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Guarnieri: Mitos Antigos na Dramaturgia Ocidental e no Teatro Brasileiro, Notas de estudo de Teatro

Uma pesquisa sobre o conceito de mito e seu uso na tradição dramática ocidental, examinando obras de teóricos e filósofos como eliade, cassirer, brandão, patai, chauí, rosenfeld. Análise do texto de guarnieri mostra a adaptação de mitos a diferentes propósitos ideológicos. O autor examina a tragédia de sófocles e sua transporte para a região semi-árida do brasil, analisando a manipulação de antigos mitos à luz de suas próprias crenças. O texto também discute a contribuição de guarnieri para o teatro brasileiro, especialmente no teatro brasileiro de comuna (tbc), e a criação de drama moderno no país.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Copacabana
Copacabana 🇧🇷

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Universidade Federal da Paraíba
Programa de Pós-Graduação em Letras
ÉDIPO NA TV: GUARNIERI E AS POSSIBILIDADES DE UM TEATRO
IMPOSSÍVEL
João Pessoa – PB
2009
Jerônimo Vieira de Lima Silva
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Universidade Federal da Paraíba Programa de Pós-Graduação em Letras

ÉDIPO NA TV: GUARNIERI E AS POSSIBILIDADES DE UM TEATRO

IMPOSSÍVEL

João Pessoa – PB 2009

Jerônimo Vieira de Lima Silva

ÉDIPO NA TV: GUARNIERI E AS POSSIBILIDADES DE UM TEATRO

IMPOSSÍVEL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Literatura e Cultura. Linha de Pesquisa Tradição e Modernidade.

Orientadora: Profª Drª Sandra Luna

João Pessoa – PB 2009

ABSTRACT

This study has as its main focus an analysis of the TV version of the sophoclean tragedy Oedipus the King by Gianfrancesco Guarnieri, considering the dramatic composition of the tragic work, as well as the structural transformations present in its adaptation for the teledramaturgical language. Having in view that Guarnieri’s text revisits Sophocles’ celebrated tragedy, this research begins with a review on the concept of myth and its use in our western literary tradition, examining the subject in the works of theoreticians and philosophers, among them, Eliade, Cassirer, Brandão, Patai, Chauí, Rosenfeld, and illustrating the adaptation of myths for different ideological purposes through critical readings of some relevant plays from different periods of the dramatic tradition. Through a review of the theoretical legacy on tragic drama, based on Aristotle, Ben Jonson, Hegel, Brunetière, Leski, Vernant & Vidal Naquet, Sandra Luna, among others, it was possible to observe the relations of continuity and rupture between modern drama and ancient classical plays. These ruptures occur, more emphatically, after the 18th^ century, but it will be in the 20th^ century that drama will experience an expressive formal freedom, making it possible for a myth to be read in the light of challenging political propositions. Departing from the contextualization of Guarnieri’s life and works in the scene of Brazilian theatre, and considering the theoretical and historical background for the study of modern drama, the significance of his adaptation of the ancient mythos for TV emerges. The theoretical support for the analysis of the teledramaturgical language comes from Aumont, Betton, Bernadet, Pallotini and others. From this perspective, the analysis of Guarnieri’s text shows that drama and teledrama, though using distinct artistic languages, engender dialogues which perpetuate the long tradition of authors who make use of ancient myths to express their own ideals. Keywords: Myth, Dramaturgical, Teledramaturgical, Guarnieri.

A meus pais, Eurídice e José E por seus cinqüenta e poucos anos de matrimônio.

CORO

Tristes trovas só se entoem nas estradas, Deus! O medo esgarça o amor, ecoa ao longe o último sorriso. Em mortes sem conta vão morrendo, ó Deus, Os derradeiros suspiros de vida! seja a inocência, ó Deus, dos desentendidos olhos das últimas crianças! Na fumaça dos incensos, sobe aos céus, ó deus! Angustiada súplica de amor divino! Descansai a mão, dai trégua a este castigo, falai pela voz do profeta, ó Deus, desvendai o crime antigo.

Édipo , de Gianfrancesco Guarnieri_._

SUMÁRIO

Introdução.................................................................................................................................

CAPÍTULO 1 – O MITO, SEU APROVEITAMENTO LITERÁRIO E SUA ATUALIZAÇÃO HISTÓRICA

1.1– Reflexões sobre o mito......................................................................................................

1.2– Mitos e Literatura Grega...................................................................................................

1.3– O Mito grego revisitado através dos séculos....................................................................

1.4- Édipo-Rei , de Sófocles.......................................................................................................

CAPÍTULO 2 – A AÇÃO TRÁGICA NA DRAMATURGIA E NA TELEDRAMATURGIA

2.1 – A Ação Trágica: Da Tragédia ao Drama..........................................................................

2.1a – A ação Trágica na Poética aristotélica.........................................................................

2.1b – A Ação Dramática na Modernidade....................................................................

2.2 – O Nascimento do Drama: Convenções e Tendências......................................................

2.3 – A Linguagem Fílmica e a Teledramaturgia.....................................................................

2.4 – O Drama na TV........................................................................................................

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa procura analisar a obra teledramatúrgica Édipo , adaptação da tragédia Édipo-Rei , de Sófocles, empreendida por Gianfrancesco Guarnieri, a fim de investigar as divergências e os elementos proximais entre as linguagens teatral e televisiva. Para que se realize tal intento, a análise proposta se baseará no roteiro fílmico. Na obra em questão ficam evidentes as alterações sofridas pelo texto trágico ao ser transportado para a linguagem fílmica. Em Édipo , de Guarnieri, o autor busca refletir problemas de ordem política, social e cultural concernentes ao seu tempo, revitalizando desta forma o mito grego. Não obstante, parece claro que a dimensão trágica exerce uma função fundamental para tais questionamentos. Diante desta constatação, verifica-se a necessidade de compreender os aspectos referentes tanto à obra clássica quanto à versão moderna, presentes em Édipo-Rei, Sófocles e Édipo , de Guarnieri, bem como, detectar as relações que cada uma destas estabelece com os problemas levantados a partir das mesmas. Por conta das alterações necessárias que são percebidas entre uma obra e outra, verificamos, nas estratégias de transformação temática e estrutural realizadas por Guarnieri, aspectos dicotômicos entre os respectivos textos, o que nos conduziu a detectar tais características que provocam divergências e aproximações referentes tanto à linguagem teatral quanto à fílmica, em particular, a televisiva. O dramaturgo e teledramaturgo Gianfrancesco Guarnieri destaca-se na cena contemporânea brasileira como um dos nomes mais relevantes do teatro, do cinema e da televisão a partir da segunda metade do século XX. Sua produção teve início com a formação do Teatro de Arena de São Paulo, no qual pôde estrear como dramaturgo a partir da encenação de seu texto mais aclamado “Eles não Usam Black-Tie”. Nesta peça, Guarnieri dá novo rumo ao teatro até então realizado no país, quando expõe em cena os conflitos vividos por operários às voltas com uma greve. Seus textos seguintes irão tratar de questões políticas e sociais, fortalecendo ainda mais um teatro preocupado com assuntos do próprio país e avesso aos “estrangeirismos” que prevaleciam naquele momento. Dando prosseguimento aos ideais estabelecidos desde o “Arena”, Guarnieri excursiona pela TV, escrevendo, dirigindo e atuando em novelas. Dentre os “Casos Especiais” que escreveu para a Rede Globo, está a sua versão de Édipo.

Pudemos observar, ao longo desta análise, alguns aspectos pelos quais a teledramaturgia, apoiada nos recursos cinematográficos, pôde consolidar-se na Brasil através de seus programas ficcionais, tais como as telenovelas, as minisséries e, sobretudo, os “Casos Especiais”, em cujo programa está enquadrado Édipo. Diferenciando-se dos dois primeiros formatos elencados, o Caso Especial diz respeito ao programa de duração curta, não ultrapassando o tempo-limite de duas horas, aproximadamente. A constatação deste dado foi importante para que pudéssemos entender o tipo de relação que ocorre entre a obra dramatúrgica e os recursos fílmicos utilizados no Caso Especial, o qual diferencia-se substancialmente do cinema. Por outro lado, ao conceber o texto trágico, Guarnieri o concebe levando em conta o formato televisivo, alterando, deste modo, a própria estrutura do texto original de Sófocles, a fim de atender às prerrogativas da linguagem televisiva. Portanto, considerando a transposição de uma linguagem a outra, podemos perguntar: Como se dá tal transmutação sem que se perca a essência da obra trágica original? E ainda: É possível realizar a montagem de Édipo enquanto obra teledramatúrgica no teatro sem que esta tenha que moldar-se aos recursos particulares do palco? Tais perguntas resultaram no motivo principal para que se realizasse este estudo, uma vez que tratamos de linguagens artísticas distintas e autônomas. Entretanto, chegamos a constatação de que, inevitavelmente o texto trágico, procurando atender aos limites espaço- temporais relativos ao teatro, a partir do momento que é redimensionado para as ilimitadas possibilidades existentes na linguagem fílmica, acaba por alterar-se em sua forma primária, impossibilitando, com isso, a transposição do roteiro em formato televisivo para o palco, sem que este seja substancialmente alterado. Enquanto a tragédia grega sofocliana se desenvolve num único espaço (diante do palácio de Édipo-Rei ) e tem sua ação limitada no decorrer de um único dia, em Guarnieri os ambientes se multiplicam e a transição temporal ocorre entre dias e noites, com o intuito de chamar a atenção para a vida, não só dos donos da fazenda, mas também do sofrimento vivido pelos moradores do lugar. Com isso, o autor interfere na estrutura da tragédia para inserir reflexões no âmbito político-social pertencentes àquele contexto do país, distendendo assim, o olhar crítico do telespectador. O teledrama Édipo de Guarnieri foi escrito nos anos 70 do século XX a fim de atender um pedido da Rede Globo. Em formato de “Caso Especial”, programa unitário criado pela emissora, o programa não chegou a ser realizado, por “motivos desconhecidos”. Na versão dada por Guarnieri ao mito, a tragédia parece ter sido transportada das terras gregas para a região do semi-árido, localizado no nordeste do Brasil. As características ideológicas

sociais daquele período, a saber, o século V a.C. As suas tragédias tratavam de ações conflituosas originadas do embate entre o pensamento mítico e o pensamento racional. O apogeu das tragédias gregas, mesmo tendo durado não mais que um século, foi suficiente para despertar o interesse de filósofos e estudiosos, que recorreram e ainda recorrem aos poucos textos que restaram até nossos dias. As constantes adaptações das tragédias realizadas por vários dramaturgos atestam a importância exercida pelo legado grego. Com o intuito de refletir, questionar ou contrapor-se às ideologias vigentes de suas respectivas épocas, esses dramaturgos concederam novas roupagens aos mitos gregos, atribuindo-lhes aspectos relacionados aos seus interesses artísticos. Seguindo o mesmo procedimento encontra-se Gianfrancesco Guarnieri. A versão brasileira de Édipo-Rei vem referendar, nesta análise, de que forma o mito serviu aos propósitos ideológicos do autor. Após o levantamento e o confronto dialógico entre diversos conceitos e teorias em torno do mito e termos apontado, à guisa de exemplo, alguns dramaturgos no decorrer dos séculos que se debruçaram sobre os mitos gregos, procuramos traçar um percurso das transformações ocorridas no universo dramatúrgico, principalmente no que se refere às questões das unidades de ação, tempo e espaço, culminando no momento em que o gênero trágico dá lugar ao drama social. Em seguida, buscamos contemplar as principais tendências geradas a partir do drama social, levando em consideração importantes dramaturgos e suas concepções teatrais pertencentes ao final do século XIX até o surgimento do teatro épico. Dando prosseguimento ao estudo, percebemos a necessidade de localizarmos o desenvolvimento teatral no Brasil, especialmente entre o eixo Rio-São Paulo, tendo como referência os principais acontecimentos e transformações do universo dramático nos Estados Unidos e Europa, por entendermos que ambos exerceram papel fundamental para a consolidação do teatro brasileiro, tendo este absorvido os novos anseios teatrais no mundo ocidental. Não por acaso, partindo da necessidade de encontrar um teatro que de fato pudesse respaldar a recente sociedade industrial e cosmopolita que se erguia no país, e que pudesse discutir, de forma crítica, os assuntos relacionados com as questões sócio-políticas brasileiras, nasce em São Paulo o “Teatro de Arena”, fundado por Gianfrancesco Guarnieri, entre outros. Após percorrermos o desenvolvimento do teatro brasileiro durante a primeira metade do século XX e fazermos jus à importância da atuação de Guarnieri no teatro, no cinema e na televisão, concluímos o nosso trajeto, rumo à análise do objeto aqui pretendido, estabelecendo um critério de comentários em torno do teledrama Édipo. Levantamos os devidos questionamentos em torno das mudanças necessárias sofridas pela obra clássica sofocliana em

detrimento dos interesses empreendidos por Guarnieri, o qual buscou acomodar a tragédia grega à linguagem televisiva. Assim se procedendo, concentramo-nos no mote central deste estudo e gerador de toda discussão dialética e subjetiva por nós empreendida: “Édipo na TV: Guarnieri e as possibilidades de um teatro impossível”. Diante dos dados aqui referidos, a importância desse estudo se percebe, além da contribuição para a fortuna crítica de Gianfrancesco Guarnieri, bem como uma pesquisa relevante sobre a dramaturgia e a teledramaturgia, mas, sobretudo como propiciador de reflexões em torno do material dramático e teledramático em relação ao caráter político-social e cultural, em especial, o brasileiro nordestino.

dos elementos integrantes da vida social é denominado de mitologia , sobre a qual falaremos mais adiante. A palavra mito vem do grego mythos , derivando dos verbos mytheio (cantar, narrar, falar alguma coisa para os outros) e mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar).^1 Deste modo, o mito pode ser entendido como um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que acreditam na veracidade da narrativa, passando a confiar naquele que narra; é uma narrativa proferida diante do público, baseada, portanto, na autoridade e na confiança da pessoa do narrador. Estreitamente vinculados às narrativas míticas estão os ritos. Desde suas origens, o homem estabelece contato com o divino utilizando-se de manifestações religiosas e místicas, individuais ou coletivas, que são repetidas de geração em geração, denominadas de rituais. É essa repetição, segundo o filósofo e historiador Mircea Eliade^2 , que revela uma ontologia original, pois, o gesto reveste-se de significado, de realidade, até o ponto em que repete um ato primordial. Deste modo, o homem dá prosseguimento a um ato ritualístico que, anteriormente, teria sido realizado por um deus, um herói ou um ancestral. Assim, através destes rituais, pode-se obter o poder sobre as coisas e os outros homens. O rito permite chegar à fonte do poder do sagrado, já que a coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não pode tocar. Por isso, os ritos religiosos são regras de conduta para que o homem chegue ao sagrado. Enfim, é através do ritual que o mito manifesta-se e revela- se através dos atos humanos, haja vista o poder que os rituais adquirem entre os povos primitivos, a ponto de repetirem com exatidão atos praticados nas origens do tempo, como dito anteriormente, por um determinado deus, um herói ou mesmo um ancestral. Portanto, o ritual não se separa do mito, ambos sendo complementares, formando uma unidade. Porém, é preciso que se diga, existe uma diferença entre ambos, já que, no ritual, o homem se eleva até o divino e, de certo modo, atua juntamente com ele, ao passo que no mito o divino desce, assume, como palavra, a forma humana ou quase humana, e atua de maneira humana. Note-se nesta definição que forças contrárias são estabelecidas entre um ser inferior e outro de natureza superior, mas em constante procura de intersecção entre ambos. Estabeleçamos, portanto, que o mito em seu sentido antropológico está profundamente unido ao sentido de cosmogonia , ou seja, a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo. Mais uma vez, atentemos para a acepção do termo grego gonia , palavra derivada do verbo gemnao (gerar, engendrar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento,

(^1) Cf. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2001, p. (^2) Cf. ELIADE, Mircea. Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Madra, 1992, p.18.

gênese, descendência, gênero, espécie). Assim, podemos entender Gonia como mundo ordenado e organizado. Portanto, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.^3 Partindo do entendimento conferido ao termo cosmogonia, o mito passa a ser compreendido como uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações, o qual procura relatar uma explicação do mundo. Portanto, o mito surge já na origem de todos os seres e coisas que há na terra. É ele quem nomeia as espécies, os seres, os homens, dando-lhes significado. Ao citar alguns exemplos que realçam o entendimento da relação humana com o cosmo , o transcendental, Mircea Eliade^4 aponta, por exemplo, a nutrição, não como uma simples operação fisiológica, mas a comunhão com o divino; assim como o casamento e a orgia coletiva como protótipos míticos, rituais anteriormente consagrados pelos deuses, ancestrais ou pelos heróis. Por isso, os ritos serão repetidos pelas gerações vindouras. Desta maneira, o mito era compreendido pelas sociedades arcaicas como “história verdadeira”, extremamente preciosa em seu caráter sagrado, exemplar e significativo. É no sagrado que o mito se manifesta, irrompe no mundo, fundamentando o mundo e transformando-o no que entendemos dele atualmente. Por outro lado, através das intervenções dos seres sobrenaturais, o homem se constituiu como mortal, sexuado e cultural.^5 Notadamente, a antropologia desempenha papel importante na compreensão em torno do mito, gerando diversos conceitos através de inúmeros antropólogos, como, por exemplo, Lorde Raglan, o qual define o mito como sendo simplesmente uma narrativa associada a um rito. Outros nomes como, Malinowski, C. Von Furer-Haimendorf e W. J. Culshaw^6 , também se destacam, dando diferentes conceitos ao mito e ampliando com isso nosso entendimento sobre o assunto. Não é por acaso que estes pesquisadores buscaram demonstrar que o mito exerce função indispensável na cultura primitiva, pois este expressa, acentua e codifica a crença, dando credibilidade ao ritual, através do qual se constituem as regras práticas para a orientação do homem e as normas sociais entre as tribos. Constata-se, em seus apontamentos, o profundo respeito entre os membros das tribos em relação às decisões de seus heróis e às ações dos seus antepassados divinizados, dando, enfim, sustentação às suas crenças. Os seus feitos rituais são referendados em canções e em poemas épicos por eles realizados.

(^3) Cf. CHAUÍ, 2001, p.28. (^4) Cf. ELIADE, 1992, p. 29 (^5) Idem, 1972, p. 11. (^6) Apud. PATAI, Raphael. O Mito e o Homem Moderno. São Paulo: Cultrix, 1972, p.34/35.

consciência lingüística e a mítico-religiosa, como afirma Csssirer, expressa-se, sobretudo, no fato de que todas as formações verbais aparecem outrossim como entidades míticas, providas de determinados poderes míticos. Para o pesquisador, a palavra se impõe, gerando todo ser e todo acontecer.^8 A partir deste parecer, é salutar entender que a linguagem dá ao mito vida e enriquecimento interior, e reciprocamente, o mito oferece o mesmo à linguagem, demonstrando, desta forma, o entrelaçamento existente entre ambos. Decorrente do processo simbiótico entre mito e linguagem, as palavras, pouco a pouco, vão se reduzindo cada vez mais a meros signos conceituais. Paralelamente a tal fenômeno, também são geradas nas entranhas do mito a imagem e todas as expressões, pois, na perspectiva mágica do mundo, em particular, no encantamento verbal, apresenta-se o encantamento imagético. Assim, a linguagem converte-se em veículo do pensamento, moldando-se em uma expressão de conceitos e juízos, porém, isso só pode acontecer, de fato, se a linguagem renunciar de vez à intuição. Por outro lado, a palavra conserva o sentido sagrado inerente ao mito, quando esta se transforma em expressão artística, tratando-se não mais da vida miticamente presa e sim esteticamente liberada.^9 É preciso entender ainda que a linguagem não pertence exclusivamente ao reino do mito; nela opera, desde as origens, outra força, o poder do logos , ou seja, da razão. Neste confronto dá-se a dicotomia entre logos e mythos , provocando o rebaixamento deste último à condição de fábula ou ilusão. Decorrente desta dicotomia desdobra-se um processo histórico complexo e milenar, cujo marco estaria na crítica de Xenófanes^10 às distorções “mitológicas”, com as quais Homero se referia aos deuses. O mythos, assim, começava a ser despojado de “valor religioso e metafísico” de que era investido.^11 A cultura grega, especificamente, foi a única que submeteu o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente “desmitificado”. Ao longo desse processo de “desmitificação”, os mitos gregos inspiraram e guiaram não só a poesia épica, a tragédia e a comédia, mas também as artes plásticas.

(^8) Cf. CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 64/65. (^9) Idem, p. 152. (^10) Filósofo e poeta grego do período pré-socrático. “A formação (do homem grego) procede, sobretudo, de Homero e Hesíodo. O próprio Xenófanes afirma que foi de Homero que todos aprenderam, desde o início. Homero é, por conseguinte, alvo de seus ataques na sua luta pela nova formação. A filosofia substituiu a imagem homérica do mundo por uma explicação natural e regular. A fantasia poética de Xenófanes é arrebatada pela grandeza dessa nova concepção do mundo. Significa o rompimento com o politeísmo e antropomorfismo do mundo dos deuses que – segundo as conhecidas palavras de Heródoto – Homero e Hesíodo criaram para os gregos.” Cf. JAEGER, Werner. 11 Paidéia. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.213. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega – Vol. I. Petrópolis: 1993. P.27.

Para melhor se entender esse processo de desmitificação dos mitos gregos, considere- se que na Grécia arcaica, os termos logos e mythos tinham a mesma equivalência, ambos relacionando-se a um relato sagrado, transmitido oralmente, que passava de geração a geração. Mas, com o advento da filosofia helênica (Pré-socráticos, Platão e Aristóteles), os termos se dissociam e travam um embate, como pudemos ver anteriormente. Desta forma, o mythos é depreciado e passa a ser entendido como aquele que “cria a ilusão”.^12 Não percamos de vista o sentido da palavra mythos , a qual ganhou, através de Homero e outros gregos antigos, a conotação de “palavra”, ”coisa”, ”matéria”, “fato”, “história”, e principalmente, “relato. Em relação à questão do logos , é a partir dele que se dá a redução de sentido sofrida pelo mito. Devido à ascensão do pensamento racional, os mitos são dessacralizados em função do logos , da razão. Cabe-nos, portanto, concluir que, se o vocábulo “mito” denota uma “ficção”, isso se deveu aos gregos há vinte e cinco séculos, por obra do pensamento e da crítica racionalista iniciada pelos pré-socráticos (o mito submetido ao logos , à razão), passando pela crítica dos filósofos jônicos (ênfase nos atos e atitudes dos deuses, de acordo com as concepções de Homero e Hesíodo), pela crítica racionalista de Demócrito (os deuses vulgares e a mitologia nascidos da fantasia popular), até chegar ao poeta Píndaro (filtragem do mito em nome da moral), e finalmente, concluindo sua trajetória, no tratamento dispensado pelos tragediógrafos aos mitos. Portanto, submetido ao poder da razão, o mito foi pouco a pouco sendo questionado pelos filósofos, remoldados, para atender aos interesses dos poetas e tragediógrafos, que, ao comporem suas obras, associavam-no a temas relevantes ao período histórico em que se encontravam inseridos.

1.2 - MITOS E LITERATURA GREGA

Antes mesmo do advento da escrita, as histórias que emanavam da imaginação e das crenças dos povos antigos eram contadas, através de composições orais, pelos poetas, os quais propagavam os mitos existentes nestas histórias, dando-lhes as mais variadas versões, embora

(^12) Cf. BEIVIDES, W. Inconsciente et Verbum. São Paulo: Humanitas, 2002, P. 129.