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A estruturação e os métodos utilizados na ampliação da rede brasil, uma rede social formada por homens bissexuais e homens casados que desejam relações bissexuais. O texto detalha as etapas da pesquisa, desde o levantamento de nomes e endereços até a envio de materiais de prevenção à aids e jornais acerca do tema. Além disso, o autor reflete sobre a representação da masculinidade bissexual e as relações entre homens bissexuais e homens homossexuais.
Tipologia: Esquemas
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Fernando Seffner
Porto Alegre 2003
Fernando Seffner
Tese de Doutorado apresentada como requisito par- cial para a obtenção do título de Doutor em Educa- ção ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientadora: Profª. Dra. Guacira Lopes Louro
Porto Alegre 2003
escrita da tese significou para mim, como imagino para quase todos que se aventuram nesta trilha, um considerável esforço pessoal, pontuado por momentos de indecisão, vontade de desistir, de modificar tudo, de trocar de tema ou de referencial teórico, de adiar, de sentir-se pequeno frente à magnitude da tarefa. Mesmo os elogios dos colegas e amigos, em frases do tipo “que belo tema tens, imagino o belo trabalho que poderás fazer” me provoca- vam calafrios. Se cheguei ao final, com certeza não foi sozinho, mas amparado por uma rede de pequenos e grandes auxílios, na qual se contam muitos personagens, que quero aqui agradecer.
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A parte mais complicada – não a mais difícil, simplesmente complicada – de todo este trabalho foi feita antes de ingressar no Programa de Pós Graduação em Educação, e consistiu na aproximação ao conjunto de homens bissexuais, e no estabelecimento de uma relação pro- dutiva e de confiança com cada um deles. O auxílio financeiro e o clima de colaboração intelectual proporcionados pela bolsa do Programa de População da MacArthur Foundation, no período 1995/1999, foram fatores indispensáveis para a realização da tarefa. De toda forma, ela não teria sido possível sem a ajuda do Marquinhos (Marcos Renato Benedetti), mais que bolsista um parceiro de pesquisa. Richard Parker, que foi meu primeiro orientador nesta bolsa da MacArthur, e posteriormente co-orientador, também membro da banca de avaliação do projeto de tese e professor nas disciplinas cursadas no Instituto de Medicina Social da UERJ teve grande influência na definição das principais questões de pesquisa, bem como Vera Paiva, minha segunda e até hoje mentora. Por caminhos diferentes, continuei ao longo destes anos a me beneficiar de sua amizade e companhia intelectual. Também Sônia Corrêa e Jurandir Freire Costa, nos encontros anuais promovidos pela MacArthur Foundation, contribuíram com preciosas sugestões, mas a nenhum deles devem ser creditados os erros e equívocos que porventura aqui se encontram. O convívio com os colegas bolsistas da Fundação, especialmente José Ricardo Ayres e Wilza Vilela, ajudou a resolver inúmeros impasses da pesquisa. Já no Programa de Pós Graduação em Educação da UFRGS, minha dívida principal é para com a professora. Guacira Lopes Louro, minha orientadora, que contribuiu de muitas e suaves formas para que eu realizasse um trabalho original e criativo, o que creio ter consegui-
do. Mais do que isso, sua orientação levou-me a ingressar em novos territórios de conheci- mento, novos modos de pensar e novos métodos de trabalho, bastante desafiadores para quem vinha de um pensamento marxista militante. Também os colegas do grupo de orientação, em particular Alex, Rosângela, Cláudia, Ruth, Rosemary, Jimena e Cíntia colaboraram com pre- ciosas sugestões na definição de temas e recortes, e a eles e elas sou muito agradecido. Com certeza, afirmações, pensamentos, pedaços de frases quando não frases inteiras desta tese fo- ram inspiradas nos debates nos encontros do grupo de orientação. No momento da defesa do projeto de tese, pude contar também com as observações preciosas dos professores Tomaz Tadeu da Silva e Dagmar Estermann Meyer.
O estudo, a leitura e a redação desta tese aconteceram em numerosos locais, mas especi- almente na casa de praia gentilmente cedida por Maria Helena e Mário, onde pude passar momentos de tranqüilidade e leitura intensas. Da mesma forma, desfrutei da possibilidade de escrever partes deste trabalho na casa de praia de Maria Stephanou e na casa de Arcanjo Pe- dro, locais onde já uma tese havia sido escrita, e dali pude tirar boas energias.
Agradeço a UFRGS, em especial a chefia e aos meus colegas do Departamento de Ensi- no e Currículo da Faculdade de Educação, pela licença de dois e meio anos, e agradeço espe- cialmente às minhas colegas mais próximas, do Mnemosyne, pela substituição nas minhas atividades: Maria Stephanou, Maria Aparecida Bergamaschi, Simone Valdete dos Santos e as professoras substitutas Sônia Marques, Hilda Jaqueline e Gabriela Rodrigues.
Sem bibliotecárias, o trabalho científico seria impossível, especialmente a feitura de uma tese. Quero agradecer a Joaquina Sene, bibliotecária da FAPA, Rosane Hammel, biblio- tecária do UNILASALLE, Iara e Eroni, do Núcleo de Integração Universidade & Escola, pela dedicação incansável em obter livros e selecionar bibliografias para mim, e a Maria Amazília da biblioteca da Faculdade de Educação pela revisão do texto.
Ao longo dos últimos anos, venho mantendo um produtivo vínculo de pesquisa com o UNILASALLE, tendo-me beneficiado da estrutura e da boa vontade dos funcionários e fun- cionárias que ali trabalham. De maneira direta, agradeço aos bolsistas de iniciação científica e aperfeiçoamento Maria Erotides, Carlos Eduardo Ávila, Voldinei Vargas e Jairo Hepp Drews, e de maneira indireta aos demais colegas professores e funcionários, que se mostraram sempre prestativos em resolver todo tipo de problemas.
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o escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. (DELEUZE, 1988, p. 18, grifo do autor)
objetivo desta pesquisa é tratar das identidades vinculadas às representações da mascu- linidade bissexual, a partir de material coletado num período de tempo bem marcado – 1995 a 2000 –, num espaço delimitado – Brasil – e através de uma forma específica – uma rede postal integrada por homens informantes espalhados em numerosas cidades do país. A análise do material é feita dentro do paradigma do construcionismo social, e tomando como referência as construções culturais de gênero, sexo, sexualidade, identidade, representação e masculinidade, que auxiliam a entender a situação não apenas dos indivíduos que vivem esta particular forma de masculinidade, mas a sexualidade de forma ampla. A ancoragem teórica desta investigação situa-se nos campos dos estudos culturais, dos estudos de gênero e do pós- estruturalismo, que justamente propiciam a construção de explicações sobre a sexualidade não restritas ao referencial biológico e psicológico, e radicam suas análises no campo cultural, entendendo a cultura como um horizonte de luta por representações e significações. Todo esse esforço de compreensão é trazido ao campo da educação, uma vez que nesta área as reflexões sobre identidade e representação são estratégicas, pois que a construção da identidade é sem- pre fruto de pedagogias postas em ação, no caso aqui, as chamadas pedagogias da sexualidade.
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PALAVRAS-CHAVE: masculinidade bissexual – identidade cultural – representação – sexu- alidade – gênero.
função desta apresentação é fornecer ao leitor uma visão ampla do caminho que foi percorrido na escrita dessa tese, facilitando a leitura das seções que seguem. Esta tese trata de investigar os processos de construção de representações acerca da masculinidade bis- sexual, bem como mecanismos de produção da identidade e da diferença entre homens que mantém relações afetivas e sexuais com homens e mulheres, nomeados aqui como homens bissexuais.
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A partir de uma diversidade de materiais coletados no âmbito de uma pesquisa financia- da pela MacArthur Foundation (1995-2000), abordo aqui o estudo das representações e das identidades produzidas no campo da masculinidade bissexual. Desta forma, e seguindo posi- ção tomada por outros autores nas pesquisas no terreno da sexualidade, “não pretendo discutir o comportamento sexual em si. Basicamente estou, neste momento, interessado em discutir o que é que as pessoas dizem que fazem e o que acham que deveria ser feito e menos preocupa- do com o que as pessoas fazem de fato” (FRY, 1982, p. 88-89). Portanto, abandono, já de início, qualquer pretensão em “desvendar” o “verdadeiro” comportamento sexual de homens bissexuais no Brasil, e admitimos a possibilidade de numerosas representações acerca do mesmo comportamento, concorrentes ou concordantes.
O objetivo aqui é aprofundar reflexões não somente sobre a masculinidade bissexual, mas sobre a identidade e sexualidade masculinas de uma maneira mais ampla, ao mesmo tem- po em que se tenta perceber as diferentes pedagogias da sexualidade que são postas em ação para a construção de uma forma particular de masculinidade. Justamente o tema da masculi- nidade bissexual parece propiciar isto, porque se apresenta como um espaço de transitoriedade com relação a diversas questões do mundo masculino, especialmente aquelas que envolvem relações de poder: quem é ativo e quem é passivo; quem é heterossexual, homossexual ou bissexual, e quais os diferenciais de poder aí existentes; quem busca um outro homem para manter relação sexual, e quem é buscado/procurado; quem é casado e quem é solteiro; quem mantém relações com outro homem na presença de uma mulher, e quem mantém relações exclusivamente entre homens; quem “ assume ” isso em casa, e “ a esposa participa ”, ou quem “ não assume ”, e “ a esposa não participa ”; etc. Em outras palavras, a masculinidade bissexual
versão – o papel de vetores da infecção. Mas numerosos outros motivos apontam para um certo sucesso de mídia da bissexualidade, em especial a masculina, em suas vinculações com a idéia de “sexo do futuro”.
A nomeação de práticas sexuais, a produção de “sujeitos sexuais”, a identificação de novas doenças sexualmente transmissíveis, enfim, a “invenção da sexualidade”, é um proces- so que opera de modo constante na sociedade, e no qual cada um de nós pode funcionar ora como sujeito, ora como objeto. A progressiva visualização de sujeitos e práticas bissexuais é apenas um dos componentes desse processo, e que vai ser aqui problematizado, mas com cer- teza não de modo exaustivo. O processo de “entronização da sexualidade”, conforme já de- monstrado por Foucault (1985a, 1985b), teve início em um período histórico bem determina- do, e talvez possamos assistir, no futuro, ao esgotamento dessa categoria, conforme alerta Weeks (1999). A visualização dos sujeitos sexuais está acompanhada de um processo de pro- dução e de controle (FOUCAULT, 1977), e neste trabalho essa tensão também está presente. É a tensão do “conhecer para controlar”, especialmente se levarmos em conta que o processo de investigação que deu origem a esta tese partiu de uma questão epidemiológica clara: os homens bissexuais como importantes vetores de transmissão do HIV. O problema dessa ten- são não se dá tanto no nível da apropriação do texto, mas no nível da produção, na percepção da situação em que me vi muitas vezes a pesquisar aquilo que reiteradamente me era pergun- tado sobre o tema, e apenas lentamente pude principiar a formular questões próprias de pes- quisa, e construir respostas próprias.
Neste trabalho, resisto ao máximo a responder a pergunta “o que é?”, bem como em in- vestigar exaustivamente “o que causou isto?”, perguntas clássicas que em geral aparecem nas pesquisas sobre sexualidade, especialmente quando o que está sendo investigado é uma moda- lidade sexual percebida como divergente do suposto padrão normal. Mais do que saber o que “causa” a bissexualidade destes homens, o que me interessou foi perceber de que forma eles dizem viver este desejo, de que estratégias lançam mão para construir a satisfação do desejo em suas vidas. Trata-se de saber como os indivíduos se narram, como dizem de si, como se representam e se nomeiam, como contam histórias e descrevem cenas e situações que lhes parecem importantes, quando perguntados sobre seus modos de viver a masculinidade bisse- xual. Também se busca saber como outras instâncias representam estes sujeitos. Importa saber mais das aproximações ou não com a homossexualidade, ou com os modelos da masculinida- de hegemônica, do que propriamente saber o que causou tal ou qual comportamento, embora
esta pergunta apareça nos materiais de que dispomos, e vou para ela apresentar possíveis res- postas ensaiadas pelos próprios sujeitos.
Tratando-se de uma modalidade de viver a masculinidade considerada divergente, esta tese se vê envolvida em questões como: o que há de transgressivo na vivência da masculini- dade bissexual? Será mesmo que a masculinidade bissexual corresponde a uma possibilidade mais ampla, mais intensa e mais erótica de exercício da vida sexual? Será que a bissexualida- de é de fato a superação das barreiras todas da sexualidade? Como se sentem os homens que se acreditam bissexuais frente a estes discursos? Porque a masculinidade bissexual é exaltada e demonizada, quase ao mesmo tempo? Procuro me manter o mais possível dentro do tom da análise cultural, articulando os discursos que provém de diferentes instituições e práticas soci- ais, para construir um quadro, este sim de minha autoria, no qual organizo as informações coletadas. Evito, a todo custo, o tom de diagnóstico de quem explica o depoimento de um sujeito em particular, extraindo dali uma verdade escondida desde sempre.
Esta tese ancora-se na área de educação por, pelo menos, três motivos diferentes. O pri- meiro deles é por abordar os conceitos de identidade e representação, centrais em qualquer processo educativo, tendo-se presente que os processos educativos são formadores de identi- dades, e não simplesmente mediadores. A pedagogia visa formar indivíduos, lida, portanto, diretamente com identidades e representações. A identidade aqui é sempre identidade cultural, mesmo quando não está assim adjetivada no texto. Em segundo lugar, a abordagem dos temas do gênero e da sexualidade – no presente caso, gênero e sexualidade masculina – permite ge- rar dados e informações que subsidiem a educação sexual, onde o tema da diferença sexual é sempre tomado como um “problema”, em particular quando se fala da homossexualidade, e onde a masculinidade bissexual nem sequer é comentada. Em terceiro lugar, considerando que a preocupação central na criação e organização da Rede Bis-Brasil foi com a vulnerabilidade dos homens bissexuais à aids, esta tese, ao refletir sobre esta experiência de organização, inse- re-se também no campo da educação em saúde, em especial quando trata de investigar as re- presentações e suas conseqüências para os agravos de saúde.
Aquilo que eu chamo de “tese propriamente dita” corresponde fortemente à já definida terceira parte, onde está a “novidade”, a criação conceitual que foi possível construir articu- lando teoria e informações coletadas no âmbito da Rede Bis-Brasil. É nesta parte que espero ter demonstrado familiaridade com o conhecimento disponível na área, intimidade no manejo
bissexual os indivíduos que se identificam como homossexuais? De que modo a cultura da homossexualidade, reconhecidamente mais sólida do que aquela da masculinidade bissexual, processa a relação com os homens bissexuais?
Esses conjuntos de questões – e ainda outras que estão construídas ao longo do estudo – parecem encaminhar para uma indagação mais ampla, qual seja, a de se existe uma identidade masculina bissexual. Trata-se de saber se – e como – os sujeitos se reconhecem neste lugar, o que implica reconhecer-se como um homem bissexual. Perguntado de outra forma, a questão mais abrangente desta pesquisa é: existe uma identidade masculina bissexual? Esta questão permite discutir as diferentes representações da masculinidade bissexual, qualificando as ins- tâncias que possibilitam a construção das identidades culturais a elas associadas, entendendo- se a identidade cultural como uma posição de sujeito (HALL, 2000), fruto de um conjunto de interpelações.
Por fim, um alerta e uma confissão: estou consciente de que meu texto é repetitivo em muitas partes, ou seja, caracteriza-se por uma retomada constante das questões. Procurei fazer estas repetições, ou retomadas, de forma a acrescentar sempre algo novo, procedendo por a- créscimos de conhecimento. Entretanto, estou ciente de que a repetição foi, pelo menos para mim, necessária, configurando uma estratégia de aproximação ao referencial dos Estudos Cul- turais e do pós-estruturalismo, que representam paradigmas muito diferentes da tradição mar- xista onde estive inserido nos anos anteriores, tanto na face da militância quanto naquela da produção teórica.
rande parte daquilo que um indivíduo pode saber sobre um determinado tema está rela- cionado aos caminhos que o conduziram até este tema, e também aos caminhos por ele trilhados “dentro” do tema. Caminho pode ser também uma metáfora para falar do método de trabalho. Falar sobre o caminho implica falar também um pouco sobre quem caminhou, sobre o autor da caminhada. Coerente com essas afirmativas, explicito nesta seção um pouco do meu interesse pelo tema da masculinidade bissexual, como ele se gestou, e de que forma foi possível dedicar-me a ele a ponto de montar uma rede de homens bissexuais em todo o Brasil. Tratar disso insere-se também na tentativa de ser crítico, entendido aqui o termo crítico como a capacidade de analisar as condições do meu próprio conhecer e dizer sobre a masculinidade bissexual.
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Minha dissertação de mestrado foi feita no período 1992 a 1995, investigando trajetórias de vida de indivíduos soropositivos. Durante aqueles anos todos, coordenei as atividades de um grupo de mútua ajuda para soropositivos, que funcionava na sede do GAPA/RS - Grupo de Apoio à Prevenção da Aids, em Porto Alegre. Ao iniciarmos as atividades, em março de 1992, o grupo compunha-se majoritariamente de homossexuais e de algumas mulheres. A partir de meados de 1993, principiaram a participar nele também alguns homens heterossexu- ais. Instados pelo grupo a contar como haviam se infectado pelo HIV, estes homens apresen- tavam sempre duas histórias bem marcadas. Ou eram usuários de drogas injetáveis, haviam se infectado pelo compartilhamento de seringas com os companheiros da “roda de pico”, e fala- vam disso abertamente e com facilidade, ou eram homens que tinham uma certa dificuldade em explicar sua infecção, negando-se a comentar o assunto, ou então contando histórias com algumas passagens nebulosas. Exemplo disso foi o relato de um bancário casado, que expli- cou, logo no primeiro encontro em que participou do grupo, que havia se infectado por ter “transado” com uma antiga namorada, com quem havia se encontrado diversas vezes, há dois verões atrás, enquanto sua esposa estava com a filha na praia. Entretanto, logo no encontro seguinte do grupo, ele afirmou que sempre usava o preservativo quando mantinha relações extra conjugais, mas que algumas vezes o preservativo prevenia a gravidez, mas deixava pas- sar o vírus HIV, e era isto que tinha acontecido com ele. Esta explicação, claramente em desa- cordo com o que se conhece sobre os modos de infecção pelo HIV, foi rejeitada pelos demais
Algumas mulheres presentes no grupo de mútua ajuda tendiam a identificar estes ho- mens bissexuais como sendo os vetores da disseminação do vírus da aids dos homossexuais para outros grupos, fazendo coro à opinião predominante na mídia na época, e até hoje bastan- te difundida. Aos poucos, foi-se revelando uma situação muito sofrida destes homens, pois enfrentavam a discriminação que vinha das mulheres, dos homens homossexuais e dos ho- mens heterossexuais, bem como das autoridades de saúde que lidavam com a epidemia de aids.
Desta forma, minha “apresentação” ao tema deu-se no meio do processo de elaboração da dissertação de mestrado, que versava sobre os modos de viver sendo portador do HIV, a partir de trajetórias de vida onde analisava seus medos, suas formas de reconstruir a vida, seus amores e seus afetos, as mudanças na vida profissional e familiar. Encerrada a etapa do mes- trado, passei a me aproximar do tema da bissexualidade, e com isso, de forma mais ampla, do tema da masculinidade.
No segundo semestre de 1995, tendo concluído a dissertação de mestrado, participei do processo de seleção para bolsas individuais do programa de população da MacArthur Founda- tion no Brasil. No edital, eram estimulados os pesquisadores que pretendessem dedicar-se ao tema das diferentes formas de construção da masculinidade, especialmente em assuntos como o exercício da paternidade, o cuidado com a disseminação das doenças sexualmente transmissíveis, a violência masculina, etc.
Elaborei um projeto vinculando masculinidade e epidemiologia da aids, e ele foi apro- vado para financiamento, inicialmente no período 1995-1998, havendo depois um prolonga- mento até 2000. Por sugestão da banca examinadora, restringi minha abordagem especifica- mente ao universo da bissexualidade masculina, abandonando as pretensões quanto à compre- ensão da masculinidade “em geral” e sua relação com a aids. O propósito inicialmente formu- lado do projeto de intervenção junto aos homens bissexuais financiado pela MacArthur Foun- dation era de
[... ] investigar comportamentos, hábitos e atitudes entre homens bissexuais, bus- cando identificar, descrever e analisar sua vulnerabilidade frente ao HIV/aids, visan- do gerar instrumentos de comunicação efetiva no sentido de favorecer sua capacita- ção em estabelecer estratégias de prevenção à infecção pelo HIV/aids, tanto para si como na relação com seus/suas parceiros(as). (SEFFNER, 1995, p. 1)
Para a manutenção de um interesse pessoal de pesquisa neste tema por tanto tempo con- correram diversos fatores. De foro íntimo, estudar a masculinidade, e em especial a masculi- nidade bissexual, colaborou para uma indagação mais profunda sobre minha própria masculi- nidade, o que explica o interesse sempre renovado que tenho tido pelo tema. Por outro lado, minha permanente dedicação ao trabalho voluntário junto a uma organização não governa- mental de luta contra a aids tem permitido perceber a persistência da infecção entre homens bissexuais e homossexuais, em geral ligada a problemas de baixa auto estima, tensão para a manutenção do anonimato e violência estrutural. Desta forma, verifico que estamos ainda longe de compreender inteiramente os impactos da aids no mundo da cultura sexual. Um fator importante esteve relacionado à manutenção da fonte de financiamento, no caso a bolsa da Fundação MacArthur, bem como o apoio técnico, representado pela supervisão do mentor, do avaliador, das possibilidades de apresentação e debate nos encontros anuais e da troca de ex- periências com outros bolsistas.
O longo período de duração da bolsa, associado à diretriz da Fundação MacArthur de que os bolsistas deviam conjugar uma atividade de pesquisa com uma atividade de interven- ção social, terminou propiciando a construção de uma rede de homens bissexuais, cujas carac- terísticas, organização e origem serão detalhadas adiante, e que forneceu a base para coleta de dados sobre o tema desta tese. Fruto desse percurso, ao ingressar no Programa de Pós- Graduação em Educação, no segundo semestre de 1998, encontrava-me numa situação bastan- te diferente da maioria dos colegas: eu já possuía grande quantidade de material coletado so- bre o tema que me propunha investigar, em que pese, da mesma forma que os demais, neces- sitar de uma aquisição teórica e, fundamentalmente, necessitava construir um problema de pesquisa.
Durante todo o período de estudo e escrita desta tese, estive mergulhado em ações e ati- vidades junto aos homens bissexuais, embora este ritmo tenha diminuído após o encerramento das atividades da rede, mas com certeza não se esgotou. Conviver com esta quantidade imen- sa de material e de estímulos, diálogos, novos dados, fruto dos anos de existência da rede, originou uma igualmente imensa quantidade de percepções, intuições, pressentimentos, dúvi- das e opiniões, as quais procuro nesta tese dar a forma de conclusões, mesmo que precárias.
Tudo isto me colocou na situação de um pesquisador que desfruta de intimidade com o tema antes de iniciar uma investigação sobre ele. Mais ainda, a quase totalidade dos processos