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Guias e Dicas
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Análise da Dúvida e da Angústia no Fausto de Goethe, Esquemas de Conflito

Uma análise do tema fundamental do fausto de goethe, enfatizando a luta de fausto contra as questões da modernidade, como a angústia, o desamparo, a falta de fé, a finitude e a relação com a natureza e o absoluto. A análise se divide em duas partes: a primeira aborda a problemática inicial do fausto, enfocando a dúvida e a solitude na cena 'noite'. A segunda parte explora a relação entre um ponto das meditações de descartes e a 'noite' do fausto. Palavras-chaves: goethe, fausto, dúvida, modernidade.

O que você vai aprender

  • Qual é a importância da relação entre o Fausto e Descartes?
  • Qual é a problemática inicial do Fausto de Goethe?
  • Como a dúvida e a solitude na cena 'Noite' influenciam a transformação de Fausto?

Tipologia: Esquemas

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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ar G u m e n t o S , Ano 1, N°. 2 - 2009
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A
Revista de Filosofia
Rosiane de Sousa Mariano Aguiar*
* Doutoranda em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Fausto e a dúvida cartesiana
rEsUMO
O presente trabalho apresenta uma análise dos temas fundamentais do Fausto de Goethe (1749-
1832). Nessa análise tentamos elucidar o enfrentamento de Fausto diante das questões pertinentes
à condição do homem da modernidade, a exemplo da angústia, do desamparo, da falta de fé, da
finitude, da relação com a natureza e com o absoluto etc. Este texto constitui-se basicamente de
duas partes. A primeira compreende as questões que destacamos ser a problemática inicial do tema
de Fausto, enfocando a dúvida e a solidão na cena “Noite”. Para nós, essa cena é o episódio emble-
mático da transformação de Fausto na tragédia goethiana. Nela, o protagonista lança os alicerces
que sustentam a sua existência desmedida ao permitir que a dúvida ceda lugar à insaciabilidade,
representada por um Fausto mefistofélico, arquétipo dos tempos modernos. A segunda parte é a
relação de um ponto das Meditações de Descartes com a “Noite” do Fausto, ligação que se justifica
pela importância daquele como o filósofo que inaugura o pensamento moderno e apresenta, dentre
seu vasto legado filosófico, a dúvida enquanto carência de conhecimento (ciência) e demonstração
do ceticismo do homem diante dos fundamentos da existência.
Palavras-chave: Goethe; Fausto; dúvida; modernidade.
aBsTraCT
This work presents an analysis of fundamental themes found in Goethe’s Faust (1749-1832). We
aim at elucidating in this analysis Faust’s rising up to the challenge of responding to issues related
to modern human condition, such as the one found in angst, helplessness, faithlessness, finitude,
relations with nature and the absolute, etc. This text comes basically in two parts: the first includes
questions that we consider the initial problem in Faust’s theme, and we focus on doubt and loneliness
in the scene entitled “Night”. To our understanding that scene is the emblematic episode of Faust’s
transformation according to the Goethean tragedy. It is in that scene that the protagonist launches
the foundation for his immoderate existence as long as he allows for doubt to yield to insatiability,
as represented by a Mephistophelean Faust, an archetype of modern times. The second part deals
with a relation found between Descartes’ Meditations and Faust’s “Night”, a link that is justified by
the importance of a philosopher who inaugurates modern thinking and presents, within his vast
philosophical legacy, doubt as a lack of knowledge (science) and a demonstration of man’s skepti-
cism when faced with existence foundations.
Key words: Goethe; Faust; doubt; modernity.
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Baixe Análise da Dúvida e da Angústia no Fausto de Goethe e outras Esquemas em PDF para Conflito, somente na Docsity!

A

Revista de Filosofia

Rosiane de Sousa Mariano Aguiar*

  • Doutoranda em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Fausto e a dúvida cartesiana

rEsUMO

O presente trabalho apresenta uma análise dos temas fundamentais do Fausto de Goethe (1749- 1832). Nessa análise tentamos elucidar o enfrentamento de Fausto diante das questões pertinentes à condição do homem da modernidade, a exemplo da angústia, do desamparo, da falta de fé, da finitude, da relação com a natureza e com o absoluto etc. Este texto constitui-se basicamente de duas partes. A primeira compreende as questões que destacamos ser a problemática inicial do tema de Fausto, enfocando a dúvida e a solidão na cena “Noite”. Para nós, essa cena é o episódio emble- mático da transformação de Fausto na tragédia goethiana. Nela, o protagonista lança os alicerces que sustentam a sua existência desmedida ao permitir que a dúvida ceda lugar à insaciabilidade, representada por um Fausto mefistofélico, arquétipo dos tempos modernos. A segunda parte é a relação de um ponto das Meditações de Descartes com a “Noite” do Fausto , ligação que se justifica pela importância daquele como o filósofo que inaugura o pensamento moderno e apresenta, dentre seu vasto legado filosófico, a dúvida enquanto carência de conhecimento (ciência) e demonstração do ceticismo do homem diante dos fundamentos da existência.

Palavras-chave : Goethe; Fausto; dúvida; modernidade.

aBsTraCT

This work presents an analysis of fundamental themes found in Goethe’s Faust (1749-1832). We aim at elucidating in this analysis Faust’s rising up to the challenge of responding to issues related to modern human condition, such as the one found in angst, helplessness, faithlessness, finitude, relations with nature and the absolute, etc. This text comes basically in two parts: the first includes questions that we consider the initial problem in Faust’s theme, and we focus on doubt and loneliness in the scene entitled “Night”. To our understanding that scene is the emblematic episode of Faust’s transformation according to the Goethean tragedy. It is in that scene that the protagonist launches the foundation for his immoderate existence as long as he allows for doubt to yield to insatiability, as represented by a Mephistophelean Faust, an archetype of modern times. The second part deals with a relation found between Descartes’ Meditations and Faust’s “Night”, a link that is justified by the importance of a philosopher who inaugurates modern thinking and presents, within his vast philosophical legacy, doubt as a lack of knowledge (science) and a demonstration of man’s skepti- cism when faced with existence foundations.

Key words : Goethe; Faust; doubt; modernity.

a dúvida no Fausto e o desamparo

na sociedade moderna

Na cena inicial “Noite”, da Primeira Parte da tragédia do Fausto , 1 de Goethe, o protago- nista, sozinho, começa seu grandioso monólogo em que manifesta o conflito interior entre os seus saberes que buscam a completude e o seu espírito desenraizado. No seu quarto de trabalho, o Doutor Fausto confessa estar com “a mente amargurada” por nada saber diante de tudo o que, “com máxima insistência”, estudou. Este estado de frustração determinará a negação dos fundamentos da vida do Doutor Fausto e o surgimento do paradigma do homem moderno, posto ao longo da obra-prima, dividida em duas partes. Dentre a diversidade dos seus atos e temas, ficamos com a cena da “Noite” por ela representar a categoria da dúvida e da negação que fará repercutir em todos os demais temas da tragédia do Fausto. Uma das evidências do dilema fáustico é a apreensão do lugar absoluto almejado pelo protagonista. É curioso notar que esta grande criação artística é resultante da cena estática da “Noite”, na qual a meditação latente de Fausto é permeada por um processo que envolve a dúvida, a negação e o desejo. Disso resulta o descaminho do protagonista, o mesmo que im- pele o antagonismo do homem moderno com a natureza. Esse momento de dúvida é também o da negação da primeira criação, da vida que brota da natureza. Se a aspiração de Fausto é pelo lugar do absoluto, seus desejos negam os princípios constitutivos da criação do mundo e da humanidade. Há, na gênese bíblica, ati- tudes cabíveis a qualquer homem, a saber: a contemplação, a admiração em face do belo e o descanso do Criador depois dos grandes feitos. 2 Mas, para Fausto, a expressão de com- pletude, o estado de satisfação e de repouso em face do belo são, precisamente, suas duas

(^1) Utiliza-se para o presente trabalho a tradução do original alemão empreendida por Jenny Klabin Segall: GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia – Primeira parte. Apresentação, comentários e notas de Marcus Vinicius Mazzari, Ilustrações de Eugène Delacroix. São Paulo: Edições. 34, 2004. O texto completo do Fausto I foi escrito entre 1772 e 1806 (MAZZARI in GOETHE, 2004, p.7-24). (^2) Referimos-nos às passagens da Sagrada Escritura, do primeiro capítulo de Gênese , em que há a repetição do verso “e Deus viu que era bom” após a criação de cada elemento da natureza. No final do capítulo, a narrativa reforça a atitude de admiração e completude do Criador: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom.” Já o descanso do Criador está posto no segundo capítulo de Gênese , que diz: “e no sétimo dia descansou, depois de toda a obra que fizera. Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, pois nele descansou de toda a sua obra de criação.” ( GêNESE , 1, 3-2:2. In: Bíblia de Jerusalém , 2006).

proibições, uma vez que o levariam a assumir sua condição humana, tornando-o finito, além de selar o fim do pacto com Mefisto, imposto sob tais condições:

Se vier um dia em que ao momento Disser: Oh, pára! És tão formoso! Então algema-me a contento, Então pereço venturoso! [v.1.699-1.702]

Lembremos que as obras da criação bí- blica foram geradas diante da constatação do vazio: “Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo” (GêNESES , 1:2). Porém, o fundamento da dúvida de Fausto está em virtu- de do existente. Aliás, não poderia ser do nada ou do vazio, como ocorre na gênese bíblica, já que Fausto é fruto da criação. Talvez esteja aí o princípio que o angustia e norteia todos os seus desejos, segundo define Mefistófeles nestes versos:

Fermento o impele ao infinito, Semiconsciente é de vão conceito; Do céu exige o âmbito irrestrito Como da terra o gozo mais perfeito, E o que lhe é perto, bem como o infinito, Não lhe contenta o tumultuoso peito. [v.302-307]

Como ser moderno, Fausto representa a ilimitação obsessiva de saber, de dominar e de possuir tudo, inclusive desejos espetaculares como a produção de um ser humano em labora- tório, a posse de Helena da Grécia e o domínio sobre o mar através das construções de diques e canais. Esses desejos, realizados na Segunda Parte do drama, o impedem de alcançar um estado de contemplação e de repouso, pois a condição era não se contentar e nem se deter. O instante sereno de plenitude e satisfação signi- fica um sinal de morte, conforme o protagonista assinala nos versos seguintes:

solidão, o desamparo como a voz e a condição originária da humanidade. Diante desse estado de solidão, convém aludir ao tempo de penúria o qual Heidegger considera a época a que nós pertencemos, marcada pelo fim do dia dos deuses, porque Deus está afastado. Essa falta não é, pois, explicada por uma negação da existência de Deus, mas por haver um “desam- paro” de Deus na existência humana, segundo diz Heidegger:

La falta de Dios significa que ya no hay un dios que de modo patente e inequívoco reúna em sí los hombres y las cosas y mediante esa reunión armónica la historia del mundo y la residencia del hombre en él. (HEIDEGGER, 1960, p. 224).^3 Esse tempo de penúria é, consoante o filósofo alemão, a consciência do desamparo, da finitude e da falta de Deus no mundo. Daí, diante dessa indeterminação da vida, o homem sente- se seguro na própria incerteza da essência do pensar. Embora a dúvida impulsione Fausto ao desejo de não assumir e sim ultrapassar os limi- tes da condição humana, sobretudo a finitude, a falta de fé é vivida pelo cético no âmago da angústia, “porque compreende o que a fé re- presenta para os homens em termos de paz e segurança.” (GRAMMONT, 2003, p. 45).

”Ouço a mensagem, sim, falta-me a fé, no entanto; É da fé o milagre o filho preferido.” [v. 765-766].

A dúvida fáustica, vivida no silêncio e na solidão de seu gabinete, foi causando a sensa- ção de desamparo, própria da modernidade e que se expande até os dias atuais. Alienado do convívio humano, “é um incrédulo que partilha suas dúvidas apenas consigo mesmo.” (GRAM- MONT, 2003, p.49). O silêncio, bem como a dúvida, disserta a comentadora, poderiam ser

[...] um caminho muito mais autêntico em direção à fé do que a ‘segurança e a alegria dos homens’ que não emanam do poder do espírito que conduz o mun- do, mas ‘se explicam por uma beatitude isenta de reflexão. (GRAMMONT, 2003, p.46).

Porém, a dúvida fáustica expressa a sensação do desamparo pela falta de Deus, mas nega o principal fundamento da condição humana, conduzindo o homem à errância e ao abismo pela busca da potência e do lugar do absoluto, tentando exercer poder sobre a vida. Essa vontade desmedida deixa Fausto à mercê de Mefisto. Este representa a consciência des- trutiva do homem moderno ao negar os limites da sua condição terrena e mortal. Para um homem de seu tempo, Fausto estudou tudo o que era possível: filosofia, me- dicina, jurisprudência, teologia e magia. Mas considerava-se um “pobre simplório” que nada sabia. Por isso, disse:

Mas mata-me o prazer no peito; Não julgo algo saber direito, Que leve aos homens uma luz que seja Edificante ou benfazeja. [v. 370-374]

Segundo Marcus Vinicius Mazzari, respon- sável pela apresentação, comentários e notas da edição produzida pela Editora 34, a frustração pe- sarosa de Fausto por ter-se dedicado à teologia antecipa de certo modo a negação de princípios fundamentais da fé cristã e ex- plicita assim os pressupostos de sua futura associação com Mefistófeles. (GOETHE, 2004, Nota 2, p. 63). Esse momento de pesar de Fausto o apro- xima da dúvida religiosa, pois sua confiança não está segura na sua relação com o absoluto. No fim da noite, Fausto, preparando-se para penetrar “em órbitas etéreas”, escuta o coro dos anjos no “santo alvor pascoal”, impedindo-o de beber o “último hausto”. Logo, sai para feste- jar a ressurreição de Jesus junto com a “ganida multidão”, na cena que também expressa sua sede de fé e de alegria cotidiana:

Que fundos sons, que toques argentinos, À força me subtraem dos lábios o cristal? [v. 742-743] Da aldeia já ouço o canto e o riso, Do povo é isto o paraíso De cada um soa alegre o apelo: Aqui sou gente, aqui posso sê-lo! [v. 937-940]

(^3) Tradução nossa: “A falta de Deus significa que agora não mais existe um deus que de modo patente e inequívoco reúna em si os homens e as coisas e, mediante essa reunião harmônica, a história do mundo e a residência do homem nele” (“Para que ser poeta?”).

Apesar da comoção que lhe causam os sinos, não é a fé que move Fausto para a afir- mação de suas crenças, idéias e convicções. Então, ele movimenta-se dentro do que alguns autores denominam estádio estético 4. Segundo Guiomar De Grammont, “a dúvida é a essência da idealidade do mundo do esteta. Portanto, é desagregadora da realidade.” (GRAMMONT, 2003, p. 46). Fausto, movido por seus instintos e perante a ausência de sentido da existência, nega os valores do mundo no qual vive. Esse estado de insatisfação vivido pelo esteta é o que o torna incapaz de dar sustentação aos valores da existência; é o paradigma do momento em que o homem moderno pode anteceder ou não o salto para a confiança, por trafegar, através da dúvida, um caminho em busca do que é autêntico e original. A dúvida pode repor o homem moderno em si próprio, de modo que a insegurança se apresente como forma autêntica do desvendamento do ser. Daí que o sentimento de desamparo fáustico, exercido no silêncio, na dúvida e na negação, poderia sustentar-se no reconhecimento de sua finitude para assim lançar-se em possibilidades criativas que não integrasse a destruição do próprio eu como parte do seu desenvolvimento. No entanto, a criatividade fáustica depende da destrutividade, conforme Marshall Berman compreende:

Fausto anseia por destravar as fontes de toda criatividade; em vez disso, ele se encontra agora face a face com o poder de destruição. Os paradoxos vão ainda mais fundo: Fausto não será capaz de criar nada a não ser que se prepare para deixar que tudo siga o seu próprio rumo, para aceitar o fato de que tudo quanto foi criado até agora – e, certamente, tudo quanto ele venha a criar no futuro

  • deve ser destruído, a fim de consolidar o caminho para mais criação. (BERMAN, 1986, p. 48).

Fausto é protótipo do homem moderno, tenta desesperadamente realizar todas as pos- sibilidades que se lhe oferecem, mas estas só lhe proporcionam uma atualidade transitória. A ele não interessa a memória do passado, muito menos a realidade efetiva, já que ele se preo- cupa apenas com o instante, com sua absoluta transitoriedade. Os versos seguintes corroboram nossa asserção:

Os que nos deram vida, altíssimos sentidos, Na térrea agitação quedam-se entorpecidos.

Se, outrora, a fantasia, o vôo audaz ampliando, Do Eterno já avistara, esperançosa, a plaga, Contenta-a, hoje, um espaço exíguo, quando Toda ventura em turbilhão da era naufraga. [v. 638-643]

Somente no final da “Noite” de Fausto , na cena que segue, o protagonista sente a possibilidade de assegurar-se nesse estádio de confiança quando:

Contudo, aquele som afeito desde a infância, Hoje também, me traz de volta à vida. [v. 769-770] (................;;;;.................................................) Põem-me as recordações, com ânimo infantil, Hoje, ao supremo passo, entrave. Ressoai, ó doces saudades do Além! Jorra meu pranto, a terra me retém! [v. 781-784]

Fausto redescobre os sentimentos da vivência infantil, instante que o livra do “fluído amaro”. A simbologia da infância, consoante Jean Chevalier, traz o seguinte significado: Infância é o símbolo de simplicidade na- tural, de espontaneidade. A imagem da criança pode indicar uma vitória sobre a complexidade e a ansiedade, e a con- quista da paz interior e da sua autocon- fiança. (CHEVALIER, 2005. p. 302).

(^4) Guiomar De Grammont, seguindo Kierkegaard, aborda a existência humana a partir de três padrões: estético, ético e religioso. No primeiro, há o desassossego interior que inviabiliza a escolha. No momento estético, o homem quer tudo, mas nada o deixa satisfeito, passando de um objeto para outro desmedidamente. Don Juan e Fausto são os protótipos do estádio estético. No momento ético, o homem submete suas escolhas aos valores sociais estabelecidos. O casamento é a instituição típica desse padrão. No estádio religioso, há o encontro do homem consigo mesmo, do finito (eu) e o eterno (si mesmo). Isso leva a uma suspensão dos padrões sociais no ato da escolha e a uma entrega confiante ao Criador. Quem melhor exemplifica esse padrão é Abraão, quando se dirige ao monte para sacrificar seu único filho, Isaque, última esperança de futuro para sua prole. O encontro do homem consigo, ápice da individuação, é, também, o encontro com aquele que o criou, o mais profundo ato de fé e confiança em algo que extrapola a si mesmo. (GRAMMONT, 2003).

Desse modo, a dúvida fáustica representa a dúvida do sujeito cartesiano. “Fausto começa duvidando do valor de seu próprio mundo e acaba duvidando do valor do mundo objetivo. (GRAMMONT, 2003, p. 50). Descartes, mer- gulhado na sua interioridade, desconfia dos sentidos por não serem esses meios capazes de dar confiança ao homem, e, por isso, quer alcançar no cogito uma confiança absoluta. De acordo com suas palavras:

Considerar-me-ei a mim mesmo absolu- tamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. Perma- necerei obstinadamente apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder chegar ao conhecimento de qualquer verdade, ao menos está ao meu alcance suspender meu juízo. (DES- CARTES, 1983, p. 88). Esta disposição mental acarretou o desen- volvimento da ciência moderna, da experimen- tação a partir da razão, e da comprovação do heliocentrismo, momento em que se absolutiza a razão. A dúvida é um sinal do pensamento, e este é a certeza para a razão:

Pelo nome de pensamento , compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que somos imediatamente seus conhecedores. Assim, todas as operações da vontade, do entendimento, da imaginação e dos sentidos são pensamentos. (DESCARTES, 1983, p. 169). Por isso, a exclamação da célebre frase: “Penso, logo sou, ou existo.” (DESCARTES, 1983, p. 158). É assim que Fausto, através do pensa- mento, age para transformar a si e o mundo, embora esses poderes mentais o tenham apri- sionado no seu mundo interior. O sujeito fáustico e o cartesiano não ultrapassam o momento da dúvida, pois só acreditam neles mesmos. Com Descartes, o saber contemplativo muda para o saber operacional, ocorre a ar- tificialização da vida como no Fausto. Neles, a construção do lugar da razão e da ciência nasce da negação do real. As afirmações do homem moderno são provenientes da dúvida, do pen- samento, do estudo de gabinete e da ciência de laboratório. O olhar dos sentidos é substituído pelo olhar do telescópio. Nisso, a verdade da ciência nasce a partir da negação do mundo

da experiência, das tradições, dos dogmas, das narrações e dos mitos.

Considerações finais

Do exposto, inferimos que o centro das especulações do Fausto caracteriza o processo desenvolvimentista e progressista da humani- dade moderna. Dentre a variedade temática que a narrativa goethiana oferece como fonte para a compreensão do mundo moderno e contemporâneo, direcionamos este trabalho ao aspecto da dúvida de Fausto e à sua trágica obsessão de alcançar o absoluto. Nas solitárias profundezas de sua noite, o desespero estéril de Fausto é essa ausência de uma referência para a vontade, fazendo com que ele vivencie tão profundamente a angústia da dúvida. A angústia fáustica projeta-se no eterno vir-a-ser e na complexa insatisfação do seu es- pírito desenraizado, sempre em busca da alma exterior a si, negando sua condição terrena e mortal. Para Fausto, não é possível a contempla- ção e o uso dos sentidos, pois seu pensamento somente articula o desejo de controlar a vida, impedindo-o de deter-se no instante sereno ou recordativo. Desse modo, ele realiza sua viagem pelo mundo, fruto dos seus desejos fan- tasmagóricos ou espetaculares, representativos da ambição desenvolvimentista moderna. Essa viagem de Fausto pelo mundo significa a tenta- tiva de desvendamento do próprio eu, em que a finitude, negada pelo personagem, representa o caráter dialético da existência. Como paradigma da expressão simbólica da ciência, Fausto traz à luz o momento no qual o homem procurava, através de pensamentos extensivos e mecânicos, intervir no universo. Aos olhos de Goethe:

[...] o racionalismo cientificista, de cunho cartesiano ou newtoniano, e o Romantis- mo que ele mesmo viu surgir são duas maneiras igualmente equivocadas e afins de se relacionar com a natureza e com o mundo. O racionalismo exige uma do- minação total da natureza; o Romantismo sente nostalgia dela. Ambos são sintomas daquilo que Goethe reputa ser a pior enfermidade de sua época, a que ele dá o nome de subjetividade. (SUZUKI, 2005, p. 201).

O procedimento de busca fáustica é o que pode ser visto na ciência e na religião, onde se busca a demonstração de potência, do poder absoluto e do lugar de Deus, tentando criar a vida. Se esta geração é de homens criadores de seus próprios destinos, então só pode ser um rei- no de deuses, ou mais precisamente de homens que pretendem ser deuses. Contudo, o olhar crítico de Goethe para este desenvolvimento trá- gico não é essencialmente de inspiração bíblica, mas é uma perspectiva lançada sobre os tempos modernos. Márcio Suzuki considera que:

A ciência só pretende determinar exata- mente onde começa e termina o universo, se reconhece que, ao fazê-lo, está na verdade fixando, como linha derradeira, apenas o limite do saber, não o termo do universo. A pretensão científica de fixar um marco inicial ou um ponto final se confunde com as preocupações teológi- cas a respeito do fim do mundo. (SUZUKI, 2005, p. 208). Enquanto há a ordenação do mundo na cosmogonia bíblica pela separação das trevas e da luz, da divisão das águas e dos seres vivos, há, em Fausto, um desafio a esta ordem divina pelo anseio de controlar seu próprio destino, exercer o controle sobre a natureza, o tempo, a geração da vida e a mortalidade.

Ah!, que visão! Mas só visão ainda! Como abranger-te, ó natureza infinda? [v. 454-455].

Goethe lança seu olhar crítico sobre a nova era, início do século XIX, em que traz à tona o ceticismo moderno e a angústia do ho- mem em encontrar confiança em seus próprios passos. Fixado na sua solitária dúvida intelectual e incrédulo de uma luz que lhe fosse edificante, Fausto entrega-se aos seus desejos que o levam a radical mudança de sua vida física e dos seus valores morais. Assim se cumpre a alma fáustica, uma constante e renovada luta contra os limites da existência humana, colocando o seu mundo e a si próprio diante da dúvida. Mas, condenado pelo tempo que passa e o torna fadigado de tanto desejar, não atinge a plenitude do ser por que muito ansiou. Se para Aquiles, escolher a vida breve, mas cheia de glória, foi favorável ao seu destino heróico, o homem fáustico, lançado à própria sorte, prefere a esterilidade da vida

longa, vivendo num ritmo inquieto, insatisfeito e sempre em busca da ciência, da felicidade e da riqueza como garantias para alcançar o infinito. Ao mesmo tempo, esse desafio o torna livre para exercer o domínio de suas escolhas e carregar todo o peso da responsabilidade que acompanha a liberdade dos seus atos.

referências Bibliográficas

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