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estética
Antiga
módulo i
1.2 estética clássica:
a Arte e o Belo
“É preciso voltar o olhar uma vez mais para o passado. Pois todo olhar que retorna à profundidade histórica de nosso presente aprofunda a consciência de nosso horizonte conceitual hoje já sedimentado em nós”.^2
Como uma obra de arte sempre está intelectivamente presente, isto
é, permanece suspensa de modo potencial em nosso estar-no-mun-
do, há e sempre haverá nela uma conceptualização.^3 Por isso, para
que uma história da estética se faça a tual, é necessário que sua
definição principie por seu próprio tempo, isto é, pelo que seus ex-
poentes filosóficos conceituaram a respeito quando se debruçaram
sobre o tema, direta ou indiretamente. Só assim poderemos proce-
der ao levantamento do mundo, ao desdobrar da vastidão que a obra
de arte possibilita.^4
1.1 estética:
A percepção das essências
A investigação Estética — que definimos como o estudo da beleza per-
ceptível ou a percepção do Belo na Natureza e na Arte — pode ser
dividida, grosso modo, em dois momentos:
1) a consideração do Belo na filosofia tradicional (no mundo clássico,
greco-romano, e no Ocidente Medieval), estética () da percep-
ção das essências integrada à Ética e à Lógica (belo =bem =verdade), e
2) nos períodos moderno e contemporâneo (sécs. xv–xx), a filoso-
fia do belo propriamente dita, do sublime até, por fim, a estética como
ausência da beleza e a coisificação (ou “coisidade”, diria heidegger)^1
da obra de arte — o termo estética como ciência filosófica do belo, agre-
gada ao estudo da essência da arte e de suas relações com a beleza e os
demais valores, foi criado por alexander baumgarten (1714–1762).
Seguiremos esse recorte binário, esquemático, neste texto sobre a
Estética na História da Filosofia.
A Estética clássica : O Belo é a correspondência do Bem — Kalokagathia () — e da Verdade.
“O que devemos imaginar se acontecesse a alguém ver a beleza em si, pura, limpa, sem mescla e não infectada de carnes humanas, de cores, nem de outras ninharias mortais, e pudesse contemplar a beleza divina em sua forma única? Porventura crês que é vã a vida de um homem que olha nessa direção, que contempla essa beleza com o que é necessário para contemplá-la e vive em sua companhia? Ou não consideras que só quando vê a beleza com o que é visível, ser-lhe-á possível engendrar não sombras da virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas virtudes reais, porque é no real que estará tocando?”. platão, O Banquete, 211e
Estátua, Kouros (c. 590–580 a. C.), Grécia arcaica, Ática, mármore de Naxos, 193,4 cm, Fletcher Funda- tion, 1932 (32.11.1).
o
n
tratou das coisas que são agradáveis, e também classificou as imita-
ções como agradáveis — desde que boas:
“E, como aprender e admirar é agradável, necessário é também que o sejam as coisas que possuem estas qualidades; por exemplo, as imitações, como as da pintura, da escultura, da poesia, e em geral todas as boas imitações, mesmo que o original não seja em si mesmo agradável; pois não é o objeto retratado que causa prazer, mas o raciocínio de que ambos são idênticos, de sorte que o resultado é que aprendemos alguma coisa” (Retórica, Livro i, 11, 1371b).^17
Em contrapartida, o Belo não coincidia com a noção de objeto esté-
tico (o que só aconteceria, de fato, no século xviii, a partir de Baum-
garten) e, por isso, não fazia parte do âmbito da Poética. O Belo era a
manifestação do Bem, a coisa mais digna de ser amada, só passível de
admiração aos “neo-iniciados”, isto é, aqueles que por muito tempo
haviam contemplado as realidades de outrora (fedro, 250e–251a).^18
Há uma passagem muito famosa em A República que quase coloca
o filósofo como um pensador estranho à Arte:
“…devemos vigiar os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em outra obra de arte (…). Devemos procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito , a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas , como uma brisa salutar de regiões sadias , que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar em harmonia com a razão formosa (…) aquele que foi educado nela (…) honraria as coisas belas e, acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem belo e bom , ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância” (A República, ii, 401b–402a).^15
Em contrapartida, o Estado ideal platônico nunca seria verdadeira-
mente feliz se o modelo divino no qual deveria se pautar não tivesse
sido delineado pelos pintores:
“[Os pintores] Pegarão no Estado e nos caracteres dos homens, como se fosse uma tábua de pintura (…) torná-la-ão limpa, coisa que não é muito fácil (…) aperfeiçoando seu trabalho, olharão frequentemente para a essência da justiça , da beleza , da temperança e virtudes congêneres, e para a representação que delas estão a fazer nos seres humanos, compondo e misturando as cores, segundo as profissões, para obter uma forma humana divina, baseando-se naquilo que Homero, quando o encontrou nos homens, apelidou de divino e semelhante aos deuses”(A República, ii, 501a-b).^16
Os artistas, portanto, deveriam ser instrumentos transmissores
do ideal da cidade, da república. Por sua vez, ao discorrer sobre o
prazer como matéria da oratória judicial, aristóteles (384–322 a. C.)
Nióbida Moribunda, c. 450-440 a. C. Már- more, 1,50m, Museo delle Terme, Roma. O violento movimento dos braços fez escorregar suas vestes; a nudez é mais um artifício dramático que uma parte necessá- ria do episódio. O propósito do artista foi o desejo de, unindo o movimento à emo- ção, levar o contemplador a sentir o sofri- mento desta vítima de um destino cruel. janson, História Geral da Arte, vol. i, p. 192.
A partir de então, no universo do Belo estava integrada a definição de
ordem — mais tarde, santo agostinho (354–430) se valeria do mesmo
âmbito de pensamento, na obra Sobre a Ordem (De Ordine, de 386) para
torná-lo estrutura do mundo: tudo o que existe está contido na ordem.^23
Aristóteles ainda foi quem definiu a arte como imitação da Na-
tureza (Física, ii, 2, 194a), e embora tenha restringido o conceito de
Arte, retirando-o da esfera da ciência (da Lógica) 24 , sua distinção não
foi adotada pelos filósofos posteriores.
A Kalokagathia (, nobreza) — a Beleza associada ao
Bem — ganhou uma longa história no pensamento platônico (e, pos-
teriormente, na filosofia medieval).^19 Além do próprio fedro (cita-
do acima), a linha genética dos textos sobre o tema é essa: Górgias
(476d–477a), Banquete (209e–212a), A República (iii, 386a–403c; vi,
504e–505b; vii 527a–c), Timeu (86b–90d) e Filebo (64d–66d).
Aristóteles deu um passo adiante: definiu o Belo como algo orde-
nado — o conceito de ordem era caro aos antigos, especialmente a
ideia de ordem serial (o antes e o depois)^20 :
“O belo — ser vivente ou o que quer que se componha de partes — não só deve ter essas partes ordenadas , mas também uma grandeza que não seja qualquer. Porque o belo consiste na grandeza e na ordem e, portanto, um organismo vivente pequeníssimo não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo o grandíssimo (porque faltaria a visão de conjunto, escapando à vista dos espectadores, a unidade e a totalidade; imagine-se, por exemplo, um animal de dez mil estádios(…). Pelo que, tal como os corpos e organismos viventes devem possuir uma grandeza, e esta bem perceptível como um todo, assim também os mitos devem ter uma extensão bem apreensível pela memória” (Poética, vii, 44, 1450b–1451a).^21
“Como o bem e o belo são diferentes (o primeiro, de fato, encontra-se sempre nas ações, enquanto o segundo encontra-se também nos entes imóveis) erram os que afirmam que as ciências matemáticas não dizem nada a respeito do belo e do bem. Com efeito, as matemáticas falam do bem e do belo e os dão a conhe- cer em sumo grau: de fato, se é verdade que não os nomeiam explicitamente, todavia dão a conhecer seus efeitos e suas razões e, portanto, não se pode di- zer que não falam deles. As supremas formas do belo são: a ordem, a simetria e o definido, e as matemáticas os dão a conhecer mais do que todas as outras ciên- cias” — aristóteles, Metafísica, xiii, 3, 1078b, 35).^22
As Três Graças (cópia romana de um original grego do séc. ii a. C.). Mármore, 123 x 100 cm, Metropolitan, New York. Aglaia (Beleza), Eufrosina (Alegria) e Thalia (Abundância). Elas conferem o que é mais prazeroso e benéfico na natureza e na sociedade: a fertilidade e o crescimento, a beleza nas artes, reciprocidade e a harmonia entre os homens. Eram servas de Afrodite. Esta composição logo se tornou a fórmula canônica para representar as Graças.
1.4 a estética neoplatônica
e a espiritualização do Belo
Essa ênfase estoica na filosofia moral não era novidade no Ocidente.
Fazia parte da tradição socrático-platônica considerar os temas filo-
sóficos sob o prisma metafísico do Bem, da Verdade e do Belo.^29 Essa
tendência foi acentuada pelo Neoplatonismo (sécs. iii–vi). plotino (c.
205–270), filósofo grego, talvez o mais proeminente pensador entre
os neoplatônicos, dedicou um capítulo de suas Enéadas ()
ao Belo. Ele se dirige à visão, embora haja, de fato, uma beleza para a
audição (pois a melodia e o ritmo são belos). Beleza é a simetria das
partes e suas cores. Mas as mentes que se elevam para além dos senti-
dos encontram uma beleza superior, a beleza da conduta de uma vida
correta — em atos, em caráteres, em virtudes. E tudo o que é relacio-
nado à alma é belo.
A Estética clássica : O Belo é a manifestação do Bem — Kalokagathia () Enéada i, 6 (Sobre o Belo):
“ 1. O Belo dirige-se principalmente à visão, mas também há uma beleza para a audição (…) pois a melodia e o ritmo são belos. As mentes que se elevam para além do reino dos sentidos encontram uma beleza na conduta da vida :
melhor parte de ti mesmo (…) Se queres saber em que consiste e donde provém o verdadeiro bem, vou dizer-to: consiste na boa consciência, nos propósitos honestos, nas acções justas, no desprezo pelos bens fortuitos, no ritmo tranquilo e constante de uma vida que trilha um único caminho. (…) Raros são os homens que conseguem ordenar reflectivamente a sua vida. Os outros, à maneira de destroços arrastados por um rio, em vez de caminharem deixam-se levar à deriva”.^28
A Beleza consiste, portanto, na aquisição da Sabedoria que, por sua
vez, é a instalação da ordem na vida, a paz interna, a felicidade do
mundo espiritual autônomo e independente do agir no mundo.
Busto de Marco Aurélio (c. 161-169). Mármore, Metropoli- tan Museum, NY. “Comece o dia dizendo para si mesmo: ‘Hoje encontrarei um indiscreto, um ingrato, um insolente, um embusteiro, um invejoso, um insociável’. É que estes desgraçados não conhecem os verdadeiros bens e os verdadeiros males. Mas eu, que aprendi que o verdadeiro bem consiste no que é honesto e que o verdadeiro mal está no que é ver- gonhoso, eu, que conheço a natureza de quem comete a falta, que sei que é meu irmão, não de sangue e de carne, mas por compartilhar a mesma participação no mesmo espírito emanado por Deus, não posso me considerar ofendido por eles. Ninguém pode despojar minha alma da honradez; é impossível que me enfastie com um irmão ou o odeie. Ambos fomos feitos para obrar de comum acordo, como dois pés, duas mãos, duas pálpebras, duas fileiras de dentes. Esforçar-nos-íamos contra a natureza sendo inimigos, ou manifestando desgosto e aversão com esses indivíduos”. Meditações (), Livro ii.
“Com meu avô Vero aprendi a nunca mostrar impaciência; com meu pai, modés- tia e firmeza varonil; com minha mãe, nunca praticar o mal, nem tê-lo em pensa- mento, além de viver com frugalidade e sempre fugir do luxo e das riquezas; com meu
governador, trabalhar com paciência, contentar-me com pouco, saber servir-me de mim mesmo e desconfiar dos delatores; com Diógenes, suportar que me julguem com inteira liberdade; com Rústico, acostumar-me com a ideia de que é necessário corrigir o caráter e vigiar as inclinações. Além disso, evitar a ostentação e perdoar voluntaria- mente as injúrias e faltas ao menor sinal de arrependimento”, marco aurélio, Medi- tações (), Livro i.
Com plotino, já está esboçada a tríade que marcará profunda-
mente todo o pensamento medieval: Unum, Verum, Bonum. A beleza
decorre da consideração desses transcendentais. Tais esferas de va-
lor estavam integradas, completavam-se e não podiam se separar.
Por fim, para contemplar retamente a beleza — das criaturas e da
natureza — haveria uma única exigência por parte da mente contem-
plativa (muito mais tarde definida belamente por dante alighieri
[1265–1321]): um olhar claro e uma mente pura (“conocchiochiaro e
conaffetto puro”, Paraíso, Canto vi, 87).^32
A Estética clássica: O Belo é a manifestação do Bem — Kalokagathia ()
Enéada I, 6 (Sobre o Belo):
“ 1. Se nos voltarmos para as belas condutas e os belos discursos , poderemos atribuir a causa de sua beleza à simetria? E se falarmos da virtude , que é uma beleza da Alma — e uma beleza realmente acima das mencionadas — como dizer que ela é composta de partes simétricas?
2. Caminhemos em direção à origem e indiquemos o princípio que concede a beleza às coisas materiais. Sem dúvida, esse princípio existe. É algo perceptível ao primeiro olhar, algo que a Alma reconhece a partir de um antigo conheci- mento e, ao reconhecê-lo, acolhe-o e entra em ressonância com ele. 4. Assim como aqueles que nasceram cegos não podem a respeito das belezas sensíveis, assim também não é possível se falar a respeito da beleza das con- dutas, das ciências e de outras coisas semelhantes sem ter antes se interessado por essas questões, nem é possível falar a respeito do esplendor da virtude sem antes ter contemplado a bela face da justiça e da temperança , cuja beleza é maior do que a da aurora e a do crepúsculo. Tais belezas só podem ser vistas por aqueles que veem com os olhos da Alma ”.^33
em atos, caráteres, bem como a encontram nas ciências e nas virtudes. Há uma beleza interior a essa? O questionamento que se segue o mostrará”.
“Quase todo o mundo afirma que a beleza visível resulta da simetria das par- tes , umas em relação às outras e em relação ao conjunto e, além disso, de certa beleza de suas cores. Neste caso, a beleza dos seres e de todas as coisas seria devido à sua simetria e à sua proporção (…) Conforme essa opinião, as cores be- las, e mesmo a luz do Sol, sendo desprovidas de partes e portanto desprovidas de uma bela simetria, seriam desprovidas de beleza. E por que o ouro é belo? E o relâmpago que vemos na noite, o que faz com que seja belo? O mesmo pode ser perguntado dos sons…”.^30
Ademais, a justiça e a temperança são mais belas que a aurora e o
crepúsculo, mas só podem ser apreciadas por aqueles que veem com
os olhos da alma. Esses conseguem experimentar um deleite, uma
alegria, um assombro: estão a contemplar o verdadeiro reino da Be-
leza. Lá encontra-se a alma honesta, a que é justa, nobre, digna, cal-
ma, pura de costumes (isto é, recatada, modesta), serena, impassível.
Essa alma, purificada, torna-se uma forma e uma razão. Essa beleza da
alma é a existência real, a verdadeira realidade. O resto, corpóreo, não
é real, mas um mundo de sombras, traços, imagens irreais.^31
O mundo material das belezas corporais parece relegado mais de-
cisivamente a ser imagem, traço, sombra, espectro da verdadeira beleza.
Por isso, o homem deve habituar sua alma à contemplação das belas
ocupações, das belas obras, e especialmente das almas daqueles que
realizam essas belas obras. A beleza atrelada ao bem (ordem moral) é
também um imperativo. Por isso, o símbolo maior da feiura é a alma
dissoluta e injusta, cheia de concupiscências e desequilíbrios — alma
covarde, mesquinha, invejosa, infectada pelo deleite dos prazeres im-
puros das paixões corporais (Enéadas, i, 5).
Por fim, o filósofo cristão destacou a Beleza através de seu oposto:
a feiura. Existem coisas belas porque há outras não tão belas, ainda
que tudo sejam bens — superiores e inferiores:
Entre esses bens, há alguns de ordem inferior que são denominados com nomes contrários, ao serem comparados com os que são de ordem superior. Assim, em comparação com a forma humana, que tem maior beleza, a beleza do macaco é dita disforme; e isso basta para que os ignorantes se equivoquem e julguem que aquela é um bem, e esta um mal, sem atentar para o modo próprio e conveniente ao corpo do macaco, nem para a proporção de seus membros, nem para a simetria das suas partes, nem para o cuidado da sua conservação, nem para outras coisas que seria demasiado longo enumerar (A Natureza do Bem, cap. xiv).^47
Há, portanto, uma gradação das coisas no mundo. Coisas pou-
quíssimo belas, coisas menos belas, coisas belas, coisas belíssimas
e, por fim, a Beleza.
beleza era, sobretudo, medida, proporção, unidade, conveniência, mo-
deração e ordem, tudo condensado no clássico trinômio agostiniano
que a posteridade abraçou: modus, species et ordo (moderação, forma e
ordem). A Beleza era um bem divino.
A Estética agostiniana : O Belo é formoso, ordenado, uno.
“Contemple o céu, a terra, o mar e tudo o que há neles, os astros que brilham no firmamento, os répteis, as aves e os peixes: todos têm sua beleza, porque têm seu número ” (Do livre-arbítrio, ii, xvi, 42).^43
“Todas as coisas são melhores quanto mais forem moderadas, formosas e or- denadas ” (Da natureza do Bem, 3).^44 “A oposição dos contrários torna mais patente a beleza do Mundo na ordem que Deus lhe conferiu” (A Cidade de Deus, xi, 18).^45
“ Toda a beleza do corpo está, com efeito, na harmonia das partes com uma certa suavidade da cor. Onde não há harmonia das partes, há algo que ofende porque é mal feito, quer por ser de menos, quer por ser de mais” (A Cidade de Deus, xxii, 19).^46
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Segurado Campos). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, Carta
65 , 3 e 18, p. 229 e 18.
28 lúcio aneu séneca. Cartas a Lucílio, op. cit., Carta 23, 6, 7 e 8, p. 85–86.
29 O Bem e a Verdade são belos. Ver platão. A República, op. cit., 509b, p. 311.
30 plotino. Tratados das Enéadas (trad. Américo Sommerman). São
Paulo: Polar Editorial, 2000, p. 19–20.
31 O parágrafo inteiro é um resumo do capítulo I.6 (“Sobre o Belo”) das
Enéadas. plotino. Tratados das Enéadas (trad. Américo Sommerman).
São Paulo: Polar Editorial, 2000, p. 17–35.
32 costa, Ricardo da. “Ramon Llull (1232–1316) e a Beleza, boa forma natu-
ral da ordenação divina ”. In: Revista Internacional d’Humanitats. Ano
XIII, n. 18, 2010, p. 21-28. Internet, http://www.ricardocosta.com/artigo/
ramon-llull-1232-1316-e-beleza-boa-forma-natural-da-ordenacao-divina.
33 plotino. Tratados das Enéadas (trad. Américo Sommerman). São
Paulo: Polar Editorial, 2000, p. 21–25.
34 santo agostinho. A Cidade de Deus (trad., prefácio, nota biográ-
fica e transcrições de J. Dias Pereira). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, vol. ii, p. 1041.
35 santo agostinho. Diálogo sobre o Livre Arbítrio (trad. e introd. de
Paula Oliveira e Silva). Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de
Lisboa. Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2001, p. 222–223.
36 Obras completas de San Agustin I. Madrid: bac, mcmxciv, p. 677.
37 Apud. tatarkiewicz, Wladyslaw. Historia de la Estética. II. La estética
medieval. Madrid: Ediciones Akal, 2002, p. 63.
38 Ibid.
39 Ibid., p. 64.
designando como nobreza (…) entenda-se por coisas nobres as vir-
tudes e ações resultantes da virtude (…) A nobreza, portanto, é vir-
tude completa”. aristóteles. Ética a Eudemo (trad. e notas de Edson
Bini). São Paulo: edipro, 2015, p. 311–313 (Livro viii, 3, 1248b1 10 —
1249 a1 15). O tradutor, Edson Bini, comenta: “…vocábulo composto
de difícil tradução que esses nossos termos traduzem precariamente.
Melhor tentar entende-lo: designa uma conduta moral irrepreensível
que reflete um sólido caráter moral igualmente irrepreensível. Afinal,
trata-se da síntese harmoniosa de todas as virtudes. A nossa expres-
são integridade moral se aproxima, ainda que imperfeitamente, desse
conceito” (p. 311, nota 1392).
20 Em que pese toda a carga crítica que atualmente paira sobre o Estagirita,
ele ainda é uma importante referência reflexiva. Veja por exemplo,
Gadamer: para citá-lo, quase se desculpa. “Apesar de todos os precon-
ceitos classicistas e anticlassicistas, gostaria agora de dar novamente
voz à principal testemunha da teoria classicista da imitação, aristó-
teles, para que ele nos ajude a pensar o que acontece na nova arte”,
gadamer, Hans-Georg. “Arte e Imitação (1967)”, op. cit., p. 16.
21 aristóteles. Poética (trad., prefácio, introd., comentário e apêndi-
ces de Eudoro de Sousa). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2003, p. 113–114.
22 aristóteles. Metafísica (ensaio introd., texto grego com trad. e
comentário de Giovanni Reale), op. cit., p. 604–605.
23 Obras completas de San Agustin I. Madrid: bac, mcmxciv, p. 594–690.
24 Na Ética a Nicômaco (trad., textos adicionais e notas de Edson Bini).
Bauru, SP: edipro, 2007, p. 181–182 (1140a1 5–15).
25 marco túlio cícero. Textos Filosóficos ii. Diálogos em Túsculo (trad.,
introd. e notas de J. A. Segurado e Campos). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2014, p. 236–237.
26 cícero. Orator ad Brutum, ii, 7. Apud panofsky, Erwin. Idea: A Evolução
do Conceito de Belo. São Paulo: Martins Fontes, 2000. PA Fundação
Calouste Gulbenkian nofsky, Erwin. 2000, p. 162 (nota 20).
40 Ademais, o filósofo — amante da Sabedoria — não é um amante do
corpo, pois os que praticam a verdadeira filosofia se preparam para
morrer. Ver platão. Diálogos. Protágoras — Górgias — Fedão, op. cit., p.
41 santo agostinho. A Cidade de Deus (trad., prefácio, nota biográ-
fica e transcrições de J. Dias Pereira). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2011, vol. iii, p. 2317.
42 santo agostinho. A Cidade de Deus, op. cit., p. 2321.
43 Apud. tatarkiewicz, Wladyslaw. Historia de la Estética. II. La estética
medieval. Madrid: Ediciones Akal, 2002, p. 64.
44 Ibid., p. 65.
45 santo agostinho. A Cidade de Deus (trad., prefácio, nota biográ-
fica e transcrições de J. Dias Pereira). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, vol. ii, Livro xi, Cap. xviii, p. 1031.
46 santo agostinho. A Cidade de Deus (trad., prefácio, nota biográ-
fica e transcrições de J. Dias Pereira). Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993, vol. iii, Livro xxii, Cap. xix, p. 2317.
47 santo agostinho. A Natureza do Bem. Rio de Janeiro: Sétimo Selo,
2005, p. 17–19.
o mundo antigo e medieval, escritores e filósofos que transmitiram
um pouco da cultura clássica à Idade Média. Dois deles foram fun-
damentais: boécio (c. 480–524) e isidoro de sevilha (c. 560–634).^49
O bispo Basílio de Cesareia (329–379), por exemplo, preocupou-se com a beleza da luz: “Como a noção de beleza conserva seu valor a propósito da luz? Não será porque a proporção da luz se testemunha não em suas próprias partes, mas no aspecto risonho e doce que oferece à vista?” (Homilia in Hexaemeron, ii, 7).^50
boécio defendeu o conceito de Beleza como proporção das partes.
Quanto mais simples a relação entre as partes, mais belo é o objeto.
A forma das coisas produz efeitos estéticos. No entanto, o filósofo
afirmou que a admiração que as pessoas sentem pela beleza é um
sintoma da debilidade dos sentidos: caso nossa percepção fosse mais
perfeita, não seríamos tão fascinados como somos pela beleza de
“coisas vis”:
8. Contemplai a extensão do céu, a sua estabilidade e célere movimento, e de uma vez por todas deixai de admirar as coisas vis. E o céu não é mais admirável, em boa verdade, do que a ordem com que é governado. 9. Como é arrebatadora a magnificência de sua beleza, como é veloz e mais fugaz do que a mutabilidade das flores primaveris! 10. E se, como diz Aristóteles, os homens usassem dos olhos de Linceu^51 , de tal modo que sua visão atravessasse os obstáculos, não é verdade que o famoso corpo de Alcibíades^52 , de extraordinária beleza à superfície, ao verem-se no interior as entranhas, se apresentaria como feiíssimo? Por conseguinte, aquilo que te faz parecer belo não é a tua natureza, mas as limitações dos olhos que te contemplam. 11. Mas sobrestimai quanto quiserdes os bens do corpo, desde que saibais que tudo aquilo que admirais pode ser destruído pelo fogo de uma febre de três dias.
2.1 a estética dos primeiros séculos do
cristianismo: Boécio e Isidoro de
Sevilha
Pseudo-Dionísio Areopagita (séc. v)
Por causa do belo existem os acordos, as amizades e as comunicações de todas as coisas, e no belo todas as coisas estão unidas. O belo é princípio de todas as coisas enquanto causa eficiente, que move todas as coisas e as conserva juntas dando-lhe o amoroso desejo de sua própria beleza, e é o fim de todas as coisas e é digno de ser amado enquanto causa final, pois que todas as coisas nascem por causa do belo, e causa exemplar, porque todas as coisas se definem em re- ferência ao belo.
De fato, sucede ao belo o mesmo que ao bem: todas as coisas, qualquer que seja o motivo que as mova, tendem para o belo e para o bem, e não existe nenhum ser que não participe do belo e do bem. Ousaremos dizer até mesmo que o não- ser é partícipe do belo e do bem; de fato ele torna-se belo e bem em si mesmo quando é celebrado supersubstancialmente em Deus pela negação de todo atri- buto. Este único bem e belo é de modo único a causa de todas as coisas belas e boas, que são muitas (Dos nomes divinos, iv, 7).^48
Com a queda (e violenta transformação) do Império Romano do Oci-
dente com as invasões bárbaras, a Educação ficou restrita à Igreja Ca-
tólica, única instituição que sobreviveu naquele processo histórico.
Além disso, o amor ao saber e ao conhecimento ajudou aqueles ho-
mens religiosos a preservar da destruição praticamente todo o ma-
nancial literário, histórico e filosófico da Antiguidade.
Nesses séculos de transição — iv ao ix (isto é, até o desabrochar
do Renascimento carolíngio, o primeiro dos renascimentos a ocorrer
na Europa) — alguns pensadores foram os vasos comunicantes entre
A Estética na transição do mundo antigo ao medieval: a beleza da Música
Boécio — Da Instituição da Música
“Nas artes, nenhum caminho conduz melhor até a alma que o ouvido” (I, 1).^54
“O músico é aquele que possui a capacidade de pensar racionalmente e julgar a conveniência das melodias, dos ritmos, os diferentes tipos de música e os can- tos dos poetas” (i, 34).^55
Por sua vez, isidoro de sevilha escreveu uma obra que pos-
teriormente seria a referência enciclopédia de consulta dos le-
trados medievais: as Etimologias (c. 627–630). Há nela uma con-
cisa definição do que é a Beleza: “Belo é o que é de Vênus (Venustus),
de sangue. Como o verde das plantas (Viridis), cheio de força e de sei-
va, como se tivesse enorme energia” (x, 277).^56 Mas sobretudo é a Ar-
quitetura que merece o maior espaço para o que é belo:
A construção dos edifícios tem três momentos: a planificação (dis- positivo), a construção e o embelezamento (…) O embelezamento é tudo o que é incorporado ao edifício para sua ornamentação e decoração, como os tetos adornados com ouro, os revestimentos de mármore e as pinturas coloridas (xix, 9 e ii).^57
A passagem mostra dois conceitos que serão fundamentais
e que terão longa vida na História da Estética: a ornamentação
e a decoração.^58
A Estética na transição do mundo antigo ao medieval: a beleza da Música
Cassiodoro (c. 485 – 580)
“A música é a ciência ou disciplina que trata dos números, mais especificamen- te, dos que se encontram nos sons” (Das artes com disciplina, v).^59
12. De tudo isto, o que se pode concluir de essencial é que estas coisas não são capazes de proporcionar os bens que prometem nem se encontram na perfeita reunião de todos os bens; não são caminhos que conduzam à felicidade, nem por si mesmas tornam os homens felizes (Consolação da Filosofia, Livro iii, Prosa 8, 8–12).^53
Belo, portanto, é o que é estável, o que dura, o que permanece.
Belo é o Cosmos, mundo criado por Deus, sua imutabilidade, sereni-
dade, estabilidade.
A beleza oriunda da contemplação do universo é, para boécio —
aconselhado pela própria Filosofia (quem faz o discurso acima) — a
verdadeira felicidade.
boécio. Consolação da Filosofia. Itália (1385), MS Hunter 374, v.1.11, folio 4r.
deve haver o necessário, tanto nos costumes quanto na linguagem. E por que? Deve ser necessariamente assim em qualquer situação, porque o que se distancia da medida incorre no vício (Albini de rethorica, 43, 2).^65
E quem profere (acima) essa nova forma de se pensar o Belo é al-
cuíno de york (c. 735–804), professor da corte e do próprio impera-
dor, vindo, a seu pedido, das Ilhas Britânicas para lecionar na escola
imperial. Essa reminiscência da tradição clássica deve ser especial-
mente pensada nesse novo contexto: a outra tradição, bárbara, goda
(visigoda, ostrogoda) apreciava as formas abstratas, o simbolismo
das linhas entrelaçadas, e servia de adorno aos poderosos. Aspirava
ao fausto — exatamente o contrário da arte clássica, do pensamento
grego. A opção imperial carolíngia pelo Renascimento, pelo voltar-se
para a tradição greco-romana que a Igreja preservava, determinou a
maneira com que os pósteros pensaram a Estética.
A Estética no Renascimento Carolíngio
joão escoto erígena (c. 815–877)
“A beleza de todo o universo criado , dos seres iguais e diferentes, reside na maravilhosa harmonia entre os diferentes tipos e as diversas formas, nas dis- tintas classes de natureza e circunstâncias, fundidas em uma inefável unidade ” (João Escoto Erígena, Da divisão da natureza, iii, 6).^66
Por exemplo, a ordem residia na própria natureza das coisas. A
arte tinha regras imutáveis. Bastava ao artista, ao artesão, contem-
plá-las, observá-las, reproduzi-las (antiga noção estética agora re-
petida sob os auspícios da Igreja). “As artes têm regras imutáveis e
que não foram estabelecidas pelo homem, mas descobertas graças
à habilidade dos inteligentes” (De cleric. institut., 17)^67 , disse rábano
2.2 a estética no
Renascimento Carolíngio
Por ter os olhos voltados para o mundo greco-romano, esse impulso
literário-filosófico dos séculos viii–ix ficou conhecido como Renas-
cimento Carolíngio (sécs. viii–ix). O imperador reuniu em sua corte
(em Aachen) professores, especialmente gramáticos, com o apoio da
Igreja Católica, para lecionar. Por sua parte, a Igreja, através de sua
rede de mosteiros espalhada pela Europa, preservou, com o trabalho
de seus copistas, os documentos antigos da destruição (do tempo,
das vicissitudes): a maior parte dos manuscritos antigos, dos textos
clássicos, é justamente desse período.
Por isso, os temas estéticos desse período versavam sobre as ideias
clássicas — como a da ordem e a verdade, por exemplo — mas sob uma
nova perspectiva, claramente religiosa (os antigos diriam transcen-
dental). Os documentos oficiais redigidos a partir da corte carolíngia
demonstram uma clara preocupação com a função da imagem. Por
sua beleza, a arte deve ser orientada, dirigida para o além, para a fé
(ideia de fundo platônico, como já vimos).
A imagem da Santa Mãe de Deus deve ser adorada, mas como podemos saber que é Sua imagem? Quais indícios a distingue das outras imagens? Porque não existe diferença entre elas, exceto a experiência do artista, dos que executam a obra e a qualidade do material (Libricarolini vi, 21, p.l. 98, c. 1229).^64
A noção de ordem passa, por isso, a restringir as expressões artís-
ticas, a determinar o estritamente necessário:
Compreendo o provérbio filosófico “Nada a mais” do seguinte modo: só
Nesse último aspecto, o papel do papa gregório magno (c. 540–
604) foi fundamental para criar no Ocidente o costume da Arte, o há-
bito da Arte, pois sublinhou a importância pedagógica das imagens
para a educação:
26. Aliud est enim picturam adorare, aliud picturae historiam, quid sid adorandum addiscere. Nam quod legentibus scriptura, hoc idiotis praestat pictura cernentibus, quia in ipso ignorantes vidente, quod sequi debeant; in ipsa legunt, qui litteras nesciunt; unde praecipue gentibus pro lectione pictura est. Et si quis imagines facere voluerit, minime prohibe, adorare vero imagines omnimodis devita.
26a. Pictura in ecclesiis adhibetur ut hi, qui litteras nesciunt, saltem in parietibus videndo legant, quae legere in codicibus non valente.
26. Uma coisa é adorar a pintura, outra é aprender sua história para que seja adorada. A pintura representa para os idiotas que a contemplam o mesmo que a escrita para os que sabem ler, já que os ignorantes que não conhecem as letras veem nela aquilo que devem fazer. Por isso, a pintura é para as gentes, essencialmente, uma espécie de lição. E se alguém
Mauro (c. 776–856), monge impulsionador da cultura (especialmen-
te as ciências e as artes) na abadia beneditina de Fulda^68 — por sua
vez, centro irradiador das Letras por toda a Germania — e autor de
uma importante obra medieval, filosófica/enciclopédica, De rerum
natura (Da natureza das coisas), título que alude à tradição atomista
grega e, especialmente, à lucrécio (99–55 a. C.).^69
O Renascimento carolíngio dedicou várias obras — e extratos de
documentos oficiais (atas, decretos) — à Estética. Em sua atitude es-
tética, reconheciam eles a sedução do olhar, a verdade da beleza das
coisas sensíveis, mas destacavam a superioridade da verdade da be-
leza eterna. Um dos suportes do Belo que mais recebeu atenção dos
carolíngios foi a Música, como podemos perceber nesse extrato do I
Sínodo de Aachen (817):
cxxxvii, Sobre os cantores, 5.
Os cantores devem aplicar-se, com o maior cuidado, em não macular com estridências o dom que receberam de Deus, mas adorná-lo com humildade, castidade, sobriedade e todos os demais ornamentos das santas virtudes, para que, assim, sua melodia eleve o espírito do povo que os escuta rumo à recordação e ao amor celestial, não só pela sublimidade das palavras, mas também pela doçura dos sons emitidos. É necessário que o cantor, como mostra a tradição dos Santos Padres, seja brilhante e ilustre, em sua voz e em sua arte, de modo que o deleite de sua doçura incite as almas da audiência.^70
Os carolíngios ainda tentaram precisar o papel da Arte — já per-
cebiam que a Pintura e a Arquitetura, especialmente, deslumbravam
os espíritos. Por isso, em seus escritos, debateram o papel da Arte,
sua capacidade de mostrar a verdade (ou não), seus limites, sua infe-
rioridade em relação aos bons costumes e à escrita e, especialmente,
o simbolismo da beleza e a necessidade que o povo tem da pintura.
Antifonário de Hartker de Saint Gall. Cod. Sang. 390, folio 13. O papa Gregório Magno (c. 540-604) dita seu canto gregoriano para seu discípulo e amigo Pedro, o Diácono (Johannes Hymo- nides, †antes de 885, biógrafo do papa), com a pomba do Espírito Santo a lhe inspi- rar (em seu ouvido direito). Iluminura de um Antifonário do Mosteiro de Saint-Gall, séc. xi (Cod. Sang. 390, folio 13).