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Neste artigo, francyne frança discute as operações textuais empregadas por haroldo de campos em galáxias, onde a oralidade é recuperada como elemento poético central e mecanismo articulador do conjunto. O autor explora a importância dada pelo poeta à dimensão oral do livro, que é declarado pelo próprio haroldo de campos como sendo implícita em seu projeto.
O que você vai aprender
Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas
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Francyne França^1 RESUMO: tomando como ponto de partida o advento da palavra impressa e suas consequências para o pensamento e a expressão — dentre as quais o silenciamento da leitura —, o presente artigo discute globalmente as operações textuais empregadas por Haroldo de Campos em Galáxias. O poema celebra a pesquisa de material e o experimentalismo da forma, procedimentos dos quais resulta uma escrita que induz o leitor ao gesto oral, dando a ele não apenas o saber, mas o sabor da experiência poética. Palavras-‐chave: Galáxias; concretismo; oralidade. ABSTRACT: taking as a starting point the advent of the printed word e its consequences for thought and expression — among which the silencing of reading —, this paper globally discusses text operations used by Haroldo de Campos in Galáxias ( Galaxies ). The poem celebrates textual research and formal experimentation, procedures from which results a writing that induces the reader to an oral gesture, giving him not only the sense, but also the sensuality of the poetic experience. Keywords: Galáxias; concretism; orality. o olhouvido ouvê Augusto de Campos O som do signo guarda, na sua aérea e ondulante matéria, o calor e o sabor de uma viagem noturna pelos corredores do corpo. Alfredo Bosi No ensaio “The fourth dimension of a poem”, Meyer Howard Abrams (2012) afirma que quatro dimensões contribuem conjuntamente para o efeito global produzido pela leitura de um poema: (^1) Mestranda em Literatura Brasileira, UFRJ.
Uma dimensão é o seu aspecto visual, que sinaliza que você deve ler o texto impresso como um poema, não como prosa; e que também oferece pistas visuais como o andamento, pausas, paradas e a entonação de sua leitura. Uma segunda dimensão são os sons das palavras quando lidas em voz alta; ou, se elas são lidas silenciosamente, os sons como eles são imaginados pelo leitor. Uma terceira, e de longe a mais importante dimensão, é o sentido das palavras que você lê ou ouve. A quarta dimensão — quase totalmente negligenciada nas discussões sobre poesia — é a atividade de enunciar a grande variedade de sons da fala que constituem as palavras de um poema. (ABRAMS, 2012, p. 2). O que M. H. Abrams chama de quarta dimensão diz respeito, portanto, à elocução do poema; ao meio físico através do qual ele se realiza: não o texto escrito ou impresso — com o que comumente é confundido — mas a articulação dos sons pela voz humana. O equívoco está ligado ao impacto da literacia sobre o pensamento e a expressão, não apenas a partir do desenvolvimento da escrita, mas também, e sobretudo, a partir da invenção dos tipos móveis de metal^2 , pelo gráfico Johannes Gutenberg, em meados do século XV. “Toda tecnologia” — como explica Marshall McLuhan (19 7 2, p. 1) — “tende a criar um novo ambiente humano”. A tecnologia de Gutenberg, havendo mecanizado e barateado a produção de impressos, impulsionou a formação de um ambiente humano fundamental na cultura ocidental moderna: o público leitor. O sujeito desse novo ambiente — “homem tipográfico”, como o designou McLuhan — passou a ser fortemente orientado pela visualidade, tendência de que resultou um progressivo isolamento e a primazia da visão em relação aos demais sentidos. O impacto desse processo sobre a maneira de perceber as coisas transformou, irrevogavelmente, o ato da leitura e a noção de literatura. No século XII, (^2) Até então, a impressão era feita com tipos de madeira, pouco resistentes à reutilização, o que inviabilizava a produção em larga escala.
nosso aparelho vocal, nem podem ser ouvidos pelo nosso aparelho auditivo. Na leitura silenciosa, substituímos a realização material das palavras por movimentos musculares praticamente nulos e ecos analógicos produzidos em nossa mente pelos desenhos alfabéticos captados pelos nossos olhos. Distanciando-‐se da fala efetiva, a leitura se aproximou da atividade intelectual. Na cultura ocidental moderna, o predomínio da visualidade extrapolou o âmbito das faculdades sensoriais, passando a dominar também o campo do pensamento. A visão passou a ser compreendida como sentido coextensivo ao próprio pensar, estabelecendo-‐se uma relação direta entre o cérebro e os olhos, alçados pela tradição ocularista^3 à condição de “órgãos pensadores”. Para além da produção das imagens, a visão — dissociada de sua corporeidade — tornou-‐se uma pura construção subjetiva e uma construção da própria subjetividade. O mundo material foi perdido de vista: olhar transformou-‐se em um ato do espírito, não dos olhos. Tendo suplantado a oralidade no ato da leitura, a própria visão foi reduzida a um recurso por meio do qual o cérebro cruza as palavras — como o sol atravessa o vidro^4 — para alcançar e subtrair-‐lhes o seu conteúdo abstrato. E aqui retomo o comentário de M. H. Abrams a respeito das quatro dimensões do poema, em que ele classifica o sentido das palavras como “de longe a mais importante dimensão”, em virtude da qual o ato enunciativo passou a ser “quase totalmente negligenciado”. A realidade para que Abrams chama atenção é resultado do processo de progressiva desoralização da poesia que, distanciada de sua origem fundamentalmente oral, assumiu um caráter predominantemente abstrato. “Na poesia, a palavra é coisa e não mera portadora de significados” (PIGNATARI, 1963, p. 380), como diz Décio Pignatari, em texto publicado nos Anais do Segundo Congresso Brasileiro de Crítica e História literária. E as ressonâncias da experiência poética estão, (^3) Termo usado pelo filósofo José Américo Motta Pessanha, na introdução do livro O direito de sonhar , de Gaston Bachelard (1985). (^4) A imagem é de Paul Valéry, citada por Sartre em Que é a literatura? (1997).
sem dúvida, ligadas à integralidade da palavra: não apenas ao seu significado, mas também ao seu som, ao seu gosto. É através dessa conjunção indissociável de componentes materiais e imateriais que um poema produz seus efeitos. Na prática, porém, a tendência da leitura silenciosa reduz a experiência poética a uma atividade quase exclusivamente intelectual e a concretude das palavras, à mera sutileza. Indo de encontro a essa tendência, uma obra brasileira reinsere a dimensão oral como elemento poético central e mecanismo articulador de seu conjunto: trata-‐se do livro Galáxias , de Haroldo de Campos. Como o título do ensaio sugere, as Galáxias de certa forma restabelecem o equilíbrio entre a escrita e a fala no texto. Uma pista da importância dada pelo poeta à dimensão oral do livro é o CD Isto não é um livro de viagem , de 1992, que traz dezesseis fragmentos poéticos — dos cinquenta de que o livro é composto — declamados pelo próprio Haroldo de Campos: “a oralização das galáxias [sic] sempre esteve implícita no meu projeto. À Editora 34 e à sua diretora, Beatriz Bracher, devo agora a oportunidade de manifestar publicamente essa dimensão essencial do meu texto.” (CAMPOS, 2004, p. 119). Promover uma experiência estética fundada na materialidade da linguagem já era uma questão fundamental no trabalho de Haroldo desde a poesia concreta, movimento de que foi pioneiro, junto a Décio Pignatari e Augusto de Campos, irmão siamesmo^5. A proposta do movimento era — na contramão da pintura concreta, que se pretendia puro conceito — “fazer a palavra deixar de ser conceito para produzir uma forma de significação simultânea à imagem.” (GERHEIM, 2008, p. 50). O movimento da poesia concreta, com meios próprios e em um contexto muito particular, respondia à exigência de objetivação dos materiais e emancipação da linguagem do objeto, questão que se colocava de modo geral para a arte moderna. Havia, já nesse momento da (^5) “Irmãos siamesmos” era como Haroldo se referia a ele e ao irmão, como revelou Augusto de Campos, em afetuoso texto publicado no livro Céu acima , organizado por Leda Tenório da Motta, por ocasião da morte do poeta.
príncipe , a propósito do qual, Augusto de Campos classifica o irmão como “concreto” barroco, apontando a sua preferência por trabalhar com imagens e metáforas dispostas em blocos sonoros: “merece menção o especial uso das palavras-‐compostas, buscando converter a ideia em ideogramas verbais de som.” (CAMPOS; CAMPOS; PIGNATARI, 2006, p. 57). Sobre a Ciropédia , Haroldo de Campos diz o seguinte: Poema de formação, a Ciropédia , uma “lira” dos meus vinte e poucos anos, representa, no curso do meu trabalho, uma espécie de “Retrato do artista quando jovem”: a descoberta e o aprendizado da poesia, a erótica da linguagem como exploração das modalidades do visível, do audível, do táctil. [...] Nessa “prosa-‐ poema”, semeado de palavras-‐montagem, estruturado em segmentos rítmico-‐ prosódicos, encontra-‐se, por assim dizer, a “pré-‐história” barroca da minha poesia. Em certo sentido, retomei-‐o e radicalizei-‐o na escritura galática que elaborei posteriormente. (CAMPOS, 2010, p. 270). Em Galáxias , esse passado poético anterior ao concretismo é atualizado segundo o procedimento concreto de construção poética. A exemplo do que ocorre em Ciropédia , o poema galáctico — proesia, como o classificou Caetano Veloso — também se situa na fronteira entre a poesia e a prosa. A preocupação concreta com a dimensão visual — manifesta tanto nas escolhas editoriais quanto no “mar de sargaços de linguagem” (CAMPOS, 2010, p. 271) em que se configura a mancha gráfica ─ se estende também ao corpo sonoro das palavras: “Como se verá (como se ouvirá), trata-‐ se de um livro para ser lido em voz alta, que propõe um ritmo e uma prosódia, cujas zonas “obscuras” se transparentam à leitura.” (CAMPOS, 2004, p. 119). Em certo sentido, como observou Anatol Rosenfeld^6 , em Galáxias engendra-‐se uma estrutura detetivesca. Caleidoscópico é composto por miniestórias que, articuladas com intensos blocos sonoros, dissipam-‐se com o “‘suspense’ de uma novela policial” (CAMPOS, 2004, p. 11 9). As pequenas narrativas são como “ flashes nem sempre reconhecíveis, porque logo absorvidos pelo fluxo obsidiante da linguagem. Esta, o verdadeiro e principal personagem do livro” (CAMPOS, 2010, p. 272). (^6) Crítico e teórico de teatro germano-‐brasileiro que traduziu as Galáxias para o alemão.
Já nas primeiras linhas é possível identificar a circularidade vertiginosa que determinará o andamento de todo o livro: e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo [...] todo livro é um livro de ensaio de ensaios do livro por isso o fim-‐ comêço começa e fina recomeça e refina se afina o fim no funil do comêço afunila o comêço no fuzil do fim no fim do fim recomeça o recomêço refina o refino do fim e onde fina começa e se apressa e regressa e retece [...] [...] o avesso da estória que pode ser escória que pode ser cárie que pode ser estória tudo depende da hora tudo depende da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada de nada e nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e nenhumzinho de nemnada [...] (CAMPOS, 2004, canto I)^7 Os trechos destacados pertencem ao formante inicial — “e aqui começo” —, o primeiro dos cinquenta cantos, uma espécie de apresentação do livro: “começo-‐fim do jogo”, como o definiu Haroldo de Campos. O eixo temático que percorre todos os cantos galácticos — mas que é aqui introduzido — é o livro como viagem e a viagem como livro. Poucas e pouco desenvolvidas, no entanto, são as informações de caráter lógico-‐discursivo que esse “prelúdio” oferece ao leitor. E elas se dissipam tão logo se realizam, engolidas por um fluxo verborrágico que avança sobre elas com violência — como ondas a caminho da rebentação — até se extinguir subitamente, no choque com um novo ciclo a irromper: “nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total / tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro / e aqui me meço e começo [...].”(CAMPOS, 2004, canto I). (^7) Em Galáxias, as páginas não são numeradas. Para facilitar o processo de citação, os cantos serão identificados de acordo com a ordem em que aparecem no livro.
extremamente enfadonha. A leitura somente com os olhos, como costumamos chamar, procura o conteúdo abstrato das palavras. E as palavras galácticas — “epos ‘sem estória’ ou cuja estória é nada e tudo ao mesmo tempo” (CAMPOS, 2010, p.271) — nos oferecem seu conteúdo material, a substância da linguagem, que o leitor de Galáxias , como G.H. diante da barata, é seduzido a experimentar: “palavras maceradas como goma de mascar / resina e açúcar nas papilas coisa de fala sacarinando dançarinando / nos lábios aflorados nos entrelábios nos entreflorlábios farfalhando / fala farinando fala sim.” (CAMPOS, 2004, canto VII). Na contramão do que observa M. H. Abrams, as Galáxias não permitem que a enunciação de seus sons — sua quarta dimensão — seja negligenciada. Impelido à leitura em voz alta, o leitor se aproxima do poema até passar de mero observador de um objeto a parte integrante da experiência: “onde a / vista se reserva se guarda se considera entre a vista e o visto / entre a visão e a visada entre o aquilo e o isto a voz” (CAMPOS, 2004, canto VII). Quando se fundem a matéria sensível do poema e a matéria sensível do leitor que o declama, funda-‐se, na escritoralidade de Haroldo de Campos, uma mitopoética do corpo. Convertendo o leitor e o objeto de sua leitura — o que vê/diz e o que é visto/dito — em verso e anverso de uma mesma realidade, Haroldo de Campos desestabiliza a posição do sujeito diante da poesia. O olho externo — soberano e ordenador — perde, no contato com as Galáxias , o seu lugar como origem inequívoca da representação. “Pélago-‐linguagem” (CAMPOS, 2004, canto XLV), o livro se oferece como uma viagem pelas águas sensíveis da palavra sonora, exigindo, em troca, que o leitor compareça com a plenitude de sua existência: espírito e corpo. REFERÊNCIAS ABRAMS, M. H. “The fourth dimension of a poem”. In: The fourth dimension of a poem and other essays. New York; London: W. W. Norton & Company, 2012.
BACHELARD, G. O direito de sonhar. Trad. de José Américo Motta Pessanha et al. São Paulo: Difel,
CAMPOS, A. de; CAMPOS, H. de; PIGNATARI, D. Teoria da poesia concreta. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
CAMPOS, H. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 2010. ______. Galáxias. São Paulo: Editora 34, 2004. FRANCISCO JÚNIOR, M. R. Zanquézi, de Velimír Khlébnikov: a utopia da obra de arte como síntese perfeita do universo. (Tese de doutorado). USP: 2008. Disponível em <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-‐ 30112009 -‐115402/pt-‐br.php > Acesso em 10/01/2015. GERHEIM, F. Linguagens inventadas: palavras, imagens, objetos: formas de contágio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. McLUHAN, M. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. Trad. de Leônidas Gontijo de Carvalho e Anísio Teixeira. São Paulo: Editora Nacional; Editora da USP, 1972. ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra ; tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1998. PIGNATARI, D. “Situação atual da poesia no Brasil”. In: Anais do segundo congresso brasileiro de Crítica e História literária. São Paulo: Assis, 1963. SARTRE, J. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1997. SOUZA, R. de M. e. A saga rosiana do sertão. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2008. MOTTA, L. T. da. Céu acima : para um “tombeau” de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2005. Submetido em: 10/03/ Aceito em: 21 /04/