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Guias e Dicas
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Diogo Gelmires e as terras sob o domínio da igreja de Compostela, Notas de aula de História

Estudo da viagem de Diogo Gelmires a Braga, para levar para Compostela as relíquias de S. Frutuoso

Tipologia: Notas de aula

2020

Compartilhado em 12/01/2020

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POPULAÇÃO E SOCIEDADE
Dinâmicas e Perspectivas Demográficas do Portugal
Contemporâneo
D. Diogo Gelmires
e as terras sob a jurisdição da igreja
de Santiago de Compostela
entre os rios Minho e Ave
António Matos Reis
Cepese
Porto
2010
População e Sociedade 18
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Dinâmicas e Perspectivas Demográficas do Portugal Contemporâneo

D. Diogo Gelmires

e as terras sob a jurisdição da igreja

de Santiago de Compostela

entre os rios Minho e Ave

António Matos Reis

Cepese Porto 2010

População e Sociedade 18

fundador. Nessa data 2 , Afonso III das Astúrias confirmou a doação desse mosteiro feita em testamento à Igreja de Santiago pelo presbítero Cristóvão, que tinha procedido à respectiva presúria, assim como a doação da vila de Nogueira (correspondente à actual freguesia de Nogueira, no concelho de vila Nova de Cerveira), feita por Romarico Cerva, que igualmente tinha procedido à sua presúria, e a de várias outras vilas, nas margens do rio Minho. Alguns anos após a reconquista de Coimbra, e, tal como sucedeu com Braga, ainda longe de se restaurar a respectiva diocese^3 , foi o mesmo D. Afonso III que, em 899, doou à Sé Compostelana duas vilas e a terça parte de uma outra, no território conimbricense^4. Ainda nesse ano, tendo como motivo a consagração da igreja de Santiago, Afonso III reiterou diversas doações anteriores, entre as quais se citam a de Nogueira, já referida, e se inclui a vila de S. vítor, junto ao rio este, no território bracarense, com a menção expressa de quatro “vici” ou lugares (efígies, Murgostos, Palatium, na grafia latina^5 ), cuja presúria tinha sido feita por Paio Peres, por ordem do monarca, e com este escambada por outras vilas^6. em 911, Ordonho II doou à mesma igreja alfaias preciosas, vários servos e bens fundiários, entre os quais se mencionava a igreja de S. João em Riba de Ave, que chegou à posse do monarca leonês por escritura do abade Honorico, que a tinha aí obtido, com a respectiva vila e seus anexos e proventos, mas esta doação apenas se consumaria integralmente após a morte do presbítero Gundesindo, a quem o Rei fizera a concessão de metade^7. Poucos anos decorridos (em 915), o mesmo Ordonho II doava à Sé Compostelana a vila Corneliana, em Riba de Lima (actualmente freguesia de Correlhã, no concelho de Ponte de Lima) cum viculis et adiacensiis seu cunctis prestationibus, e nela a igreja de S.Tomé, tudo isso em substituição das quinhentas moedas de ouro que Afonso III, à hora da morte, deixara à igreja do Apóstolo 8. Um documento datado de 1019, cuja autenticidade foi posta em causa por vários autores, regista os resultados de uma “exquisitio magna”, a que procedeu o Bispo vistruário e os vigários régios, na presença do monarca, Afonso v de Leão 9. Incompleta no que respeita ao território português, essa “exquisitio” não deixa, porém, de referir a vila Corneliana. esta veio, com efeito, a destacar-se entre o património que a mitra compostelana possuía nas terras a sul do rio Minho. em 1061, Fernando I concedia a sua protecção à vila de Correlhã e aos seus povoadores, em carta dirigida ao Bispo Crescónio ou a todos os da Igreja de Santiago apóstolo^10. A princesa D. Urraca, filha de Fernando I, em Junho de 1066, fazia testamento ao altar de Santiago, da vila de vilela, da igreja de Santa Maria de Rio de Moinhos, de metade das igrejas de Santa eulália e de S. Salvador de Cabreiros, tudo localizado em valdevez, incluindo na sua doação as vinte e cinco famílias de servos aí instaladas, referindo-os por nome e com o número dos respectivos filhos e de outros familiares 11. Para evitar que os seus funcionários em Portugal inquietassem os moradores das terras pertencentes à Sé Compostelana, Fernando I outorgou, por essa data^12 , uma carta a proteger das ingerências de entidades

2 Tem suscitado algumas dúvidas a autenticidade deste documento, como lembra Manuel Lucas Alvarez, que aliás o sumariou de forma inexacta. 3 A diocese de Braga foi restaurada em 1071 e a de Coimbra em 1080. 4 ACS – Tumbo A, fl. 4, doc. 17(ALvARez, 1988: 70-71). 5 Correspondentes, em grafia actual, aos lugares de Infias, Maragoto e Paços, na periferia de Braga. 6 ACS – Tumbo A, fl. 4 vº - 5 v.º, doc. 18 (ALvARez, 1988: 71-74). 7 ACS – Tumbo A, fl. 5 v.º, doc. 21 (ALvARez, 1988: 77-79). 8 CS – Tumbo A, fl. 7 v.º - 8, doc. 26 e 27 (ALvARez, 1988: 85-87 e 87-88). 9 ACS – Tumbo A, fl. 21 - 22 v.º, doc. 61 (ALvARez, 1988: 146-149). 10 ACS – Tumbo A, fl. 26, doc. 68 (ALvARez, 1988:161). D. Urraca refere que tinha adquirido estas vilas “de mea ganantia et de incartatione quam michi fecit Aurodonna Nuniz”. 11 ACS – Tumbo A, fl. 33 vº (ALvARez, 1988: 186-188). 12 O documento aparece datado de 6 de Março da era Iª Cª Iª, isto é do ano de 1063, mas já vários autores chamaram a atenção para o facto de que haverá um erro de escrita na datação, porque um dos confirmantes, o Bispo Pelágio II de Leão, iniciou o seu pontificado depois de 1 de Abril de 1065. A inclusão de vilela entre as vilas abrangidas pela carta de protecção leva-nos a pensar que o documento deve ser posterior à doação da infanta D. Urraca.

alheias à Igreja de Santiago ou à família iriense (do antigo nome da diocese, Iria) todos os homens que sob a sua égide viviam “in villas Corneliana, Bracara, Montelios, villela, Colina et alias”^13. Depois de assumir o governo da Província Portucalense, o Conde D. Henrique, outorgou também uma carta, datada do dia 9 do mês de Dezembro de 1097, através da qual não só confirmava a doação da vila Corneliana à Igreja Compostelana, como autorizava os seus moradores a colherem lenha e madeira e a apascentarem os gados onde quisessem, ao redor, para além dos limites da referida vila, sem que por isso pudessem ser molestados por qualquer vigário régio, saião ou poderoso^14. Por esta data, Diogo Gelmires já exercia pela segunda vez as funções de administrador, sede vacante, da Diocese de Santiago de Compostela. Diogo Gelmires foi protagonista de uma ascensão rápida e fulgurante na carreira eclesiástica. Filho do poderoso milles Gelmiro, a quem o Bispo de Iria-Compostela confiara a tenência do Castellum Honesti e do território situado entre os rios Ulla e Tambre^15 , formou-se na escola da catedral compostelana e completou essa formação na corte de Afonso vI. Não passaram despercebidas as qualidades deste “jovem perspicaz, ornado de bons costumes e de um grande dinamismo na acção” 16. Regressado à Galiza, entrou na cúria diocesana e tornou-se membro do cabido catedralício. D. Raimundo da Burgonha, casado com a infanta D. Urraca, filha de Afonso vI, encarregado do governo da Galiza, recorreu aos seus serviços como chanceler e secretário, e tinha-o na sua companhia quando foi derrotado pelos muçulmanos nos arredores de Lisboa^17. O prestígio de que Diogo gozava nos meios político e eclesiástico determinaram a sua escolha para administrador apostólico da diocese, nos períodos de sede vacante, de 1093 a 1094 e novamente de 1096 a 1100, apesar de ainda não ter recebido as ordens eclesiásticas. As mesmas qualidades e a experiência de tal modo adquirida contribuíram para a sua definitiva eleição como Bispo de Compostela, após a sua ordenação como subdiácono feita, por ocasião da sua deslocação a Roma, em 1101, pelo próprio Papa Pascoal II. A diocese, cuja sede fora entretanto definitivamente transferida de Iria (nas proximidades do actual Padrón) para Compostela (a primeira aprovação desta transferência foi dada pelo Sumo Pontífice em Dezembro de 1095), tinha agora à sua frente, após alguns anos de perturbação, um prelado jovem, cheio de ambição e de energia, que procuraria engrandecer por todos os modos a Igreja de Santiago.

  1. Uma singular “visita pastoral” enquadra-se no programa de engrandecimento da Sé Compostelana a visita pastoral que, logo no início do seu pontificado, Diogo Gelmires empreendeu às terras submetidas à sua jurisdição localizadas a sul do rio Minho. A crónica dessa deslocação ocupa algumas páginas no Registrum Venerabilis Compostellanae Ecclesiae Pontificis Didaci Secundi vulgarmente conhecido como História Compostellana^18. Iniciado por volta de 1107, este Registrum, conforme se refere em mais do que uma passagem, foi elaborado por vontade do próprio

13 ACS – Tumbo A, fl. 26 - 26 v.º, doc. 69 (ALvARez, 1988: 162-163). Documentos do Liber Fidei, entre 1086 e 1089, referem-se à usurpação de que foi vítima um particular, por parte do Bispo D. Diogo Pelais (1071-1088 e 1090-1094), de Iria Flavia, da fracção de uma herdade em Subcolina, na cidade de Braga (ADB, Liber Fidei, docs. 125, 128, 613, 626, respectivamente a fl. 42 v.º-43, 43 v.º-44, 161-161 v.º e 164 v.º-165. Publ.: Costa, 1965: 147-148, 150-151; 1990, 39-40 e 53-54). 14 ACS – Tumbo A, fl. 39 v.º, doc. 97. ALvARez, 1988: 208-209. 15 O Castelum Honesti dos romanos, localizado junto ao mar, em Catoira, foi reconstruído no século X e dele restam, em ruínas, as hoje conhecidas como Torres do Oeste, topónimo que tem a sua origem etimológica na antiga designação (Honesti > Oeste). 16 História Compostelana (HC), II, 2. Passaremos a citar abreviadamente esta colectânea como HC e, para satisfazer por igual os que utilizam as diferentes edições, em vez das páginas, iremos referir sucintamente os livros, com números romanos, e os capítulos, com algarismos. 17 HC: II, 53. 18 HC: I, 15.

Seria natural que os dois já se conhecessem e que até existisse entre ambos uma verdadeira amizade. É bem possível que se tenham encontrado em Roma, no ano de 1100, em que o Papa concedeu o pálio^22 a S. Geraldo, restaurando a categoria metropolitana da Sé de Braga^23 , e ordenou Diogo Gelmires subdiácono, abrindo assim o caminho à sua eleição para Bispo de Compostela. Gelmires irá mais tarde obter do Papa o privilégio de elevar o número dos cónegos de Santiago para setenta e dois e de nomear, entre eles, sete presbíteros cardeais para dar maior esplendor à sua igreja, à semelhança do que sucedia em Roma e em algumas outras dioceses. vamos encontrar Geraldo de Braga incluído entre os cónegos de Santiago^24 , e até na categoria de hebdomadário^25 , sem podermos afirmar, no entanto, que de facto alguma vez tenha pessoalmente participado como tal nas cerimónias realizadas na catedral. Diogo Gelmires chegou a intervir junto do Arcebispo de Braga, embora sem resultado, a favor de uma família local, por ter sido negada a sepultura religiosa a um dos seus membros^26. Os factos que nos dias seguintes à recepção festiva aconteceram em Braga não abonam porém a favor da lisura e mesmo da boa fé do compostelano. Tendo-se, com efeito, despedido do seu anfitrião, que o acompanhara até à igreja de S. vítor, iniciou a visita pastoral, e segundo o cronista, interessado em justificar de antemão as acções do prelado, aquilo que mais o afligia (pio gemebat affectu) era a falta de cuidado com as relíquias ou, mais exactamente, com os corpos dos santos dispersos por estas igrejas, que diz “não estarem a ser objecto do culto devido mas jazerem a descoberto e em desordem à vista do público” (nullo cultu venerata, sed nuda et publico visu patentia passim per eas jacere), propondo como remédio a sua transferência para a Sé de Compostela. Mas logo se contradizia, ao declarar que essa transferência tinha de ser feita em segredo, para não provocar a sublevação dos locais, o que supõe que estes de facto lhes prestavam culto, e, mais ainda, ao verificar que, logo na primeira igreja visitada, a de S. vítor, as piedosas relíquias do Salvador e de vários santos (informa o cronista), em vez de desprotegidas e desleixadamente patentes ao olhar das pessoas, estavam bem seguras do lado direito do altar-mor, onde foi preciso escavar para as retirar, e se encontravam guardadas numa “numa arca de mármore trabalhada admirável e artificiosamente” (arca marmorea mire ac subtiliter fabricata) e dentro de “dois pequenos cofres de prata” (duas capsulas argenteas)”. e do mesmo modo procedeu, na mesma igreja, em relação às relíquias dos mártires S. Cucufate e S. Silvestre, que mandou extrair do respectivo mausoléu, e depois na igreja da virgem e mártir Santa Susana, cujo venerável corpo fez retirar com a ajuda dos seus mais próximos colaboradores, mas a ocultas dos restantes (per idoneos ministros atque fideles, ceteris ignorantibus), com pranto e lágrimas (cum fletu et lacrimis)! Passaram-se mais dois dias a congeminar a retirada do corpo de S. Frutuoso, que deixou para último lugar, de modo a se poder afastar de imediato, logo que dele tomasse posse. Com efeito, como anota o autor da narrativa, Diogo Gelmires tinha plena consciência do que estava a fazer, porque S. Frutuoso era venerado como padroeiro e defensor da região. Após a celebração da missa, aproximou-se do respectivo sepulcro e com a maior dissimulação e cheio de medo (cum majore timore et silentio), furtou-o em “piedoso latrocínio” (eum pio latrocinio sustulit) – repare-se na força da expressão, não obstante saída da pena de D. Hugo, o mais próximo colaborador e dedicado amigo de D. Diogo Gelmires – e, uma vez roubado, confiou-o à custódia dos seus guardas. embora o acto fosse desconhecido de todos, para além dos que faziam parte do círculo mais próximo de Diogo Gelmires, a verdade é que naquela noite o Bispo de Compostela não conseguiu fechar os olhos. De manhã, satisfeito com a notícia

22 O pálio aqui referido é um ornamento litúrgico que consiste numa faixa de lã branca adornada com cruzes negras, usada em torno do pescoço pelos arcebispos, em cerimónias pontificais. 23 FeRReIRA, 1928: 213-215. 24 HC: I, 20. 25 LOPez FeRReIRO, 251-252. 26 Arquivo Distrital de Braga (ADB), Liber Fidei, fl. 95 v.º e 173, doc. 322 e 651. COSTA, 1990: 83-84. Passaremos a citar esta colectânea simplesmente como Liber Fidei.

de que o que tinha feito não se tinha propalado, e concluindo desse modo (nada) edificante a sua piedosa visita pastoral aos territórios sob a sua jurisdição a sul do rio Minho (só concretizada em relação aos da cidade de Braga!), pôs-se rapidamente a caminho da vila de Correlhã, como alguém que se retira em fuga apressada (tanquam iniens fugam accelerando)! Aí chegando, foi informado de que já tinha chegado aos ouvidos dos habitantes da vila Corneliana o rumor do que sucedera em Braga, ou seja, de que o Bispo de Santiago tinha cometido uma acção indigna, porque roubara e procurava levar para a sua cidade os santos, isto é, os patronos e defensores da terra portucalense. Congeminou então um ardiloso estratagema, encarregando um dos seus Arcediagos – o próprio D. Hugo, futuro Bispo do Porto – de levar as relíquias pela calada, até atravessar o rio Minho. O cronista – o mesmo D. Hugo, que classificou o acto como “pio latrocínio” – força a intervenção do sobrenatural, para justificar o que se estava a passar: o rio que durante três dias correra tumultuoso, devido às intempéries do inverno, tornou-se repentinamente sereno para dar passagem ao sagrado espólio. Chegado a Tui, o Arcediago deixou-o no cenóbio de S. Bartolomeu, entregue à guarda de um diácono, que o conduziria, por sua ordem, até à igreja de S. Pedro de Cela^27 , fundação frutuosiana, onde, durante dez dias, enquanto não chegava o Bispo, ficaria exposto à veneração dos fiéis, e regressou à Correlhã, a dar notícia a Diogo Gelmires do êxito da sua missão. Partiu o Bispo, cheio de júbilo, para acompanhar as relíquias de terra em terra até chegar a Santiago. Atempadamente, dos arredores de Pontevedra 28 , enviou mensageiros a anunciar ao clero e ao povo compostelano a sua chegada com os venerandos despojos, para que lhe preparassem uma recepção festiva condigna. Acorreu o povo e o clero a acolher o Bispo e a sua comitiva, no Milladoiro (Humiliatorium, na forma latina do texto da Historia Compostellana, que para muitos autores corresponderia à etimologia da actual designação) e daí, pés descalços, com o prelado à frente, seguiram todos em cortejo processional, entoando hinos e cânticos, até à catedral de Santiago. O corpo de S. Frutuoso foi colocado no altar de S. Salvador, na cripta maior da igreja, onde permaneceria quatro anos, até ser transferido para capela e altar próprios, erigidos na nave esquerda da igreja, na cripta situada entre a porta do claustro e o altar de Santiago; o do mártir S. Cucufate, foi deposto no altar do apóstolo e evangelista S. João; o do mártir S. Silvestre, no altar dos apóstolos S. Pedro e S. Paulo. O de S. Susana virgem e mártir foi levado para a igreja construída em honra do Santo Sepulcro e de Todos os Santos, no lugar que em tempos anteriores se chamava Outeiro de Potros (Puldrorum) e depois viria a ter o nome da santa. estava-se então no décimo quarto dia antes das calendas de Janeiro, isto é, no dia 18 de Dezembro de 1102, como regista cuidadosamente o cronista do evento, o Arcediago D. Hugo, futuro Bispo do Porto, depois de anotar a sua participação nesta façanha:

Hugo eiusdem Compostellanae Sedis Canonicus et Archidiaconus, qui praedicti secreti conscius fui, qui etiam in tanti tamque pretiosi thesauri inventione et inventi administratione fidelissimus consultor et diligens cooperator corpore praesens et animo devotus extiti; praefati eventus prosperitatem, ne oblivionis caligine sopiretur, diligenter scripsi et posteris memoriam fideliter tradidi (eu, Hugo Cónego e Arcediago da mesma Sé Compostelana, conhecedor do mencionado segredo, que também fui consultor fidelíssimo e diligente colaborador e estive presente no encontro de tantos e tão preciosos tesouros, descrevi diligentemente o êxito do mencionado evento e o transmiti fielmente à memória dos vindouros, para que não se apague na bruma do esquecimento).

27 Actualmente uma paróquia do município de Porriño, nas proximidades de Tui. 28 De Gogilde ou Guxilde, vila agrária, a que corresponde um lugar da actual paróquia de Santa Maria de Alba, nos arredores de Pontevedra, que Diogo Gelmires recuperou para a sua diocese, quando se encontrava em mãos leigas, quase ao abandono, e depois restaurou e passou a utilizar para seu repouso quando circulava por estas paragens, o que aconteceu designadamente na data em que, na igreja de Lérez, sagrou o Bispo do Porto, D. Hugo (H.C.: I, 22 e 82).

sobre a questão e não cedeu às pretensões de Gelmires, mas, pelo contrário, convocado para comparecer em Tui perante os três juízes que tinham sido nomeados para resolver a contenda – os Bispos de Lugo, Tui e Ourense – nem sequer se dignou atravessar o rio Minho!^35. Depois de ter sido espoliada por Diogo Gelmires das relíquias que a haviam tornado num local de atracção para os fieis – e é conhecido o papel que tiveram as relíquias na piedade medieval – é muito provável que a Igreja de S. vítor tenha sofrido as consequências de algum abandono, traduzido na ruína do edifício, e, por esse motivo, e como modo de patentear a sua jurisdição, logo no início do seu episcopado, D. Paio Mendes terá promovido obras de reconstrução ou, pelo menos, de beneficiação do templo. Pelo menos é essa a única explicação plausível para justificar o facto de que, em 22 de Fevereiro de 1120, D. Paio Mendes tenha procedido à respectiva sagração, dotando-a, por essa altura, dos recursos necessários para nela se manter o culto religioso^36. Segundo refere a Historia Compostelana, o Sumo Pontífice, tendo conhecimento das dissensões entre os dois prelados 37 , enviou uma carta a chamar a atenção do Bracarense para a necessidade de reentregar ao Compostelano a honra que Maurício Burdino tivera em prestimónio e que ele violentamente retinha^38. Dirigindo-se a Compostela, em 1121, D. Paio Mendes fez um pacto de amizade com D. Diogo Gelmires, que o tornou Cónego da Igreja de Santiago, e lhe concedeu em prestimónio metade da igreja de S. vítor “quae dicitur Bracara”, metade de S. Frutuoso, com a vila de Montélios e metade da vila Corneliana, e todos os seus anexos, com tal condição que estes bens reverteriam para a Sé Compostelana logo que D. Paio falecesse^39. Não devemos ignorar que entre os motivos de simpatia da Cúria Romana para com o prelado compostelano se contam o seu prestígio, mas também as suas amizades e conhecimentos pessoais e ainda a sua capacidade de apoiar a Santa Sé com generosas prestações pecuniárias, como recorda, entre outras, a bula Licet gravioribus, de 16 de Junho de 1118, em que o Papa, então Gelásio II, o exorta a que “Romanae ecclesiae multis aggravatae multisque distractionibus fatigatae, memoriam habeat, et tam eius (ecclesiae Romanae) quam suis opportunitatibus subveniat” e lhe recomenda o Cardial P. e o tesoureiro Pedro^40. em 2 de Agosto de 1130, o novo Papa Inocêncio II, através da bula Pro subjectione, agradecer-lhe-ia os presentes recebidos (xeniis nobis a munificentia tua transmissis, dilectioni tua gratiarum persolvimus actiones), garantindo-lhe que iria despachar favoravelmente todos os seus pedidos 41. De facto, a esta seguiram-se outras cinco bulas, todas elas relativas aos interesses materiais da Igreja Compostelana, duas delas dirigidas ao Arcebispo de Braga, D. Paio Mendes. Numa dessas bulas, o Papa repreendia o Bracarense por não ter correspondido a uma convocatória para comparecer em Roma e marcava-lhe nova entrevista, para dali a cinco meses, na festa da Purificação da virgem Maria^42 ; na outra, a bula Carisimus frater, Inocêncio II ordenava ao Arcebispo que restituísse ao Bispo de Compostela as vilas e outras possessões que em tempos dele tinha recebido

35 HC: I, 117; II, 6. 36 ADB, Colecção Cronológica, cx. 1, doc. 6: 1120, 4 de Março – carta de sagração da igreja de S. vítor em Braga por D. Paio Mendes. Pergaminho em mau estado de conservação, cujo teor se encontra reproduzido, no mesmo Arquivo, em Rerum Memorabium, vol. 2, fl. 208 v.º (Academia Portuguesa da História, 1980: 106, doc. 125; COSTA, 2000: 430). 37 A dissensão entre os dois prelados era em grande parte motivada pela ambição de Diogo Gelmires, que pretendia exercer hegemonia como metropolita sobre as dioceses portuguesas da antiga Lusitânia, o que em grande parte conseguiu, mas também sobre a própria arquidiocese de Braga, através da nomeação como legado pontifício com poderes sobre as dioceses do ocidente peninsular (HC: II, 18, 43 e 63), e, mais ainda, com a transferência da categoria de metrópole de Braga para Santiago de Compostela, que o Papa Calixto II, apesar das estreitas relações de amizade pessoal com o prelado compostelano, recusou liminarmente, por ocasião do concílio de Tolosa, reunido em 1119, embora, em compensação, tenha anuído a que se transferisse para Santiago a categoria metropolitana de Mérida, ainda sob domínio muçulmano (HC: II, 11, 15 e 16). 38 HC: II, 46. 39 Declaração assinada por D. Paio Mendes em HC: II, 46. 40 HC: II, 3. 41 HC: III, 22. 42 Bula Praedecessor noster, em HC: III, 21.

em benefício, e que não fizesse oposição a que os votos devidos a Santiago pelos fiéis da diocese de Braga continuassem a ser arrecadados^43. O problema arrastou-se e ainda não estava definitivamente resolvido, muito tempo após a morte de Diogo Gelmires. O Papa Alexandre III, em 9 de Janeiro, presumivelmente do ano de 1181, assinava a bula Venerabilis frater noster dirigida aos Bispos de Ávila, Porto e Tarazona, encarregando-os de fazer com que o Arcebispo de Compostela D. Pedro Soares restituísse metade de Braga com as igrejas de S. Frutuoso e de S. vítor e suas pertenças, ou, se por ventura contestasse a restituição, de conhecerem as razões e as alegações apresentadas 44. Lúcio III, que sucedeu ao Papa anteriormente referido, em 9 de Setembro de 1181, dirigiu a bula Presente venerabili, aos Bispos do Porto, Salamanca e Tarazona, a encarregá-los de resolver a pendência acerca de S. vítor, S. Frutuoso e metade da Sé de Braga 45 , e dela resultou uma sentença, proferida em Tui, a 27 de Outubro de 1182, mas assinada apenas pelos Bispos de Salamanca e Tarazona, que julgaram a favor de Compostela, por falta de comparência do Arcebispo de Braga, apesar de citado^46. este recorreu da sentença para Roma e, em consequência, cinco anos depois, Urbano III remetia ao Subdiácono João, “vicedominus” de Brescia, e ao Mestre J. de Bramo a bula Quanto de prudentia, de 13 de Abril de 1186, a cometer-lhes o reexame da sentença dada no pleito entre os Arcebispos de Braga e de Compostela sobre as igrejas de S. vítor, S. Frutuoso, metade da cidade de Braga e outros bens^47. No tempo do Arcebispo de Braga D. Martinho Pires (1189-1209) e do Arcebispo de Compostela Pedro Suárez de Deza (1173-1206), foram definitivamente resolvidas pelo Papa Inocêncio III (1198-1215) as pendências entre Braga e Compostela. Por acordo amigável entre os dois Arcebispos, homologado pela bula Licet Unum, de 16 de Julho de 1199, em que se repartia pelas duas Sés metropolitanas a supremacia sobre as dioceses de Coimbra e viseu, que ficavam a depender de Braga, e de Lamego e Guarda, que ficavam subordinadas a Compostela, o Arcebispo de Santiago renunciava ao senhorio de metade de Braga e das paróquias de S. Frutuoso e S. vítor com outras pertenças^48. estava assim debelada uma querela que se tinha prolongado durante todo o episcopado de Diogo Gelmires e, mais ainda, durante todo o século XII. Das outras possessões da Igreja Compostelana, a sul do rio Lima, que então balizava pelo norte a Arquidiocese de Braga, multiplicam-se as notícias em relação à Correlhã. em 1174 estava na posse do Cabido santiaguês, que nessa data a concedeu a três indivíduos, de nome Gonçalo, Cornélio e Joanino, em tenência durante cinco anos, por duzentos e setenta maravedis ao ano 49. Aliás, em 1185, na sequência da repartição dos bens da Igreja de Santiago de Compostela entre o Arcebispo e os capitulares, a Correlhã, assim como as outras propriedades santiaguesas em Portugal, passaram a constituir receita exclusiva do Cabido e a depender da sua

43 Bula Carissimus frater, em HC: III, 21. O Bracarense também não compareceu nesta segunda convocatória e foi novamente censurado pelo Papa, através da bula Pro excessu, de 18 de Fevereiro, e novamente convocado para comparecer na festa de S. Lucas, isto é, em 18 de Outubro. Diogo Gelmires foi também convocado para comparecer no concílio a celebrar em Roma na mesma data (bula Pro unitate, de 19 de Maio de 1131, na HC: III, 27). Os votos de Santiago têm sido objecto de vários estudos e não é esta a ocasião apropriada para nos debruçarmos sobre o assunto. Refira-se apenas uma carta dirigida pelo Bracarense ao Compostelano, quando este encarregou o cónego P. Fernandes de recolher os votos na terra portucalense, a perguntar se desejava também reaver os votos da terra de Fernando Mendes (leste de Trás-os-Montes), que lhe tinha sido doada noutros tempos em benefício “quippe vota illa de terra Ferdinandi Menendici nunquam abbuit Portugalensis episcopus” (HC: III, 29). 44 ADB, Gav. dos Arcebispos, doc. 3. 45 ADB, Gav. dos Arcebispos, doc. 3. 46 ADB, Gav. dos Arcebispos, doc. 6. 47 ADB, Gav. dos Arcebispos, doc. 10, cópia séc. XII (eRDMANN: 297-299). A bula encarregava-os também de esclarecerem se os bispados de Coimbra, Lamego, viseu e Guarda eram sufragâneos de Braga ou de Compostela, assim como os de Lisboa e Évora. Aliás, desde 1120, a questão da dependência das dioceses portuguesas restauradas a sul do rio Douro dos metropolitas de Braga ou de Compostela é a que mais vezes se levantará ao longo do século XII. 48 ADB, Gav. dos Arcebispos, doc. 6. 49 Doc. de 19 de Março de em A.C.S, Tumbo C-2, 173- 132 v.º (FeRNANDez De vIANA y vIeyTeS, 1992: 363).

FALqUe Rey, emma, 1988 – Historia Compostellana, Corpus Christianorum, Continuatio Medievalis, 70, Turnhout, Brepols (da responsabilidade da mesma autora, tradução em língua castelhana: Historia Compostelana, Madrid, Akal, 1994). Baseamo-nos na edição crítica de 1988 para a transcrição de texto e respectiva tradução, que se seguem.

HIStoRIA CoMPoSteLLAnA

CAP. XV QUAnDo ADIIt PoRtUGALIAM

  1. Ut ergo quantum ad humanam capacitatem nullatenus discreparet a sententia qua dicitur quaecumque potest manus tua facere, instanter operare, in quibuscumque potuit vigilantius laboravit, ne praesentis vitae subrepente studio, sub terrenae cogitationis aggere ipsius animus sepeliretur. Cum itaque divina inflammatus gratia Portugalenses intraret partes, quodcumque in his subsequentibus legitur Domino auxiliante peregit.

T ranslatio Sancti Fructosi, Silvestri, Cucufati, Susane virginis et martyris in Compostellam

  1. Anno igitur Incarnationis Dominice M.ºC.ºII.º venerabilis pater D. secundus ecclesie beati Iacobi Compostellane sedis divina prestante gratia episcopus secundo episcopatus sui anno ecclesias, cellas et hereditates, que in Portugalensi pago Compostellane ecclesie iuris esse cognoscuntur, ut iustum est, visitare decrevit: ad bonum namque pertinet pastorem, ut tam exterioribus ecclesie sue bonis quam interioribus provideat et, si quid detrimenti vel aliquid inornatum in eis invenerit, providentia sua restauret et disponat. Assumpsit itaque de maioribus ecclesie sue personis et ad Portugalensem , uti disposuerat, iter suum direxit. Cumque appropinquaret civitati, que Brachara dicitur, nuntium suum eiusdem civitatis archiepiscopo premisit, qui adventum suum ei nuntiaret. Ipse vero archiepiscopus nomine Giraldus, vir prudens atque religiosus, audito quod episcopus sancti lacobi ad suam veniret civitatem, magno repletus est gaudio et congregans omnes clericos suos cum crucibus et ceteris ecclesie sue ornamentis obviam procedens, episcopum Compostellanum cum magna veneratione in processionem suscepit et clero cantante ipse eum manu dextera tenendo in ecclesiam suam introduxit et, ut in eadem die missam celebrare dignaretur, summis precibus apud ipsum impetravit. Post misse vero celebrationem ad mensam refectionis, post refectionem quoque ad suam cameram propriam archiepiscopus episcopum honorifice comitando perduxit eique suum proprium hospitium prebens in aliam mansionem ivit mansurus. Illa itaque die episcopus sancti lacobi apud archiepiscopum Bracharensem commoratus est. Sequenti vero die salutatis eiusdem ecclesie fratribus atque benedictione firmatis, prefatus episcopus ad ecclesiam sancti victoris, cuius iuris medietas Brachare civitatis esse perhibetur, archiepiscopo commitante pervenit et in sua regia palatia ut dominus susceptus est. Interea tamen ecclesias suas circumeundo, visitando et in eis missarum solempnia celebrando, multorum corpora sanctorum, que per eas semisepulta debito carebant honore, intuens pio gemebat affectu et pietatis studio pio versabat pectore, quod postea divina opitulatione implevit: ferventi namque studio excogitabat qua- liter pretiosas de inconvenientibus locis margaritas extrahere posset et ad Compostellanam urbem asportaret. Convocatis itaque suis familiaribus clericis et consilio probatis, quid inde vel quo modo facere vellet aperuit dicens: “Fratres karissimi, scitis quia ad has partes ideo venimus, ut, si quid in ecclesiis istis seu hereditatibus destructum seu inordinatum esset, presentia nostra restauraret et ordinaret et male posita in meliorem statum mutaret. Nunc autem vestram non latet diligentiam, que in eis inconvenientia reperiantur: plurima etenim sanctorum corpora nullo cultu venerata sed nuda et publico visu patentia passim per eas iacere inspicitis, que debita veneratione carere non ignoratis. Si ergo vestra nobis consuluerit prudentia, hoc emendare curabimus

et quedam pretiossorum corpora sanctorum, quibus nullus hic exhibetur cultus, ad Compostellanam sedem transferre studebimus. Occulte tamen hoc fieri oportebit, ne forte gens huius terre indisciplinata tantoque thesauro ex poliata in nos subitam seditionem commoveat sicque, quod temptare audemus, frustra nos temptasse doleamus”. Hoc autem consilium cum eius clerici approbassent, utpote consilium divina inspiratione ortum, nec esse postponendum assererent, venerabilis episcopus maxima mentis iocunditate repletus respondit et ait: “Dominus Jesus Christus de cuius misericordia confidimus, ipse sua pietate, quod desideramus, adimpleat et propositi nostri devotionem ad bonum finem perducere dignetur”. Deinde ecclesiam sancti victoris ingrediens ibique missam celebrans ad dexteram partem maioris altaris fodi precepit. Ibi archa marmorea mire ac subtiliter fabricata mox sub terra reperta est. quam cum presente domino episcopo aperuissent, duas capsulas argenteas intus invenerunt. eas itaque predictus episcopus cum magno timore accipiens, glorificato nomine Domini cum psalmis et orationibus, reseravit, in una quarum Domini nostri Sancti Saluatoris reliquias, in alia vero plurimorum sanctorum esse demonstravit. Clausas igitur et firmiter sigillatas suis fidelibus clericis custodiendas tradidit. Alia autem die ad ecclesiam beate Susanne virginis et martyris, que non longe ab ecclesia sancti victoris remota est, perrexit et in ea summa cum devotione missam celebravit. Celebrata autem missa, ut sacris vestibus erat ornatus, ad mausolea sancti Cucufati et Silvestri martyrum in eadem ecclesia requiescentium trepidante animo accessit et eorum gloriosa corpora munda sindone involuta de inconvenientibus sarcophagis latenter assumpsit et cum magna reverentia per idoneos ministros atque fideles, ceteris ignorantibus, ad cameram suam deferri fecit et fideliter custodiri. Ad sepulcrum quoque sancte Susanne virginis cum pervenisset, eius venerabile corpus cum gemitu et lacrimis suspirando accepit et occulte cum aliis custodiendum tradidit.

  1. Preterea vir Dei cognoscens divina pietate ei esse concessum, quod sanctorum corpora per eum honorificanda essent, apposuit ut beati Fructuosi confessoris atque pontificis gloriosam corporis glebam simili modo transferret atque convenientius collocaret. Post duos vero dies venerunt ad ecclesiam beati Fructuosi ibique missam solempniter celebravit. Finita vero missa ad eius sepulcrum sacris indutus vestibus accessit. Sed quoniam sanctus Fructuosus regionis illius defensor et patronus erat, cum maiore timore et silentio de ecclesia sua, quam ipse adhuc vivens in carne fecerat, eum pio latrocinio sustulit et sublatum fidelibus suis custodibus servandum commisit et, quamvis hoc factum omnes lateret preter huius consilii conscios, consequenti tamen nocte haudquaquam episcopus secure dormire potuit: timebat enim perdere, quod secum gaudebat habere. At ubi mane facto, quod egerat, non esse propalatum agnovit, cum gaudio et lethicia suum occultum thesaurum comportans ad quandam sancti Jacobi villam, que Corneliana nuncupatur, tamquam iniens fugam accelerando regressus est. In Corneliana igitur rumor populi aures pontificales percussit referens ab episcopo sancti Jacobi indignum fieri facinus, qui sanctos de Portugalensi terra sublatos, Patrie scilicet defensores atque patronos, ad suam conabatur transferre civitatem. quo audito vir summe prudencie et pietatis eximie veritus ne qua occasione seu violentia pretiosam sarcinam amitteret, cuidam fideli archidiacono suo sanctorum corpora commissit et, quomodo ea per occultos tramites ad Tudensem deferret civitatem, sapientibus verbis eum instruxit. Pontifice ergo apud Cornelianam remanente, archidiaconus secundum eius preceptionem iter faciens usque ad flumen Minei, quod secus Tudam defluit, prospere pervenit. Flumen equidem ante tam asperrimis per tres dies inhorruerat procellis, quod nullis navibus transiri posset. At postquam sanctorum corpora supra ripam fluminis imposita fuerunt, eorum reverentiam fluvius sensisse visus est, nam, gravis aure asperitate summota erisque intemperie evanescente, transferendis sanctis tantam transfretandi facultatem flumen exhibuisse perhibetur, quantam ipsius planicies aque subministrare potuit, que sedatis fluctibus tam magna ferebatur tranquillitate, ut nec modica fluctuatione unda quateretur. Translatos itaque per fluvii tranquillitatem sanctos in cenobio sancti Bartholomei, quod in suburbio Tude civitatis situm est, posuerunt. Archidiaconus igitur fideli custodie amministratione quemdam diaconum sancti Jacobi Apostoli canonicum cum eis relinquens ad episcopum in Cornelianam reversus est eique, quicquid in itinere accidisset et ubi sanctos Dei dimisisset,

trasladação dos Santos Frutuoso, Silvestre, Cucufate e Susana, virgem e mártir, para Compostela

  1. No ano da encarnação de Nosso Senhor de 1102, o venerável Padre D. Diogo por graça de Deus Bispo Igreja de Santiago de Compostela, no segundo ano do seu episcopado, como seria justo, decidiu visitar as igrejas, casas e herdades que no território de Portugal se conheciam como pertencentes de direito à igreja de Compostela, pois é próprio do bom pastor ocupar-se dos bens quer interiores quer exteriores da igreja, e providenciar para que, se encontrar coisas a perderem-se ou em desordem, estas se restaurem e ordenem. Tomou consigo algumas das pessoas mais importantes da sua Igreja e, como decidira, pôs-se a caminho da terra portuguesa. e quando estava próximo da cidade de Braga, enviou um mensageiro ao Arcebispo dessa cidade para lhe anunciar a sua chegada. O Arcebispo Geraldo, homem prudente e religioso, quando ouviu que o Bispo de Santiago estava a caminho da sua cidade, encheu-se de alegria e reunindo todos os seus clérigos com cruzes e outros ornamentos de sua igreja saiu ao seu encontro e recebeu em procissão o Bispo de Compostela com grande veneração, e, enquanto o clero cantava, introduziu-o com a sua mão direita na sua igreja e pediu-lhe com muito empenho que se dignasse celebrar aí uma missa nesse dia. Após a celebração da missa, o Arcebispo levou o Bispo para jantar e, depois do jantar, acompanhou-o ao seu próprio quarto, com grande honra, e oferecendo-lhe a sua própria residência, foi para outra casa. Assim, nesse dia, o Bispo de Santiago foi acolhido na residência do Arcebispo de Braga. No dia seguinte, depois de saudar os irmãos desta igreja e de lhes dar a sua bênção, o referido Bispo, em companhia do Arcebispo de Braga, chegou à Igreja de S. victor, a que por direito pertence metade da cidade de Braga, e foi recebido como senhor nos seus reais palácios. entretanto, percorrendo e visitando as suas igrejas, e nelas celebrando missas solenes, vendo os corpos de muitos santos, aí semienterrados, sem as honras devidas, gemia com piedoso afecto de emoção e congeminava no seu peito aquilo que depois com a ajudada divina poria em à prática: com efeito, pensava fervorosamente como poderia extrair pérolas preciosas de lugares inconvenientes e levá-las para a cidade de Compostela. Convocados, então, os clérigos da sua “família” e de conselho prudente, deu-lhes a saber o que pretendia fazer e de que modo, dizendo: “queridos irmãos, vós sabeis que viemos a estas paragens para que, se nestas igrejas ou herdades encontrássemos alguma coisa destruída ou em desordem, a nossa presença os restaurasse e ordenasse e mudasse para melhorar o que se encontrasse em mau estado. Ora, não escapa à vossa diligência que nelas se encontra coisa inconveniente: com efeito, vedes aí um pouco por todo o lado, não veneradas por qualquer culto e a descoberto, patentes ao olhar, muitos corpos de santos, que não ignorais carecerem da devida veneração. Se, portanto, a vossa prudência no-lo aconselha, procuraremos dar remédio a esta situação e procuraremos transferir para a Sé de Compostela alguns preciosos corpos de santos a que nenhum culto é aqui prestado. Ter-se-á, no entanto, de fazer isso a ocultas para que a gente desta terra, indisciplinada e espoliada de tão grande tesouro, não se levante em sedição contra nós e assim nos lamentemos de tentar em vão o que tínhamos ousado. Aprovada pelos seus clérigos esta decisão, pois afirmavam que era de inspiração divina e não devia ser adiada, o venerável Bispo, com o espírito cheio de alegria, respondeu, dizendo: “O Senhor Jesus Cristo, em cuja misericórdia confiamos, pela sua piedade, realize aquilo que desejamos e se digne conduzir a bom fim o nosso devoto propósito”. então, depois de entrar na igreja de S. victor e de nela celebrar a missa, ordenou que se cavasse do lado direito do altar-mor. Aí foi descoberta, debaixo da terra, uma arca de mármore, trabalhada com finura e delicadeza admirável. e quando se abriu na presença do Bispo, encontraram-se no interior duas arquetas de prata. e o referido Bispo, tomando-as com grande respeito, abriu-as, glorificando o nome do Senhor com salmos e orações, e numa delas descobriu relíquias do nosso Santo Salvador e na outra de vários santos. Fechadas então e seladas com segurança, confiou-as à guarda dos seus mais fiéis clérigos. Noutro dia foi à igreja de Santa Susana, virgem e mártir, que não está muito longe da igreja de S. victor, e aí celebrou a missa com grande devoção. Celebrada a missa, revestido com os mesmos paramentos sagrados, aproximou-se com emoção dos mausoléus dos mártires São Cucufate e São Silvestre, que descansavam na mesma igreja, e retirou dos inconvenientes sarcófagos para

uma toalha limpa os gloriosos corpos e com grande reverência fê-los transportar e guardar fielmente no seu quarto, por ministros idóneos e fieis, sem conhecimento dos restantes.

  1. Além disso, como homem de Deus, sabendo que lhe tinha sido concedida por divina piedade que os corpos dos santos fossem por ele homenageados, ordenou também que as gloriosas cinzas do corpo glorioso de São Frutuoso, confessor e pontífice, de modo semelhante fossem transferidas e mais convenientemente colocadas. Dois dias depois, chegaram à igreja de S. Frutuoso e aí celebrou uma missa solene. Terminada a missa, revestido com as vestes sagradas, dirigiu-se ao seu túmulo. Mas porque S. Frutuoso foi o defensor e o patrono daquela região, com maior temor e silêncio do que o santo em carne observara em vida, tirou-o, num piedoso latrocínio, da igreja que tinha construído quando ainda vivia em carne, e, depois de tirado, entregou-o aos seus guardas fieis para o guardarem, e, embora este facto permanecesse ignorado de todos para além dos que tinham conhecido a decisão, o Bispo não conseguiu dormir naquela noite: temia perder aquilo que tinha o gosto de ter consigo. Mas de manhã quando soube, com prazer e alegria, que o que tinha feito não se propalara, regressou como quem vai em fuga, transportando o seu tesouro oculto, a uma vila pertencente a Santiago, que se chama Correlhã. Na Correlhã, chegou aos ouvidos do pontífice o rumor do povo referindo que o Bispo de Santiago tinha cometido um acto indigno ao roubar e levar para a sua cidade os santos da terra portucalense, defensores e patronos da sua Pátria. Depois de ouvir isto, homem de grande sabedoria e exímia piedade, temendo perder a sua preciosa carga em algum momento ou por algum acto de violência, entregou os corpos dos santos a um fiel Arcediago e instruiu-o com sábias palavras sobre o modo como os levar por caminhos escondidos até à cidade de Tui. enquanto o pontífice permanecia na Correlhã, o Arcediago, caminhando segundo as suas instruções, chegou com êxito ao rio Minho, que corre junto a Tui. O rio estivera tão agitado, durante três dias de temporal severo, que nenhuma embarcação o pudera atravessar. Mas uma vez os corpos de santos colocados nas suas margens, o rio parecia sentir respeito por eles, porque, uma vez acalmado o vento e amainada a tempestade, que, ofereceu tanta facilidade para passarem os santos, quanta podia oferecer a planície às suas águas acalmada a torrente, corriam com tanta tranquilidade, que nem uma ligeira ondulação as agitava. Transferidos assim, os Santos, através do rio tranquilo, colocaram-nos no cenóbio de São Bartolomeu, que está localizado no subúrbio da cidade de Tui. então o Arcediago, deixando-os à guarda de um diácono, cónego de Santiago, voltou para junto do Bispo na Correlhã e deu-lhe a conhecer tudo o que aconteceu pelo caminho e onde deixou os Santos de Deus. O diácono, a que, segundo referimos, foi confiada a sua custódia, segundo as instrução do Prelado levou os mencionados santos para a igreja de S. Pedro de Cela, que S. Frutuoso tinha edificado. e aí, enquanto esperava a chegada do Bispo, durante dez dias os expôs à devida veneração.
  2. Depois de ouvir que os santos tinham atravessado o Minho e foram colocados num local seguro (uma vez que este rio separa Portugal da Galiza), o Bispo, depois de preparar tudo o que devia preparar-se, apressou-se a chegar ao mosteiro onde os santos estavam, e, tomando-os, começou a dirigir-se, já então, às claras, para a cidade de Compostela, pelas vilas de S. Tiago, com grande veneração e alegria. e quando chegou à aldeia que é chamado Gogilde, enviou mensageiros ao clero e povo de Compostela, para que lhes anunciassem a chegada dos santos e lhes recomendassem de que modos os deviam receber, por ordem do Bispo. O clero e o povo Compostela, ouvindo que a divina misericórdia tinha permitido que os corpos dos santos fossem transferidos de Braga para a cidade de Compostela, muito se alegraram, porque pensavam que tanto pelos seus méritos e intercessão como pelo patrocínio do Apóstolo Santiago, com a presença de cujo corpo a cidade de Compostela se ilustra, seriam libertados de toda a peste ou enfermidade. Saindo então ao seu encontro, de pés descalços, os clérigos, seguidos pelo povo, foram religiosamente em procissão até ao local chamado Milladoiro. quando o Bispo lá chegou, descalçou-se e ordenou que o fizessem também os que vinham com ele, e, atrás deles, os clérigos, de acordo com sua disposição, envergando as vestes sagradas e com os pés descalços, receberam os

ReIS, António Matos, 2003 – “entre Braga e Santiago de Compostela − a “villa Corneliana” (freguesia de Correlhã, concelho de Ponte de Lima) na primeira metade do século XIII” in Os Reinos Ibéricos na Idade Média: Livro de Homenagem ao Professor Doutor Humberto Carlos Baquero Moreno. Porto, vol I. SOUSA, D. António Caetano de, 1744 – Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa. Lisboa, tomo III. SUARez, M.; CAMPeLO, J., 1950 – Historia Compostellana o sea Hechos de D. Diego Gelmirez, primer arzobispo de Santiago. Santiago de Compostela.