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Este artigo analisa o processo criativo no documentário elena, dirigido por petra costa (2012), através de uma cartografia dos objetos, espaços, memórias, desejos e afetos dos personagens elena e petra. A autora baseia-se em estudos sobre 'criação', 'autoria', 'autobiografia' e 'subjetividade' aplicáveis ao cinema contemporâneo, citando autores como leonor arfuch, evelina hoisel, jean-claude bernardet, raquel schefer, suely rolnik, guattari, freud e deleuze. O artigo explora a estreita ligação entre elena e petra, ilustrada por fragmentos da vida de elena e imagens de petra adulta.
O que você vai aprender
Tipologia: Exercícios
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1 Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia, IHAC-UFBA. E-mail: emanuellaleiterodrigues@gmail.com 2 Professora adjunta do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC/UFBA) e professora permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: mprates21@gmail.com
Fios emaranhados: (des)enlaces biográficos no documentárioElena | Emanuella Leite Rodrigues de Moraes e Marinyze Prates de Oliveira
Resumo: Este trabalho analisa questões pertinentes ao processo criador no filme documentário Elena (Petra Costa, 2012), cuja narrativa é tecida por meio de histórias que conectam o mundo das irmãs Elena e Petra. A reconstrução imagético-discursiva do caminho trilhado pela irmã mais velha, por parte da diretora, autora, narradora e protagonista Petra, traça uma espécie de cartografia dos espaços, objetos, memórias, afetos e desejos vivenciados por ambas. Para investigar tal cartografia, elegemos como base teórica os estudos que focalizam questões como “criação”, “autoria”, “autobiografia” e “subjetividade”, que se aplicam ou podem ser aplicados ao documentário contemporâneo, recorrendo a autores como Leonor Arfuch, Evelina Hoisel, Jean-Claude Bernardet, Raquel Schefer, Suely Rolnik, Guattari, Freud e Deleuze. Palavras-chave: Elena; documentário; passado; memória; reconstrução.
Abstract: This paper analyzes questions pertaining to the creative process in the documentary movie Elena (Petra Costa, 2012), whose narrative is constructed through the stories that connect the world of the sisters Elena and Petra. The imagetic-discursive reconstruction of the path taken by her older sister, by the director, author, narrator and protagonist Petra, draws a sort of cartography of the spaces, objects, memories, feelings and desires experienced by both. To investigate this cartography, we selected as theoretical basis the studies focused on issues such as “creation”, “authorship”, “autobiography” and “subjectivity”, which apply or may be applied to contemporary documentary, using authors such as Leonor Arfuch, Evelina Hoisel, Jean-Claude Bernardet, Raquel Schefer, Suely Rolnik, Guattari, Freud and Deleuze. Keywords: Elena; documentary; past; memory; reconstruction.
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rosto, dentro de um carro em movimento, ganhando iluminação e visibilidade aos poucos, o de Petra adulta, cuja voz off dá continuidade à narrativa: “[…] encostar, sentir seu cheiro, mas quando vejo, você tá em cima de um muro, enroscada no emaranhado de fios elétricos. Olho de novo e vejo que sou eu que estou em cima do muro. Eu mexo nos fios, buscando tomar um choque e caio, do muro bem alto, e morro”. Petra sonha que está tentando se aproximar da irmã mais velha, nota que ela se encontra em apuros, todavia não consegue alcançá-la; olha outra vez, agora se vê ocupando o lugar de Elena e termina a optar pela morte. Com base nessa passagem, vale lembrar que “o autor não se constrói, ele se descobre. Ele está à procura de alguma coisa que ainda não consegue apreender completamente. Essa procura nos dá a ideia de algo latente, quem sabe preexistente à obra, que o autor precisa descobrir, alcançar” (BERNARDET, 1994, p. 33). Petra, autora, diretora, narradora e protagonista, parece estar em busca de Elena e de si mesma. Seu filme é como um delicado diário, recinto da memória, “cuja restituição da lembrança, talvez mais imediata e fulgurante, solicita […] um trabalho à narração” (ARFUCH, 2010, p. 145). Tanto é que, ao longo do documentário, o recurso da narração em off é utilizado diversas vezes de forma a reconstituir o passado vivenciado pelas duas irmãs.
Perdendo-se em Elena…
A suposta ideia daquilo que a diretora precisa descobrir sobre a própria história tende a ganhar força e se materializar no plano sequência mostrado ainda no princípio do filme (enquanto surgem os créditos), quando os elementos que ocupam a cena não vão além de pistas por hora indecifráveis: vitórias-régias, flores, vestidos distintos flutuando sobre a água, pequenos peixes nadando, resquícios de vegetação fluvial. O pano de fundo desse mosaico visual, sobre o qual aparece o título da obra, é a música Dedicated To The One I Love, da banda The Mamas & The Papas, que remete ao amor e à admiração que une Petra a Elena, sentimentos estes implicados nas palavras da própria diretora, em voz off, na cena subsequente aos créditos, em que ela aparece adulta caminhando pelas ruas de Nova York:
Nossa mãe sempre me disse que eu podia morar em qualquer lugar do mundo, menos Nova York, que eu podia escolher qualquer profissão, menos ser atriz. No dia 4 de setembro de 2003, eu me matriculei no curso de teatro da Columbia University. Queriam que eu te esquecesse, Elena. Mas eu volto pra Nova York na esperança de te encontrar nas ruas […]. Hoje eu ando pela cidade ouvindo a sua voz e me vejo tantos em suas palavras que começo a me perder em você.
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O relato de Petra demonstra que a sua busca por Elena deu-se contrariando as recomendações da mãe e aproximando-se do caminho outrora trilhado pela irmã, a ponto de reviver as experiências desta. Nesse sentido, pode-se dizer que “a subjetividade não é inata, é, ao contrário, tributária do contexto no qual se desenvolve, e se constitui a partir das relações com outras subjetividades, relações essas que vão deixar marcas psíquicas que determinarão formas de viver e de sofrer” (FREUD, 2011a, p. 30-31). Petra muito provavelmente não seria a mesma sem a convivência com Elena, tampouco sem o contato com as lembranças que restaram da irmã mais velha. A memória desta está naquela, influenciando com frequência seus comportamentos e escolhas. A semelhança entre elas, a propósito, é também física. Em certo trecho do filme, Petra, adulta, aparece caminhando em uma espécie de passarela, sob efeito de desfoque, com vozes offs sobrepostas ao longo da ação da protagonista, criando a impressão de que ela está se recordando de alguns pensamentos, de pessoas distintas, sobre a sua semelhança com a irmã:
Alguns fragmentos da vida de Elena (diários e cartas em fita cassete) são mostrados no filme, por vezes intercalados com imagens de Petra adulta, a exemplo da cena que mostra um superclose do rosto da protagonista – plano este bastante utilizado no decorrer do documentário, que em muito serve para acentuar as emoções das personagens –, em baixa luz, dentro de um vagão de trem em movimento, enquanto se pode ouvir uma carta gravada por Elena: “3 de junho. Tô me vendo no vidro de um trem. Nossa, como eu engordei em três dias! Que decadência!” A fusão do rosto de Petra, pouco iluminado, com a voz de Elena, em fita cassete, parece intencionalmente confundi-las. Além disso, nesse trecho, a irmã presente assume o ponto de vista daquela que está ausente, deixando escapar assim a “oscilação entre mímesis e memória (DE MIJOLLA, 1994), entre uma lógica representativa dos fatos e o fluxo da lembrança” (ARFUCH, 2010, p. 134, grifos do autor). Na mesma cena, o rosto de Petra, agora em close, aparece cabisbaixo e mais iluminado, ao passo que a carta de Elena continua a ser ouvida: “Agora eu me sinto gorda e vazia e esse
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Os trechos escolhidos do filme mudo, em preto-e-branco, protagonizado pela mãe de Elena e Petra, são mostrados em grande sintonia com certos fatos vivenciados por ela, trazidos à tona pela voz off da filha: quando Petra narra que ser atriz era a maneira encontrada pela mãe de se ver mulher e “tentar escapar de um mundo em que se via desadaptada, incompreendida”, as imagens de fundo revelam um plano de conjunto da jovem protagonista caminhando cabisbaixa, enquanto é observada por um homem de costas para a câmera, até sumir de quadro. Logo em seguida, durante o tempo que Petra narra que a mãe, “filha de uma tradicional família mineira, não via um lugar para si, a não ser casada, mulher, society”, mostra-se a cena de um grupo de mulheres, aparentemente de classe média, conversando entrosadas, até que a câmera, através de um travelling, chega à imagem da jovem protagonista, triste e solitária no grupo. A diretora preenche o silêncio do filme mudo, encenado pela mãe jovem, de modo a criar a impressão de que esta protagoniza a própria história, no passado. Assim, através da narração de Petra, a trama do filme em preto-e-branco confunde-se com a trama de vida da mãe, e, em consequência, imagens que outrora eram ficcionais ganham um tom e valor documentais. “Nessa indeterminação, o que importa não é se o material é ficcional ou documentário, ou se há um diálogo entre os dois”, na verdade, “o que importa é a dúvida, é considerar indeterminado ou não conseguir determinar o que vemos e ouvimos. Com a coisa indeterminada, nossa relação será de suspeita ou de fascínio, um fascínio questionado pela suspeita, uma suspeita abolida pelo fascínio” (BERNARDET, 2004, p. 157). Portanto, é aqui pertinente a reflexão de Deleuze com relação ao fato de que, “na imagem, a distinção sempre se faz entre o real e o imaginário, o objetivo e o subjetivo, o físico e o mental, o atual e o virtual, mas […] esta distinção se torna reversível, e, neste sentido, indiscernível” (2007, p. 127-128). A narração que comunica ao espectador aspectos da vida da mãe de Elena e Petra, por via da voz off desta, prossegue sendo ilustrada com outros trechos do filme encenado pela mãe no passado, mesclando ficcional e documental, real e fantasioso, passado e presente: “Um dia, sentada em frente ao espelho da penteadeira do seu quarto, ela faz um desenho, o desenho da sua tristeza […]”. Durante esse enunciado, primeiro mostra-se uma ligeira imagem do filme em preto-e-branco, protagonizado pela mãe jovem, em que esta se encontra sentada em frente a uma máquina de escrever. Em seguida, assiste-se à transição sutil dessa cena para outra, também em preto-e-branco, que mostra um plano detalhe de uma mão fazendo um desenho em uma tela. Porém, se bem observada, não se trata da mão da jovem mãe protagonista do filme remoto e sim de uma pessoa mais velha – talvez da mãe de Elena e Petra
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no tempo presente. No espaço fílmico, precisamente nesse recorte imagético- discursivo que traz uma lembrança da (e sobre a) mãe, “há portanto duas imagens- tempo possíveis, uma fundada no passado, outra no presente. Ambas são complexas e valem para o conjunto do tempo” (DELEUZE, 2007, p. 121) que a diretora busca rememorar e (re)construir. Por esta razão, Petra tende a ressignificar as experiências, impressões e recordações que a cercam a partir de novas realidades, novas paisagens psicossociais, isto é, mundos que se criam para expressar afetos contemporâneos, em relação aos quais as situações vigentes tornaram-se obsoletas (ROLNIK, 1989). Em outra passagem, agora é a vez da protagonista descrever o pai, em off, como um brasileiro recém-chegado do país com o qual a mãe sonha, em filmes e músicas (e aqui, outra vez, o pano de fundo para sua narração é um trecho do filme protagonizado pela mãe jovem, quer dizer, uma cena em que esta aparece dançando com um rapaz). Contudo, tal imagem romântica e comportada de um jovem casal dançando – simulacro dos pais jovens – logo é desconstruída pela continuidade da fala da protagonista, enquanto a tela é ocupada por fotos do pai ainda moço e imagens de uma multidão protestando: “[…] ele volta de Nova York não como Sinatra, mas como um Che Guevara, trazendo no bolso os livros de Marx e o desejo de fazer revolução”. A característica rebelde do pai fez a mãe deixar a escola de freiras, vender sua televisão e pular para as passeatas, conforme as palavras de Petra. Esse fato descrito por ela é ilustrado com imagens de arquivo em preto-e-branco dos pais jovens conversando com outras pessoas na rua; de manifestantes correndo em protestos; de fotografias antigas do pai e da mãe, possivelmente detidos, segurando números de identificação. Tais registros utilizados no documentário chamam a atenção para a “passagem entre a erupção e a perda, entre a possibilidade de atualização das imagens do passado e a incapacidade de retenção da imagem. Assistimos a uma reconfiguração tecnológica da relação dos sujeitos com o passado e com a memória histórica e familiar” (SCHEFER, 2008, p. 11, tradução nossa^4 ), em outros termos, temos acesso a uma reconstituição da “relação do sujeito com seu contexto imediato, aquele que permite se situar no (auto)reconhecimento: a família, a linhagem, a cultura, a nacionalidade” (ARFUCH, 2010, p. 141). Nessa conjuntura, a diretora de Elena, fazendo uso de imagens de arquivo, busca recuperar parte do passado de sua família na militância política e da história do país no contexto da ditadura militar, como se pode verificar nas imagens de policiais avançando contra manifestantes; do caos das ruas durante os protestos; de pessoas sendo presas e colocadas contra a parede, que ambientam a voz off da autora-narradora sobre a trajetória dos pais: “Juntos, eles entram para o PC do
4 “[…] pasaje entre la erupción y la pérdida, entre la posibilidad de actualización de las imágenes del pasado y la incapacidad de retención de la imagen. Asistimos a una reconfiguración tecnológica de la relación de los sujetos con el pasado y con la memoria histórica y familiar” (SCHEFER, 2008, p. 11).
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do clã no qual se insere” (KLINGER, 2007, p. 24) a protagonista. Não só isso, como também foi a irmã mais velha quem contribuiu de maneira decisiva com os registros em vídeo dos primeiros anos de vida da irmã caçula, conforme se vê em um trecho que mostra Elena jovem dançando com Petra bebê no colo, enquanto a protagonista, em off, confessa: “Minha mãe me disse que desde os quatro anos você sabia que queria ser atriz. E parece que você sempre dava um jeito de me por pra contracenar com você”. A imagem em vídeo das irmãs, ambientada nos anos de 1980, aponta para o momento notável da “proliferação de tecnologias de movimento, com a invenção de câmeras de 16 mm e de Super 8 mm familiares” (SCHEFER, 2007, p. 10, tradução nossa^5 ), que possibilitaram o registro da memória pessoal e coletiva. Muitas são as cenas, no decorrer do documentário, em que se pode assistir à Elena jovem atuando para a câmera, ora só, ora ao lado de Petra criança, ou em que se pode ver a irmã mais velha dirigindo a caçula. Em determinada passagem, por exemplo, mostra-se uma imagem de arquivo de Elena filmando Petra criança enquanto esta anda de velotrol e solta beijos em direção à câmera; em outra, a irmã pequena aparece tomando banho e cantando para a câmera a pedido de Elena – que passa suas tardes “dirigindo, atuando, criando cenas”, segundo as palavras da diretora do filme. A confirmação desse fato vem logo em seguida, por meio de outras imagens de arquivo: “Ação, claquete!”, diz Elena para marcar o início da cena de um filme de terror contracenado com amigos e a sua babá Olinda e presenciado por Petra; “Tô dançando com a lua”, diz Elena enquanto brinca de mover a câmera, diversas vezes, em direção à imagem da lua no céu e deslumbra-se com o belo efeito estético gerado pela baixa qualidade do vídeo. Não se pode negar a relação de fascínio de Elena com relação à câmera de vídeo, seja como sujeito que filma, seja como objeto filmado. “Ora, é certo que a câmera vê a própria personagem: é uma mesma personagem que ora vê, ora é vista. Porém, é ainda a mesma câmera que apresenta a personagem vista e o que ela vê” (DELEUZE, 2007, p. 180). Nas imagens de arquivo utilizadas no decorrer do filme, Elena vê e é vista, e, em ambos os casos, o espectador pode conhecer um pouco da sua maneira de enxergar o mundo e a si mesma. A câmera de vídeo parece sua porta de acesso à sensibilidade artística. Contudo, como se recorda Petra, Elena para de filmar aos quinze anos, quando os pais se separam, e se afasta; deixa de brincar de teatro com a irmã para virar atriz de verdade; e, com dezessete anos, entra no grupo de teatro Boi Voador, em São Paulo. No documentário, são mostradas imagens de arquivo de Elena ensaiando peças de teatro, deixando escapar sua boa desenvoltura no palco enquanto dança,
5 “[…] proliferación de las tecnologías del movimiento, con la invención de las cámaras de 16mm y de Super 8mm familiares […]” (SCHEFER, 2007, p. 10).
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gira, enrola-se e desenrola-se com uma corda, ainda que isso não a tenha livrado da angústia provocada pela autocrítica, como Petra mesma narra, em off: “Os outros atores me contam que você ensaiava muito, obsessivamente. Que mesmo quando parecia perfeito, pra você nunca tava bom, sempre faltava alguma coisa”. Em seguida, surgem na tela imagens gravadas de Elena atuando e de jornais diversos que anunciam uma adaptação de Guimarães Rosa encenada por ela na companhia Boi Voador, com sua foto por vezes estampando a capa das manchetes. Não obstante, a protagonista, por intermédio da sua narração em off, alertará o espectador que a irmã não está satisfeita, deseja mais, quer ser atriz de cinema. Há que se atentar aqui para o fato de que, a exemplo de Elena, “quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente como fonte de prazer e consolo para a vida” (FREUD, 2011b, p. 25). Algumas imagens de arquivo mostram Elena, bastante sorridente, falando em entrevista para um teste de elenco em Nova York. Todavia, essa impressão positiva dura pouco na tela, o tempo da narração em off de Petra disparar contra a esperança de Elena: “Você sai animada dessa entrevista, mas os dias passam e ninguém te dá notícias, ninguém te liga de volta. Você liga muitas vezes, mas te dizem pra esperar. Você não suporta esse tempo, essa espera”. Em outro momento, a própria Elena, em nova carta em fita cassete, põe em dúvida seu entusiasmo quanto a se firmar como atriz em Nova York:
Será que a minha raiz vai conseguir arrebentar asfalto, canos e prédios pra sobreviver e gerar frutos? Sim, se minha raiz fosse forte, grande. Mas sinto que minha semente nem chegou a brotar direito ainda. Então, provavelmente em uma cidade, ela, se brotasse, miúda e doente viveria.
Enquanto se pode ouvir a carta gravada por Elena, assiste-se à imagem de Petra adulta caminhando em uma rua escura, filmando a própria sombra projetada no chão, a sombra de galhos, a lua escondida atrás de uma árvore – metáfora possível, entre tantas outras, das sombras e escuridão que ameaçam a força de Elena na nova vida, no sonho de se tornar atriz de cinema. Assim, mesmo a “suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida” (FREUD, 2011b, p. 25). As dificuldades enfrentadas por Elena para firmar-se como atriz em Nova York logo a trarão de volta ao seu país.
Um espaço imaginário que se vê
Petra tem sete anos quando Elena volta dos Estados Unidos, “acreditando que aqui no Brasil sua raiz vai achar mais espaço para crescer”, conforme diz a
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fora. Seus olhos tão vermelhos. Talvez da cama, você tenha falado alguma palavra, não lembro. Lembro que a gente saiu do quarto e minha amiga, com olhar angustiado, perguntou o quê que você tinha. “Ela é assim”, eu respondi.
O doloroso momento vivenciado por Petra, no passado, é reconstruído por meio de imagens do presente, da casa outrora habitada pelas irmãs, em Nova York. Desse modo, enquanto ouve a voz off da protagonista, o espectador pode passear pelos cenários e elementos que compõem a memória remota de Petra, quando a câmera assume o seu olhar, quer dizer, no momento em que a câmera subjetiva mostra a sala onde estavam presentes ela e a amiga, chega até a porta do quarto de Elena, entra nele, olha para um cobertor sobre a cama, corrobora, enfim, a reencenação do dia em que viu a irmã desolada sobre a cama. “O importante neste ponto é observar que reagimos diante da imagem fílmica como diante da representação muito realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos vendo” (AUMONT, 1995, p. 21), sobretudo através da materialidade do quarto, da cama e do cobertor que abrigaram o sofrimento de Elena e a angústia de Petra, e que contêm, portanto, uma significativa carga emocional. É fato que reencenações como esta ampliam o envolvimento afetivo do espectador na medida em que contribuem com a vivificação de um evento perdido, de um passado ressuscitado com desejo (NICHOLS, 2008) – tomando aqui o conceito que o associa a todas as formas de vontade de viver, amar, criar e inventar outra realidade, outra visão de mundo (GUATTARI; ROLNIK, 1996). A intensidade da dor de Elena diante das dificuldades de se realizar enquanto atriz tende a se desnudar em uma carta em fita cassete, gravada por ela e ilustrada pela imagem de Petra adulta caminhando nas ruas de Nova York:
10 de setembro. Minha garganta tá machucada, sempre teve. Não só por causa dos gelados, vento, frio, tensão, ansiedade, mas principalmente a consciência do medo, da falta de amor por mim, pela minha voz. Talvez eu precise de uma terapia especial pra me destraumatizar e tirar esse rolo de fios no peito e na garganta, que antes não me deixava respirar e agora não me deixa falar, nem cantar.
Elena, através da metáfora do rolo de fios, parece querer sinalizar que se sente presa, atada, incapaz de se expressar, em especial artisticamente. Durante o filme, fica evidente o quão ela se cobra no aperfeiçoamento artístico e o quanto depende dele para viver com satisfação, como sentencia no diálogo recordado pela mãe, enquanto se vê um superclose do rosto desta:
Ela tava sentada na cama, do outro lado, eu sentei, aí que ela falou: “A arte pra mim é tudo. Sem a arte eu prefiro morrer.
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Se eu não consigo fazer arte, melhor morrer.” Eu só falei: “Oh, Elena, não faz isso! Não é assim! Pra quê que cê foi voltar na aula de teatro? A agente combinou que cê não ia voltar por enquanto”.
No dia seguinte a situação descrita pela mãe, Elena acorda triste de uma maneira que incomoda Petra, conforme implícito em certas palavras narradas por esta. Em um trecho memorável do filme, a câmera subjetiva desloca-se em direção às escadas do apartamento habitado por mãe e filhas em Nova York. Enquanto isso se pode ouvir a voz off de Petra: “Você fica em casa. O dia inteiro em casa sozinha. Fazendo o quê? Falando com quem? No final do dia, um amigo te liga. Vocês tinham um encontro. Há vinte anos que eu imagino essa pessoa… Quê que você falou pra ele? Quê que ele fez?”. Então, o espectador tem acesso à imagem dessa pessoa no presente, Michel, o amigo de Elena, em que este caminha pelas ruas de Nova York. Na sequência, sentado de frente para a câmera, o rapaz confidencia a angústia de Elena, ao telefone, naquele dia; o dia em que ela tomou um frasco inteiro de aspirinas e cachaça, sentou-se em uma escrivaninha e escreveu uma carta de despedida, que pode ser vista, no filme, sendo lida por Petra:
Esse mistério. Me sinto escura, no escuro, que nunca vai terminar. Não ouso querer trabalhar em teatro, cinema, dança, canto, porque eu já vivi e poucos momentos depois já não possuía a sua luz e não sabia pra quê, o quê e por que os fazia. E toda tristeza de sempre tomava conta de mim [...].
Em outra passagem, agora são as imagens do interior do apartamento em que Elena suicidou-se que ambientam a leitura da carta de despedida, em off, por Petra: “Ai que mal estar! Gostaria pelo menos de poder vomitar. Nem isso. Me sinto fraca, covarde e envergonhada, perante a vida e todos. Eu quero morrer! Razão? Tantas que seria ridículo mencioná-las. Eu desisto...”.
Entre sólidos e líquidos
A morte prematura de Elena, aos vinte anos, possibilita pensar que “a fragilização identitária dos jovens se enuncia de forma patente […]. É a impossibilidade e os limites da autoria de suas existências que se enuncia aqui de maneira trágica” (BIRMAN, 2005, p. 21). A dor vivida pela mãe, diante da perda precoce de Elena, preenche o espaço fílmico em cenas como aquela em que ela aparece no suposto quarto em que a filha suicidou-se, recorda-se dos objetos ali presentes – uma seringa e uma faca – e simula a posição em que a encontrou desmaiada; ou aquela em que ela surge no corredor do suposto hospital que socorreu a filha, lembra-se do
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de existir. Nesse sentido, para a protagonista, afogar-se em Elena parece simbolizar também afogar-se em Ofélias, e, afogando-se nelas, tende a conhecer mais a própria dor. Nos momentos finais do filme, assiste-se a imagens de Petra e Ofélias amontoadas flutuando sobre a água, enquanto se pode ouvir a sua voz off: “E, pouco a pouco, as dores viram água, viram memória” – como nos tempos líquidos descritos por Bauman (2001), marcados por fluxo, transformação, insolidez e desmanchamento de certos mundos que abrem passagem para a formação de outros. Em sintonia com isso, Petra, durante outra narração em off, enfatiza que “as memórias vão com o tempo, se desfazem. Mas algumas não encontram consolo, só algum alívio: as pequenas brechas da poesia” – passíveis de serem preenchidas ao longo do documentário e no seu desenlace final, momento em que o espectador pode circular por uma coreografia de distintos espaços-tempos: Elena criança dança e gira os cabelos; a irmã mais velha dança com a irmã bebê no colo; Petra adulta dança e gira nas ruas de Nova York; Elena jovem dança, enrola-se e desenrola-se com uma corda no palco; a protagonista adulta dança e gira até desaparecer de quadro.
Elena transforma-se frequentemente ao longo da narrativa fílmica, ao trafegar entre certezas e incertezas, conquistas e frustrações, gozo e sofrimento; e por fim, a vida da personagem tem como fio condutor a história da sua morte.
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submetido em: 14 março 2015 | aprovado em: 8 maio 2015.