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Este documento discute as importâncias de conhecer as versões brasileiras de orfeu, analisando orfeu (1999) de carlos diegues e orfeu do carnaval (1958) de marcel camus. Ambas baseadas na peça orfeu da conceição (1956), este texto oferece reflexões sobre a presença do mito na produção artística nas américas, indicando a importância do tema na discussão sobre a intolerância racial e cultural no brasil e nos estados unidos.
Tipologia: Notas de estudo
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Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Estudos Pós-graduados em Lingüística Aplicada e Estudos da Linguagem e da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAE) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). ceciliamiranda@usp.br
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Alguns filmes contam uma história e nos deixam com uma impressão. Alguns contam uma história e nos deixam com uma impressão e nos dão uma idéia. Outros contam uma história, nos deixam com uma impressão, nos dão uma idéia e revelam alguma coisa sobre nós mesmos e os outros. E certamente o modo como se conta a história deve relacionar-se de alguma forma com o que a história é. Sidney Lumet
RESUMO Ao examinar alguns aspectos do filme Vidas em fuga ( The fugitive kind, 1959), de Sidney Lumet, baseado na peça de Tennessee Williams, Orpheus descen- ding (1957), discuto a adaptação do mito de Orfeu, investigando como ele foi transposto para a sociedade norte-ame- ricana a fim de explorar questões éti- cas, principalmente a intolerância raci- al e cultural. Busco mostrar a impor- tância de conhecermos estas versões, para entendermos melhor as adapta- ções do mito na sociedade brasileira: Orfeu (1999), de Carlos Diegues, e Orfeu do carnaval (1958), de Marcel Camus, ambas baseadas na peça Orfeu da Con- ceição (1956), de Vinícius de Moraes. Esta comparação pode permitir-nos ainda observar os significados de alte- rações na assimilação da tradição clás- sica greco-romana pela literatura e ci- nema americanos, a partir das espe- cificidades do seu contexto histórico PALAVRAS - CHAVE : crítica cinematográ- fica; racismo; recepção de mitos gre- gos.
ABSTRACT In examining some aspects of the film The fugitive kind (1959), by Sidney Lumet, based on the play based on Tennessee Williams’ Orpheus descending (1957/8), I address issues on the adaptation of Orpheus’ myth, investigating how it was transposed to North American society to explore ethical subjects, mainly cultural and racial intolerance. I want to show the importance of knowing these two versions to understand better the adaptations of the myth in the Brazilian society: Orfeu (1999), by Carlos Diegues, and Black Orpheus (1958), by Marcel Camus, both of them based on the play Orfeu da Conceição (1956), by Vinícius de Moraes. By com- parison, this may enable us to understand certain features of the assimilation of classical tradition in American literature and cinema, in its dialog with our historical context.
K E Y W O R D S : film criticism; racism; reception of Greek myths.
formação acadêmica em estudos da antigüidade grega direciona meu olhar a partir de (ou em busca de) temas de minha área, e tendo assistido ao filme pela primeira vez na televisão, atraída pelo diretor e elenco, assim que vi, na abertura, os créditos à peça Orpheus descending , tive alguma expectativa em relação a uma releitura do mito. Posteriormente, todas as vezes que revi o filme, meu olhar já estava condicionado a esta perspectiva clássica. Talvez, com isso eu tenha, qual Orfeu, perdido algo, ao tentar rever tantas vezes as cenas (literalmente, ao usar tanto o rewind para voltar às cenas); mas todos temos uma Eurídice a perder.
Let´s start at the very beginning. A very good place to start Maria, The Sound of Musi c
A cena inicial é um longo plano seqüência, em que Val Xavier (Marlon Brando) é retirado de uma cela que divide com outros homens em um tribunal e levado a um interrogatório. Pelo diálogo o espectador é logo informado de que não é a primeira vez que ele está ali, nem é ele desconhecido do juiz, que se lembra do famoso “pele de cobra”, alusão à jaqueta que ele usa e que, no momento, está jogada em seu ombro es- querdo. Contrastando com sua aparência (do porte à “segunda pele” que o identifica), sua voz é doce, calma e subserviente. Ao contrário do que é sugerido – pelas palavras do interrogante, de quem só ouvimos a voz, pois nada dele é mostrado –, Val não está bêbado, apenas cansado. Revela ao juiz que não quer mais participar de determinadas festas, mas somente tirar seu violão da loja de penhores^4 , pois nunca se afastou des- te precioso companheiro, que lhe foi dado pelo famoso músico Leadbelly. Nos quase seis minutos desta cena, a câmera vai se aproximando de Val, até terminar em um primeiríssimo plano. Quando a cena é interrompi- da, temos não apenas algumas informações básicas sobre este jovem músico, mas simpatia por seu belo olhar súplice. Assim como Leadbelly, condenado por assassinato, conseguiu o perdão do governador do Texas ao cantar e tocar seu violão de doze cordas para ele^5 , Val consegue tocar os sentimentos do juíz e de nós, espectadores tão próximos como se esti- véssemos ali, testemunhando suas boas intenções. Pela posição da câmera, ao lado do juiz, e pelo olhar de Val – fugindo, ainda que isso pareça acidental, da regra do cinema clássico de não se olhar para a câmera – o espectador parece ser convidado a entrar nessa história, atraído pelo personagem com sua “pele de cobra”, seu violão e um passado de traba- lho e companhias suspeitos. Se, no início do interrogatório, o vemos de cima, no final (a câmera em contra-plongée ), ele se eleva sobre nosso olhar. Com a cena seguinte – uma estrada bucólica sobrevoada por al- guns pássaros – entram os créditos e uma música suave. Ali aparecem duas referências a T. Williams: a primeira, como autor de The fugitive kind; a segunda, como roteirista e autor da peça na qual o filme foi base- ado, Orpheus descending. Neste momento, qualquer espectador com um mínimo de contato com a tradição clássica ocidental sabe que uma histó- ria sobre Orfeu tem um roteiro pronto há séculos, no qual o herói é der- rotado^6. Sabe-se também que a música tem um papel de destaque nesta trama 7. Ainda na cena da estrada, vemos um carro se aproximando.
(^4) Lembremos que no filme Orfeu negro, de Marcel Camus (1957) o violão também esta- va penhorado. (^5) Em 1925, sete anos após ser preso, acusado de assassina- to, e condenado a trinta anos de trabalhos forçados na Texas’ Shaw State Prison Farmele, Leadbelly foi solto, após o governador Pat Neff ouvi-lo tocar. (^6) Não há problemas na altera- ção de mitos (os gregos já fa- ziam isso, principalmente Eurípides) e ocorre, por exem- plo, no famoso Orfeu de Coc- teau No entanto, o final feliz deste filme, selado com um abraço de Orfeu e Eurídice, grávida e sorridente, tem um tom bastante irônico, pois nesta bela releitura da lenda, a paixão de Orfeu era, na ver- dade, pela princesa/morte, que o faz descer ao inferno e, paradoxalmente, lhe dá a vida e o eterniza como poeta. (^7) Orpheus descending foi ence- nada como ópera em 1994, em Chicago, com libretto de J. D. McClatchy e música de B. Saylor. Aliás, lembremos que a ópera surge sob o signo de Orfeu. A primeira ópera co- nhecida é Euridice, de Jacopo Peri (1600), depois temos Orfeu , de Monteverdi (1607) e Orfeu e Euridice, de Gluck, (1762) e entre estas duas últi- mas, a própria consolidação da forma operística.
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Um pouco depois, a música começa a mudar, tem início a chuva, e, em seguida, o carro enguiça. O chofer, Val, sai e o empurra, passando em frente a uma placa meio tosca, onde lemos “MISSISSIPPI LAW. STOP”. Instantaneamente, a música ganha um tom grave. Empurrando o carro com dificuldade, Val chega a um declive e a música já é, agora, amedrontadora, entremeada por trovões e raios ameaçadores. Se estamos no universo do mito de Orfeu, este é um modo interes- sante de mostrar uma catábase a um lugar sombrio. A cena seguinte reforçará este ambiente desconfortável, pois Val pedirá abrigo justamente em uma construção onde funciona a cadeia. Ali, enquanto conversa com a mulher do xerife, a bondosa Vee Talbott (Maureen Stapleton), em fren- te a uma cela, algo semelhante àquela na qual ele estava na cena inicial do filme, ouve-se ao longe o barulho de cães latindo, seguido de tiros e da reação atônita de Vee. Trata-se de uma perseguição do xerife e seus auxiliares a um jovem que escapou da cela, que, agora vazia, é oferecida a Val como abrigo noturno – um gesto solidário de Vee, protegendo-o da chuva. Fatalidade trágica: liberto de uma cela, ele vai dormir em outra. A cena também sugere uma cidade de onde sair se mostra mais difícil que chegar – escapar dos “Cérberos” do xerife Talbott não parece possí- vel. A cena com Vee introduz não apenas o ambiente da cidade contro- lada por seu marido, mas também sua fuga (metafórica) deste ambiente hostil, por meio da pintura simbolista que ela faz. Por este diálogo, ela também dá informações sobre Jabe (Victor Jory) e Lady Torrance (Anna Magnani), donos de uma loja onde Val poderá conseguir um emprego, já que, por um lado, ele quer, a partir deste dia em que completa 30 anos, mudar de vida e abandonar a errância das festas e clubes; por outro, com a doença de Jabe, Lady necessitará de um ajudante para trabalhar como balconista. Nas duas cenas seguintes, praticamente todos os outros persona- gens do filme são introduzidos, bem como seus traços de caráter apre- sentados. Na primeira, o xerife (L.G. Armstrong) fraudando, com seus auxiliares Pee Wee (Joe Brown Jr.) e Dog (Ben Yaffee), o relatório sobre a morte do fugitivo, no qual atiraram sumariamente, e debochando, ao mesmo tempo, do bom coração e ingenuidade de sua mulher. Na segun- da cena, mais longa, a chegada do casal Torrance, recepcionados na loja ao retornarem de Memphis, onde Jabe havia sido operado. Estavam reu- nidas ali algumas senhoras da cidade, que pelo seu comportamento con- servador e bisbilhoteiro, destacar-se-ão das três mulheres importantes do filme: Vee, Lady e Carol. Vee, com sua evidente boa-vontade, acom- panha Val para apresentá-lo a Lady, cuja expressão amarga e sofrida torna-se clara desde sua primeira imagem – é a última a sair do carro, sem ninguém lhe dar importância. Nesta cena também é de se notar que Jabe sobe para o segundo andar, onde está seu quarto – que já sabemos não ser o mesmo de Lady, conforme as bisbilhoteiras haviam comenta- do, como se fossem figuras de um coro grego, antes de eles chegarem. Logo depois, ouvimos batidas de bengala no chão, ao que Lady diz, sub- missa, que o marido a chama. A terceira mulher de destaque em cena é Carol Cutrere (Joanne Woodward), uma jovem rica, rebelde e ousada (nas idéias e na aparên- cia), que, ao chegar à loja, recebe a ajuda de um velho negro, Uncle Pleasant (Emory Richardson), para sair de seu carro, o que ela agradece
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se, de algum modo, a estivesse separando a fim de não interferir naquilo que considerava “sagrado”: o trabalho do escritor^9. Mas esta cena serve também, creio, para enfatizar a personagem de Val, que na peça divide sua importância com a de Lady. Um índice desta prerrogativa dada a Val é , a meu ver, uma mudança muito sutil da peça para o filme, e que acho importante esclarecer. Na peça, após se envolverem sexualmente, Lady fica grávida e, no momento em que sabe disso, logo após a declara- ção de Val de que precisa deixar a cidade, pois fora ameaçado pelo xerife, Lady, que antes se recusava a aceitar que ele partisse sem ela, lhe diz: “Take your pay out of cashbox, you can go. Go, go, take the keys to my car....You´ve done what ou came here to do.” E quando ele insiste em saber se a gravidez é real, ela repete: “You have given me life, you can go” 10. Esta automomia feminina e o modo como Val é dispensado após ter cumprido o papel de dar-lhe um filho não serão mantidos no filme. Não creio que tenha sido apenas uma concessão ao público e a uma vi- são patriarcal. Na tela, a caracterização de Val é mais heróica e trágica. Acrescente-se a estas informações que podemos inferir do próprio filme e de sua comparação com a peça, uma informação dada pelo dire- tor ao falar das lentes que usou para filmar Lady e Val. Certamente, se são bem conhecidos os efeitos de lentes, pode-se identificar a mudança ao longo do filme; caso contrário, o comentário do diretor nos auxilia nesta análise; para o personagem de Val, Lumet usou, do início ao fim, o mesmo tipo de lente longa, que dá “suavidade e delicadeza” a seu rosto (desnecessário destacar o uso constante de close nas cenas entre Val e Lady). Já a lente usada para Lady muda ao longo do filme; para expres- sar sua dureza e amargura, Lumet optou por não usar lente longa no início, porém a medida que seu envolvimento com Val se intensifica, as lentes mudam, e, ao final, o mesmo tamanho de lente é utilizado para os dois, “pois ele mudou a vida dela”. 11 Voltando ao primeiro diálogo entre Val e Lady, estabelecido, a prin- cípio como uma relação solidária entre dois adultos confiantes no apoio que podem receber um do outro, temos, a partir dele, a foramção do par em torno do qual as adversidades e vilanias irão circular. O filme tem tonalidades melodramáticas, em momentos de grandes revelações, como a de que David Cutrere e Lady foram namorados, e ela, por ser de famí- lia de emigrantes italianos, acabou sendo preterida por ele, que se casou com uma jovem de família rica e tradicional, após o incêndio em que o pai de Lady morreu, tentando salvar seu vinhedo, onde ela e David, como outros jovens apaixonados, costumavam se encontrar. Mais avassaladoras são as revelações de Lady ao ex-namorado, de que ela ficou grávida dele, e a de Jabe a Lady, de que ele foi um dos homens da “Mystic Crew” (certamente uma referência aos Mystic Knights , da Ku Klux Klan) que, encapuzados, colocaram fogo no pomar do pai dela, por ele ter vendido bebida a negros. O fato de todas estas revelações serem presenciadas por Val fortalece sua simpatia por Lady, mostrando, ao mesmo tempo, o inferno onde foi parar, o que já havia sido sugerido pela música ameaçadora, assim que ele cruzou os limites do condado, na cena de abertura.
(^9) Ele explica seu cuidado com o texto, em parte, por ter vin- do, também, do teatro. Cf. LUMET, op. cit ., p. 34. (^10) WILLIAMS, Tennessee. Orpheus descending. New York: Penguin, 1968, p. 140. (^11) Cf. LUMET, Sidney, op. cit. , p. 81.
There´s a certain county I know of which has a big sign at the county line that says, “Nigger, don´t let the sun go down on you in this county”...it doesn’t threaten nothing, it just says [...] Well son! You ain´t a nigger and this is not that county, but son I want you just imagine that you seen a sign that said to you: “Boy, don´t let the sun rise on you in this county.” Xerife Talbott a Val Xavier
Esta fala do xerife, tão representativa do espírito de intolerância da cidade, é dita após Val ter ajudado Vee Talboot a se levantar, no momento em que ela, devido a uma de suas visões, caiu na rua. Esta ajuda de Val é interpretada pelo xerife e por seus homens como uma oportunidade de Val “tocar” Vee, “bolinar” a mulher alheia (David Cutrere já havia tido a mesma reação ao ver Val segurar Carol para retirá-la de um bar). O padrão de suspeita puritana dos homens do con- dado é o mesmo e, no desenvolvimento do filme, mistura-se aos precon- ceitos contra os negros (ou os imigrantes italianos, como Lady). As rea- ções de algumas mulheres a estes comportamentos são variadas. Como o próprio Val diz a Vee, para suportar os “linchamentos, espancamen- tos e muitas coisas que foram vistas em Two Rivers County, na poltrona da frente”, pela mulher do xerife, ela pinta, e suas pinturas dão um sen- tido a sua existência; Carol reage com agressividade, e Lady, com o em- penho em construir uma confeitaria, decorada como um vinhedo artifi- cial, e à qual as pessoas possam ir, “depois do cinema”. Ela quer recriar o paraíso de seu pai em Moon Lake , que fora queimado, construindo na- quela cidade tão sombria, um “pomar na primavera”. A partir do momento em que se envolve eroticamente com Val, o projeto de Lady será mais difícil de ser realizado, pois desde a noite em que ela dorme com ele no quarto dos fundos da loja, que ela mesma lhe havia oferecido, sua expressão de felicidade e renascimento é evidente. Neste quarto, separado da loja por uma cortina onde há pássaros e ra- mos estampados, há uma imagem importante, que sintetiza e potencializa o tema do preconceito e da intolerância no filme. Val havia ficado reti- cente em aceitar o convite de Lady, duvidando das intenções dela, que, de início, são comentadas indiretamente por meio da afirmação de que para ele seria difícil dormir tendo uma uma mulher nua acima dele. Além de ser uma referência à reprodução do famoso quadro Manhã de setem- bro ( September morn ) , pendurado na parede e focalizado duas vezes, em close, podemos interpretá-la, também, como alusão a Lady, cujo quarto fica no piso superior. A imagem deste quadro (que também está na peça) é, a meu ver, uma importante chave de interpretação do filme, mas que, hoje, depen- de de um comentário à parte. Matineé de septembre , de Paul Chabas, foi concluída em 1912 e comprada por uma galeria americana. Apesar de não ser considerada boa pintura, tornou-se famosa quando, ao ser exibi- da, despertou o olhar de Anthony Comstock, membro da Young Men’s Christian Association (YMCA), fundador, em 1873, da New York Society for the Suppression of Vice e autor, dentre outras obras, de Morals Versus Art. Alega-se que, na verdade, foi a própria galeria que atraiu o escân- dalo por razões de mercado e, curiosamente, esta pintura francesa (que
(^15) Sobre o tema, veja MAIA, Guilherme. Orfeu e Orfeu: a música nas favelas, de Marcel Camus a Cacá Diegues. Art- Cultura , v. 7, n. 10, 2005, p. 95-109. (^16) Sobre o mito de Orfeu e o orfismo e suas releituras des- de a literatura clássica greco- romana, veja WARDEN, J. (Ed.) Orpheus: the metamor- phosis of a myth. Toronto: U.P., 1982, e SEGAL, C. Orpheus: the myth and the poet, John Hopkins UP, 1989. (^17) O texto é um prefácio de SENGHOR, Leopold. Antholo- gie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française. PUF, 1977. (^18) Cf. WILLIAMS, Tennessee. Memoirs , New York: Double Days, 1975, p. 68, 69, 149. (^19) Cf. site oficial do filme, dis- ponível em < www.geocities. c o m / H o l l y w o o d / 9 4 0 0 / index.html>. Acesso em 20 jun. 2007. (^20) Para uma noção do precon- ceito do pensamento oficial brasileiro relativo à cultura negra, vejamos o comentário de SALGADO, Álvaro “O samba que traz em sua eti- mologia a marca do sensua- lismo, é feio, indecente, de- sarmônico e arrítmico. Mas paciência: Não repudiemos esse nosso irmão pelos defei- tos que contém. Sejamos be- névolos, lancemos mão da inteligência e da civilização. Tentemos, devagarinho, tor- ná-lo mais educado e social”. Radiodifusão, fator social. Cultura Política , Ano I, n. 6, 1941, p. 90.
1941 Encenada Eurydice, peça de Jean Anouilh, adaptada para o ambiente social provocado pela segunda guerra, no interior da França. 1948 Lançada na França uma coletânea de poesia de afrodescendentes, Orphée noir , com prefácio do filósofo J-P. Sartre. 1950 Lançado Orphée , filme de Jean Cocteau. 1954 Orfeu da Conceição , texto da peça de Vinícius de Moraes, é premiado em São Paulo. 1956 A peça Orfeu da Conceição é encenada no Rio de Janeiro. 1957 Encenada Orpheus descending , de Tennessee Williams, publicada no ano seguinte. 1959 Orphée noir/Orfeu do carnaval , de Marcel Camus, ganha a Palma de Ouro em Cannes, em abril, e é lançado em 21de dezem- bro. 1959 The fugitive kind, de Sidney Lumet, lançado em 1o^ de dezem- bro. 1960 Lançado Le testament d’Orphée, filme de Jean Cocteau.
Em várias dessas obras destaca-se a releitura do mito de Orfeu no contexto da música e da cultura de matriz africana^15. Williams, Sartre, Camus, Vinícius de Moraes e Lumet irão, todos, discutir a questão do negro por meio de seus trabalhos, em geral remetendo diretamente ou não às fontes clássicas^16. No caso do ensaio de Jean Paul Sartre, Orphée noir^17 , não seria difícil defender sua influência sobre Williams, leitor da obra do filósofo francês, bem como a influência de Cocteau, com quem, em suas temporadas na França, o dramaturgo se encontrou, como ele afirma em sua autobiografia^18. Há um dado comum em todas as obras. O texto de Sartre é o de um homem branco prefaciando uma coletânea de poesia de negros africanos, e poderíamos dizer que isso não deixa de ser um expediente para conferir autoridade e valor à voz destes poetas. No caso das peças e filmes temos, também, autores e diretores brancos tratando da questão negra, expondo e discutindo os problemas enfren- tados pelas comunidades negras, ainda que tentando, como no caso do texto de Vinícius de Moraes, fazê-lo por meio da preservação da língua daquela comunidade e da exigência de que sua peça fosse encenada por atores negros. Um aspecto interessante desta presença de Orfeu nas Américas (aqui parafraseio uma informação dada por Cacá Diegues^19 ) é o de que a idéia de transpor o mito do poeta e músico grego para uma favela carioca nasceu de uma conversa de Vinicius de Moraes com o escritor americano Waldo Frank sobre a Grécia e os negros brasileiros, quando este visitou o Rio de Janeiro no início de 1942^20. Vinicius, posteriormente, ao reler o mito de Orfeu, na casa do arquiteto Carlos Leão, traçou as linhas gerais da peça, cujo título lhe havia sido sugerido pelo poeta João Cabral de Melo Neto. Os três atos foram desenvolvidos no Brasil e nos EUA, durante o período em que Vinicius serviu no consulado do Brasil em Los Angeles, e arrematados em Paris, em outra missão diplomática. No âmbito desse movimento de reflexão e de produção artística direcionadas a manifestações artísticas, culturais e sociais de grupos até então relegados, por meio de um cruzamento de matrizes culturais afri- canas e greco-romanas (européias), é pertinente trazer uma informação sobre o famoso Teatro Experimental do Negro.
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Escrevendo sobre a história do grupo teatral criado por ele em 1944, no Rio de Janeiro, Abdias do Nascimento narra um episódio interessante que contribui significativamente para conhecermos melhor o contexto social e político da releitura da tradição clássica nas Américas 21. Trata-se do veto do governo à participação do Teatro Experimental do Negro no Primeiro Festival Mundial das Artes Negras, em Dacar, em 1966, cidade que, naquele momento, era a capital da négritude, movimento político- estético protagonizado pelos poetas Aimée Césaire, Léon Damas e Léopold Senghor, também presidente do Senegal. O evento na África, patrocina- do pela UNESCO, dependia da aprovação por cada país das delegações que iria enviar, e no caso do Brasil, o Ministério do Exterior não incluiu o grupo de Abdias na delegação, que foi liderada pelo capoeirista Pastinha. Curiosamente, a peça que o grupo havia ensaiado era Além do Rio (Medea) , de Agostinho Olavo, publicada pela primeira vez em 1957, um ano após a encenação de Orfeu da Conceição. Como a peça de Vinícius, esta obra transportava para o Brasil o mito grego, adaptando-o, porém, ao con- texto do tráfico de escravos no século XVII. Uma questão chama-me a atenção neste episódio: por que a peça de Olavo, um autor branco, que seguia o cânone do teatro clássico (uma tragédia de Eurípides) foi esco- lhida para representar uma experiência artística e social tão inovadora? O grupo teatral de Abdias possuía na bagagem uma experiência estética variada, indo de O Imperador Jones , de Eugene O´Neill, a Sortilégio , do próprio Abdias do Nascimento, passando por outros títulos como Otelo , de Shakespeare e O Anjo negro , de Nelson Rodrigues. Ainda assim, a escolha de Além do Rio parece contradizer uma opinião que, se não foi expressa por um integrante do grupo, foi acatada por todo ele – trata-se da uma opinião do autor do programa da peça Sortilégio (encenada em
(^21) Ver NASCIMENTO, Ab- dias do. Teatro Experimental do Negro: trajetória e refle- xões. O texto foi publicado no- vamente em 2004, na Revista do Instituto de Estudos Avança- dos , USP, v. 18, n. 50, p. 209-
A r t i g o s
A Orfeu, filho de Eagro, eles o fizeram voltar sem seu objetivo...por lhes parecer que ele se acovardava...e não ousava morrer por seu amor como Alceste, mas maquinava um meio de penetrar vivo no Hades. Platão, Banquete, 179d-e
Talvez o que chame mais a atenção neste filme sobre Orfeu seja o fato de Lumet manter a opção de Williams de não fazer nenhuma refe- rência direta ou explícita ao mito de Orfeu, diferentemente do realismo mágico de Cocteau ou do exotismo de Camus-Vinícius. Esta falta de sin- gularidade dos personagens parece dar mais força à lenda grega, que paradoxalmente, por ser historicizada e regionalizada, ganha universa- lidade mítica. Orfeu encontrando Cassandra ou Mira, no sul do Mississippi, se- ria talvez assaz inverossímil, e isso o próprio Williams já havia percebi- do. Assim como o nome Cassandra foi substituído por Carol, Mira, que era o nome de Lady Torrance na peça Battle of angels , foi abandonado. Na mitologia grega, Mira (ou Myrrha) carrega consigo o excesso de ero- tismo e sexualidade desenfreada, pois chegou a seduzir seu próprio pai, gerando Adonis 25 , e se o nome tivesse sido mantido, levaria a outra ca- racterização da personagem. Na cena em que Val mostra a Lady seu “companheiro inseparável”, o violão onde estão os autógrafos de gran- de mestres da música negra sulista, que naquele momento já haviam morrido, tendo seus nomes “gravados nas estrelas”, a alusão ao mítico (mesmo que se desconheça o mito da lira de Orfeu transformada em constelação) já é assimilada pelo espectador, envolvido tão proximamente nesta longa cena feita de closes e também de um diálogo de olhares em campo e contra-campo, entre Val e Lady. Esta troca de olhares reaparecerá de maneira vigorosa no final do filme – o famoso “olhar para trás” de Orfeu, que, na leitura, digamos, platônica de Lumet, tem um sentido mais responsável e é, também, des- dobrado em dois momentos. No primeiro, Orfeu sabia que, ao ceder ao pedido de Lady para ficar na abertura da confeitaria, esta recriação do paraíso, estava condenado ao inferno, sem poder atravessar os limites de Two rivers county. No segundo, assim que Lady tem a confirmação de que dará à luz, sobrepujando a esterilidade qual a figueira dos jardins de seu pai, ela abraça Val. No entanto, o momento de celebração é fugaz, pois, do piso superior Jabe, pela janela, incendeia o teto da confeitaria. Em dois minutos temos a corrida de Lady, mostrada na perspectiva per- vertida e invertida de Jabe (e da câmera), subindo as escadas para impe- dir Hades de matar novamente. Porém, sua anábase é interrompida pelo tiro de Jabe, que a atinge no ventre. Val, apesar dos gritos de Carol, que de fora vê a cena (e pressente o resto), pedindo a ele para não “voltar”, corre ao interior da loja apenas para cruzar olhares com sua Eurídice quase morta, pois o xerife e seus acompanhantes (alertados também pe- los gritos de Jabe de que o balconista roubou a loja e a incendiou), impe- dem-no de chegar até Lady. Jatos de água são lançados, empurrando seu corpo para trás até cair, abatido, dentro do cômodo onde seria aber- ta a confeitaria, e que, como o vinhal do pai de Lady, que cometeu o “erro” de vender bebida a negros, já arde em chamas. Se compararmos
(^25) Vinícius incluiu a persona- gem como a fogosa namora- da de Orfeu. Ovídio relata a história no livro X das Meta- morfoses.
(^26) Como herói civilizador, Orfeu, como outros heróis da tradição clássica, também tem traços de bárbaro. Sobre o papel destes heróis no cine- ma, em particular no filme Orfeu, de Cacá Diegues, veja XAVIER, Ismail. Humanizadores do inevitável_. Sinopse_ , v.10, 2004, p. 6-15.
com os vasos gregos que mostram Orfeu sendo morto pelas mulheres com seus tirsos, como se fossem lanças (cena, aliás, muito bem adaptada no filme de Cacá Diegues), veremos quão adequados são aqui os fatais jatos d`água. Água e fogo. No cinema Lumet consegue, numa solução ima- geticamente magistral, dar forma às palavras iniciais de Carol sobre o osso que deveria ser purificado pela chuva e o sol para se tornar um bom taslimã (há algo de teológico no filme, como na peça). O final infeliz não é em vão; na perspectiva moral ele é catártico, e dentro da narrativa clássica ele nos ensina algo. Lumet consegue conciliar o registro do melo- dramático e do trágico, e, apesar de seu denso lirismo, construir uma história realista sobre a intolerância e o preconceito na sociedade ameri- cana. Mais que a peça, o filme consegue se equilibrar num ponto eqüi- distante dos vértices (o melodrama, a tragédia e o realismo). Ademais, para um herói, ainda que seja algo moderno, já um outsider violento e jogador, que chega até a olhar para a câmera, não caberia a covardia, se aceitarmos a leitura platônica, no Banquete , diálogo que analisa justa- mente o amor. Na chave clássica, o herói tem de ser digno deste nome e de suas heroínas e espectadores^26. Quando esta cena termina, em meio à fumaça aparece Uncle Pleasant, saindo justamente do quarto onde Val e Lady se encontravam. Ele se dirige, atravessando os destroços, ao espaço da confeitaria, onde está Carol. Aí ele encontra a jaqueta de Val e a entrega a ela, que, segu- rando-a ternamente, dá-lhe em troca seu anel de ouro, dizendo “Wild things leave skins behind them, they leave clean skins and teeth and white bones,and these are tokens passed from one to another, so that the fugitive kind can follow their kind”. Em seguida ela entra em seu carro – a música tem uma tonalidade gloriosa – e sai, enquadrada em um plano geral, composto por um pássaro pousado em ramos que se fecham sobre seu carro ao longe. Ramos de árvore no céu haviam aparecido antes, em destaque, no momento em que Lady retornava da igreja, aliás, de uma missa de Domingo de Ramos, após sua primeira noite com Val. Além da imagem da revoada de pássaros na segunda cena do filme, que já des- crevemos, há um longo e lírico mito contado por Val a respeito de um pequeno pássaro sem pernas, que não desce do céu nem para dormir “They sleep on the wind and never light on this earth but one time when they die!” – lembremos que a etimologia da palavra Orfeu está ligada a mesma raiz da palavra órfão , o que, aqui, ganha um significado especial, embora nem precisemos de etimologia para compreendermos que a des- cida à terra (o inferno não é nenhum lugar especial, transcendente) é fatal. Assim, o ciclo e o filme se fecham. Há uma estrada que vemos do alto (ao contrário da estrada do início do filme, filmada de baixo). O ponto de vista (da câmera) é como se fosse o de outro pássaro, ao lado deste solitário que aparece na tela. Testemunhamos, agora, esta bacante moderna, no seu carro branco, saindo purificada e protegida pela pele de cobra, deixando os limites do condado sombrio. Talvez Carol seja mais bem recebida em outras cidades...falta pouco para os anos sessen- ta, quando bacantes, músicos, fugitive kinds, rolling stones e outros nôma- des já não serão tão assustadores e poderão viver em “paz e amor”. Infe- lizmente, o idílio e o sonho, como sabemos, foram breves, exigindo a