Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Exegese sociocrítica de 2 Samuel 12.1-4: Análise da Parábola do Rico e do Pobre, Notas de estudo de Religião

Este texto apresenta uma análise sociocrítica da parábola bíblica contida em 2 samuel 12.1-4, onde o profeta natã utiliza uma história para ensinar a davi sobre a injustiça e a importância de restituir o que foi roubado. O texto discute a estrutura da parábola, suas referências bíblicas e comentários anteriores, e a relação entre a parábola e o contexto histórico de davi e sua corte.

O que você vai aprender

  • Quais são as referências bíblicas e comentários anteriores relacionados à parábola de Natã?
  • Qual é a importância da restituição na parábola de Natã?
  • Qual é a mensagem principal da parábola de Natã a Davi?
  • Por que Natã utiliza uma parábola para ensinar a Davi sobre a injustiça?
  • Como a parábola de Natã se relaciona aos eventos históricos de Davi e sua corte?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Futebol13
Futebol13 🇧🇷

4.5

(202)

225 documentos

1 / 12

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
Uma parábola sobre a injustiça – Exegese sócio-crítica de 2 Samuel 12.1-4
183
Estudos de Religião, Ano XXI, n. 32, 183-194, jan/jun 2007
Uma parábola sobre a injustiça –
exegese sociocrítica de 2 Samuel 12.1-4*
Milton Schwantes**
Resumo
A profecia é um fenômeno típico do Antigo Oriente, mas a ele não se restringe. Nas
Escrituras judaicas e cristãs, assumiu um papel muito peculiar. Religião, nessa versão
judaíta-cristã, é nitidamente profética. O presente ensaio visibiliza uma das atuações
proféticas mais antigas, a do profeta Natã, em 2 Samuel 12, 1-4, mostrando, por um
lado, seu vigor de radical oposição à monarquia, mas indicando, ao mesmo tempo, sua
fragilidade diante de um poder corrupto.
Palavras-chave: profecia; Natã; ameaças ao Estado; monarquia e profecia; her-
menêutica social.
A parable regarding injustice – a social-critical
exegesis at 2 Samuel 12.1-4
Abstract
Prophecy is a phenomenon typical of the Ancient Near East but is not restricted to it.
In the Jewish and Christian Scriptures it took an especially peculiar form. The present
essay visualizes one of the prophet Nathan’s prophetic actions, in 2 Samuel 12.1-4,
showing on the one hand the vigor of his radical opposition to monarchy but indicating
at the same time his fragility in the face of a corrupt power.
Keywords: prophecy; nathan; threat against the State; monarchy and prophecy; social
hermeneutic.
* Doutor em Teologia, e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail:schwantes@metodista.br
** Trata-se aqui da segunda edição deste ensaio, em que foram incorporadas alterações e am-
pliações. A primeira edição encontra-se em meus Ensaios sobre uma teologia do Antigo Tes-
tamento, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1980, p. 55-62.
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Exegese sociocrítica de 2 Samuel 12.1-4: Análise da Parábola do Rico e do Pobre e outras Notas de estudo em PDF para Religião, somente na Docsity!

Uma parábola sobre a injustiça – Exegese sócio-crítica de 2 Samuel 12.1-4 183

Uma parábola sobre a injustiça –

exegese sociocrítica de 2 Samuel 12.1-4*

Milton Schwantes**

Resumo

A profecia é um fenômeno típico do Antigo Oriente, mas a ele não se restringe. Nas Escrituras judaicas e cristãs, assumiu um papel muito peculiar. Religião, nessa versão judaíta-cristã, é nitidamente profética. O presente ensaio visibiliza uma das atuações proféticas mais antigas, a do profeta Natã, em 2 Samuel 12, 1-4, mostrando, por um lado, seu vigor de radical oposição à monarquia, mas indicando, ao mesmo tempo, sua fragilidade diante de um poder corrupto. Palavras-chave: profecia; Natã; ameaças ao Estado; monarquia e profecia; her- menêutica social.

A parable regarding injustice – a social-critical

exegesis at 2 Samuel 12.1-

Abstract

Prophecy is a phenomenon typical of the Ancient Near East but is not restricted to it. In the Jewish and Christian Scriptures it took an especially peculiar form. The present essay visualizes one of the prophet Nathan’s prophetic actions, in 2 Samuel 12.1-4, showing on the one hand the vigor of his radical opposition to monarchy but indicating at the same time his fragility in the face of a corrupt power. Keywords: prophecy; nathan; threat against the State; monarchy and prophecy; social hermeneutic.

  • Doutor em Teologia, e professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail:schwantes@metodista.br ** Trata-se aqui da segunda edição deste ensaio, em que foram incorporadas alterações e am- pliações. A primeira edição encontra-se em meus Ensaios sobre uma teologia do Antigo Tes- tamento, São Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1980, p. 55-62.

184 Milton Schwantes

Una parábola sobre la injusticia – exégesis sociocrítica de 2 Samuel 12.1-

Resumen La profecía es un fenómeno típico del Antiguo Testamento, mas no se restringe a él. En las Escrituras judaicas y cristianas asumió un papel muy peculiar. Religión, en esta versión judaita-cristiana, es nítidamente profética. El presente ensayo viabiliza una de las actuaciones proféticas más antiguas, la del profeta Natán, en 2Samuel 12,1-4, mos- trando, por un lado su vigor de radical oposición a la monarquía, mas indicando, al mismo tiempo, su fragilidad delante de un poder corrupto. Palabras-clave : profecía; natán; amenaza al Estado ; monarquía y profecía; hermenéutica social.

Em 2 Samuel 12, Natã novamente entra em cena. Já marcara presença em 2 Samuel 7 e voltará em 1 Reis 1. Apresenta-se a Davi, no capítulo 12 de 2 Samuel.^1 O contexto imediato é formado pelo episódio de Davi com Bate-Seba e Urias durante a guerra contra os amonitas (2 Samuel 1-12)^2. O contexto literário maior é a história da sucessão ao trono de Davi.^3 Natã introduz sua “audiência reclamatória” com Davi (v. 1-15a) por meio de um exemplo. A ele minha atenção se volta (v. 1-4).^4 Observaremos a seguir brevemente, o contexto literário, cujo exemplo está colocado.

(^1) Comentários e ensaios antigos e recentes sobre 2 Samuel, incluindo no capitulo 12 são mui-

tos. Menciono aqui aqueles comentários que, nas notas que seguem, no geral, não serão re- tomados, mas que contribuíram para o presente ensaio: Henry P. Smith (1909), Eugene H. Maly (1970), Hans Joachim Stoebe (1973), Luis Alonso Schökel (1973), Teodorico Ballarini (1976), Peter R. Ackroyd (1977), P. Kyle McCarter Jr. (1984), A. F. Kirkpatrick (1986), A. Anderson (1989), Ivo Storniolo (1991), Joyce G. Baldwin (1997), P. Payne Smith (s.d.). Aqui, também, menciono estudos exegéticos que dão atenção mais específica a nosso ca- pitulo 12: Timo Veijola (1975), Walter Bruegemann (1984), Randall C. Bailey (1990), Walter Dietrich (1995), Robert Alter (2000), Marli Wandermuren (2002), Elaine Neuenfeldt (2002:42-53), Athalya Brenner (2003), Carole C. Fontaine (2003:184-205), Armando J. Levoratti (2004: 29-60), William César de Andrade (2006:27-36). (^2) Se 2 Samuel 12.1-15a é antigo ou adendo posterior continua discutido. Confira a respeito

Ernst Würthwein (1974:19-32). (^3) Veja Leonhard Rost (1965:119-253), Gerhard von Rad (1944), Ernst Würthwein (1977:

25-27), Frank Crüsemann (1978:180-193). (^4) Sobre nossa unidade de 2 Samuel 12.1-4, acaba de ser publicado um interessante artigo

de William César de Andrade (2006: 27-36).

186 Milton Schwantes

modo pouco específico; fala-se em “pegar” (lqh kal) e não em “furtar” (gnb qal) como seria de se esperar (confira Êxodo 21.37, Almeida, Êxodo 22.1). A atenção do exemplo não está voltada à descrição do delito, mas à relação entre pobre e sua ovelhinha e ao rico e seu hóspede. Inclusive a primeira reação emotiva de Davi^14 no versículo 5, condenando o rico à morte, mostra que nem mesmo Davi, num primeiro momento, entendeu o exemplo de Natã como caso jurídico. Ora, o v.5 não pode ser entendido como sentença judicial, já que o roubo de modo algum justificaria a pena de morte. E, por fim, se 2 Samuel 12.1-4 fosse um caso jurídico, seu local de decisão seria o fórum local e não a jurisprudência real.^15 Portanto, o exemplo não é um caso jurídico, originalmente. Mas, então, como se deve entendê-lo? Ora, os quatro versículos em questão têm uma estrutura simples. Iniciam dizendo que um pobre e um rico vivem lado a lado. Descrevem, depois, o rico, que tem muitos animais, e o pobre, que possui um só animalzinho. E, no fim, ocorre o confronto entre o rico e o pobre; este tira o animalzinho daquele. Essa estrutura tão simples está cla- ramente baseada no contraste.^16 Se a gente observa os versículos sob esse ângulo, então tudo fica maravilhosamente claro. É um contraste o fato de que um é rico (‘axir) e o outro, pobre (rax). É, pois, um contraste que um possui ovelhas/cabritos e bois em grande quantia (son u-baqar harbeh me’od), o outro não possui nada (la-rax ’en kol). O que possui é uma ovelha pequena que lhe é como filha. O que contrasta com ele tem bois e ovelhas e cabritos. Para o rico, isso só são quantias, números. Há um chocante contraste: o pobre alimenta sua ovelhinha de sua mesa, e o rico alimenta seu hóspede com a ovelha do pobre. É um contraste que o pobre comprou (knh qal) seu animalzinho, o rico simplesmente “pega” (lqh qal) aquilo que lhe interessa. Essas amostras são o suficiente para deixar bem evidente que nossos versículos se baseiam no motivo do contraste. Seu problema não é unilate- ralmente um delito (um caso jurídico-policial), mas um contraste berrante na

(^14) Confira Friedrich Horst, Der Diebstahl im Alten Testament, p. 173. (^15) Confira Georg Christian Macholz, Die Stellung des Königs in der israelitischen

Gerichtsverfassung, em Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenchaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol.84, 1972, p. 157ss (p. 165-166, p. 177!) e, do mesmo autor, veja “Zur Geschicthe der Justizorganisation in Juda”, em Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol. 84, 1972, p. 314ss. (^16) Esse conceito do ‘contraste’ também é realçado por Fritz Stolz, Das erste und zweite Buch

Samuel, Zurique, Theologischer Verlag Zürich, 1981, p.240 (Zürcher Bibelkommentar Altes Testament, 9).

Uma parábola sobre a injustiça – Exegese sócio-crítica de 2 Samuel 12.1-4 187

convivência de pessoas. Esse tipo de literatura denomina-se de parábola.^17 Muitos autores definem nossos versículos como parábola.^18 Gerhard von Rad fala em fábula.^19 Mas o conceito de fábula afasta, em demasia, o narrador do real. De que temos diante de nós uma parábola, torna-se ainda mais evidente, se observarmos que nossos quatro versículos não têm conclu- são – estão abertos para a dedução e as reflexões do ouvinte. É valiosa essa descoberta de que nosso exemplo é uma parábola. Con- tudo, não se deve parar nessa conclusão, como tem ocorrido até agora na pesquisa. Temos de inquirir o texto perguntando pela sua situação. Quais são a situação e a função social dessa parábola? Siegfried Herrmann^20 adverte contra esse tipo de “avaliação sociológi- ca”. Só que não entendo, porque depois de uma tal advertência ainda se admire que nossa parábola pouco tenha sido pesquisada. A conclusão em resposta a essa pergunta sobre condições sociais ine- rentes a nossos versículos é bastante evidente. A situação é caracterizada pela diferença conflitiva entre o rico e o pobre. O rico é um grande criador de gado, algo como um grande pecuarista e fazendeiro. O pobre não parece ser um escravo que já estivesse integrado ao patrimônio do fazendeiro. Ele ainda vive inde- pendente do rico (v. 1.3); consegue fazer seus próprios negócios (compra uma ovelhinha, v.3), talvez mantenha sua própria roça (v. 3 refere-se somente

(^17) Confira Otto Kaiser, Einleitung in das Alte Testament - Eine Einführung in ihre Ergebnisse und

Probleme, Gütersloh, Gerd Mohr, 2. edição, 1970, p.128. (^18) Hans Wilhelm Hertzberg, Die Samuelbücher, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, 5. edição,

1973, p. 256 (Das Alte Testament Deutsch, 10): “narração de um exemplo”; Hugo Gressmann, Die älteste Geschichtsschreibung und Prophetie Israels, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, vol. 2/1, 1910, p. 159 (Die Schriften des Alten Testaments): “parábola”; Siegfried Herrmann, “2 Samuel 12.1-10.13-14”, em Göttinger Predigt-Meditationen, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, vol. 65, 1976, p. 356: “parábola”; Claus Westermann, Grundformen prophetischer Rede, p.145: “parábola”; Horst Seebass, “Nathan und David in II Sam 12”, em Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft, Berlin, Walter de Gruyter, vol.86, 1974, p. 204: “parábola”, mas, na explicação desta “parábola”, Horst Seebass faz dela um caso jurídico; Willy Schottroff, “Das Weinberglied Jesajas (Jes 5,1-7). Ein Beitrag zur Geschichte der Parabel”, em Zeitschrift für die alttestamenliche Wissenchaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol. 82, 1970, p. 68-69: narração de um caso jurídico que para Davi se torna parábola! (^19) Gerhard von Rad, La sabiduría en Israel - los sapienciales, lo sapiencial, Madrid, Ediciones

Cristiandad, 1973, p. 64-65. (^20) Siegfried Hermann, em Göttinger Predigt-Meditationen, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht,

vol. 65, 1976, p. 355-356.

Uma parábola sobre a injustiça – Exegese sócio-crítica de 2 Samuel 12.1-4 189

Natã cita uma parábola que, aparentemente, nem surgiu em Jerusalém. Afi- nal, ela refere-se a uma cidade ou vila qualquer. Exemplifica o que é corri- queiro em cidades e vilas de Judá. Não sendo Natã o autor, este – melhor, estes! – são as pessoas, contra as quais se volta a exploração econômica. A parábola é palavra de camponeses explorados, de espoliados sob os interes- ses dos “ricos”. Por meio dela articulam seu problema, seu anseio em ani- quilar essa situação, pois, a narração de parábolas, de casos, de exemplos faz parte do instrumentário de organização e conscientização. Concluo afirmando que Natã cita em 2 Samuel 12.1-4 uma parábola, um caso paradigmático de gente oprimida pelas injustiças de “ricos”. Assim abre-se-nos uma pequena janela para dentro da situação de opressão no reinado davídico. Somente após essa descoberta obtém-se acesso adequado a um detalhe, que, até hoje, permaneceu inexplicado na parábola. Não se entendia porque no versículo 3 se descreve com tanto carinho o valor que o pobre atribui à sua ovelhinha. Tratar-se-ia de sentimentalismo (Siegfried Herrmann),^27 de “exagero de afeto” (Hermann Gunkel)?^28 Nada disso! O versículo 3 não des- creve o sentimento do pobre para com a ovelhinha; descreve sua situação econômica. Se a ovelha cresce junto ao pobre e aos seus filhos, se come e bebe o que come e bebe o pobre, se dorme nos braços do pobre, então por que o camponês empobrecido lida justamente assim com os animais? Em sua situação, animal doméstico torna-se animal de estimação. Conside- rando o aperto das moradias dos pobres em uma vila do 10º século, esse achego entre animal e pessoa torna-se ainda mais compreensível.^29 Uma tese diferente é defendida por S. Ariel.^30 Afirma que a parábola foi criada, na hora, por Natã, à base de uma tradição válida entre beduínos, segundo a qual era permitido recorrer ao rebanho do vizinho para dar de comer a um hóspede de última hora. Um animal criado em casa, contudo, não poderia ser utilizado. Mas Natã evidentemente não fala da vida de beduínos, mas da

(^27) Siegfried Herrmann, Göttinger Predigt-Meditationen, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht,

vol.65, 1976, p.356. (^28) Hermann Gunkel, Das Märchen im Alten Testament, 1921, p. 36. Confira Hans Jochen

Boecker, Hören und Fragen, vol. 4/2, p. 112. (^29) Veja Martin Noth, El mundo del Antiguo Testamento – Introducción a las ciencias auxiliares a la

Biblia, Madrid, Ediciones Cristiandad, 1976, p. 166-168 (Biblioteca Bíblica Cristiandad); Roland de Vaux, Instituições no Antigo Testamento, São Paulo, Editora Teológica, 2003, p. 96-

  1. Confira Graciliano Ramos, Vidas secas, São Paulo, Martins, 15. edição, 1966, 159p. (^30) S. Ariel, Die Natansparabel (II Samuel 12,1-6), em Bet Miqra, vol. 12, 1966/67, caderno

3 (31), p. 136-138.

190 Milton Schwantes

de sedentários (cidades e vilas!). Não me atenho, porém, aos detalhes de uma discussão com essa tese de S. Ariel, porque ela só me é conhecida pela literatura secundária.^31 É impressionante ver o que é feito dessa parábola, proveniente da fronteira de opressão e oposição, na boca de Natã e no ambiente da corte em Jerusalém. Afirmo que ela é radicalmente distorcida, alienada de sua intenção original. Contudo, é preciso ver que, em um primeiro impacto, a parábola ainda foi parcialmente percebida em sua radicalidade. Davi “ardeu em ódio” (va- yihar ’ap, v. 5) ao ouvir a parábola. Previu a morte para esse homem. Essa conscientização e rebelião contra a injustiça são, de fato, intencionadas pela parábola. Mas, ao mesmo tempo, já se vai percebendo na primeira reação de Davi (v. 5) que da parábola é retirada uma ponta importante. Ela fala de rico e de pobre, do conflito econômico. A reação de Davi não se refere mais à questão econômica, mas exclusivamente ao delito pessoal de um ho- mem (“filho da morte é o homem que faz isso” ben mavet ha-’ix ha-‘oseh sot). Davi quebra a ponta da parábola: o conflito econômico vira um delito pes- soal, ocasional! A eliminação, a morte daquele rico, não eliminaria a crassa diferença entre rico e pobre! Entusiasmo e emoção de Davi passam. No versículo 6, já temos dian- te de nós um Davi como juiz. Esse versículo sabidamente está em tensão com o quinto; mas essa tensão, certamente, precisa ser mantida na intenção do texto. A mim mais e mais se evidencia como convincente e lógico que o versículos 5 e 6 originalmente fazem parte da tensão do texto; são frutos da tentativa de acomodar a parábola em um novo contexto e em uma nova função.^32 A tensão também precisa ser mantida, porque o versículo 5, na ver- dade, já ocorre em função da condenação de Davi e dos seus nos versículos 10, 11-12.14. Não é adequado querer eliminar como literariamente secundário o versículo 6 como o faz Hugo Gressmann.^33 Inadequada parece-me ser a po- sição de Hans Jochen Boecker^34 que quer nivelar a tensão entre versículos 5 e

  1. Afirma ele que já o roubo da ovelhinha atinge o pobre em seu “nervo vital”,

(^31) Veja Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft, Berlim, Walter de Gruyter, vol.80, 1968,

p. 242. (^32) Veja Milton Schwantes, Natã precisa de Davi - Na esperança da igreja profética, em Es-

tudos Teológicos, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia, vol. 19, 1978, p. 99-118; ob- serve também Siegfried Herrmann, Göttinger Predigt-Meditationen, Gotinga, Vandenhoeck & Ruprecht, vol. 65, 1976, p. 356. (^33) Hugo Gressmann, Die älteste Geschichtsschreibung, p. 154. (^34) Hans Jochen Boecker, Hören und Fragen, vol. 4/2, p. 112.

192 Milton Schwantes

quando o rico da parábola é, por Natã, identificado com Davi: “tu [és] o homem” (’atah ha-’ix, v.7). Davi, que se fizera juiz do rico, a si mesmo con- denava-se condenando o rico! O problema de Davi é haver engravidado Bate- Seba e, para acobertá-lo, haver causado a morte de Urias (2 Samuel 10-12). Esse é um problema típico dos desvios morais da corte de Jerusalém. Em função desse problema, Natã aplica a parábola e, com isso, distancia-a de seu foco. Na corte e na boca de Natã, a parábola perde sua dimensão de crítica social para ser tão somente um auxílio poimênico para ‘curar’ Davi.^39 Pode- se dizer que passa da esfera da crítica social para a esfera da crítica pessoal e moral. Em seu atual contexto da guerra contra os amonitas, da gravidez de Bate-Seba, da morte de Urias, do castigo de Davi por meio de uma criança, a parábola do rico e do pobre, do explorador e do explorado, perdeu seu contexto no conflito econômico para ser acomodada a um novo contexto do conflito pessoal e moral da corte de Jerusalém, a essa “história de entrada de serviço” para usar uma expressão de Karl Barth.^40 Naturalmente, essas obser- vações quanto ao contexto maior de nossa parábola ainda são bastante gerais, mas aqui não nos podemos dedicar com maior atenção a 2 Samuel 10-12, en- fim à história da sucessão. Que conclusões essa análise de 2 Samuel 12.1-4 nos impõem? 2 Samuel 10-12 tem seu lugar na corte de Jerusalém. Talvez até se trata de círculos crí- ticos ao reinado salomônico.^41 Afinal, o episódio de Davi com Bate-Seba e Urias não dá margem a qualquer glorificação do monarca, muito menos serviria para tal as matanças empreendidas por Salomão no início de seu reinado (1 Reis 1-2). Também a parábola do rico e do pobre, em seu atual contexto, está acomodada a esse lugar social de problemas e preocupações da corte. Mas a parábola é citação. É, pois, legítimo perguntar pelo lugar dessa parábola antes de haver sido acomodada ao seu atual contexto de problemas na corte. Pode-se afirmar que seu lugar é o conflito social entre rico e pobre, mais exatamente entre senhores de grandes posses e pequenos agricultores empobrecidos em Judá. A parábola apresenta esse conflito a partir da perspectiva dos pobres. Sua função é a de conscientizar e a de organizar o grito de protesto contra os poderosos. Essas conclusões só são possíveis, porque insistimos na pergunta pelo lugar e pela função social do texto.

(^39) Veja Milton Schwantes, Natã precisa de Davi, p. 109-114. (^40) Karl Barth, Die kirchliche Dogmatik, Zurique, Evangelischer Verlag, vol. 4/2, 1955, p. 526. (^41) Frank Crüsemann, Der Widerstand, p.180ss.

Uma parábola sobre a injustiça – Exegese sócio-crítica de 2 Samuel 12.1-4 193

Referências bibliográficas ACKROYD, Peter R. The Second Book of Samuel, Cambridge: Cambridge University Press, 1977, (The Cambridge Bible Commentary), 247p. ANDERSON, A. 2 Samuel. Dallas, Word Book, 1989 (Word Biblical Commentary, 11), 301p. ANDRADE, William César de. A parábola do pobre e sua única ovelha (2 Samuel 12.1-4, em Estudos Bíblicos. Petrópolis: Vozes, vol. 92, 2006, p. 27-36. BAILEY, Randall C. David in Love and War – The Pursuit of Power in 2 Samuel 10-12, Sheffield, JSOTPress, 1990 (Journal for the Study of the Old Testament/Supplement Series, 75). 214p. BALDWIN, Joyce G. I e II Samuel – introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1997, (Cultura Bíblica, 8). 336p. BALLARINI, Teodorico. Josué, Juízes, Rute, 1-2 Samuel, 1-2 Reis. Petrópolis: Vozes, 1976, (Introdução à Bíblia, 2/2). 202p. BRENNER, Athalya (Org.). Samuel e Rute a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2003 (A Bíblia, uma leitura de gênero). 371p. BRUEGEMANN, Walter. David’s Truth – In Israel’s Imagination & Memory. Philadelphia: Fortress Press, 1984. 126p. CRÜSEMANN, Frank. Der Widerstand gegen das Königtum - Die antiköniglichen Texte des Alten Testamentes und der Kampf um den frühen israelitischen Staat. Neukirchen: Neukirchener Verlag, 1978, p. 180-193 (Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, 49). DIETRICH, Walter. Die Samuelbücher, Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1995, 340p. (Erträge der Forschung, 287); Robert Alter, The David Story – A Translation with Commentary of 1 and 2 Samuel. New York: W. W. Norton and Company, 2000. 410p. FONTAINE, Carole C. A influência sapiencial na estrutura de 2 Samuel 11-12 e 1 Reis 3. In: Samuel e Reis a partir de uma leitura de gênero. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 184-205. KIRKPATRICK, A. F. The Second Book of Samuel. Cambridge: Cambridge University Press, 1986 (The Cambridge Bible for School and Colleges). 248p. LEVORATTI, Armando J. La interpretación de las parábolas a través del tiempo. In: Enseñaba por parábolas... - Estudio del género parábola en la Biblia. CETINA, Edesio Sánchez (ed.). Bogotá: Sociedades Bíblicas Unidas, 2004. p. 29-60. MALY, Eugene H. Primero y segundo libro de Samuel. Santander: Editorial Sal Terrae, 1970, (Conoce la Biblia - Antiguo Testamento, 6). 226p. MCCARTER JR, P. Kyle. II Samuel – A New Translation with Introduction, Notes and Commentary. Garden City: Doubleday, 1984. (The Anchor Bible, 9). 553p NEUENFELDT, Elaine. Violência sexual e poder – o caso de Tamar em 2 Samuel 13,1-

  1. In: Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Editora Vozes, vol.41, 2002, p. 42-53.