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As crianças tiveram a oportunidade de ver o filme Rei Leão na oficina de Libras, com a instrutora surda, que procurava chamar a atenção de J e LC.
Tipologia: Slides
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Esferas simbólicas, construção de conhecimento e surdez Relato de Pesquisa
PELA CRIANÇA SURDA^1
KNOWLEDGE
Claudia Campos Machado ARAÚJO^2 Cristina Broglia Feitosa de LACERDA^3
RESUMO: este estudo ancora-se na abordagem bilíngüe para explorar e abordar as esferas simbólicas da linguagem – gesto, desenho, narrativa e escrita – concomitante à língua de sinais no desenvolvimento de linguagem da criança surda e na construção de novos conhecimentos. A partir do referencial de análise qualitativa foram utilizados os construtos teóricos e metodológicos da perspectiva Histórico-Cultural e de sua articulação com a análise microgenética. Os sujeitos da pesquisa foram duas crianças surdas bilíngües, em fase de aquisição tanto da língua de sinais, quanto da escrita da língua portuguesa, cursando a 2ª série do Ensino Fundamental. Ambas eram do sexo masculino, na faixa etária de 9 e 10 anos, e diagnóstico audiológico de surdez profunda bilateral. O foco das análises privilegiou a emergência dos processos em mudança na dinâmica das interações entre os sujeitos que participaram da pesquisa, considerando o aspecto particular e global na sua ocorrência e constituição. As atividades simbólicas favoreceram a ampliação da língua de sinais e acessos iniciais à escrita, abrindo espaço para a consolidação de signos e para o desenvolvimento de linguagem. O uso prioritário da língua de sinais, associado ao trabalho com atividades sígnicas, além da consideração das particularidades lingüísticas e das mediações semióticas, foram fundamentais para o desenvolvimento da linguagem da criança surda e para a construção de conhecimentos, de maneira satisfatória e adequada à sua constituição como sujeito ativo e participante da linguagem.
PALAVRAS-CHAVE: linguagem; desenho infantil; escrita; bilingüismo; surdez; educação especial.
ABSTRACT: this study is grounded on a bilingual approach and it aims to explore and to approach the symbolic spheres of language – gesture, drawing, narrative and writing – concomitantly to sign language in deaf children’s language development and to the building of new knowledge. Theoretical and methodological constructs stemming from the Historic-Cultural perspective and its articulation with the microgenetic analysis were used in this qualitative analysis. Research subjects were two deaf boys who were in the process of bilingual language acquisition – Brazilian sign language and the written modality of Brazilian Portuguese; both were in the second grade of Brazilian elementary education level, with ages between 9 and 10 years and both had audiological diagnoses of profound bilateral deafness. The focus of the analysis highlighted the emergence of changing processes in the dynamics of interactions between the research subjects, taking into account the particular and global aspects in their occurrence and constitution. Symbolic activities enable the broadening of sign language and beginning access to writing, which in turn promote the
(^1) Este artigo é parte da Tese de Doutorado intitulada “Linguagem e desenho infantil: aspectos do desenvol- vimento simbólico da criança surda e implicações terapêuticas”, com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior - Capes. (^2) Fonoaudióloga. Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas - SCA/ FCM/ Unicamp - claudia-araujo@uol.com.br (^3) Fonoaudióloga. Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de Fonoaudiologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba. Pós-doutorado no CNR-Itália - clacerda@unimep.br
ARAÚJO, C. C. M.; LACERDA, C. B. F.
consolidation of signing and language development. The priority given to sign language use associated with working with semiotic activities which take into account linguistic particularities and semiotic mediations were vital for language development of these deaf children and for the construction of knowledge , in a way that is both satisfactory and adequate to their constitution as active subjects and participants in language.
KEYWORDS: language; children’s drawing; writing; bilingualism; deafness; special education
Os profissionais da área da saúde e da educação, envolvidos no trabalho com surdos, visam à otimização da comunicação e melhor integração social desses sujeitos. Para isso, é necessário que a família (primeiro grupo responsável pela criança) seja orientada e informada a respeito do significado da surdez, de suas conseqüências para a comunicação infantil e da aquisição fundamental da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua, que será capaz de garantir o desenvolvimento cognitivo e lingüístico para a melhor inserção da criança na sociedade (GUARINELLO; LACERDA, 2007).
Mas, apesar da importância de favorecer e iniciar o desenvolvimento da língua de sinais a partir do diagnóstico, grande parte dos surdos é exposta inicialmente apenas à linguagem oral, acarretando um relevante atraso de linguagem e conseqüente prejuízo no processo de significação. É neste contexto, com dificuldades para o desenvolvimento de uma língua oral, apoiada em aspectos oral-auditivos (língua dos pais ouvintes), e sem uma língua estruturada, apoiada em aspectos viso-espaciais (língua da comunidade surda) que a criança surda chega, freqüentemente, à escola, convidada a constituir-se leitora/escritora de uma língua que não domina.
A Clínica Fonoaudiológica tem sido ao longo do tempo grande responsável por estes casos, já que majoritariamente, focaliza sua atenção para a protetização e o trabalho para o desenvolvimento de língua oral. Apenas quando este modelo não alcança os resultados esperados, o que é freqüente, recorre tardiamente à língua de sinais.
Todavia, a partir da década de 1990, alguns fonoaudiólogos (LACERDA et al., 2000) mais atentos ao desenvolvimento de linguagem de sujeitos surdos, têm trabalhado em uma perspectiva bilíngüe (língua de sinais/ português escrito e quando possível, oral) buscando inserir o mais rapidamente possível estes sujeitos no mundo da linguagem.
Há que se considerar que a criança surda não pode construir a modalidade escrita da língua majoritária à qual está submetida pela via da oralidade, ou correlacionando aspectos da oralidade com outros da escrita. A criança surda percorre caminhos próprios, uma vez que deve aprender a escrever uma língua que ela, em geral, não fala e não domina (FERNANDES, 2006).
ARAÚJO, C. C. M.; LACERDA, C. B. F.
Apontando as bases para a compreensão do simbólico, Vigotski (1934/2005)^5 afirma que os signos são os mediadores das relações entre os homens, que o uso de signos marca o ser social dos indivíduos e que a linguagem é o signo por excelência e principal mediador necessariamente simbólico entre o mundo cultural e o biológico. O caráter semiótico do desenvolvimento humano refere-se à atividade específica da linguagem, que providencia os instrumentos auxiliares para a solução dos problemas, direciona a vontade, planeja a ação, controla e regula o comportamento. As ações humanas, mais do que ações condicionadas por estímulos externos, são ações mediadas por signos.
Falar então do desenvolvimento do processo de simbolização implica falar de desenvolvimento do processo de operação com signos. Explicando este processo, Vigotski (1998, p. 51) diz que: “a criança não deduz, de forma súbita e irrevogável, a relação entre o signo e o método de usá-lo”. A atividade de utilização de signos surge em um processo de desenvolvimento de operações nas quais ocorrem transformações qualitativas.
Sendo a forma psicológica principal de comunicação social e constituidora da consciência humana, a linguagem está também atrelada ao processo gráfico. Vigotski afirma que a linguagem escrita é um sistema particular de símbolos, cujo domínio prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança, por meio de um longo processo de desenvolvimento de funções comportamentais complexas (percepção, memória e solução de problemas) e da compreensão de toda a história do desenvolvimento - movimento progressivo - dos signos na criança. Neste processo histórico e unificado de desenvolvimento, o gesto é o signo visual inicial que contém a futura escrita da criança: “os gestos são a escrita no ar, e os signos escritos são, freqüentemente, simples gestos que foram fixados” (VIGOTSKI, 1998, p. 142).
Freqüentemente, as crianças usam a dramatização, demonstrando por gestos, o que gostariam de mostrar nos desenhos, isto é, os primeiros rabiscos constituem somente um suplemento à representação gestual. Posteriormente, ao desenhar conceitos complexos ou abstratos, novamente as crianças indicam as qualidades que conhecem do objeto, e o lápis meramente fixa o gesto indicativo.
Considerando-se que o gesto é a “possibilidade de participar das ações, como expressão da vontade, companheiro da palavra, modo de se fazer entender” (PADILHA, 2000, p. 215), esta fase do desenvolvimento do grafismo coincide com todo o aparato motor geral infantil e que governa a natureza e o estilo dos seus primeiros desenhos.
(^5) Quando a referência da obra aparecer ano/ano, a primeira data corresponde à publicação do original, e a segunda, à da tradução consultada.
Esferas simbólicas, construção de conhecimento e surdez Relato de Pesquisa
Posteriormente, a partir do que é significado socialmente por adultos ou pares que interagem com ela, a criança começa a dar origem a formas de grafismo, e os gestos cumprem uma função de substituição, ou seja, os simples sinais indicativos e traços e rabiscos passam à representação pictográfica, que começam a designar simbolicamente algum objeto.
De acordo com Ferreira (1998), a partir do momento em que o desenho é figurativo e pode ser interpretado como representação da realidade, referindo- se a elementos ausentes do espaço e do tempo presentes, ele torna-se signo: o que caracteriza o signo é o fato dele ser interpretável. É a interpretação que transforma uma figuração em signo.
Se a figuração simboliza, ou seja, se traz implicados significados e sentidos, esta possibilidade está imprescindivelmente articulada à palavra: a figuração no desenho é dotada de significado, que é refletida pela linguagem. Desta forma, no processo gráfico, os significados das figurações do desenho da criança são culturais e produto das suas experiências com os objetos reais, mediados pela palavra e pela interação com o outro.
Como linguagem gráfica, também do desenho decorre a linguagem escrita. Encontra-se em Vigotski (1998, p. 127) que: “o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a linguagem verbal” e pode ser considerado “um estágio preliminar no desenvolvimento da linguagem escrita”.
No desenvolvimento deste simbolismo, a criança percebe que pode desenhar não só objetos, mas também palavras. Vigotski (1998) considera que o desenvolvimento da linguagem escrita na criança está neste deslocamento. Esta transição deve ser propiciada à criança de maneira natural, organizada e adequada ao seu desenvolvimento, principalmente à criança surda, que estará ingressando no aprendizado da escrita de outra língua.
Vigotski et al. (1930/1988), afirmam apoiados em suas pesquisas, que a fase pictográfica do desenvolvimento da escrita baseia-se na rica experiência dos desenhos infantis. Inicialmente o desenho é brincadeira, um processo autocontido de representação; em seguida, o ato completo pode ser usado como estratagema: o desenho transforma-se, passando de simples representação para um meio, e o intelecto adquire um instrumento novo e poderoso na forma da primeira escrita diferenciada.
Os experimentos desenvolvidos por Luria (1930/1988), pesquisador responsável por recriar experimentalmente o processo de simbolização na escrita de modo a poder estudá-lo de forma sistemática, mostram que crianças colocadas diante da tarefa de representar graficamente frases mais ou menos complexas, revelam a passagem de desenhos a formas mais próximas da escrita. As crianças vão da escrita pictográfica para uma escrita ideográfica, criando marcas simbólicas. Ou seja, seus estudos revelaram que a criança antes de adquirir a escrita, passa por um longo processo que vai do uso de rabiscos não figurativos
Esferas simbólicas, construção de conhecimento e surdez Relato de Pesquisa
filmes, favorece de maneira significativa a construção de experiências de narrar, sendo estas atividades (ler livro, assistir filme, contar e recontar a estória) freqüentes nas relações adulto-crianças ouvintes.
Os atos de leitura e de reflexão sobre o que foi lido e visto, a possibilidade de análise, exploração e interpretação de livros e de filmes, a consideração dos aspectos relativos à interlocução (troca de papéis), podem contribuir para o enriquecimento lingüístico e sócio-histórico-cultural das crianças e para sua constituição como futuros leitores-escritores.
Contudo, se a significação, o sentido e a interpretação são fundamentais para o desenvolvimento e a aquisição da linguagem, a criança surda, filha de pais ouvintes, não tem essa oportunidade, freqüentemente, porque todas as experiências circundantes são ditas ou realizadas em uma língua não acessível. Então, aquilo que ela percebe, tem intenção de perguntar ou o que lhe é dito, nem sempre é significado.
O não acesso à língua do grupo majoritário impede que o desenvolvimento simbólico e a construção da significação se dêem de forma harmoniosa, conseqüentemente, esta criança poderá apresentar atraso de linguagem e o acesso à escrita ficará ainda mais complicado.
Nesse sentido, o acesso precoce à língua de sinais é fundamental para que a criança surda se desenvolva lingüisticamente e tenha possibilidades para comunicar seus desejos, necessidades e opiniões. A língua de sinais permite à criança surda significar o mundo e a si própria, já que essa tem papel constitutivo na subjetividade. Portanto, quanto mais tardia a aquisição, mais comprometido pode ficar o desenvolvimento do sujeito.
Entretanto, a partir da perspectiva Histórico-Cultural, são escassas as referências sobre o circuito e funcionamento destas esferas simbólicas (gesto, desenho, narrativa, escrita, sinais) sobre suas relações, inter-relações e as possibilidades de sua interferência no desenvolvimento da linguagem e do sujeito surdo em seus aspectos constitutivos. E, ao se pensar também na surdez, não se pode perder de vista que, o desenvolvimento da linguagem só será possibilitado, se o profissional ouvinte e criança surda, estiverem trabalhando na mesma língua e ambos imersos no mesmo mundo simbólico.
Desta maneira, este estudo ancora-se na abordagem bilíngüe para explorar e abordar as esferas simbólicas da linguagem - gesto, desenho, narrativa e escrita - concomitante à língua de sinais no desenvolvimento de linguagem da criança surda e na construção de novos conhecimentos.
ARAÚJO, C. C. M.; LACERDA, C. B. F.
Para estudar a linguagem e seus processos de desenvolvimento, alguns pesquisadores têm buscado realizar pesquisas que levem em conta o sujeito, seu contexto e sua história desenvolvendo metodologias de pesquisa próximas às abordagens qualitativas, valorizando mais os processos em sua ocorrência do que os produtos finais alcançados (FREITAS, 2001; LODI, 2004; ARAÚJO, 2008). Esta forma de abordagem, articulada a análise microgenética (WERTSCH; HICKMANN, 1987) como abordagem metodológica inscrita em uma interpretação histórico-cultural e semiótica dos processos humanos (VIGOTSKI, 1926/1996), configuram-se como as mais adequadas aos propósitos deste estudo.
De acordo com Góes (2000, p. 9) salienta-se o caráter promissor de tais tendências para a investigação da constituição do sujeito, pois elas permitem adensar o estudo dos processos intersubjetivos e expandem as possibilidades de “vincular minúcias de episódios específicos a condições macrossociais, relativas às práticas sociais.”
Os sujeitos da pesquisa^6 foram duas crianças surdas (aqui denominadas de J e LC)^7 ambas do sexo masculino; faixa etária de 9 e 10 anos respectivamente, com diagnóstico audiológico de surdez profunda bilateral e queixa de atraso do desenvolvimento de linguagem
Freqüentavam a mesma sala de 2ª série do Ensino Fundamental em uma escola pública integrante de um programa de inclusão de educação bilíngüe^8. Usuários tardios da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e filhos de pais ouvintes, estavam se apropriando desta língua ao mesmo tempo em que eram solicitados a aprender o Português, na modalidade escrita. Tratava-se de uma língua da qual não eram usuários. Práticas de letramento comuns ao ambiente familiar eram pouco acessíveis a eles, já que suas famílias tinham domínio precário da língua de sinais. Por sua constituição como sujeitos surdos e usuários da Libras, a escrita era algo novo e distante.
(^6) O protocolo desta pesquisa bem como o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado ao Comitê de Ética em Pesquisa em 24/11/2003 foi homologado na XII Reunião Ordinária do CEP/FCM em 16/12/2003 e aprovado sob o Nº 565/2003. (^7) Os responsáveis pelos sujeitos pesquisados autorizaram o uso de seus nomes. (^8) Existe no município onde foi realizada a pesquisa, um programa de inclusão escolar bilíngüe para crianças surdas, que busca respeitar suas condições lingüísticas e necessidades educacionais. Assim, os sujeitos pesquisados freqüentavam uma escola referência no atendimento à surdez para o Ensino Funda- mental. A escola contava com instrutor surdo para o ensino de Libras (oferecido aos funcionários da escola) e para a condução de oficinas de Libras (oferecidas aos alunos surdos para desenvolvimento de lingua- gem). Contava também com intérprete de língua de sinais em sala de aula para tradução e interpretação dos conteúdos ministrados.
ARAÚJO, C. C. M.; LACERDA, C. B. F.
De acordo com Góes (2000) a possibilidade de trabalhar com recortes de eventos orientados para minúcias indiciais e em um tempo que tende a ser restrito, permite focalizar o movimento durante processos e relacionar condições passadas e presentes, tentando explorar aquilo que, no presente, está impregnado de projeção futura. Buscando-se também referir eventos singulares aos diversos planos da cultura, serão apresentados os episódios a seguir em ordenamento cronológico do mais antigo para o mais recente.
As crianças tiveram a oportunidade de ver o filme Rei Leão na oficina de Libras, com a instrutora surda, que procurava chamar a atenção de J e LC para as imagens das cenas, explicando-lhes pequenos episódios através da língua de sinais. Os nomes dos personagens eram dados em datilologia.
Eles davam retorno, produzindo sinais: LC com maior domínio e J com menor. Às vezes, faziam comentários adequados, dando a idéia de que estavam entendendo, e às vezes, não. Embora a sessão estivesse permeada por Libras, não havia a configuração de um diálogo, eram fragmentos de narrativa: os comentários da instrutora surda e dos participantes nem sempre seguiam uma mesma direção, ou mantinham o mesmo foco, havia muitas dúvidas, e os sinais das crianças surdas, geralmente, eram imprecisos. Ressalta-se que era um filme longo, com um enredo denso em certos aspectos, e nem sempre as cenas eram claras em seu sentido, apenas por suas imagens. Em muitos momentos, o que era dito nos diálogos, entre os personagens, não podia ser percebido apenas pela cena apresentada no vídeo.
Com a estória já discutida e conhecida por meio do filme, as crianças foram convidadas no atendimento terapêutico, a folhear e explorar livros desta mesma estória, que foi narrada novamente em Libras pela instrutora surda. Em um primeiro momento, J e LC dramatizaram algumas cenas, usando gestos e as principais miniaturas de personagens ( Simba, Nala, Timão e Pumba ).
A Libras aparecia de uma maneira ainda muito inicial: os comentários de LC eram em Libras, mas como descrição, ou seja, ele via a imagem no vídeo e a descrevia/repetia em seus gestos e movimentos. J ainda não usava os sinais autonomamente (sempre buscava a confirmação da instrutora surda para seus sinais). Embora as crianças usassem os sinais que sabiam adequadamente, ainda não havia um domínio de língua que permitisse narrar, ou perguntar, ou mesmo descrever com qualidade aquilo que apreendiam da estória. O que se observava eram comentários breves, característicos de um domínio restrito de língua.
Esferas simbólicas, construção de conhecimento e surdez Relato de Pesquisa
Figura 1 - Desenho de J
Figura 2 - Desenho de LC
Esferas simbólicas, construção de conhecimento e surdez Relato de Pesquisa
Neste episódio a escrita foi usada para nomeação, como etiqueta, de maneira apropriada: nome próprio dos participantes, nome do filme e nome dos personagens. Esta escrita revelou-se significativa para LC e J, pois, garantia um sentido mais preciso àquilo que cada um deles pretendia representar com seu desenho (nome da figura desenhada, da estória que foi contada e de quem desenhou). O desenho, meio de expressão inicialmente mais fácil para eles, favoreceu a emergência da escrita a partir dos diálogos estabelecidos em Libras.
O que se observa são esferas de atividade simbólica se interpenetrando e favorecendo o desenvolvimento simbólico como um todo, abrangendo inclusive a escrita - atividade mais complexa - e que não pode ser alcançada pelas crianças surdas a partir de sua oralidade, como é freqüente em crianças ouvintes.
Figura 3 - Escrita de J
ARAÚJO, C. C. M.; LACERDA, C. B. F.
Figura 4 - Escrita de LC
Em uma sessão de atendimento clínico-terapêutico foi oferecido a J e LC um livro contendo várias estórias de Walt Disney. LC assumiu inicialmente a tarefa de ler o livro contando as estórias a partir das ilustrações, fazendo breves descrições das figuras em Libras. Era um início de narrativa autônoma, guiada pelas imagens presentes no livro. É importante considerar que LC não conhecia muitas daquelas estórias, e então não tinha conhecimentos prévios suficientes para narrá-las, a não ser descrevendo as ilustrações. Descrevia-as como se fossem parte de um álbum de figuras, sem continuidade ou conexão entre elas. J acompanhava as atitudes de LC apenas olhando. Diante da postura de leitor, LC passava o dedo rapidamente pelas linhas do livro, apontando para as imagens, fazendo sinais pertinentes às ilustrações. Diante do mesmo material (estórias desconhecidas) J não se mostrava interessado em sinalizar, mas apenas folheava o livro, observando as ilustrações.
Quando folheando o livro chegaram à estória do Rei Leão, os dois estabeleceram uma parceria diferente, e houve uma tentativa de recuperar o sentido mais amplo da estória, por esta já ter sido vista em filme, sinalizada em Libras, dramatizada e desenhada na terapia. Na maior parte do tempo, J folheava o livro e LC tentava fazer sinais de acordo com a ilustração, chamando a atenção para alguma página ou retornando a ela, buscando estabelecer uma seqüência
ARAÚJO, C. C. M.; LACERDA, C. B. F.
Tentando minimizar e reverter este quadro, alguns fonoaudiólogos têm investido na abordagem bilíngüe, priorizando a aquisição precoce da língua de sinais, para posterior trabalho com a escrita ou oralidade (quando possível) da língua nacional. Nesta perspectiva, foi desenvolvido este trabalho em uma Clínica-Escola de Fonoaudiologia no interior de São Paulo.
Na Perspectiva Histórico-Cultural, modelo teórico que embasa este estudo, os elementos mediadores na relação entre o homem e o mundo - instrumentos, signos e todos os elementos do ambiente carregados de significado cultural - são fornecidos pelas relações entre os homens. Os sistemas simbólicos e, particularmente a linguagem, exercem papel fundamental na comunicação entre os indivíduos e no estabelecimento de significados compartilhados que permitem interpretações dos objetos, eventos e situações do mundo real (OLIVEIRA, 1998).
De acordo com a teoria Histórico-Cultural a história do desenvolvimento da linguagem escrita tem suas raízes na interação social. Como representação, tem início com o aparecimento do gesto como signo visual, e posteriormente com o desenho, quando a criança percebe a possibilidade do deslocamento de desenhar objetos para desenhar a fala, até que a ação e o grafismo passam a se subordinar aos processos de significação (VIGOTSKI et al., 1930/1988; LURIA, 1930/1988). Assim, o desenvolvimento do grafismo infantil, não pode ser visto como um processo mecânico, nem como uma construção individual da criança. Os conhecimentos e habilidades são construídos a partir de relações interpessoais (plano interpsíquico) e depois são internalizados e transformados ao nível intrapessoal (plano intrapsíquico).
Estes autores concluem que o gesto, a narrativa, o desenho e a escrita devem ser vistos como momentos diferentes de um processo essencialmente unificado - mesmo considerando as descontinuidades e os saltos de um tipo de atividade para outra - de desenvolvimento da linguagem escrita. Afirmam ainda, que a leitura e a escrita devem ser algo de que a criança precise, uma tarefa necessária e relevante para a vida, como uma forma nova e complexa de linguagem que ocorre em um momento natural no seu desenvolvimento.
Para então se chegar ao texto escrito do Português, língua cuja modalidade precisava ser significada simbolicamente para poder ser compreendida, o contexto e cotidiano terapêutico foi marcado pelo uso intensificado de atividades dentro da temática da estória Rei Leão, significadas, narradas e interpretadas pela Libras.
Os estímulos para o desenvolvimento de linguagem estavam fortemente apoiados em imagens (configuração visual): filme, livro, miniaturas de personagens, e a partir dessas imagens relacionadas às atividades (assistir filme, explorar livro, narrar, desenhar) emergia a língua de sinais, novos conhecimentos e possibilidades de abordar a leitura e a escrita.
Esferas simbólicas, construção de conhecimento e surdez Relato de Pesquisa
Os episódios mostraram o fluxo da atividade simbólica utilizado para representar um todo de significação. No primeiro episódio, a instrutora surda, diante do filme Rei Leão, explicava o que estava acontecendo, enfatizando principalmente as cenas possíveis de interpretação pela imagem. Pelo nível de domínio de Libras das crianças, configurou-se uma sessão, na qual as crianças assistiam ao filme e faziam comentários breves e fragmentados sobre o que estavam entendendo. As crianças não tinham ainda domínio suficiente de Libras para dizer tudo o que precisavam ou queriam.
A exploração do livro de estória já permitiu que as crianças, naquele momento, a representassem por meio de gestos e dramatização. Tais atividades mostraram-se prazerosas para as crianças, e apoiadas principalmente no desenho, elas puderam compreender vários elementos da estória, além de se desvencilhar da impressão inicial e negativa sobre a leitura e escrita, em um momento fundamental de seu desenvolvimento.
Pela limitação nos usos de linguagem, o desenho foi uma ferramenta terapêutica potencialmente capaz de contribuir para a emergência de processos favoráveis ao desenvolvimento da linguagem de J e LC, tornando-se possível atentar para os modos de expressão e representação destas crianças, acerca de suas experiências com as atividades trabalhadas. Elas desenharam o que haviam visto no filme e no livro, figurando importantes cenas do Rei Leão. Arriscaram- se na escrita, copiando do livro de estória, inicialmente, letra por letra, tanto o nome do filme quanto o de personagens. Também colocaram seus nomes em letras grandes e elaboradas.
A partir daí, já no terceiro episódio, as crianças sentiram que podiam narrar. É fundamental para o desenvolvimento da linguagem e da escrita a criança assumir/ocupar o lugar de narrador: elas tinham o que dizer, e nesse momento mais acessível, elas narrraram apoiadas na ilustração (imagem visual), ampliando a Libras. E, quando J e LC engajaram-se na atividade de produção de conhecimento compartilhado, foi possível vislumbrar situações propulsoras de novos conhecimentos. O foco nas atividades simbólicas para a constituição da linguagem passou a ser estendido também para o texto escrito.
Considerando que as crianças sempre apresentaram grande resistência à leitura e escrita de textos, ressalta-se então, a importância do trabalho fonoaudiológico apoiado em atividades interessantes e significativas para elas, possibilitando que J e LC, a partir de atividades simbólicas melhor consolidadas (desenho, dramatização, narração) internalizassem aspectos iniciais da escrita, transformando suas experiências pessoais. De acordo com Vigotski (1935/1998) no percurso deste desenvolvimento, a criança reconstrói internamente as operações externas, e os vários sistemas sígnicos cooperam e operam como sistemas fundamentais para que ela possa internalizar ações vividas socialmente. É desta forma que são constituídas as funções psicológicas superiores.
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