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Aproximação entre Espinosa e Kelsen: Norma Jurídica e Estado, Notas de estudo de Direito

Este texto discute a relação entre as ideias de pablo de olavide espinosa e hans kelsen sobre a natureza da norma jurídica e do estado. Apesar de suas perspectivas filosóficas serem diferentes, os autores compartilham algumas semelhanças, como a coincidência dos conceitos de direito e estado, a crítica dos clássicos do jusnaturalismo e a importância da norma fundamental. O texto também aborda a questão do fundamento do direito e a natureza da autoridade.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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Espinosa, Kelsen e a
natureza da norma jurídica
Diogo Pires Aurélio
Universidade Nova de Lisboa
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Espinosa, Kelsen e a

natureza da norma jurídica

Diogo Pires Aurélio

Universidade Nova de Lisboa

discurso 45/

discurso 45/ que eu saiba, procurado em Espinosa o mais leve sinal de uma antecipação”^2 (Negri, 1985, p. 173). O silêncio de Kelsen a respeito de Espinosa, autor que o jurista menciona apenas uma vez na sua obra, em O problema da soberania, onde é vagamente associa- do ao «monismo» que Hegel viria depois a teorizar, parece tanto mais injustificado quanto o filósofo de Amesterdão estava longe de poder considerar-se um desconhecido no ambiente intelectual de Weimar. Carl Schmitt, por exemplo, logo em 1921, na famosa obra sobre a ditadura, evidencia as marcas de espinosismo que são visíveis na distinção que o Abbé Sieyes estabelece entre poder constituinte e poder constituído. Afirma, com efeito, Schmitt: A ideia da relação entre poder constituinte e poder constituído encontra o seu analogon sistemático e metodológico perfeito na ideia da relação entre natura naturans e natura naturata, e mesmo se esta ideia é retomada do sistema racionalista de Espinosa, isso prova precisamente que este sistema não é só racionalista. Porque a teoria do poder constituinte é sempre ininte- ligível como racionalismo puramente mecanicista. (Schmitt, 2000, p. 147) Alguns anos mais tarde, num texto dedicado ao Leviathan, o mais conhecido dos críticos de Kelsen analisa os capítulos XIX e XX do Tratado Teológico-Político (a seguir, TTP), vendo aí o início e a fonte das ideias liberais, de onde haveriam de brotar os germes da desagregação do Estado e, implicitamente, as raízes da crise já então patente na República de Weimar. Escreve Schmitt: Em Hobbes a paz pública e o direito da potência soberana estava em pri- meiro plano; a liberdade individual de pensar ficava apenas como possível, como uma restrição última e em pano de fundo. Pelo contrário, a partir de agora, a liberdade individual de pensar torna-se o princípio formador, e as 2 No mesmo ano, foi publicado o artigo de Manfred Walther “Spinoza und der Rechtspositivismus”.

necessidades da paz pública, tal como o direito da potência estatal sobera- na, transformam-se em simples restrições. Um ligeiro movimento do pen- sar – uma comutação – provindo da existência judia, e em apenas alguns anos, com uma lógica perfeitamente consequente, a reviravolta decisiva no pensamento do Leviatã estava dada. (Id., 2002, p. 118) Qualquer destas referências a Espinosa dificilmente poderia não ser do conhecimento de Kelsen, ele próprio judeu, ligado a meios judeus e, sobretudo, leitor de Schmitt. Mas não era apenas Schmitt, uma vez que Leo Strauss também havia já publicado, des- de 1924, em revistas de Berlim e de Munique, diversos textos sobre Espinosa, no primeiro dos quais (Strauss, 1991) se pode ler uma defesa do autor do TTP contra os ataques, algo violentos e até ad ho- minem, que lhe havia feito, alguns anos antes, um outro judeu, de seu nome Hermann Cohen. Este último, partindo do pressuposto que as teses do TTP se explicariam, em última análise, pelo fato de o autor, quando jovem, ter sido expulso da sinagoga, reduz integral- mente a filosofia de Espinosa ao panteísmo e ao formalismo: Espinosa é um escolástico com fórmulas novas: natureza, necessidade, lei natural. (…) O seu escolasticismo não se manifesta unicamente no formalismo da sua construção e pela sua terminologia, mas diretamente, de uma forma ainda mais nítida, pela sua ausência de interesse face ao problema moderno do direito e do Estado. (…) Quaisquer que sejam as diferenças que possam encontrar-se entre Espinosa e os dois autores ingleses [Bacon e Hobbes], no essencial ele agarra-se, em matéria de di- reito, à potência, da mesma forma que associa as leis à indução. Não tem admiração pela Revolução Inglesa. Não tem olhos para as forças do povo que trabalham duramente, nas camadas subterrâneas da vida do Estado. (Cohen, 1991, pp. 156-157) Cohen, porém, não é só um judeu, como Kelsen e Strauss, entre muitos que vão posicionar-se no interminável debate que se trava, por mais de um século, no interior da comunidade hebraica, ESPINOSA, KELSEN E A NATUREZA DA NORMA JURÍDICA | Diogo Pires Aurélio

Hermann Cohen é, pois, sem margem para dúvidas, o autor para cuja obra, em última instância, remetem os fundamentos e a arquitetura da Teoria Pura do Direito. Cohen, porém, asso- cia Espinosa ao panteísmo e ao romantismo de Jacobi, que são efetivamente o oposto do ideal de conhecimento objetivo que o positivismo da Escola de Marburg exalta, como condição sine qua non de sobrevivência da filosofia e do seu reconhecimento como ciência. Lendo Espinosa como o lê Cohen, seria impos- sível a Kelsen rever-se nos seus pressupostos e aperceber-se de quanto a sua própria filosofia do direito pode ler-se como um eco, decerto esbatido, mas ainda assim claramente perceptível, da filosofia do autor da Ética. É, no entanto, esse mesmo eco, paradoxalmente, que o levará a afirmar a autonomia da ciência do direito quer face à religião, quer face à própria ética, e a rea- lizar, com a Teoria Pura do Direito, a tentativa mais radical algu- ma vez ensaiada, no interior do positivismo lógico, para pensar as questões jurídicas. Não irei aqui demorar-me na exposição minuciosa dos con- ceitos e argumentos de Kelsen, entre outros motivos, porque alguns deles – por vezes, os principais – foram sendo objeto de reformulações sucessivas, nem sempre bem-sucedidas em termos de clarificação e coerência, ao longo da vida do autor. Vou antes limitar-me a enunciar dois aspetos da sua doutrina que sobressa- em como especialmente relevantes quando projetados, retrospe- tivamente, sobre a obra de Espinosa: o primeiro é a coincidên- cia dos conceitos de ‘direito’ e de ‘Estado’, a qual arrasta consigo a coincidência da legitimidade e da legalidade, e bem assim a crítica das doutrinas clássicas do jusnaturalismo e da soberania, que poderá ler-se, mutatis mutandis, tanto em Kelsen como em Espinosa; o segundo é o conceito de ‘norma fundamental’, que aparece como chave da ciência do direito de Kelsen e que, em meu entender, poderá trazer alguma luz à tão discutida expressão de Espinosa una veluti mente. ESPINOSA, KELSEN E A NATUREZA DA NORMA JURÍDICA | Diogo Pires Aurélio

discurso 45/ II Comecemos pelo Estado. Kelsen rejeita a concepção trivial do Estado enquanto comunidade de vontades, autónoma e prévia à ordem jurídica, seja na sua versão metafísica e ética, seja na versão sociológica: Se a teoria do Estado não quiser ir além dos dados da experiência e de- generar em especulação metafísica, a ‘vontade coletiva’ ou ‘consciência coletiva’ não pode ser a vontade ou a consciência de um ser diferente dos indivíduos humanos que pertencem ao Estado. O termo vontade coletiva, ou consciência coletiva, só pode significar que vários indivídu- os querem, sentem ou pensam da mesma maneira e estão unidos pela consciência desta comum vontade, sentimento e pensamento (Kelsen, 2006, p. 184). Acontece que uma tal unidade só existe realmente nos mo- mentos em que o grupo, por natureza disperso e dividido, se põe de facto de acordo sobre algo de concreto. Pressupor que todos os cidadãos de um Estado podem pensar, sentir e querer constan- temente do mesmo modo é, obviamente, “uma ficção política” (Ibid., p. 185), mesmo que essa ficção apareça como um plano superior de conciliação da conflitualidade natural das vontades empiricamente dadas, como é o plano da eticidade hegeliana. A sociologia argumentará que essa união resulta do fato de existir quem a produza e mantenha, isto é, do fato de haver quem dá ordens e quem obedece, durante o tempo necessário à sua conso- lidação. No entanto, argumenta Kelsen, na sociedade há muitas ordens que são acatadas e que não se associam ao Estado. Por exemplo, a ordem que dá um assaltante à sua vítima, para que lhe entregue os seus pertences. É certo que uma ordem dada em nome do Estado, assim como a dominação permanente exerci- da por este, reclamam para si um estatuto diferente e uma le- gitimidade, que tanto os que mandam como os que obedecem alegadamente reconhecem. O que significa, porém, ordenar ou

discurso 45/ exterioridade a si mesmo: uma prescrição, ao contrário de uma proposição, não é verdadeira nem falsa: é válida ou não é válida. E é válida se traduzir uma ordem de uma vontade qualificada para a prescrever. O Estado não só não é rigorosamente nada para além dessa unidade sistemática, como também não se cruza com nenhuma outra ordem que possa existir no seu exterior e que ne- cessariamente lhe é paralela, como por exemplo a ordem moral. Existe, com certeza, a moral, e os indivíduos movem-se por ou contra ela, por ou contra os valores em que ela se traduz. Con- tudo, um valor que pertence à ordem moral não é passível de objetividade e, por isso mesmo, não pode constituir um dado para a ciência do direito. A menos que ele seja transposto para uma ordem jurídica. Aí, porém, a sua validade dependerá da qualifica- ção da pessoa ou órgão que a integrou como norma juridicamen- te válida. Com efeito, ela só ganha ‘força de direito’ no momento em que for dita de direito, mediante uma jurisdictio. A uma primeira análise, semelhante identificação do poder e do direito dir-se-ia remeter para Hobbes e para a sua sigla que diz ser a autoridade e não a verdade que faz a lei^4. Como é sabido, na concepção do autor inglês é o poder soberano que estabelece o que é justo e o que é injusto, suspendendo qualquer ordem de valores antecedente e superior à instituição da justiça por ele próprio. Visto, porém, numa perspectiva positivista, o sistema ho- bbesiano está assente sobre duas falhas inaceitáveis: uma falha a montante e outra a jusante. A montante, o hobbismo está fundado naquilo que o autor 4 “Doctrinae quidem verae esse possunt; sed auctoritas non veritas facit legem” (Ho- bbes, 1966, p. 202). No original inglês [1651], a frase surgia em termos diferentes, em- bora o sentido seja o mesmo: “The interpretations of the laws of nature, in a Com- monwealth, dependes not on the books of moral philosophy. The authority of writers, without the authority of the Commonwealth, makes not their opinions law, be they never so true”. Uma frase análoga vem em A Dialogue between a Philosopher and a Student, of the Common Laws of England [1681]. In: W. Molesworth (1839-1845) (ed.). The English Works. Vol. VI, rep. London: Scientia Verlag Aalen, 1965, p. 5: “It is not wisdom, but authority, that makes a law”.

classifica de ‘terceira lei da natureza’, isto é, a obrigação que os homens têm de obedecer aos pactos que celebram uns com os outros, visto que, sem essa garantia de obediência, seriam inúteis tanto a primeira lei, que manda procurar a paz, como a segunda, que estipula a necessidade do pacto. Ora, basear a organização político-social numa obrigação ou lei moral é supor que os ho- mens se conduzem pela razão. E como, a maior parte das vezes, não é esse o caso, o sistema incorre em utopia. A jusante, o seu fundamento reside inteiramente na vontade do soberano, uma vez que o pacto não estabeleceu quaisquer con- dições ou critérios a que ele estaria sujeito quando determinasse o que é de direito. Dito por outras palavras, a multidão não constitui o poder, isto é, não lhe dá uma constituição que o condicionasse, pelo simples motivo de que, antes de existir poder político, a mul- tidão não existe enquanto pessoa e, por conseguinte, não pode exprimir-se numa vontade comum. É verdade que, se o soberano atuar racionalmente, percebe que é também do seu interesse ade- quar as leis ao interesse comum da sociedade, por forma a garantir a segurança e a perenidade do Estado. Infelizmente, não existem mais garantias de o soberano se conduzir racionalmente, e saber o que lhe convém, do que existem de os cidadãos o fazerem. Es- tamos, por conseguinte, como Schmitt repetidamente observará, perante uma ordem jurídica cujos fundamentos transbordam para fora do sistema e não podem ser objeto de uma verdadeira ciência do direito^5. O projeto de Kelsen pretende obviar a estas duas «falhas», retirando a autonomia ontológica à soberania e ao político. Aqui- lo a que se chama poder resume-se, na sua teoria, a uma cadeia transitiva, horizontal e impessoal de atos de criação e execução de leis, a qual funciona como simples técnica de regulação e har- 5 Para uma análise minuciosa dos fundamentos da soberania hobbesiana, cf. Christian, 1998, pp. 311-318. ESPINOSA, KELSEN E A NATUREZA DA NORMA JURÍDICA | Diogo Pires Aurélio

assuntos só podem ser corretamente geridos se aqueles que deles tratam quiserem agir lealmente, não terá a mínima estabilidade. Ao invés, para que ele possa durar e ser estável, as coisas públicas (res publicae) devem estar ordenadas de tal maneira que aqueles que as administram, quer se conduzam pela razão, quer se conduzam pelo afeto, não possam ser induzidos a estar de má-fé ou a agir desonestamente (TP, I, 6). Daí a importância que assume a questão da condição do imperium, ou forma do Estado. Para assegurar a sobrevivência de uma cidade, ou Estado, é preciso que esta determine qual a natureza do poder, quais as regras da decisão soberana, em vez de serem os governantes a determiná-lo. Se a compararmos com outras, onde existe menos corrupção, “isso nasce de essa cidade não providenciar o bastante pela concórdia, nem instituir os di- reitos com suficiente prudência” (TP,V, 2). E nem vale a pena derrubar tiranos, se não se eliminarem as causas da tirania (TP, V, 7). Numa palavra, o poder não pode ser pensado, à maneira hobbesiana, como se fosse uma instância exterior ao agregado, com a capacidade de determinar em absoluto a natureza do justo e do injusto, ou seja, o direito. Isto mesmo é claramente afirmado no início do capítulo VII do TP, em clara refutação da doutrina do Leviatã: Em parte nenhuma, que eu saiba, se escolhe um monarca sem absoluta- mente nenhumas condições expressas. (…) Os fundamentos do Estado devem ser tidos como decretos eternos do rei, de tal maneira que os seus funcionários lhe obedecerão completamente, se, quando ele der alguma ordem que repugne aos fundamentos do Estado, se negarem a executar o que ele mandou. (TP, VII, 1) Existe, pois, uma desobediência virtuosa, que o autor com- para à desobediência dos companheiros de Ulisses, os quais o pouparam à vertigem do canto das sereias, ao manterem-se fiéis às ordens que ele lhes dera quando pediu que o amarrassem ao ESPINOSA, KELSEN E A NATUREZA DA NORMA JURÍDICA | Diogo Pires Aurélio

discurso 45/ mastro do navio, e não lhe dando ouvidos quando depois lhes exigia que o desamarrassem. Não é uma virtude que transcenda o direito, uma virtude que se legitimasse por força da sua qua- lidade intrínseca. Dito de outro modo, essa desobediência não colhe a sua legitimidade em alguma ordem exterior ao direito – como seria, por exemplo, a ordem moral, ou um pragmatismo de qualquer tipo – em nome da qual se pudesse suspender a ordem legal, à semelhança do que faz o soberano schmittiano, ao decidir do Estado de excepção em nome de valores que subjetivamente rotula de superiores. A desobediência ao soberano a que Espinosa se refere neste texto encontra a sua legitimidade tão só nos chama- dos “decretos eternos do rei”, ou fundamentos do Estado, os quais antecedem, de um ponto de vista lógico, toda a produção norma- tiva. Só nessa medida é que se pode falar de um constrangimento ao arbítrio do monarca, porquanto as suas ordens, se não forem uma dedução dos fundamentos do Estado, são juridicamente nu- las e requerem, para ser levadas à prática, o recurso à força, contra a potência da multidão. A uma primeira leitura, seríamos levados a pensar que Es- pinosa, ao admitir que pode existir virtude na desobediência às normas do soberano, restabelece o jusnaturalismo tradicional e repõe a assimetria entre legitimidade e legalidade, que Hobbes pretendera eliminar. Dificilmente, porém, semelhante retorno ao jusnaturalismo se compreenderia num autor que, pelo menos nesta matéria, se revê no capítulo XV do Príncipe, onde Maquia- vel se insurge contra aqueles que esquecem na política o que os homens são realmente, para olhar apenas ao que eles deveriam ser. Torna-se, por isso, necessário averiguar a natureza dos men- cionados “fundamentos do Estado”, que surgem no TP como se fossem uma instância normativa superior ao próprio monarca, mas que a metafísica do autor impede que se confundam com princípios transcendentes, da mesma forma que o seu realismo impede que se tomem por valores éticos. Já vimos que, de alguma forma, eles delimitam o campo de ação dos governantes, deixan-

discurso 45/ da junção de vários direitos individuais, sendo que o direito de cada um se estende até onde se estender a sua potência, que o mesmo é dizer, a sua capacidade de garantir a si mesmo a sobre- vivência e o bem-estar, e de se libertar da sujeição a outros, reali- zando-se como esse sui júris: ser de direito próprio. Se a junção se fizesse em termos estritamente racionais, o direito comum seria igual à soma aritmética das potências associadas. Mas a junção faz-se tanto por motivos racionais quanto por força dos afetos, pelo que o grupo está interiormente atravessado por dinâmicas que ora reforçam a sua potência e, por conseguinte, o seu direito, ora o reduzem. Pode mesmo perguntar-se como é possível uma junção com alguma estabilidade, tendo em conta a inconstância afetiva dos indivíduos que formam o grupo e que oscilam permanente- mente ao sabor de afetos contraditórios. Hobbes, como é sabido, considerava ser impossível que tal junção, por si só, formasse uma potência comum. Para se chegar a uma potência e a um direito comum, considera o autor do Leviathan, é necessário desfazer primeiro todos os esboços de agregação natural, que são outros tantos focos de guerra, e reduzir cada indivíduo à sua singula- ridade^7. Só assim eles poderão anuir a um soberano, assente na autoridade hipoteticamente pactuada pelos súbditos, que confere à multidão a unidade artificial de uma vontade comum, de um direito e de uma commonwealth. Mas para Espinosa, a questão da génese do Estado é supérflua, porquanto “os homens desejam por natureza o Estado civil, não podendo acontecer que alguma vez eles o dissolvam por completo” (TP, VI, 1). A hipótese do Estado de natureza, que equivaleria à ausência absoluta de um direito comum, é contra toda a experiência, da mesma forma que a hipó- tese simétrica – um Estado civil em que o direito fosse a expressão integral do preceituado pela razão – não passa de uma quimera. 7 Este aspeto é particularmente realçado em Roberto Esposito, Communitas. Origine e destino della communità. Torino: Einaudi, 2006, cap. I.

Em consequência, a base do direito comum terá de procurar-se, antes de mais, naquilo a que Espinosa chama de “afetos comuns”. Na verdade, os homens unem os seus esforços, seja por medo, por ambição ou por vontade de vingança, e dessa união, alimenta- da pela imitação dos afetos, nascem costumes, direitos consuetu- dinários, linguagens e símbolos partilhados, numa palavra, insti- tuições. As instituições contrariam a sempre fluida movimentação dos afetos. Elas são uma espécie de coágulos, ‘precipitados’, como se diz em Química, no seio da potência da multidão. Através de- las, estabilizam-se afetos comuns e introduz-se uma ordem na po- tência coletiva, na medida em que as associações resultantes da imitação dos afetos ganham formas consistentes, as quais norma- lizam e tornam menos imprevisível o agir de governantes e de go- vernados. Sendo, porém, formadas na argamassa dos afetos, as ins- tituições podem igualmente cristalizar ‘paixões tristes’ e, como tal, reduzir a potência individual, em vez de contribuir para a liberda- de de cada um, que é a razão de ser da república. Ao constituírem uma segunda natureza, as instituições podem, de fato, estabilizar a submissão e a própria alienação, produzindo fenómenos que contrariam a racionalidade, como aquele que Rousseau virá a de- nunciar como “os escravos por natureza” e que são homens que já não se identificam a si mesmos como seres livres. Pelo contrá- rio, quando nas instituições se cristalizam ‘paixões alegres’, elas preservam a «memória da liberdade», como diz Maquiavel, e não deixam o povo “repousar”, enquanto estiver submetido pela força a alguém que o tenha conquistado (Maquiavel, 2008, p. 132). Além disso, as instituições, embora contrariem, não elimi- nam a espontaneidade individual, essa reserva de interioridade que está fora do alcance do poder e das suas normas, conforme Espinosa refere, no início do capítulo XVII do Tratado teológi- co político (doravante TTP). Embora assente no que é comum, o Estado não apaga a dissidência e o eventual conflito, pelo que a potência da multidão, independentemente do seu grau, é sem- pre uma soma algébrica e pode apresentar diversas configurações. ESPINOSA, KELSEN E A NATUREZA DA NORMA JURÍDICA | Diogo Pires Aurélio

sucessivas deslocações do ponto de equilíbrio da potência da mul- tidão. É que tanto os governantes como os governados se movem por afetos e interesses. E para resistir aos efeitos potencialmente destrutivos da tensão que assim se estabelece, é preciso que os fundamentos do Estado estejam o mais próximo da razão, não de uma razão substantiva e abstraída da realidade, mas de uma razão- -proporção, de uma combinatória de normas elementares que, a partir da situação concreta do Estado – por exemplo, a sua dimen- são, demografia, riqueza, etc. – dêem lugar a uma ordem jurídica tal, que faça com que os interesses dos governantes passem pela satisfação dos interesses dos governados, numa espécie de home- nagem que o vício presta à virtude: “é necessário lançar funda- mentos firmes (…) dos quais resulte a segurança do monarca e a paz da multidão, de tal modo que o monarca esteja tanto mais sob jurisdição de si próprio quanto mais atender à salvação da multidão” (TP, VI, 8). E quem diz o monarca, diz as assembleias em quem a forma do Estado deposita a capacidade de deliberar. A democracia, contudo, é um Estado totalmente absoluto. Nele, a ordem jurídica incorpora, sem resto, a potência da mul- tidão, pelo que aí a legalidade e a legitimidade se representam em total coincidência, exatamente como sucede com a ordem normativa de Kelsen. O modo que assumiria, segundo o entendi- mento de Espinosa, a produção legislativa no Estado democrático é, sem dúvida, uma incógnita, além do mais pelo facto de o TP ter ficado inacabado. Pode até presumir-se que não haja solução para o problema (Cf. Balibar, 1985, p. 90; Matheron, 1994, pp. 153- [esp. p. 64]); ou que a democracia espinosana, paradoxalmente, só seria realizável na ausência de toda e qualquer forma de Estado (Cf. Montag, 1999, pp. 84-85); ou, ainda, que à luz da razão o seu fundamento não é equacionável senão de modo incompleto, e que, em consequência, mais do que o ser da democracia, importa- rá o fazer democracia, mais do que a definição, porventura impos- sível, da sua essência, importará o processo da sua dinamização. Existe, contudo, uma dificuldade. É que um processo não é um ESPINOSA, KELSEN E A NATUREZA DA NORMA JURÍDICA | Diogo Pires Aurélio

discurso 45/ Estado, e Espinosa refere a democracia como sendo “o Estado totalmente absoluto”. Sendo a democracia um tipo de Estado, ela possuirá também os seus fundamentos. Mas, ao contrário do que pretendem algu- mas interpretações, segundo as quais seria possível o levantamen- to das fundações da democracia a partir apenas da obra espinosa- na, pelo que o inacabamento do TP seria irrelevante, é necessário prestar atenção ao que Espinosa diz no capítulo IV desse tratado: “se a cidade não estivesse adstrita a nenhumas leis ou regras, sem as quais a cidade não seria cidade, então deveria ser encarada, não como coisa natural, mas como quimera” (TP, IV, 4). Ora, as regras fundamentais de uma cidade não são princípios universais da razão, mas princípios estruturantes dos afetos que são comuns aos seus habitantes. Imaginar um direito comum em abstrato, uma justiça transcendente à cidade, seria recair na ilusão de uma legitimidade no exterior da legalidade, a qual, na democracia es- pinosana como na ciência do direito de Kelsen^8 , equivale a uma efabulação. Teremos, então, de concluir que há uma ambiguidade intrín- seca ao próprio Estado democrático? Em termos jurídicos, não existindo no seu exterior nenhum resto de potência que o con- dicione ou atemorize, um direito comum democrático equivale a uma potência sem limites, absoluta, portanto. A verdade é que, em termos ontológicos, esse direito comum defronta-se com a na- tureza da própria multidão, na qual se registam afetos individuais ou de grupo que tendem a prevalecer sobre os afetos comuns. Por definição, a multidão é refratária a uma unidade como aquela que o soberano hobbesiano representa, ou como a vontade geral de Rousseau, e preserva a diversidade dos ‘engenhos’ individu- 8 Hayek critica Kelsen, precisamente por este ignorar que “as regras da justa conduta podem conduzir à formação de uma ordem espontânea”, e conclui que “o positivismo jurídico tentou, por esta razão, apagar a distinção entre as regras da justa conduta e as regras de organização , e pretendeu (…) que a concepção da justiça não tem nada a ver com a definição do que é a lei” (Hayek, 1982, p. 55).