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Radcliffe e Shakespeare: Terror vs. Horror, Notas de aula de Poesia

Neste texto, radcliffe discute as diferenças entre terror e horror em obras de shakespeare, particularmente na peça 'júlio césar'. Ele aborda a importância de circunstâncias pequenas na criação de sentimentos emocionais e a relação entre eles e o sublime. O texto também explora a influência de edmund burke na teoria de radcliffe.

Tipologia: Notas de aula

2022

Compartilhado em 07/11/2022

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DO SOBRENATURAL NA POESIA
ANN RADCLIFFE
APRESENTAÇÃO
Marcos Balieiro
1
Ann Radcliffe foi uma autora de extrema importância para a literatura britânica
da virada do século XVIII para o XIX. Como se sabe, foi a autora mais bem paga da
década de 1790. Os Mistérios de Udolpho, seu romance mais conhecido, foi dos mais
influentes no que diz respeito à ficção gótica. Isso fica evidente, por exemplo, quando
observamos que Jane Austen o coloca em destaque em boa parte da trama de seu
Abadia de Northanger, de maneira que se pode dizer que Udolpho representa, ao longo
dessa obra, o exemplo mais bem acabado da ficção gótica da época. Walter Scott, por
sua vez, como nos lembra Ellen Moers,
[...] comparava a leitura de obras da Sra. Radcliffe ao uso de drogas,
perigosas quando habitual, “mas dotadas do poder mais abençoado
nesses momentos de dor e prostração em que toda a cabeça está ferida,
e todo o coração, doente. Se aqueles que zombam
indiscriminadamente dessa espécie de composição considerassem a
quantidade de prazer real que ela produz, e a proporção ainda maior
de mágoa e aflição que ela alivia, sua caridade moderaria seu orgulho
crítico e sua intolerância religiosa”. (SCOTT apud MOERS, 1976, p.
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Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Filosofia e
do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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DO SOBRENATURAL NA POESIA

ANN RADCLIFFE

APRESENTAÇÃO

Marcos Balieiro^1

Ann Radcliffe foi uma autora de extrema importância para a literatura britânica da virada do século XVIII para o XIX. Como se sabe, foi a autora mais bem paga da década de 1790. Os Mistérios de Udolpho , seu romance mais conhecido, foi dos mais influentes no que diz respeito à ficção gótica. Isso fica evidente, por exemplo, quando observamos que Jane Austen o coloca em destaque em boa parte da trama de seu Abadia de Northanger , de maneira que se pode dizer que Udolpho representa, ao longo dessa obra, o exemplo mais bem acabado da ficção gótica da época. Walter Scott, por sua vez, como nos lembra Ellen Moers, [...] comparava a leitura de obras da Sra. Radcliffe ao uso de drogas, perigosas quando habitual, “mas dotadas do poder mais abençoado nesses momentos de dor e prostração em que toda a cabeça está ferida, e todo o coração, doente. Se aqueles que zombam indiscriminadamente dessa espécie de composição considerassem a quantidade de prazer real que ela produz, e a proporção ainda maior de mágoa e aflição que ela alivia, sua caridade moderaria seu orgulho crítico e sua intolerância religiosa”. (SCOTT apud MOERS, 1976, p.

(^1) Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Fica evidente, então, não a grande popularidade de que o trabalho de Radcliffe gozava à época, mas, também, a impossibilidade de dissociá-lo da recepção da literatura gótica. É nesse contexto que “On the Supernatural in Poetry”, traduzido a seguir, deve ser compreendido. Não se deve perder de vista que as posições defendidas pela autora têm como pano de fundo, justamente, uma discussão bastante acalorada sobre a maneira como outros escritores haviam procedido ao retratar a violência e, mais especificamente, o tratamento que haviam conferido a personagens femininas. Esse é um debate que ganha corpo, especialmente, após a publicação, em 1796, de O Monge , de Matthew Gregory Lewis. Ainda que boa parte dos críticos reconhecesse o “gênio” do escritor, o livro certamente também foi considerado, em ampla medida, pernicioso, por conta da violência explícita e dos retratos de paixões que, até para os padrões góticos, seriam consideradas excessivamente violentas. Um ano depois, Radcliffe publicaria The Italian , usualmente considerado uma resposta a Lewis. Nesse livro, a autora trata de recorrer mais a insinuações e à ambientação do que a representações da violência tão gráficas quanto as que se vê em O Monge. Esse recurso se deveu não apenas à necessidade de se posicionar em uma questão de gosto, mas, também, a certa influência de Edmund Burke. Como se sabe, em Uma Investigação Filosófica acerca da Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo , o autor defende que o sublime, que seria a maior paixão que um ser humano poderia sentir, depende de circunstâncias específicas para ser suscitado. Segundo o filósofo irlandês, somos acometidos por ele na presença de objetos grandiosos, dotados de grande poder e capacidade para causar dano. Ainda assim, a apresentação de algo com essas características deve ser potencializada pela obscuridade. Isso porque o sublime depende da imaginação. Caso esta não tenha qualquer espaço para operar, é possível apenas incitar outros sentimentos, como a repulsa, por exemplo. O texto traduzido a seguir foi publicado postumamente, anos depois de The Italian , em 1826, no volume 16 da New Monthly Magazine. Pretendia-se, inicialmente, que o texto fosse parte do prólogo de Glaston de Blondeville , romance que também foi publicado após a morte de Radcliffe. O texto, escrito em forma de diálogo, deixa bastante claras as influências burkeanas da autora. Sob o pretexto de discutir aspectos particulares da obra de Shakespeare, as personagens, W- e o Sr. S-, envolvem-se em uma conversa na qual se estabelece a diferença, hoje bastante conhecida no âmbito da crítica literária, entre terror e horror. O primeiro, relacionado à apresentação obscura dos objetos que o suscitam, de modo que a imaginação teria liberdade para operar, seria

Do Sobrenatural na Poesia

ANN RADCLIFFE^2

Um de nossos viajantes iniciou uma grave dissertação sobre as ilusões da imaginação:

  • E não apenas em ocasiões frívolas – disse ele – mas nas buscas mais importantes da vida, um objeto frequentemente agrada e encanta à distância, mas se reduz a nada quando nos aproximamos dele, e está bem que ele deixe apenas desapontamento em nossos corações. Às vezes, o que resta ali é um observador mais severo. Esses truísmos, proferidos com um ar de descoberta pelo Sr. S-, que raramente se dava o trabalho de pensar sobre qualquer tema, exceto o de um bom jantar, não foram entendidos por seu companheiro, que, perseguindo as conjecturas aéreas que a cena presente, mesmo que humildemente, invocara, estava seguindo Shakespeare até regiões desconhecidas.
    • Onde estará agora o espírito imortal – disse ele – que podia perceber e sentir com tanta excelência? Que podia inspirar a si próprio com os vários caracteres deste mundo, e criar mundos próprios? Para quem o grandioso e o belo, o melancólico e o sublime da natureza visível suscitavam não apenas sentimentos correspondentes, mas paixões? Que pareciam perceber uma alma em todas as coisas, e, assim, nos mecanismos secretos de seus próprios caracteres e na combinação de seus incidentes, mantinham os elementos e o cenário local sempre em uníssono com eles, amplificando seu efeito? Assim, os conspiradores em Roma passam por sob os aguaceiros e os raios fendidos das tempestades para reunir-se, à meia-noite, na varanda do teatro de Pompeia. Estando as ruas, então, abandonadas pela multidão temerosa, aquele lugar, por mais aberto que fosse, convinha ao seu concílio. Quanto à tempestade, eles não a sentiam, ela não era mais terrível para eles do que suas próprias paixões, nem tão terrível para os outros quanto o espírito destemido que os fazia, quase inconscientemente, enfrentar a fúria dela. Essas circunstâncias espantosas, assim com outras de âmbito sobrenatural, acompanharam a queda do conquistador do mundo – um homem cujo poder Cássio

(^2) Tradução: Marcos Balieiro (UFS). E-mail: marcos.balieiro@gmail.com.

apresenta como sendo tão temível quanto essa noite, quando se viu à luz dos raios, os mortos, com seus mantos, a flutuar pelas ruas de Roma. Quanto a sublimidade dessas circunstâncias aumenta a ideia que temos do poder de César, da grandeza terrível de seu caráter, e aumenta nosso interesse por seu destino! Toda a alma é despertada e se fixa, com a total energia de sua atenção, no progresso da conspiração contra ele, e, se Shakespeare não o tivesse, sabiamente, removido de nossa vista, não haveria qualquer equilíbrio de nossas paixões^3.

  • César era um tirano – disse o Sr. S-. W- olhou para ele por um momento e sorriu. Então, silenciosamente retomou o curso de seus próprios pensamentos: “nenhum mestre jamais soube como tocar os mecanismos da simpatia por meio de circunstâncias pequenas como o próprio Shakespeare. Em Cimbelino, por exemplo, com que fineza se faz uso de tais circunstâncias para despertar, de uma vez, expectativas solenes e ternura, e, ao trazer à baila a lembrança enternecida de uma mágoa há muito passada, preparar a mente para derreter com outra que se aproxima, misturando, ao mesmo tempo, por meio de uma ocorrência misteriosa, um leve tremor de reverência à nossa pena. Assim, quando Belário e Arvirago retornam à caverna em que haviam deixado a infeliz e esgotada Imogênia para descansar, quando ainda estão em frente a ela, e Arvirago, referindo-se a esta, com a piedade mais terna, como ‘o pobre e doente Fidélio’, sai para perguntar por ela, ouve-se música solene de dentro da caverna, tocada pela harpa acerca da qual Guidério diz: ‘ Desde a morte de mãezinha não voltou a soar. Ações solenes//coisas solenes por igual inculcam’. Imediatamente, Arvirago entra com Fidélio desacordado em seus braços: ARVIRAGO – Morto encontra-se o passarinho que nós tanto amávamos! [...] BELÁRIO – Como o encontraste? ARVIRAGO – Rígido, como vedes, com um sorriso [...] Julguei, primeiramente, que estivesse a dormir; tirei, por isso, os sapatos de sola cravejada, que os passos me deixaram muito rudes GUIDÉRIO – Mas ele dorme, simplesmente. [...]

(^3) Radcliffe discute, nesse trecho, não os eventos históricos, mas a peça Júlio César , de Shakespeare.

vivessem, ou seriam mais do que suspeitas de bruxaria, o que sabemos não ser sempre o caso.

  • Estás falando de mulheres velhas, não de bruxas – disse W-, rindo – e devo mais do que suspeitar que dás crédito àquela superstição obsoleta que destruiu muitas pessoas miseráveis, mas inocentes, se eu admitir que teu argumento tem qualquer força. Falo da única bruxa real: a bruxa do poeta. E todas as nossas noções e sentimentos conectados com o terror estão de acordo com os dele. As vestimentas selvagens, o olhar que não é deste mundo , são traços essenciais de agentes sobrenaturais, promovendo o mal nas trevas do mistério. Sempre que a bruxa do poeta é condescendente, segundo a noção do vulgo, em misturar simples males comuns à sua malignidade, e torna-se familiar, ela se torna ridícula e perde seu poder sobre a imaginação. A ilusão se desvanece. É tão molesto o efeito das bruxas do palco sobre minha mente que eu provavelmente deveria teria deixado o teatro quando elas apareceram se o fascínio da influência da Sra. Siddons^6 não se houvesse espalhado por sobre toda a peça, de modo a superar meu desgosto e fazer-me esquecer até mesmo o próprio Shakespeare. Naquele momento, toda a consciência de que se tratava de ficção estava perdida, e seus pensamentos viviam e respiravam diante de mim com a própria forma da verdade. A Sra. Siddons, como Shakespeare, sempre desaparece na personagem que representa e aplica uma ilusão sobre toda a cena ao seu redor, escondendo muitos defeitos que há nos arranjos do teatro. Suponho que ela seria o mais belo Hamlet que jamais houve, superando até mesmo seu próprio irmão^7 nessa personagem. Ela preservaria mais completamente a melancolia terna e refinada, a profunda sensibilidade, que são os encantos particulares de Hamlet e que aparecem não apenas no ardor, mas na irresolução e na fraqueza ocasionais de seu caráter – os princípios secretos que reconciliam todas as suas inconsistências. Uma sensibilidade tão profunda dificilmente pode ser imaginada com justeza e, portanto, muito raramente pode ser assumida. A firmeza do irmão, incapaz de ser sempre contido, diferentemente do que ocorreria com a ternura dela, não aumenta tão completamente essa parte da personagem. A forte luz que mostra as montanhas de uma paisagem em toda a sua grandeza e toda a sua agudeza irregular não lhes confere nada do interesse de que uma tintura mais melancólica investiria sua grandiosidade, dignificando ainda que suavize, e aumentando enquanto obscurece.

(^6) Sarah Siddons (1755-1831), atriz bastante famosa à época, reconhecida, principalmente, por sua interpretação de Lady Macbeth. 7 É difícil identificar a quem Radcliffe se refere, já que Siddons teve três irmãos, dois dos quais certamente atuaram no papel da personagem título de Hamlet.

  • Ainda penso – disse o Sr. S-, sem prestar atenção a essas observações – que, em uma superstição popular, está certo seguir as noções populares e vestir suas bruxas como as mulheres velhas do lugar em que se supõe que elas apareceram.
  • Enquanto essas noções nos preparam para o espanto que o poeta pretende excitar, concordo que ele esteja certo em se valer delas [as noções populares]. Mas, para esse propósito, tudo que é familiar e comum deve ser cuidadosamente evitado. Em nada Shakespeare foi mais bem-sucedido que nisso. E, em outro caso um tanto mais difícil, o de escolher as maneiras e a aparência de seus seres sobrenaturais, que, ainda que selvagens e distantes da apreensão comum no maior grau, nunca chocam o entendimento por sua incompatibilidade consigo próprios. Eles nunca nos compelem, por um instante que seja, a lembrar que ele tem uma licença para a extravagância. Acima de todos os seres ideais está o fantasma de Hamlet, com todos os incidentes de tempo e espaço que o acompanham. A vigília sombria sobre a plataforma remota, o aspecto soturno da noite, a própria expressão usada pelo oficial de guarda, “Que vento forte! O frio é insuportável”^8 ; a lembrança de uma estrela, um mundo desconhecido, tudo são circunstâncias que despertam sentimentos desamparados, melancólicos e solenes e nos dispõem a receber, com trêmula curiosidade, o ser horrível que se aproxima e a dar vazão àquela estranha mistura de horror, piedade e indignação produzida pela história que ele revela. Cada circunstância, por mais diminuta que seja, da cena entre aqueles que vigiam a plataforma, e daquela entre eles e Horácio, anteriores à entrada da aparição, contribui parar excitar algum sentimento de desamparo ou melancolia, ou solenidade, ou expectativa, em uníssono com aquela elevada curiosidade e com o espanto emocionante rumo aos quais somos levados e com o qual testemunhamos a conclusão da cena. Daí a primeira questão de Bernardo^9 , e as palavras em resposta a ela, “pare e diga o nome”. Mas não há uma única circunstância em qualquer diálogo, nem mesmo nesse, curto, com que a peça abre, que não exerça um efeito secreto sobre a imaginação. Ele se encerra com Bernardo pedindo a seu colega oficial, depois de ter perguntado se ele havia tido uma “guarda calma”, que apresse os guardas se por acaso encontrá-los, e imediatamente nos sentimos sozinhos nesse território soturno. Quando Horácio entra, o desafio; as respostas dignificadas, “Amigos desta terra”, “E súditos do rei da Dinamarca”; a pergunta de Horácio a Bernardo, tocante à aparição; o desdobramento do motivo por que Horácio consentiu em “vir

(^8) A fala é do próprio Hamlet, na Cena IV do Ato I. (^9) Os exemplos relatados nesse parágrafo são todos extraídos da primeira cena do Ato I de Hamlet.

deste mundo enquanto contemplamos “os errantes espíritos”. O espectro se vai, acompanhado por circunstâncias naturais tão tocantes quanto aquelas com que havia se aproximado. É pela estranha luz do vagalume, cujo “fogo inativo empalidece”^10 , é ao primeiro aroma do ar da manhã, o hálito vivo, que a aparição se retira. Entretanto, não é pouco o enfado ao ver o fantasma de Hamlet representado. A imaginação mais refinada é necessária pra dar as cores devidas a tal personagem no palco, e, ainda assim, acredita- se que quase qualquer ator é capaz de representá-lo. Na cena em que Horácio conta seu segredo a Hamlet, Shakespeare, ainda comprometido com o toque das circunstâncias, faz com que isso aconteça à noite, e o marca pelas próprias palavras de Hamlet, “Boa noite”, que Hanmer e Warburton mudaram, sem qualquer razão, para “bom dia”, fazendo, assim, com que Horácio relatasse sua história mais interessante e mais solene à plena luz da parte mais alegre do dia, quando sons ocupados abundam, e o próprio sol parece contradizer cada conto duvidoso e diminuir todos os sentimentos de terror. Esse desacordo deve ser imediatamente compreendido por aqueles que, de boa vontade, dobraram suas almas ao poeta.

  • Como pode ser, então – disse o Sr. S- – que objetos de terror às vezes nos atinjam com tanta força ao ser introduzidos em cenas de alegria e esplendor, como, por exemplo, na cena do banquete de Macbeth?
  • Eles nos atingem, então, principalmente pela força do contraste – disse W- – mas o efeito, ainda que repentino e forte, também é transiente, é a emoção do horror e da surpresa que eles comunicam, mais do que os sentimentos solenes que há em circunstâncias que estão mais de acordo e que permanecem por mais tempo na mente. Quem jamais terá sofrido pelo fantasma de Banquo, o tipo de terror melancólico e sublime que o fantasma de Hamlet invoca, ainda que a aparição de Banquo no grande festival de Macbeth não apenas nos informe que ele foi assassinado, mas traga a nossas mentes o destino do gracioso Duncan, silenciado e morto por aqueles que, nessa mesma cena, refestelam-se com seus espólios? Nessa situação, ainda que a pena profunda se misture à nossa surpresa e ao nosso horror, experimentamos um grau muito menor de interesse, e esse interesse é, também, de um tipo inferior. A união da grandiosidade e da obscuridade, que o Sr. Burke^11 descreve como uma forma de tranquilidade tingida com

(^10) Hamlet , Ato I, Cena V. (^11) Como se sabe, a Investigação Filosófica acerca da Origem de Nossas Ideias do Sublime e do Belo , de Edmund Burke, foi uma influência importante para as teses que Radcliffe desenvolve neste texto. É importante notar, então, que tanto a ideia de grandiosidade quanto uma apresentação do objeto que não o revele completamente são tidas por Burke como características importantes no que toca a engendrar o

terror, e que causa o sublime, é encontrada apenas em Hamlet ou em cenas em que circunstâncias do mesmo tipo prevalecem.

  • Pode ser que assim seja – disse o Sr. S- – e percebo que não és um daqueles que defendem que a obscuridade não constitui qualquer parte do sublime.
  • Devem ser homens de imaginação muito fria – disse W- – aqueles para quem a certeza é mais terrível que a suposição. Terror e horror são tão opostos que o primeiro expande a alma, e desperta as faculdades a um grau elevado de vida. O outro as contrai, congela e quase as aniquila. Apreendo que nem Shakespeare nem Milton, por suas ficções, nem o Sr. Burke, por seu raciocínio, consideraram, em qualquer parte, o horror positivo como uma fonte do sublime, ainda que todos concordem que o terror é uma fonte considerável. E onde estará a grande diferença entre horror e terror, senão na incerteza e na obscuridade, que acompanham o primeiro, no que diz respeito ao mal temido^12?
  • Mas o que dirias da imagem de Milton: “Em sua crista o horror repousava como pluma”^13?
  • Como imagem, ela certamente é sublime, ela preenche a mente com uma ideia de poder, mas não se segue daí que Milton tenha pretendido declarar que o sentimento de horror é sublime. E, no fim das contas, sua imagem transmite mais terror do que horror, pois ela não é distintamente retratada, mas percebida em vislumbres por entre sombras que a obscurecem, apenas os contornos aparecem, o que insta a imaginação a completar o resto. Ele apenas diz “o horror repousava como pluma”. Observarás que a aparência de horror e as outras características são deixadas à imaginação do leitor, e, de acordo com a força desta, ele sentirá a imagem de Milton como sublime ou de outro modo. Milton, quando a esboçou, provavelmente sentiu que nem mesmo sua arte poderia preencher o esboço e apresentar a outros olhos o rosto que o “olho de sua mente” lhe deu. Ora, se a obscuridade tem tanto efeito na ficção, quanto deve ter na vida real, quando determinar o objeto de nosso terror é, frequentemente, obter os meios de

sublime. Este, segundo o filósofo, dependeria, em ampla medida, da imaginação, e seria o maior sentimento que a mente é capaz de produzir. Fica evidente, então, a maneira como Radcliffe se apropria da concepção burkiana do sublime para estabelecer suas posições sobre terror e horror. 12 Parece ter havido, aí, confusão da ordem dos termos por parte de Radcliffe. Pelo modo como o argumento se desenvolve, é o terror, e não o horror, que diz respeito a “incerteza e obscuridade”. Observe-se, ainda, que a vinculação do terror à imaginação, em que a autora continua a insistir após essa passagem, está de acordo com a influência confessa de Burke nas teses defendidas ao longo do texto. 13 A imagem é parte de uma descrição de Satã no Livro IV de Paraíso Perdido. A tradução é nossa. É importante notar que, no texto original, lê-se “On his brow sat horror plumed”, de modo que a citação feita por Radcliffe está ligeiramente incorreta. No texto de Milton, a passagem correta é “on his Crest/Sat horror Plum’d”.

não na mesma proporção de suas outras qualificações, aquela delicadeza de sentimento que chamamos de gosto. Além disso, que seu gênio foi subjugado pelo gosto prevalente na corte e por um intercâmbio com o mundo que, frequentemente, era humilhante demais para sua moral e destrutivo para sua sensibilidade. A moralidade superior de Milton protegeu seu gênio, e sua imaginação não foi rebaixada pelo mundo.

  • Então pareces pensar que pode haver grandes poetas que não têm uma percepção completa do pitoresco (com pitoresco, refiro-me ao belo e ao grandioso na natureza e na arte) e têm pouca suscetibilidade àquilo que chamarias de circunstâncias concordantes, cuja harmonia é essencial para qualquer efeito poderoso sobre teus sentimentos.
  • Não, não posso conceder isso. Tais homens podem ter grandes talentos, espirituosidade [ wit ], gênio, juízo, mas não ter a alma da poesia, que é o espírito de todas essas coisas, e também algo maravilhosamente mais elevado: algo refinado demais para se definir. Certamente inclui uma percepção instantânea e, também, um amor excelente de tudo que é gracioso, grandioso e sublime, bem como o poder de capturar e combinar tais circunstâncias, de modo a atingir e interessar um leitor por meio da representação, até mais do que o faria uma visão geral da própria cena. Como quer que se chame isso que coroa a mente de um poeta e o distingue de todas as outras mentes, nossos corações inteiramente o reconhecem em Shakespeare, Milton, Gray^16 , Collins^17 , Beattie^18 e pouquíssimos outros, sem exceção a Thomson^19 , por cujos poderes a lágrima repentina de deleite e admiração presta, a um só tempo, testemunho e tributo. A deficiência de Dryden, no que toca aos sentimentos de um poeta no âmbito da província refinada do gelo e do gracioso, é evidente em sua alteração de A Tempestade. Nela, ele não apenas diminuiu o interesse sobrecarregando a trama, mas desfigurou completamente o caráter de Miranda, cuja simplicidade, cuja ternura e cujas afecções inocentes poderiam, para usar as próprias palavras de Shakespeare em outra peça, “estar

(^16) Thomas Gray (1716-1771), poeta inglês. Considerava The Bard , mencionado posteriormente no texto, um de seus melhores poemas. 17 William Collins (1721-1759), poeta inglês. Quase tão influente quanto Gray, é considerado como um autor de transição, que já apresentaria algumas características do romantismo. 18 Não fica claro a quem, exatamente, Radcliffe se refere. A alusão pode ser a James Beattie (1735-1803), poeta e moralista escocês, hoje conhecido principalmente por suas críticas a Hume, ou a George Beattie (1776-1823), outro poeta escocês. 19 A referência é, possivelmente, a James Thomson (1700-1748), poeta escocês, autor de The Tragedy of Sophonisba. É possível, também, que a autora tenha tido em mente William Thomson (1712-1766), autor de Sickness e de Hymns to May.

em um altar de cristal”^20. Um amor pela beleza moral é parte tão essencial da mente de um poeta quanto um amor pela beleza pitoresca. Há tanta diferença entre o tom dos sentimentos morais de Dryden e os de Milton quanto entre suas percepções do grandioso e do belo na natureza. Ainda assim, quando me recordo de Alexander’s Feast , espanto-me com os poderes de Dryden e com minhas próprias opiniões ousadas acerca deles, e estaria pronto a desdizer muito do que disse, caso não considerasse esse exemplo do poder da música sobre a mente de Dryden tão maravilhoso quanto qualquer exemplo do efeito dessa arte encantadora que ele tenha exibido em sua sublime ode. Não posso, entretanto, conceder que ela seja a mais bela ode na língua inglesa enquanto eu me lembrar do Bard , de Gray, ou da Ode on the Passions , de Collins. Mas, voltando a Shakespeare, às vezes pensei, enquanto andava pelas sombras profundas do Terraço Norte do Castelo de Windsor, quando a lua iluminava tudo que havia além, que a cena deve ter se apresentado à mente de Shakespeare quando ele projetou as cenas noturnas de Hamlet. Quando eu estava na plataforma que se projeta sobre o precipício, e ouvi apenas o passo regular de uma sentinela ou o tilintar da armadura em seus braços, e vi sua sombra passando à luz da lua, aos pés da elevada torre leste, quase esperei ver a assombração real vestida em armadura, da cabeça aos pés, parada sobre a plataforma solitária diante de mim. A própria estrela, “aquela estrela que está a oeste do polo”^21 , parecia observar as torres a oeste do terraço, cujas linhas escuras se destacavam contra o céu. Tudo estava tão imóvel e sombrio, tão grandioso e solene, que a cena não parecia adequada a nenhuma “mortal cantiga, nem são terrenos esses sons”^22. Já observaste o refinado efeito da torre leste quando estás próximo ao estremo oeste do terraço norte, e o perfil elevado dela se projeta no céu, praticamente da base até o topo ameiado, o que se deve à baixa altura do parapeito? Ele é mais impressionante à noite, quando as estrelas aparecem, em diferentes alturas, sobre seu contorno sombrio e quanto a sentinela de guarda se move como uma figura sombria a seus pés.

(^20) No original, “be shrined in crystal”. A expressão não aparece em Shakespeare. Após observar que, em seu The Romance of the Forest , Radcliffe afirma citar a passagem “That might be shrin’d in crystal/and have all its movements scann’d” (Que poderia estar em um altar de cristal/E ter todos os seus movimentos examinados), Groom (201 7 ) examina algumas possibilidades de textos shakespearianos a que Radcliffe poderia estar aludindo, tais como os sonetos 5 e 46 ou 21 Dois Cavalheiros de Verona. 22 Hamlet , Ato I, Cena I. Trata-se de passagem de A Tempestade.