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A Alma e o Corpo: Perspectivas Platônicas, Aristotélicas e Estoicas, Resumos de Filosofia

Este texto aborda a relação entre alma e corpo através da perspectiva de platão, aristóteles e os estoicos. Platão vê a alma como imanente à vitalidade do corpo, enquanto aristóteles emprega o termo para caracterizar ideias em sua teoria. Os estoicos, por sua vez, veem a alma como a unidade de causa e princípio, que traduz-se na unidade do corpo que ela produz. O texto também discute a crítica dos estoicos em relação à atividade dos incorpóreos e a sua representação dos corpos.

O que você vai aprender

  • Quais são as críticas dos Estoicos em relação à atividade dos incorpóreos?
  • Qual é a visão dos Estoicos sobre a natureza dos corpos?
  • Como Aristóteles utiliza o termo 'alma' em sua teoria?
  • Como os Estoicos representam as relações entre os corpos?
  • Qual é a perspectiva de Platão sobre a relação entre alma e corpo?

Tipologia: Resumos

2021

Compartilhado em 18/08/2021

marcia-batista-47
marcia-batista-47 🇧🇷

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Émile Bréhier

A teoria dos incorporais no estoicismo

antigo

Tradução

Fernando Padrão de Figueiredo

José Eduardo Pimentel Filho

Transliteração e tradução do grego

Luiz Otávio de Figueiredo Mantovaneli

FILO

afirmar que, se não era propriamente um estoico, tinha uma alma estoica, pois sofrera sem nenhuma queixa, e serenamente, as dores do corpo. Ao contrário do platonismo, o corpo não aprisiona e limita a alma, é a alma, vitalidade imanente ao corpo, que tensiona suas partes ao limite do que pode e lhe confere virtudes racionais. O corpo é pleno de razão. Seria pouco dizer que Bréhier se interessava profundamente pelos primeiros estoicos, seja com Zenão de Cítio, seja com Cleantes ou Crisipo. Mas é precisamente nesse limite onde o pensamento e as anedotas da vida se tornam imprecisos que devemos ler A teoria dos incorporais no antigo estoicismo. Os primeiros estoicos são os personagens filosóficos que, pela primeira vez na história da filosofia, encenam, tendo por pano de fundo a antiguidade grega, a noção de incorporal ou acontecimento. Noção complexa e difícil à qual se contrapõem e tentam fugir do platonismo e da filosofia peripatética, levando-as, com humor (e não com ironia), ao pé da letra. Deleuze, na Lógica do sentido , retoma nas cômicas anedotas de vida desses gregos a intensidade do cômico e do riso no pensamento. Eis algumas dela :

Como diz Crisipo, “se dizes a palavra carroça, uma carroça passa por tua boca” e não é nem melhor nem mais cômodo se se tratar da Ideia de carroça. [...] Ao “bípede sem plumas” como significado do homem segundo Platão, Diógenes o Cínico responde atirando-nos um galo com plumas. E ao que pergunta sobre “o que é a filosofia”, Diógenes responde fazendo passear um arenque na ponta de um cordel : o peixe é o animal mais oral [...]. Platão ria daqueles que se contentavam em dar exemplos [...]. Ora, é fácil fazer com que Platão desça de novo o caminho que ele pretendia nos fazer escalar (DELEUZE, 2003, p. 137- 138).

Diógenes Laércio ainda nos lembra, na obra Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, da morte cômica de Crisipo, quando, com uma grande gargalhada, morreu vendo seu asno ser embriagado por sua criada. Anedota que confere outra vida, outra imagem ao pensamento, distanciando-se ao máximo das teorias trágicas e das mortes imponentes, seja de Empédocles, Sócrates, seja até mesmo de Sêneca. Não podemos deixar de ver nessa atitude agonística os fortes traços do cinismo de Antístenes e Diógenes, conhecido também como o Sócrates ensandecido. Agonística que não se faz

com ironia, tristeza, angústia, mas com humor. Se o humor e os paradoxos servem de argumento contra uma filosofia, dizendo-a menor, por outro lado, elas serão as armas, zombarias contra essas filosofias maiores. Assim como eles, Nietzsche via nessa “maioridade” filosófica não uma saída de um estado menor, de tutela, mas a pobreza de um pensamento e de uma vida que necessitam dos valores estabelecidos, do Estado, da Igreja, da Família, da Escola, etc. Se chegaram até nós somente as obras de Platão e Aristóteles, diz o filósofo, a razão não está na sua grandeza, mas na falta de leitores. Por isso, dos primeiros estoicos, não temos sequer uma página, e dependemos dos comentários de seus opositores e dos argumentos de seus adversários. Para os cínicos e os estoicos, tudo é corpo, até mesmo as virtudes, a razão, a filosofia. A filosofia, por exemplo, era considerada um organismo, um sistema, constituída pela lógica, pela física e pela ética, na qual cada parte está interligada e dependente da outra. Bréhier via o estoicismo como uma filosofia sem fissura, um todo. Suas palavras são relevantes ao afirmar a respeito dela :

Adequação completa do sábio a Deus, do homem ao universo, do prático ao teórico ; aparece como uma espécie de limite ideal no qual todas as dualidades desaparecem ; é por isso que a sabedoria estoica tem um valor permanente ; o consentimento ao mundo, o amor fati , a indiferença ao acontecimento, como traços solidários que dão ao homem a liberdade interior e o fazem escapar ao desequilíbrio que nasce da instabilidade e da inconstância dos acontecimentos. O estoicismo, esta arte de viver, me parece então como uma sabedoria a qual, para aprovar ou para negar, se referem, doravante, todas as doutrinas filosóficas. Ainda aí, eu encontrei menos um sistema limitado e datado do que o ponto de partida de um élan que, com lentidões e retomadas, atravessou todo o pensamento ocidental (BRÉHIER, 1955, p. 4).

A própria razão é Deus, divina. Tudo está cheio de deuses, como dizia Heráclito. A própria natureza também é racional e, por ser racional e divina, não há nenhum mal ou culpa nas necessidades mais fisiológicas, ou biológicas. Eles afirmam com todas as letras uma espécie de materialismo levado às últimas consequências. As únicas coisas que existem são os

tudo” (τὸ πᾶν) ; para compreender a singularidade do lugar, devemos nos desfazer da imagem contentor-conteúdo, o mundo representado como bonecas russas. Paradoxalmente, o lugar não tem lugar no mundo. Muito menos compreenderemos, dirá Bréhier, o tempo a partir de suas coordenadas : passado, presente e futuro. O tempo incorporal está fora dos seus eixos, infinito, como uma criança jogando dados, pertence somente àqueles que entraram num devir menor. Não é à toa que Deleuze busca na Alice de Carroll seu personagem mais eminente, sem altura e profundidade dos adultos. Os garotos só entram aí se forem gagos e canhotos, desfazendo-se de toda falsa sabedoria, animalidade e profundidade. Utilizando uma imagem de Peter Sloterdijk, é a criança que sopra bolas de sabão ou bolhas de ar, remetendo-nos a um espaço “quase” sem objetividade e sem estabilidade. Os primeiros estoicos possibilitam pensar uma nova e paradoxal imagem do pensamento : um pensamento sem imagem. É aí e por aí que perdemos a vontade de dizer a verdade, desfazemo-nos dos clichês mais banais e, com isso, da necessidade de um Deus a significar, de um mundo a designar e de manifestar os desejos e as vontades do sujeito. Momento forte na história da filosofia no qual a sabedoria marca seu território, e os estoicos cavam suas próprias trincheiras filosóficas. Até mesmo os estoicos posteriores desconfiavam dessa noção, criticando-a por sua falta de utilidade, seu vazio de pensamento. É nesse instante que Bréhier flagra esses personagens, no limite do mundo grego, em delito de fabulação, nesse momento impreciso de intensa criação filosófica, levando o pensamento (e juntamente a história da filosofia) à sua enésima potência. Podemos ler, portanto, A teoria dos incorporais no antigo estoicismo como um elogio aos incorporais, e não apenas como um resgate crítico dessa noção. Como observa Bréhier, os primeiros estoicos são o élan que atravessou todo o pensamento ocidental. A posição deles na história da filosofia é excepcional. Embora não tenham levado até o fim a radicalidade da teoria dos incorporais, foram os primeiros a propor tal noção. Teoria dos incorporais no antigo estoicismo descreve muito bem a situação-limite do pensamento estoico na filosofia. Assim, podemos ler aí :

Num sentido, eles estão tão longe quanto possível de uma concepção como as de Hume e de Stuart Mill, que reduzem o universo a fatos ou

acontecimentos. Noutro sentido, entretanto, eles tornam possível tal concepção, separando radicalmente, o que nenhuma pessoa havia feito antes deles, dois planos de ser : por um lado, o ser profundo e real, a força ; por outro lado, o plano dos fatos, que atuam na superfície do ser, e constituem uma multiplicidade sem laço e sem fim de seres incorporais.

É, portanto, nesse teatro filosófico de máscaras sobre máscaras que Bréhier nos incentiva a encenar, a pôr em ação.

Fernando Padrão de Figueiredo José Eduardo Pimentel

Introdução

Um traço característico das filosofias que nasceram depois de Aristóteles é a rejeição, para a explicação dos seres, de toda causa inteligível e incorporal. Platão e Aristóteles buscaram o princípio das coisas nos seres intelectuais ; suas teorias derivavam, nessa perspectiva, da doutrina socrática do conceito, assim como das filosofias de Pitágoras e Anaxágoras, que colocaram o princípio das coisas nos elementos penetráveis ao pensamento claro. Ao contrário, é nos corpos que os estoicos e os epicuristas veem a realidade, a que age e a que padece. Com certo ritmo, sua física reproduz a dos físicos anteriores a Sócrates, enquanto em Alexandria, após eles, renasce o idealismo platônico, que recusa todo modo de atividade que não seja a de um ser inteligível. Para encontrar as razões da evolução do platonismo ao estoicismo, seria interessante, parece-nos, buscar o lugar da ideia de incorporal nesse sistema. Segundo Sexto,^1 essa palavra designa nos estoicos as seguintes coisas : o “exprimível” (λέκτον^2 ), o vazio, o lugar, o tempo. A própria palavra “incorporal” foi pouco empregada nas doutrinas precedentes. Platão pouco se serve dela para indicar as Ideias ; nós a encontramos por duas vezes quando ele quer opor sua teoria à de Antístenes, que somente admitia a existência de corpos.^3 É utilizada ainda para designar uma ideia retomada do pitagorismo, a harmonia entre os seres : seja no Filebo , a harmonia das partes do bem, seja no Fédon , a harmonia entre as partes do corpo, que, segundo os pitagóricos, constitui a alma.^4 Aristóteles emprega a palavra não para designar seu Deus separado [Motor Imóvel], mas para caracterizar a ideia de lugar numa teoria que, aliás, ele não admite.^5 Pelo contrário, os alexandrinos a empregaram habitualmente para designar os seres que ultrapassam o mundo sensível. Foram, portanto, os estoicos que parecem ter introduzido a expressão na linguagem corrente da filosofia ; logo depois, ela foi utilizada, sobretudo, para combater suas ideias. Segundo o uso feito por Platão, não é impossível que essa palavra venha de Antístenes, que,

antes dos estoicos, rejeitara, nos incorporais, os não seres como o lugar e o tempo. É certo, com efeito, o sentido geral da teoria dos estoicos sobre os incorporais. Identificando o ser com o corpo, eles são, entretanto, levados a admitir o espaço e o tempo senão como existentes, ao menos como coisas definidas. É para esses nadas de existência que eles criaram a categoria de incorporal.^6 As fontes que utilizaremos neste estudo, exceto os compiladores e as doxografias (Estobeu, Diógenes Laércio, Aécio), vêm, sobretudo, dos adversários dos estoicos : os acadêmicos e os céticos (Cícero nos acadêmicos e Sexto), os comentadores de Aristóteles (Amônio, Alexandre de Afrodísia e Simplício) e os platônicos (Plutarco, Nemésio e Proclo). Por sua natureza, em geral, as fontes contêm apenas indicações muito breves sobre a sua doutrina, e vamos, com muito custo em alguns momentos, compreendê-la e completar as informações que elas nos fornecem.

1 Sext. Adv. Math. X 218 (S. V. F. d’Arnim II, 117, 20).

2 Lekton ou ‘exprimível’. (N.T.G.)

3 Plat. Soph. 246 b ; Polit. 286 a.

4 Phédon 85 e ; Philèbe 64 b.

5 Phys. IV, I, 10.

6 Não citaremos nenhum estudo geral sobre os incorporais. Para o “exprimível” e a lógica, ver Prantl Geschichte der Logik im Abendl. Brochard, sur la Logique des Stoïciens ( Arch. F. Gesch. Der Phil, 1892, v. V, n. 4) ; Hamelin, sur la Logique des Stoïciens (Année philosophique, 12 e, 1902, p. 13). Os fragmentos dos antigos estoicos foram reunidos por Arnim ( Stoïcoverum Vet. Fragm, v. I, Lipsiae, 1905 ; v. II (Lógica e física de Crisipo), 1903 ; v. III, 1903. Utilizaremos essa versão.

sobretudo, por eles terem afastado os limites dos seres para fora da realidade.^9 Com efeito, é essa concepção de causalidade que os estoicos refutam, e a noção de ser que dela deriva. A natureza de uma causa é determinada pela natureza das coisas ou dos fatos que essa causa tem por tarefa explicar. Ora, os estoicos querem explicar outra coisa e se posicionam em um ponto de vista diferente daquele sustentado por Platão e Aristóteles. Para estes, o problema era explicar o permanente nos seres, o estável, aquilo que poderia oferecer um ponto de apoio sólido ao pensamento por conceitos. A causa, seja ela a Ideia seja o motor imóvel, também é permanente, tal como uma noção geométrica. O movimento, o devir, a corrupção dos seres, o que eles têm de perpetuamente instáveis, não se deve a uma causa ativa, mas a uma limitação dessa causa, escapando por sua natureza a toda determinação e a todo pensamento. O que chama a atenção em um ser é, primeiramente, o elemento pelo qual ele se assemelha aos outros seres e que permite classificá-lo. Mas outro ponto de vista consiste em considerar este ser por sua história e sua evolução, do seu surgimento até o seu desaparecimento. O ser será, então, considerado não como parte de uma unidade superior, mas como sendo a unidade e o centro de todas as partes que constituem sua substância e de todos os acontecimentos que constituem sua vida. Ele será o desdobramento no tempo e no espaço desta vida, com suas contínuas mudanças. Ora, é exatamente neste ponto que se situa, para os estoicos, o problema das causas. Eis aqui, segundo Sexto [Empírico],^10 alguns fatos pelos quais se conclui que existem causas : a semente e o desenvolvimento de um gérmen, o desenvolvimento de uma planta, a vida e a morte, o governo do mundo, o devir e a corrupção, a geração do semelhante pelo semelhante. Os exemplos são quase todos, como se pode observar, tomados de empréstimo dos seres vivos. Mesmo no caso contrário, os demais seres são, no pensamento íntimo dos estoicos, similares aos seres vivos. A coisa é demasiado conhecida para insistir nela longamente : o mundo inteiro, com sua organização e a hierarquia de suas partes, sua evolução que vai de uma conflagração a outra, é um ser vivo. Até o mineral, com a coesão de suas partes, possui uma unidade análoga à do ser vivo. Assim, o dado a explicar, isto é, a mudança do ser, é sempre análogo à evolução de um ser vivo. Qual é a natureza desta unidade do ser vivo, unidade incessantemente móvel, unidade do contentor? Como as partes do ser são reunidas de modo

a persistir? Será, como nos seres vivos, por uma força interna que os retêm ; força que se chama nos minerais de ἕξις,^11 natureza nas plantas, ou alma nos animais. Em todos esses casos, é indispensável que ela seja ligada ao ser mesmo no qual ela constitui a causa, como a vida só pode estar no ser vivo. Ela determina a forma exterior do ser, seus limites, não ao modo do escultor que faz uma estátua, mas como um gérmen que se desenvolve até certo ponto do espaço, e somente até este ponto, as suas capacidades latentes. A unidade da causa e do princípio traduz-se na unidade do corpo que ela produz. O princípio é tão verdadeiro para o mundo quanto para o menor dos seres particulares, cuja unidade se provaria, segundo Crisipo, pela unidade de seu princípio.^12 Nas matemáticas, que parecem ser o triunfo do platonismo, as figuras são consideradas não mais como provindo de uma definição que permite construí-las, mas como a extensão no espaço de uma força interna que se desdobra : a reta é a linha “esticada até a extremidade”.^13 Dessa forma, a causa é, verdadeiramente, a essência do ser, não um modelo ideal que o ser se esforçaria em imitar, mas a causa produtora que age nele, vive nele e o faz viver ; mais parecido, segundo uma comparação de Hamelin,^14 à essentia particularis affirmativa de Spinoza do que à Ideia platônica. Sabe-se que Platão e Aristóteles admitiam uma explicação mecanicista da vida. Espinas mostrou, nas invenções mecânicas que se produziram na Grécia desde o século VI a.C., a razão dessa representação da vida.^15 O mais notável, malgrado esse impulso, é que os estoicos tenham retornado ao dinamismo e que conceberam todas as causas do universo segundo a analogia com a força vital. É essa mistura íntima da causa com o corpo que a desenvolve e a manifesta que leva à negação de toda espécie de ação incorporal e à afirmação que vamos agora examinar : “Tudo o que existe é corpo”. Para compreender esta espécie de “materialismo”, é necessário recordar que os estoicos, assim como os demais antigos, não tinham a noção de inércia da matéria, postulado fundamental do materialismo de nossa época. Segundo esse postulado, toda força só reside na matéria por empréstimo, visto que ela advém do exterior. Pela mesma razão, também temos dificuldade em representar a força como algo de imaterial, porque ela não é da essência da matéria. Nesse sentido, o estoicismo seria tão “espiritualista” quanto o dinamismo leibniziano, que não existiria sem tal influência. Na longa estrada percorrida, há inclusive um momento no qual o estoicismo, mesmo

incorporal. Tanto a alma padece com o corpo, quando ele está doente ou machucado, quanto o corpo com a alma na vermelhidão da vergonha ou na palidez do medo”.^23 A esses dois argumentos, Crisipo acrescenta o seguinte : “A morte é a separação da alma e do corpo. Mas um incorporal não se separa do corpo, logo o incorporal não afeta o corpo”.^24 Evidentemente, os princípios desses três argumentos ultrapassam a questão da natureza da alma : eles são destinados a mostrar que, em geral, o incorporal não pode ser nem agente nem paciente face ao corpo. O primeiro desses princípios é o mais obscuro : Σώματος τὸ ὅμοιον ϰαι τὸ ἀνόμοιον, οὐχὶδὲ ὰσωματου,^25 ou, como diz Tertuliano : “a alma é corpo, pois ela está sujeita à semelhança e à dessemelhança”. Um exemplo de Crisipo, a superfície geométrica, poderá ao menos precisar esta dificuldade a propósito de um incorporal particular : Demócrito apresentou da seguinte maneira o problema do contínuo espacial : em um cone, se consideramos as seções cônicas circulares vizinhas umas das outras, ou bem essas superfícies serão desiguais e, então, a superfície do cone não será lisa mas apresentará asperezas, ou bem serão iguais, e a figura terá então a propriedade de um cilindro : e não será mais um cone. Segundo Plutarco, Crisipo resolvia a dificuldade dizendo que os círculos não eram nem iguais nem desiguais.^26 O que é, na opinião de Plutarco, um absurdo, pois é impossível conceber o que não é nem igual nem desigual. O absurdo deixaria de existir (e a resposta seria, de fato, singularmente profunda) se Crisipo fizesse entender que essas superfícies não existem. Ora, é esta resposta que decorre de todas as outras considerações sobre o contínuo : ele mostra que nenhum limite existe na divisão do espaço e que não se pode, por conseguinte, falar do número de partes contidas nas grandezas diferentes, como o mundo e o dedo de um homem, pois não existe mais ou menos no infinito.^27 É sob tal forma que ele mostra o não ser do Universo, assim como o tudo (τὸ πᾶν :^28 o que se diz ao mesmo tempo do mundo e do vazio que o envolve), mostrando que não é nem corporal, nem incorporal, nem movido, nem em repouso, etc.^29 É provável que, recusando no incorporal em geral o predicado de semelhante e de dessemelhante ao mesmo tempo, Cleantes quisera dizer que ele não é um ser. Falta averiguar em que sentido ele entende essa dupla negação. Sabe- se que é introduzindo nas Ideias o semelhante e o dessemelhante, o mesmo e o outro, que Platão pensava poder resolver as dificuldades sobre a relação do sujeito ao predicado, que tinha sido questionada pelos filósofos de

Mégara. Há na lógica estoica numerosos traços das doutrinas megáricas trazidos por intermédio de Antístenes. Por outro lado, Aristóteles dera ao semelhante a seguinte definição no Capítulo IX do Livro IV da Metafísica : “São ditos semelhantes as coisas que têm uma propriedade idêntica (ταὐτὸ πεπονθότα^30 ) ou que têm mais propriedades idênticas que diferentes”. Ora, as propriedades (ποιότητες^31 ) são corpos para os estoicos.^32 É, pois, impossível pensar que uma propriedade em geral pertença aos incorporais e, consequentemente, falar de sua semelhança ou dessemelhança. Se em nenhuma parte encontramos essa prova, ao menos vislumbramos suas consequências no estoicismo. O único incorporal que subsistirá não será a Ideia, como em Platão, substituída pela qualidade corporal, mas o vazio, a forma dos seres, privada de toda ação e de toda diferença.^33 A propriedade de um ser era, em Platão, a presença de uma Ideia no ser. Os estoicos se esforçaram em definir a propriedade de modo a fazê-la nascer da qualidade fundamental do estado [corporal], sem a intervenção exterior de uma forma.^34 Daí resultou, em alguns deles, a distinção que Simplício^35 nos faz conhecer entre o ποιόν^36 e a ποιότης.^37 Existem três espécies de ποιά^38 : no primeiro sentido, a palavra indica tanto as propriedades passageiras (correr, andar) quanto as propriedades estáveis. No segundo sentido, indica unicamente os estados (σχέσεις,^39 como o prudente). No terceiro, enfim, coincide inteiramente com a palavra ποιότης,^40 e indica unicamente as propriedades que chegaram a seu estado de perfeição e completamente permanentes (ὰπαρτίζοντας ϰαὶ ἐμμόνους ὄντας^41 ). Existe, nesse caso, bem mais do que a simples distinção das propriedades essenciais e acidentais : é a diferença íntima de natureza entre : a qualidade que é uma realidade corporal e ativa, sem necessidade de outra coisa para ser explicada, mas “que se limita a uma noção única” ; e o ποιόν^42 do primeiro gênero, que é somente, no seu sentido primeiro, um resultado sem realidade corporal. É através dessa teoria, cujo desenvolvimento não explicitaremos aqui, que eles privaram a Ideia incorporal de toda eficácia e de toda propriedade, não encontrando aí senão o vazio absoluto do pensamento e do ser. O segundo princípio é o seguinte : Οὐδέν ἀσώματον συμπάσχει σώματι, ούδὲἀσωματω σῶμα, ἀλλὰσῶμα σώματι.^43 Esse princípio, suprimindo toda ação recíproca entre o mundo dos corpos e o inteligível, suprime também a necessidade do incorporal. Estamos pouco informados, de uma maneira direta, sobre sua demonstração, como do primeiro

Os únicos seres verdadeiros que os estoicos reconhecem são a causa ativa (τὸ ποιοῦν^48 ) e, ademais, o ser sobre o qual essa causa (τό πάσχον^49 )^50 age. Ainda, devem-se acrescentar os elementos ativos do mundo, o fogo e o ar, que dão nascimento por transformação aos elementos passivos ; os três últimos, na conflagração universal, reabsorvem-se eles mesmos no fogo, pois o ser primordial é o fogo, a razão seminal do mundo. Os outros seres são produzidos por uma tensão menor, um relaxamento do fogo primordial. Eles não são nem os efeitos nem as partes dos seres primitivos, mas, antes, diferentes estados de tensão desse ser. Nos seres ativos se encontram as qualidades dos corpos ; estas são os sopros (πνεύματα^51 ) nos quais a ação se mostra por seus efeitos. Inicialmente, existem as primeiras qualidades que pertencem aos elementos, o calor, o frio, o seco, o úmido, depois as outras qualidades sensíveis, como as cores e os sons. É necessário observar que a enumeração desses seres, todos eles seres da natureza, não nos faz sair das causas e dos princípios. O mundo dos estoicos é composto de princípios espontâneos, contendo vida e atividade neles mesmos, e nenhum deles pode ser dito propriamente o efeito do outro. A relação entre causa e efeito entre dois seres está completamente ausente de sua doutrina. Se há relação, ela é de outro gênero : esses princípios são antes momentos ou aspectos da existência de um único e mesmo ser, o fogo, cuja história é a própria história do mundo. Os seres reais podem, no entanto, interagir uns com outros e, por meio dessa relação, se modificar. “Eles não são, diz Clemente de Alexandria expondo a teoria estoica, causas uns dos outros, mas causas uns para os outros de determinadas coisas”.^52 Essas modificações são realidades? Substâncias ou qualidades? De modo algum : um corpo não pode dar a outro propriedades novas. Sabe-se de que modo paradoxal os estoicos são obrigados a representar para si mesmos as relações entre os corpos : para evitar essa produção de qualidades umas pelas outras, admitiam uma mistura (μῖξις ou ϰρᾶσις^53 ) dos corpos que se penetravam na sua intimidade e tomavam uma extensão comum. Quando o fogo esquenta o ferro em brasa, por exemplo, não se deve dizer que o fogo deu ao ferro uma nova qualidade, mas que o fogo penetrou no ferro para coexistir com ele em todas suas partes.^54 As modificações de que falamos são bem diferentes : não são realidades novas, outras propriedades, mas apenas atributos (ϰατηγορήματα^55 ). Assim, quando a navalha corta a carne, o primeiro corpo

produz sobre o segundo não uma propriedade nova, mas um atributo novo, o de ser cortado.^56 O atributo, falando propriamente, não designa nenhuma qualidade real ; branco e negro, por exemplo, não são atributos, nem em geral qualquer epíteto. O atributo é sempre, ao contrário, expresso por um verbo ; isso quer dizer que ele não é um ser, mas uma maneira de ser, o que os estoicos denominam, na sua classificação de categorias, um πώς ἔχον.^57 Essa maneira de ser encontra-se, de certa forma, no limite, na superfície do ser, e não pode mudar sua natureza : ela não é, verdadeiramente falando, nem ativa nem passiva, pois a passividade suporia uma natureza corporal que sofre uma ação. Ela é puramente e simplesmente um resultado, um efeito que não pode ser classificado entre os seres. Esses resultados de ação dos seres, que os estoicos foram talvez os primeiros a observar sob essa forma, é o que chamaríamos hoje de fatos ou de acontecimentos : conceito bastardo que não é nem um ser nem uma de suas propriedades, mas o que é dito ou afirmado do ser. É esse caráter singular do fato que os estoicos ressaltavam, dizendo que ele era incorporal ; eles o excluíam assim dos seres reais, apenas admitindo-o em certa medida no espírito. “Todo corpo torna-se assim causa para outro corpo (quando age sobre ele) de alguma coisa incorporal.”^58 A importância desta ideia para eles se faz notar pelo cuidado que têm de exprimir sempre, na linguagem, o efeito por um verbo. Assim, não se deve dizer que a hipocondria é causa da febre, mas causa desse fato de que a febre aconteça,^59 e, em todos os exemplos na sequência, as causas não são jamais fatos, mas sempre seres expressos por um substantivo : as pedras, o mestre, etc. ; e os efeitos – ser estável, fazer um progresso – são sempre expressos por verbos. O fato incorporal está de todo modo no limite da ação dos corpos. A forma de um ser vivo é predeterminada no gérmen que se desenvolve e cresce. Mas essa forma exterior não constitui uma parte de sua essência ; ela é subordinada como um resultado da ação interna que se estende no espaço, e esta não é determinada pela condição de preencher seus limites. Do mesmo modo, a ação de um corpo, sua força interna, não se esgota nos efeitos que produz : seus efeitos não são um custo para ele e não afetam em nada seu ser. O ato de cortar não acrescenta em nada à natureza e à essência da navalha. Os estoicos colocam a força e, por conseguinte, toda a realidade não nos acontecimentos, nos desdobramentos múltiplos e diversos que realiza o ser, mas na unidade que nele contêm as partes. Num sentido, eles