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Este documento analisa a crise que o direito civil e o direito de família vêm passando, atribuindo-a à revolução industrial e à revolução sexual dos anos 60 e 70. A crise é evidenciada na perda de centralidade do patrimônio e da propriedade no direito das obrigações e no direito das coisas, e no surgimento de microssistemas em torno do código civil. O direito muda porque a sociedade muda, e o código civil e a constituição estão em permanente diálogo. A família, lida a partir da ótica civil-constitucional, torna-se o locus da afetividade e transforma-se em centro de promoção da dignidade humana.
Tipologia: Notas de aula
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César Fiuza Advogado. Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto de Direito Civil na PUCMG e na UFMG. Professor Titular de Direito Civil na Universidade FUMEC. Professor convidado na UNA e na Faculdade Estácio de Sá. Professor colaborador na Universidade de Itaúna.
Normalmente é em tempos de crise que os estudos de hermenêutica se tornam tão importantes. É em tempos de crise que a maneira tradicional de solucionar casos concretos se transfigura, se abala. É nesses tempos que se buscam novos modos de interpretação, que possam servir de guia nos anseios da sociedade em mutação. Mas que crise é essa por que passa o Direito de Família, o Direito Civil? De plano, carece esclarecer que a palavra crise deve ser entendida num sentido positivo. Como superação de paradigmas, turning point , virada. A crise do Direito Civil pode ser analisada sob diversos aspectos. Em primeiro lugar, a crise das instituições do Direito Civil, basicamente de seus três pilares tradicionais: a autonomia da vontade, a propriedade e a família. Em segundo lugar, a crise da sistematização, em que entram em cena os microssistemas, em que a codificação é posta em xeque. Em terceiro lugar, a crise da interpretação, em que se apresentam novos paradigmas hermenêuticos, novas diretrizes.^1
(^1) FIUZA, César. Direito civil : curso completo. 8. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 88 et seq.
As instituições de Direito Civil foram tradicionalmente aprisionadas em quatro grandes ramos, quais sejam, o Direito das Obrigações, o Direito das Coisas, o Direito de Família e o Direito das Sucessões. Assim está disposta a matéria nas grandes codificações dos séculos XIX e XX, assim se a ensina nos cursos de Direito. Na verdade, procedendo a um corte epistemológico, descobre-se que o sustentáculo desses quatro grandes ramos é, tradicionalmente, a autonomia da vontade, a propriedade e a família. O Direito das Obrigações tem como principal escopo o estudo e a regulamentação dos contratos. Sendo eles entendidos, classicamente, como fenômeno volitivo, calçam-se na autonomia da vontade, princípio vetorial de todo o Direito das Obrigações. É evidente que não constitui o único princípio, mas é o principal. Em outras palavras, os contratos só podem ser entendidos como fruto da autonomia da vontade. O Direito das Coisas, das Sucessões e mesmo o das Obrigações sustentam-se em outro fenômeno fundante, qual seja, a propriedade privada, o patrimônio, o ter, o possuir. Por sua vez o Direito de Família e o Direito das Sucessões giram em torno da família, “célula mater ” da sociedade, segundo as palavras do próprio texto constitucional de 1988. Veremos, entretanto, que estes três pilares entraram em crise, principalmente diante do paradigma do Estado Democrático de Direito, o que veio a acarretar graves conseqüências gerais e, especificamente, para a interpretação no Direito Privado. A Revolução Industrial, estimulada pelos dogmas do liberalismo econômico e político, gerou dois efeitos importantes. Por força de um deles, construiu-se a teoria clássica do Direito Civil; por força do outro, toda essa
Conseqüência dessa massificação, do consumismo e das novas formas de contratar, o Direito Contratual entra em crise. Sua antiga principiologia, calcada nos ideais do liberalismo, já não serve mais. A autonomia da vontade é substituída pela autonomia privada, surge a teoria preceptiva. A coisificação do sujeito de direito, subproduto da visão de agente econômico, não se sustenta mais no Estado Democrático. A própria idéia tradicional de sujeito de direito gera verdadeira excludência do outro. O credor é titular, sujeito ativo, detentor de direito de crédito oponível contra o devedor, sujeito passivo, adstrito a realizar em favor do credor uma obrigação creditícia. Se a não cumprir, submeter-se-á a uma quase manus iniectio do credor, que poderá agredir-lhe o patrimônio. Mas e os direitos do devedor? Este também é pessoa com direito à dignidade humana, sujeito de direitos fundamentais. Vê-se, claramente, que a idéia tradicional de sujeito de direito e mesmo de relação jurídica exclui os demais, realçando a figura do titular do direito, seja de crédito, seja real. Isso começa a mudar. O patrimônio e a propriedade deixam de ser o centro gravitacional do Direito das Obrigações e do Direito das Coisas. Seu lugar ocupa o ser humano, enquanto pessoa, com direito à dignidade, à promoção espiritual, social e econômica. Fala-se, pois, em função social do contrato, da propriedade. Fala-se em despatrimonialização do Direito Privado, principalmente do Direito das Obrigações. Nasce o Direito protetivo do consumidor, acompanhado até mesmo de algum exagero “consumeirista”. O conceito de propriedade como “direito” de usar, fruir, dispor e reivindicar já não serve mais. Primeiro, por ser excludente. Enfoca-se apenas a pessoa do titular, excluindo-se a coletividade, o outro. Segundo, por trazer em si a idéia de algo absoluto, intocável. Na verdade, o conceito de propriedade não precisa e não deve abandonar a idéia de situação ou de relação jurídica,
sob pena de se desumanizar. Historicamente, o abandono da idéia de pessoa, sujeito de direitos, titular de relações jurídicas, só levou à arbitrariedade e a regimes ditatoriais. Propriedade passa a ser, pois, situação jurídica, consistente em relação entre o titular e a coletividade (não-titulares), da qual nascem para aquele direitos (usar, fruir, dispor e reivindicar) e deveres (baseados na função social da propriedade). Para a coletividade também surgem direitos, que se fundamentam, em sua maioria, na função social da propriedade, e deveres relativos aos direitos do titular. Em outras palavras, os não-titulares devem respeitar os direitos do titular. A função social da propriedade seria, como se pode perceber, elemento externo ao conceito, fundamento dos deveres do titular e dos direitos da coletividade, ou seja, fundamento das restrições à propriedade. O Direito de Família também está em crise. A mesma Revolução Industrial que gerou a crise do Direito das Obrigações conduz a mulher para o mercado de trabalho, retira o homem do campo, proletariza as cidades, reduz o espaço de coabitação familiar, muda o perfil da família-padrão. A mulher se torna mais independente e busca seu lugar ao sol. Já pode votar e ser votada. É cidadã. Apesar disso, ainda se vincula ao marido, considerada relativamente incapaz. Só a década de 1960 consegue libertá-la dos grilhões maritais. Entra em vigor o Estatuto da Mulher Casada. Mas foi outro subproduto da Revolução Industrial, a dita Revolução Sexual, dos anos 60 e 70, que acelerou a crise no Direito de Família. Já no fim da década de 70, separando-se de uma vez da Igreja, o Direito de Família passa a admitir o divórcio. Dez anos mais tarde, a Constituição Federal consagra o que doutrina e jurisprudência já vinham desenhando, a concepção pluralista de família. Mesmo assim, ainda se não consegue despir de vã tentativa de busca do ideal. A Lei deverá facilitar a conversão da união estável
se adequava, evidentemente, às aspirações do emergente Estado Social, instalado no Brasil já no início do século XX. Como conseqüência, teve que se abrir. Em outras palavras, sua harmonia interna foi logo quebrada, seja pela interpretação da doutrina e dos tribunais, seja pela vasta legislação especial, que o acompanhou desde seus alvores. Por outros termos, mal o sistema civilístico se codificou, teve início o processo de sua descodificação. É lógico, entretanto, que o Código Civil continuou a ocupar a posição central no sistema, só que relido sob a perspectiva do Estado Social. Se, por um lado, o Código Civil ocupava o centro de sistema, por outro, em sua periferia, nos entornos do Código, começaram a se formar pequenos microssistemas: o da família e dos menores; o do inquilinato; o dos contratos imobiliários; o dos condomínios; o dos títulos de crédito; o do consumidor, sem falar em microssistemas que, de certa forma, desde o início, se tornaram independentes, como o do trabalho. Esses microssistemas, apesar de girarem em torno do Código Civil, têm vida própria. São, em grande parte, interdisciplinares, inspirando-se em princípios não só de Direito Privado como também de Direito Público. É o que ocorre, por exemplo, com os microssistemas do consumidor, da família e outros. Por esta e outras razões, muitos chegam a afirmar que no centro do sistema não gravita o Código Civil, mas a própria Constituição, que de lá irradia seus princípios e valores. A assertiva não deixa de ser correta, se levarmos em conta o sistema jurídico como um todo. No entanto, enfocando- se apenas o sistema juscivilístico, seria um pouco exagerada a afirmação, posto que se entenda que é na Constituição que se deve inspirar o intérprete, em última instância. Na verdade, o Código Civil ocupa o centro do sistema civilístico, mas deve, por sua vez, ser lido à luz da Constituição.
Lorenzetti advoga tese um pouco dissonante, porquanto entende que nem o Código Civil nem a Constituição estariam no centro do sistema. A verdade, para ele, é que não há centro no sistema. Nesse contexto, fala da descodificação e da recodificação ou ressistematização, como se pode observar, em suas próprias palavras:
As análises dedicadas à descodificação do Direito Privado se concentram na descrição das rachaduras da ordem axiomática fundada no Código, o surgimento de leis especiais, o aparecimento de falhas na estrutura hierárquica das normas, de antinomias e incoerências. Conclui-se que o sistema parece esfacelar-se em microssistemas. Outros autores referem que há um processo de descodificação e de recodificação civil, dentro dos limites do Código. Para nós, o tema é distinto. O Código, como tal, vai se ampliando, ao dar guarida a novos problemas e microssistemas; suas normas internas vão se distendendo mediante a interpretação, até um ponto culminante que termina por transformá-las. Se examinarmos o caminho percorrido desde a interpretação das cláusulas contratuais, que previu o Código Civil, até o que é hoje a qualificação das cláusulas abusivas, teremos uma idéia de que o resultado final nos coloca em outro estágio, porquanto ocorre uma ampliação nas fronteiras do Código concebido como lei estatal. [...] Nesta primeira etapa descodificadora, os lugares de instabilidade se multiplicam, conferindo uma aparência de desordem insuperável; a desordem é produto da complexidade e a diferenciação é necessária para crescer. Os microssistemas se comportam como ‘estruturas dissipativas’ e se convertem em fontes de uma nova ordem. Diz Prigogine que ‘a dissipação se encontra na origem do que podemos acertadamente denominar novos estados da matéria’. Mediante este processo, cria-se um novo sistema. A teoria das catástrofes considera que se produz um ponto de saturação, que obriga a saltar a um estágio distinto, mediante novas estruturas adaptativas. [...] A idéia de superioridade no mundo atual é a de sistema de normas fundamentais, que se encontram nas ‘fontes superiores’: Constituições, tratados, princípios, valores. Não se trata de retornar a um ordenamento fundado em um centro. A evolução de astronomia, desde Ptolomeu a Copérnico, e a situação atual demonstram a superação do paradigma do centro: o etnocentrismo, o antropocentrismo, a idéia ptolomaica revelam um modo de ver baseado em um ponto. O processo codificatório acabou por algo sofrer dessa influência.
no instante em que ganhava contornos de algo simétrico e inteligível, surge o novo Código Civil, que fez ruírem todos os esforços de ressistematização envidados até a época. É um código que já nasceu de costas para seu tempo, ao menoscabar o paradigma do Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, nasceu já necessitando de releitura urgente. Salta aos olhos que seria muito mais sábio proceder-se a uma reforma paulatina do Código de 1916, à semelhança do que se fez com o Código de Processo Civil. De todo modo, o Direito muda não porque o legislador deseja, ou pelo menos não preponderantemente. O Direito muda, porque a sociedade muda. E as mudanças na organização familiar são visíveis. Suas origens, como dito, devem ser buscadas na Revolução Industrial. As grandes concentrações urbanas alteraram a geografia política e a da família, urbanizando a sociedade, reduzindo os espaços de convivência familiar, introduzindo novos padrões de existência e de subsistência. Um fenômeno extremamente importante para a família e para os costumes em geral, que também pode ser dito subproduto da Revolução Industrial, foi a laicização do Estado, que conduziu à laicização da própria sociedade, em geral, ou vice-versa. Não que a religião tenha perdido a importância. Seria cegueira absoluta uma tal afirmação. Não perdeu importância, mas perdeu poder, deixou de ser, pelo menos a religião católica romana, fonte de amarras, de embotamento espiritual, intelectual e sexual, apesar dos esforços do Vaticano em sentido contrário. Essa laicização contribui fortemente para a concretização da Revolução Sexual. Temas como sexo livre, sexo antes do casamento, sexo como fonte de prazer, divórcio, união estável, homossexualismo e união de pessoas do mesmo sexo vão, paulatinamente, deixando de ser tabus. O preconceito ainda
existe e é muito forte, quanto menos intelectualizado for o meio; a família modelo dos anos dourados ainda é cultivada, mas cada vez menos. Cada vez mais se abrem as perspectivas para uma sociedade plural, em que as pessoas convivem bem com o diferente. Essa pluralidade sempre existiu, de fato. É que se intensificou, se desnudou. Numa sociedade patriarcal e rural (agrícola), a diversidade era menor e mais recôndita. No século XX, a sociedade se torna menos patriarcal e urbana (industrial), massifica-se. A população aumenta em níveis nunca antes vivenciados. A educação e a saúde se massificam. É óbvio que a diversidade será muito maior e mais explícita. Coroando a diversidade, a Constituição de 1988 dignifica a família plural, abre as portas para novas tendências. É óbvio que não fecha o sistema. Deixa ao legislador e, principalmente, ao intérprete a tarefa de avançar sempre, de colmatar as lacunas, de aperfeiçoar o sistema, por meio de novas leis e da interpretação casuística. Mas lançou a Constituição as diretrizes: a família plural, a tolerância com o diferente, a dignidade humana como valor máximo, a igualdade entre sexos, entre cônjuges e companheiros, entre filhos, entre iguais, enfim. Mas que se deve entender por diretriz hermenêutica? Afinal, este é o tema do presente trabalho. Diretriz é a linha que regula o traçado de um caminho; é instrução no cumprimento de uma tarefa. A tarefa, aqui, é a solução dos problemas concretos. Nela, o intérprete, ou seja, cada um de nós, deve ter em mente as instruções constitucionais, as linhas que regulam o traçado que deve percorrer ao desvendar as hipóteses de solução para os problemas concretos. Será apenas na Constituição que se deve buscar essas instruções? Claro que não. Também se acham no Código Civil e em outras leis. É, porém, a
unipessoal, a fim de legitimar a proteção ao imóvel residencial da pessoa solteira. Trata-se de verdadeira ficção jurídica, que não se sustenta nem é necessária, uma vez que a questão se resolve a favor do devedor solteiro, com o amparo do art. 1º, III da Constituição, que eleva a dignidade humana ao patamar de fundamento da República. Com fulcro nesta norma, pode-se defender a idéia de um patrimônio mínimo, que garanta a sobrevivência condigna do ser humano, por mais inadimplente que seja. Em artigo acerca do tema, Anderson Schreiber defende esse mesmo ponto de vista:
A proteção jurídica à dignidade da pessoa humana, valor fundamental do ordenamento brasileiro, abrange, como se sabe, a tutela dos múltiplos aspectos existenciais da pessoa: nome, imagem, privacidade etc. Inclui também a garantia dos meios materiais razoavelmente necessários – e não apenas mínimos – para o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Tal garantia decorre logicamente da própria tutela da dignidade humana, que se converteria em fórmula vazia não fosse dever do Estado, das instituições e da sociedade civil assegurar os meios necessários ao pleno exercício dessa dignidade. Entre estes meios, avulta em importância a habitação, que, repita-se, é requisito inerente à formação e ao desenvolvimento da personalidade humana. [...] a Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, veio inserir expressamente no rol dos direitos sociais (art. 6º) o direito à moradia, com aplicabilidade direta e imediata.^3 Com esse importante diálogo entre as várias fontes do Direito, o sistema jurídico ganha outra dimensão, muito mais aberta e receptiva. Não que passe a valer tudo. Não é bem assim. As soluções, por menos inovadoras que sejam, hão de se lastrear em argumentos lógicos, ponderáveis, com recurso, no mais das vezes, à dogmática, não à dogmática tradicional, por certo, mas a uma dogmática relida à luz dos novos paradigmas constitucionais, tendo a
(^3) SCHREIBER. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro.racionalidade contemporânea, p. 83-84. In : RAMOS; TEPEDINO et al. (org.) Diálogos sobre o direito civil – construindo a
dignidade humana como sustentáculo central. Essa, afinal, foi a instrução, a diretriz do constituinte, ao elevar a dignidade humana ao status de fundamento da República, no art. 1º, III. O que se pode sentir, no mais das vezes, é um intenso terror de tudo aquilo que é novo e de tudo o que não se pode conceituar de forma muito clara e arredondada, de forma absoluta. Há sempre o medo do arbítrio, apanágio de recorrentes tempos passados. A verdade, no entanto, é que o ceticismo pós-moderno, num Estado realmente democrático, rechaça a idéia de conceitos absolutos. Tudo é relativo. A própria verdade é relativa, bem como a liberdade, a segurança, a justiça, a dignidade, a riqueza e a pobreza etc. Que é justiça? Que é dignidade? Que é riqueza? São todos conceitos relativos. É tudo aquilo que, por meio do livre diálogo, se considera justo, digno, rico ou pobre, por um grupo de pessoas, em certos tempo e lugar. Liberdade nos países árabes, de orientação muçulmana, tem sentido totalmente diverso do que para nós, no Ocidente romanizado. O mesmo se diga da justiça, da dignidade etc. A busca por conceitos absolutos só leva ao malogro e, pior, à intolerância. Tudo o que não se amoldar aos conceitos absolutos, ideais, portanto, será errado e deverá ser destruído. É isso que desejamos? É essa a diretriz de nossa Lei Maior? Quero crer que não. Em síntese, partindo do problema concerto, seguindo as diretrizes constitucionais, o intérprete deverá ponderar bens e valores, para encontrar no sistema uma ou mais hipóteses de solução. Essa ponderação de bens e valores não é absoluta e só é possível no caso concreto. Daí, serem, em tese, possíveis duas respostas antagônicas para um mesmo problema teórico. É que o Direito vivo não existe em tese.
menos foram vãs tentativas de se a enquadrar em molduras previamente estabelecidas por um grupo dominante. No mais das vezes, essas tentativas de padronização estiveram envolvidas por um véu de religiosidade insana, fanática, fundamentalista. O que não estivesse dentro dos estritos padrões da moralidade sectária, era relegado à marginalidade, à criminalidade. No Brasil, só a partir da década de 1960, iniciam-se os ventos de certa libertação. Os grilhões do catolicismo hipócrita são afrouxados, após décadas da laicização do Estado. Mas são precisos mais vinte anos ainda, para que o ordenamento jurídico reconhecesse a pluralidade e exigisse dos cidadãos o respeito, quando nada formal, pelo diferente, pelo minoritário, por tudo aquilo que fuja aos padrões da “normalidade” ditada pela dita maioria. Hoje, é, sem dúvida, princípio constitucionalmente consagrado o da família plural. Nele deve se basear toda a hermenêutica jusfamiliarista. Por exemplo, a Lei 8.009/90, quando trata da impenhorabilidade do imóvel familiar, refere-se à família nos moldes mais amplos e frouxos, sem qualquer amarra religiosa ou de outra natureza. Assim deve ser interpretada. Faz menção a cônjuges, é bem verdade, mas com base no princípio constitucional da família plural, o intérprete não pode restringir o vínculo ao matrimônio, mesmo porque, a mesma Lei fala em entidade familiar, numa abordagem bem mais ampla que a matrimonial. A questão não é controversa, como pode parecer do texto; foi citada apenas como exemplo de aplicação do princípio da família plural. A família relida a partir da ótica civil-constitucional torna-se o locus da afetividade, das relações de amor e “ódio”, deixa de ser a esfera do pater- familias , transformando-se em centro de promoção da dignidade humana; da dignidade dos filhos, cujo tratamento partirá dos princípios da igualdade, do melhor interesse do menor e do filiocentrismo; da dignidade do casal e dos demais membros da família, seja qual for sua configuração.
Essa nova visão do Direito de Família conduzirá inexoravelmente à busca por amparo em outros ramos do conhecimento e da prática, principalmente a psicologia e a psicanálise. Não é possível dispensar uma análise psicológica dos assuntos familiares. Daí porque se rechaça com tanta veemência a abolição da idéia de culpa nos conflitos que sempre ocorrem no seio das “melhores famílias”. Afinal, de quem é a culpa se a mulher traiu o homem? Se o filho se tornou um trans“viado”, a quem culpar? É possível falar em indenização por danos morais advindos da má criação dada pelos pais aos filhos? É viável indenização por adultério? “Me perdoa por me traíres”... A grande verdade é que, em Direito de Família não há verdades. Há, sim, casos concretos, que devem ser solucionados, um a um, sob o pálio de todos esses princípios e valores, hoje consagrados em nossa Lei Maior.
Para aprofundar os temas aqui abordados: ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2001.
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