente o conhecimento vai aparecer como a centelha entre duas espa das”. Não há, portanto, no conhecimento uma adequação ao objeto, uma relação de assimilação, mas, ao contrário,
exercer, uns sobre os outros, relações de poder — que compreendemos em que
consiste o conhecimento.
Pode-se então compreender como uma análise cksse tipo nos introduz, de maneira eficaz, em uma história política do conhecimento, dos fatos de conhecimento e do sujeito do conhecimento.
Mas, antes, gostaria de responder a uma possível objeção:
“tudo isso é muito bonito mas não está em Nietzsche; foi seu delírio, sua obsessão de encontrar em toda parte relações de poder, em introduzir essa dimensão do político até na história do conhecimento ou na história da verdade, que lhe fez acreditar que Nietzsche dizia isto”.
Eu responderia duas coisas. Primeiramente, tomei este texto de Nietzsche em função de meus interesses, não para mostrar que era essa a concepção nietzscheana do conhecimen to — pois há inúmeros textos bastante contraditórios entre si a esse respeito — mas apenas para mostrar que existe em Nietzsche um certo número de elementos que põem à nossa disposição um modelo para uma análise histórica do que eu chamaria a política da verdade. É um modelo que encontramos efetivamente em Nietzsche e penso mesmo que ele constitui em 22 23
sua obra um dos modelos mais importantes para a compreen são de alguns elementos aparentemente contraditórios da sua concepção do conhecimento.
Com efeito, se admitimos ser isto que Nietzsche enten de por descoberta do conhecimento, se todas essas relações estão por trás do conhecimento que, de certa forma, é apenas seu resultado, podemos então compreender determinados textos de Nietzsche.
De início, todos aqueles em que Nietzsche afirma que não há conhecimento em si. Mais uma vez é preciso pensar em Kant, aproximá-los e verificar todas as diferenças.
O que a crítica kantiana colocava em questão era a possibilidade de um conhecimento do em-si, um conhecimento sobre uma verda de ou uma realidade em-si. Nietzsche diz em A genealogia da moral: “Abstenhamo- nos, senhores filósofos, dos tentáculos das noções contraditó rias tais como razão pura, espiritualidade absoluta, conhecimento em-si”. Ou, ainda, em A vontade de poder Nietzsche afirma que não há ser em-si, como também não pode haver conhecimento em-si. E quando diz isso, designa algo totalmente diferente do que Kant compreendia por conhecimento em-si. Nietzsche quer dizer que não há uma natureza do conhecimento, uma essência do conhecimento, condições universais para o conhecimento, mas que o conhe cimento é, cada vez, o resultado histórico e pontual de condi ções que não são da ordem do conhecimento. O conhecimento é um efeito ou um acontecimento que pode ser colocado sob o signo do conhecer. O conhecimento não é uma faculdade, nem uma estrutura universal. Mesmo quando utiliza um
certo número de elementos que podem passar por universais, esse conhecimento será apenas da ordem do resultado, do aconte cimento, do efeito.
Assim podemos compreender a série de textos em que Nietzsche afirma que o conhecimento tem um caráter perspectivo. Quando Nietzsche diz que o conhecimento é sempre
uma perspectiva, ele não quer dizer, no que seria uma mistura de kantismo e empirismo,
que o conhecimento se encontra limitado no homem por um certo número de condi
ções, de limites derivados da natureza humana, do corpo humano ou da própria estrutura do
conhecimento. Quando fala do caráter perspectivo do conhecimento, Nietzsche
quer designar o fato de que só há conhecimento sob a forma de um certo número de atos