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De Amarna aos Ramsés, Trabalhos de História

De Amarna aos Ramsés. De Amarna aos Ramsés.

Tipologia: Trabalhos

2020

Compartilhado em 07/06/2020

leotalina
leotalina 🇧🇷

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De Amarna aos Ramsés
Ciro Flamarion Cardoso (UFF)
Abstract:
This text attempts a reappraisal of a very controversial period of New Kingdom Egypt’s history, from the
Amarna age to the beginning of the Ramesside era (XIVth-XIIIth centuries BC), discussing the abundant new
research published these last years. It will be perceived that, in spite of much new knowledge, differences of
opinion are still rife, in special those concerning Akhenaton’s reign and the sense of his reforms.
Akhenaton e sua reforma constituem um dos temas preferidos em Egiptologia e, ao
mesmo tempo, talvez o que, desde o século XIX, vem despertando no pequeno mundo dos
egiptólogos (mas igualmente entre muitas pessoas que não são egiptólogos) as controvérsias
mais numerosas e também mais apaixonadas. Numa perspectiva pós-moderna, ao chegar ao
epílogo de um livro recente, cujo objetivo central é mostrar a divergência profunda existente
entre as diversas reconstituições disponíveis acerca do período amarniano e do próprio faraó
Akhenaton, o autor do mesmo “conclui que não conclusão”, recusando-se a procurar um
Akhenaton “real” que estivesse por trás das “representações sem número” dele.
(MONTSERRAT 2000, 184) Este artigo volta a uma fase tão freqüentada da História do
antigo Egito, pretendendo avaliar a abundante bibliografia a respeito que apareceu nos últimos
anos. Nossos assuntos centrais serão a reforma amarniana e sua posterior derrocada, o que
implica uma concentração do interesse na segunda metade do século XIV a.C. e no início do
século seguinte.
1. A reforma amarniana
1.1. Análise de um dos textos principais da teologia de Amarna
Começarei por traduzir e comentar o Pequeno Hino ao Aton. Dois hinos ao Aton, deus
solar alçado ao plano máximo da divindade que dividia, na concepção reformista do
período de Amarna, com seu filho e imagem terrestre, o faraó Akhenaton (1352-1336 a.C.
segundo a cronologia chamada “baixa” que se prefere na atualidade), e, por extensão, com a
família real , foram inscritos em tumbas de Akhetaton (Amarna), a efêmera capital do Egito
construída por iniciativa do mencionado monarca reformador, Amenhotep IV/Akhenaton. O
mais longo é conhecido na versão inscrita na tumba construída em Akhetaton para o grande
funcionário Ay em sua qualidade de sacerdote do “Aton vivo”. O mais curto, traduzido
abaixo, nos chegou em cinco versões que, comparadas, apresentam variações. A versão
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De Amarna aos Ramsés

Ciro Flamarion Cardoso (UFF) Abstract: This text attempts a reappraisal of a very controversial period of New Kingdom Egypt’s history, from the Amarna age to the beginning of the Ramesside era (XIVth-XIIIth centuries BC), discussing the abundant new research published these last years. It will be perceived that, in spite of much new knowledge, differences of opinion are still rife, in special those concerning Akhenaton’s reign and the sense of his reforms. Akhenaton e sua reforma constituem um dos temas preferidos em Egiptologia e, ao mesmo tempo, talvez o que, desde o século XIX, vem despertando no pequeno mundo dos egiptólogos (mas igualmente entre muitas pessoas que não são egiptólogos) as controvérsias mais numerosas e também mais apaixonadas. Numa perspectiva pós-moderna, ao chegar ao epílogo de um livro recente, cujo objetivo central é mostrar a divergência profunda existente entre as diversas reconstituições disponíveis acerca do período amarniano e do próprio faraó Akhenaton, o autor do mesmo “conclui que não há conclusão”, recusando-se a procurar um Akhenaton “real” que estivesse por trás das “representações sem número” dele. (MONTSERRAT 2000, 184) Este artigo volta a uma fase já tão freqüentada da História do antigo Egito, pretendendo avaliar a abundante bibliografia a respeito que apareceu nos últimos anos. Nossos assuntos centrais serão a reforma amarniana e sua posterior derrocada, o que implica uma concentração do interesse na segunda metade do século XIV a.C. e no início do século seguinte.

1. A reforma amarniana 1.1. Análise de um dos textos principais da teologia de Amarna Começarei por traduzir e comentar o Pequeno Hino ao Aton. Dois hinos ao Aton, deus solar alçado ao plano máximo da divindade  que só dividia, na concepção reformista do período de Amarna, com seu filho e imagem terrestre, o faraó Akhenaton (1352-1336 a.C. segundo a cronologia chamada “baixa” que se prefere na atualidade), e, por extensão, com a família real , foram inscritos em tumbas de Akhetaton (Amarna), a efêmera capital do Egito construída por iniciativa do mencionado monarca reformador, Amenhotep IV/Akhenaton. O mais longo é conhecido na versão inscrita na tumba construída em Akhetaton para o grande funcionário Ay em sua qualidade de sacerdote do “Aton vivo”. O mais curto, traduzido abaixo, nos chegou em cinco versões que, comparadas, apresentam variações. A versão

seguida aqui é a da parede leste da tumba de Apy, completada no final pela versão da tumba de Tutu. A atribuição da autoria do hino ao próprio Akhenaton parece bem fundamentada, já que a terceira coluna, integrante do título ou proêmio, deixa claro em seu início ser o próprio rei quem enuncia o texto que vem a seguir.^1 Este texto poético pode ser dividido e analisado nas partes seguintes:

1) Proêmio (colunas 1 a 6):

Adoração de Ra-Harakhty que se rejubila no horizonte, em seu nome de Shu [neste caso: luz] que está no Disco (Solar), dotado de vida eternamente, para sempre. (Dito) pelo rei que vive por meio da verdade, o Senhor das Duas Terras, Neferkheperura-Uaenra, o Filho de Ra que vive por meio da verdade, o Senhor das Coroas Akhenaton, de longa existência, dotado de vida eternamente, para sempre. Deste proêmio consta o título da composição e a declaração de ser o faraó Akhenaton aquele que enuncia o texto. Trata-se de um hino de adoração ou louvor à divindade que, aqui, aparece no que se conhece como a primeira versão do nome didático do Aton, utilizada até o oitavo ano de reinado de Akhenaton: “Ra-Harakhty que se rejubila no horizonte, em seu nome de Shu [neste caso: luz e, não, ar] que está no Disco (Solar)”. Observando-se o texto egípcio, nota-se algo sem precedentes: o nome do deus está inscrito em dois cartouches (símbolos de eternidade em princípio reservados só aos nomes dos faraós), como se se tratasse de um rei. Analogamente, “dotado de vida eternamente, para sempre”, epíteto aplicável ao rei, aqui se aplica ao deus. Quanto ao faraó, seu prenome  nome adotado quando o rei sobe ao trono  Neferkheperura (“Perfeitas são as transformações da divindade solar”) aparece acompanhado de Uaenra, “o único de Ra”. Uma passagem situada nas colunas 44- 45  “O Aton vivo (...) gera seu próprio filho, o único (filho) de Ra, à sua imagem”  mostra que tal expressão se deve entender “o único filho de Ra”. Aton, a divindade de Akhenaton, aparece, então, firmemente associado a Ra-Harakhty, a divindade solar tradicional da cidade de Heliópolis, no Baixo Egito. Quanto ao nome pessoal do rei, ele o mudou de Amenhotep (“Amon está satisfeito”) para Akhenaton (“Aquele que é útil ao disco solar”).

2) O Sol em seu ciclo diário, seus feitos e suas relações com o mundo e as

criaturas (colunas 7 a 31):

benefício, acompanhado de cantores e músicos. Como deus criador, vimos que, num sentido genérico, o Aton vivo é “pai e mãe” de todos os seres. Num sentido estrito, entretanto, Akhenaton é “o único (filho) de Ra, à sua imagem”. Um elemento interessante neste engendramento do faraó pelo Sol é que se trata de um ato reiterado, renovado diariamente cada vez que o disco solar se levanta no horizonte oriental. Sendo o coração, para os egípcios, a sede do intelecto e das emoções, quando no texto o rei afirma, em relação à divindade solar, “Tua força e teu poder permanecem em meu coração”, está dizendo com isto que ele conhece  em caráter exclusivo, como fica mais claro no Grande Hino ao Aton  aquela divindade.

4) A divindade solar criadora alegra o mundo durante o dia (colunas 52 a 66):

Tu és o Aton vivo, a eternidade é tua imagem. Tu criaste o céu distante para nele brilhares e para contemplares tudo o que criaste sozinho. Em ti (está) a vida aos milhões para fazer viver os seres: o sopro de vida dirige-se às narinas. Contemplar teus raios (é) existir. Cada flor vive, aquilo que cresce na terra é revigorado porque brilhas. (Como que) embriagados diante de tua face, todos os animais saltam sobre suas patas; os pássaros, que estavam no ninho, levantam vôo (como que) devido à alegria (e) suas asas, que estavam fechadas, abrem-se (como que) em adoração ao Aton vivo que os criou. Esta passagem final retoma a temática da parte 2 , que fora momentaneamente interrompida para a exposição da relação do Aton vivo com seu filho, o rei Akhenaton. Reafirma-se, em relação ao deus, sua eternidade e seu status de divindade criadora única, bem como o fato de que, durante o dia, os seres respiram, a vida é renovada pelo Sol e os animais se rejubilam e adoram o seu criador. 1.2. A religião amarniana Em que medida se pode considerar uma novidade a religião que estes versos expressam? Talvez convenha, pelo contrário, começar com o que, nela, não era de fato novo. A solarização não constituía novidade alguma na religião egípcia. Diz Jean Yoyotte: (YOYOTTE 1971, 16) Nos começos da civilização faraônica, o deus principal de cada cidade era, em seu território, o criador universal, o garantidor local do bom estado do cosmo, o gênio que mantinha a vida das plantas e dos animais. A ‘solarização’ geral das teologias, que se inicia por volta de 2700 a.C. e conclui aproximadamente em 1800 a.C., consagrou no pensamento nacional uma doutrina do eterno retorno. (...) A noite é a imersão do Sol envelhecido no escuro oceano primordial. Cada manhã o vê voltar rejuvenescido, não sem que o astro

tenha combatido contra as forças rebeldes que se haviam insurgido desde os primeiros tempos do mundo. Na própria XVIIIa^ dinastia, desde o avô de Akhenaton, Thotmés IV (1398-1390 a.C. na cronologia baixa), se nota, pelo exame do texto inscrito numa estela erigida junto à grande esfinge de Giza, próximo à antiga capital de Mênfis, a determinação de escapar da exclusividade adquirida por Amon-Ra de Tebas em detrimento de Ra-Harakhty como deus dinástico que designa o rei, em favor de um retorno ao velho culto solar de Heliópolis. (LALOUETTE 1986, 414-5) O próprio Aton não era uma novidade absoluta. Embora algumas das representações e textos disponíveis sejam ambíguos, talvez desde Thotmés I, na virada do século XVI para o XV a.C., já se possa notar uma associação de alguns dos faraós com o Aton, elemento religioso muito ampliado sob o pai de Akhenaton, Amenhotep III (1391-1353 a.C.). Num sentido mais geral, a adoção de um novo deus dinástico e a fundação de uma cidade em vinculação com isso tinham precedentes na história egípcia. (REDFORD 1976; REDFORD

Do ponto de vista religioso, a tentativa efêmera de reforma liderada por Akhenaton se acha no ponto de encontro  e, por fim, de choque  de duas tendências do Reino Novo que nem começaram com o faraó de Amarna, nem terminaram em sua época: aquela a uma crescente exaltação do deus dinástico Amon-Ra de Tebas; e a que levou a uma também crescente divinização do faraó reinante enquanto ainda vivo. As tentativas de maior sucesso, de parte dos reis, no sentido de promover sua própria divindade e diluir a estatura de Amon, seu templo de Karnak e seus sacerdotes, foram aquelas que não contestaram o deus tebano mas, simplesmente, multiplicaram iniciativas em paralelo ao seu culto. Assim, Amenhotep III teve gestos em favor de Aton e promoveu seu próprio culto em vida (parece ter instalado estátuas gigantescas suas no intuito de encorajar um culto à sua pessoa que fosse popular e não somente limitado à corte; seja como for, ele foi representado adorando a si mesmo, o que, aliás, tinha já alguns precedentes na dinastia). Na dinastia seguinte, Ramsés II, além de instalar e dotar cultos a si mesmo, tendeu a honrar em conjunto os três grandes deuses dinásticos tradicionais  Amon, Ra-Harakhty e Ptah , com ele próprio como quarto deus que fosse uma espécie de síntese dos outros três, além de, habitualmente em outros contextos, favorecer Seth como novo deus dinástico. Estes dois monarcas se apresentaram, outrossim, freqüentemente, como uma hipóstase do deus criador Atum-Ra e dos demais grandes deuses, incluindo o próprio Amon.

uma sexta ausência: a da possibilidade de um diálogo pessoal direto das pessoas comuns com os deuses  piedade individual que, no entanto, parece ter sido uma tendência crescente ao longo do Reino Novo. Na religião do Aton, este deus é representado pictoricamente como uma figura geométrica, como se fosse a forma expandida do hieróglifo que determina a noção do brilho solar: um disco do qual saem raios terminados em mãos que estendem bênçãos e o sinal da vida ao rei e à família real (e só a eles). É possível que este esquematismo da figura divina tenha sido algo planejado: por um lado, transferia a ênfase e a atenção para as representações pictóricas muito mais concretas do rei e de sua família; por outro, Akhenaton declarava com freqüência ser o único a de fato conhecer o seu deus, pelo qual as outras pessoas  com a possível exceção de sua família, já que sua esposa Nefertiti, em particular, aparece em posição de grande relevo na nova religião (embora só o rei conheça plenamente o Aton vivo)  poderiam aceder ao enigmático deus unicamente por mediação do rei e de seus familiares diretos.^2 Devido à sua importância na antiga civilização egípcia, merece alguma ênfase a questão acima mencionada das mudanças introduzidas na religião funerária. Vamos apresentar, a respeito, dois textos. Em primeiro lugar, eis aqui a inscrição contida na estatueta funerária ( shabti ) de um militar da época de Amarna, o ajudante-de-ordens Hat, dos carros de guerra: Uma oferenda que o rei faz ao Aton vivo, que ilumina cada terra com a sua beleza, (para que) ele dê o alento doce do vento do norte, uma permanência exaltada (lit. um tempo de vida alto) no belo Amenti e (libações de) água fresca, vinho e leite sobre o altar de oferendas de sua tumba, para o ka do ajudante-de- ordens Hat, que vive de novo (lit. que repete a vida).^3 O segundo texto encontra-se no lado exterior do pé do ataúde que se julga ter sido confeccionado para a rainha Kiya, esposa secundária de Akhenaton, mas posteriormente adaptado para o co-regente Smenkhkara. Reproduzimos uma passagem em que o morto se dirige a Akhenaton: Que eu respire o doce alento saído de tua boca, que eu contemple a tua beleza diariamente! A minha prece (é que) eu ouça a tua doce voz, semelhante ao vento do norte (lit.: do vento do norte)! Que o corpo rejuvenesça por meio da vida do teu amor!^4 Em ambos os casos, desapareceram Osíris e os outros deuses do mundo dos mortos, embora tal mundo  o Amenti  seja mencionado no primeiro texto. Neste escrito, afirma-se que o rei faz oferenda ao Aton vivo e este garante que Hat sobreviva à morte. No segundo texto, o próprio Akhenaton é que concede ao morto sua sobrevivência. Numa passagem da

linha 8 desta segunda inscrição (passagem que, no entanto, tem de ser restaurada), o defunto dirige-se ao faraó como “ó meu pai Ra-Harakhty!”  um exemplo claro do fato de que Akhenaton podia ser visto, pelo menos em determinada etapa de seu reinado, como uma hipóstase do deus solar. Não parece duvidoso, então, o que as presenças e ausências constatáveis na religião de Akhenaton estejam indicando: uma simplificação radical, deixando subsistir no centro das coisas um rei terrestre divino  via exclusiva de acesso ao seu pai, o Aton, único deus celeste, todas as divindades tradicionais sendo no mínimo ignoradas  que adora a divindade do céu e lhe presta culto, como era habitual desde o início da civilização faraônica, posto que sempre se encarou o faraó como único sacerdote por direito próprio, sendo os outros simples substitutos seus. Mas este traço presente na ortodoxia tradicional foi exagerado ao mais alto grau: o rei presta culto ao Aton (e eventualmente a si mesmo), mas os outros egípcios cultuam basicamente o rei e sua família, posto que não têm acesso direto ao deus. Templos dedicados ao Aton vivo foram construídos não somente em Tebas, no início do reinado, em Akhetaton naturalmente, como também em Mênfis, Heliópolis, Gurob e Sedeinga (na Núbia). Pode-se imaginar que muitos outros teriam sido elevados  os métodos de construção e decoração da época testemunham de uma tremenda pressa do rei (os templos de Akhetaton, por exemplo, foram feitos primeiro de tijolos, não de pedra, e só muito parcialmente reconstruídos em pedra depois) , não fosse o reinado do rei herético relativamente curto e praticamente coextensivo com a sua heresia, que na prática não lhe sobreviveu (não o fez, pelo menos, dotada de recursos e poder de decisão). Nesses templos, entretanto, a julgar pelo que se conhece de sua iconografia religiosa nos casos em que ela sobreviveu, o culto se faria, não ao Aton unicamente mas, sim, ao rei e sua família em conjunto com o Aton: e, estando este representado de modo geométrico e indecifrável, os representantes terrestres do deus supremo provavelmente se tornariam o foco principal das oferendas e da adoração. Em suma, os templos de Amarna estão dedicados a uma nova tríade divina invertida: nas tríades familiares tradicionais do Egito, do tipo da de Amon, sua esposa Mut e seu filho Khonsu, o topo está constituído por um casal e a ponta de baixo por seu filho; na versão de Amarna, a ponta está em cima e representa o Aton, pai e mãe ao mesmo tempo, enquanto na base, bem mais visível, está o casal divino terrestre Akhenaton-Nefertiti, em certos casos identificados a Shu e Tefnut, na teogonia de Heliópolis o casal divino gerado por Atum-Ra por si mesmo, sem a participação de uma consorte. Este casal, com associação de suas filhas, é o objeto mais evidente de adoração, mediante estelas, nos oratórios domésticos

eficientemente como ponto de referência usual e aceitável da realeza faraônica por mais de um milênio e meio. Modificando-se, sem dúvida, ao longo do tempo, proviam ao rei um referencial celeste (como Hórus, filho de Ra, filho carnal de Amon-Ra na XVIIIa^ dinastia, amamentado por deusas que garantiam assim a sua renovação, etc.) e ao mesmo tempo outro referencial, ctônico (o rei era Hórus que enterrava e vingava seu pai Osíris, o rei morto, substituindo-o legitimamente no trono do Egito). Tudo isto, que as modas atuais chamariam de “capital simbólico”, foi perdido com a decisão de não operar uma construção (ou reconstrução) mítica para a nova versão da religião oficial. Esta e as outras ausências devem ter sido agudamente sentidas : na própria Akhetaton, descobriram-se amuletos representando as divindades tradicionais, bem como invocações a elas (sem excluir Amon-Ra), em alojamentos habitados por pessoas do povo. A corte sem dúvida seguiu as indicações do rei e agiu de acordo com as mesmas, como se vê no que resta das capelas e tumbas privadas. Mas a facilidade e a prontidão com que se efetuou depois a volta aos padrões ordinários da instituição monárquica e a seus mitos mostra que a aceitação das inovações de Akhenaton pelos grupos dominantes havia sido bem superficial. O fato  que parece seguro  de terem ocorrido iniciativas contra os cultos tradicionais, ainda que não se possa aquilatar bem o seu alcance, conduz à questão central que sempre surge quando se avalia a reforma amarniana. Aqui também, opõem-se duas posturas extremas: a afirmação do monoteísmo de Akhenaton, em contraposição à opinião hoje predominante de tratar-se somente de um caso extremo de henoteísmo monolátrico.^5 Contra o henoteísmo, poder-se-ia invocar um texto  uma inscrição do início do reinado de Amenhotep IV, infelizmente muito mutilada  que, na opinião de Valbelle (que me parece ter razão) implica claramente a crença de Akhenaton de serem os deuses tradicionais do Egito, nas palavras da egiptóloga, “somente estátuas criadas pelos humanos e que, como elas, eles são efêmeros, diferentemente daquele (deus) que criou a si mesmo”. (VALBELLE 1998, 266; REDFORD 1984, 172-3 contém o texto egípcio) Minha própria postura, entretanto, não favorece a hipótese monoteísta. Já que o rei não renunciou à sua própria divindade, que pelo contrário exaltou, acho que estamos diante de uma dualidade divina: um deus celeste e um deus terrestre, filho e hipóstase do primeiro. (CARDOSO 1999, 62-3) 1.3. Aspectos sociais da reforma de Amarna É preciso abordar agora um dos pontos de maior controvérsia no tocante à de por si controvertida reforma de Akhenaton: o que ela significou socialmente? Na medida em que os cortesãos amarnianos repetem incansavelmente em suas inscrições funerárias que eles nada

eram e o rei os fez, quis-se enxergar, na mudança de Tebas para Akhetaton, o abandono de uma elite tradicional de funcionários, vinculada à religião oficial de Amon e à dinastia até então, mediante a criação de uma nova elite, recrutada entre escribas de status inferior e mesmo entre estrangeiros. Em outras palavras, à revolução religiosa corresponderia uma limitada revolução social “pelo topo”, sem afetar as estruturas mais básicas da sociedade egípcia. (VINOGRADOV 1991, 182-5) Não seria difícil de entender, então, que quando a nova elite e aquela mais tradicional se puseram por fim de acordo, restaurando um grupo dominante ampliado e unificado, a reforma terminasse pacificamente  ou mesmo consensualmente , logo após a morte daquele que a iniciara. Hoje em dia a tendência é, pelo contrário, a dar razão a Aldred, o qual defendeu desde 1968 a tese de que a corte de Akhetaton derivava das mesmas famílias tradicionais que a de Tebas, o que em diversos casos pode ser comprovado.^6 É possível que se tenha ido longe demais no processo de descartar qualquer renovação de quadros, porém, sobretudo no que diz respeito ao recrutamento dos numerosos sacerdotes do Aton vivo: faz sentido que o rei, além de cooptar uma parte das famílias tradicionalmente ligadas ao sacerdócio dos deuses tradicionais, neste campo específico buscasse também pessoas não vinculadas aos velhos templos. É preciso ter em mente que, no início do reinado de Tutankhamon (1 336 - 1327 a.C. de acordo com a cronologia baixa), o faraó que efetuou a volta à ortodoxia (provavelmente, já que era então ainda criança, seguindo decisões do alto funcionário Ay, que seria seu sucessor), a chamada Estela da Restauração, quando menciona a reconstituição do sacerdócio tradicional, afirme, falando do rei: ( apud LALOUETTE 1986,

Ele instalou sacerdotes de mãos puras, servidores do deus (escolhidos) entre os filhos dos Grandes de cada cidade, filhos de homens sábios ou (de homens) cujo nome fosse conhecido. Não vejo razão alguma para perceber nesta declaração algo unicamente retórico. E, no final da inscrição relativa à coroação de Horemheb (em 1332 a.C. segundo a cronologia convencional, em 1323 segundo a cronologia baixa), um general que se tornou faraó, lemos também que tratou de prover os santuários “de sacerdotes uab e de sacerdotes-leitores (escolhidos) dentre a elite do exército”. ( apud VALBELLE 1998, 282) Neste caso, vemos um líder militar buscar entre os seus fiéis mais seguros o pessoal sacerdotal (mas recorde-se que “a elite do exército” era recrutada no seio das famílias tradicionais, ao contrário dos soldados profissionais rasos, remunerados com parcelas pequenas ou médias de terra). O próprio

descartar como pura retórica afirmações de documentos imediatamente posteriores. Por exemplo, na Estela da Restauração se afirma, sem mencionar Akhenaton mas falando do período imediatamente anterior à entronização de Tutankhamon, portanto da fase de Amarna, que quando um exército era, então, enviado a algum ponto da Ásia ocidental para ampliar as fronteiras do Egito, “não obtinha qualquer êxito”. ( apud LALOUETTE 1986, 550) 1.4. Uma nova arte? Nesta análise sumária das reformas de Ahhenaton, resta-nos abordar o que foi o seu aspecto mais durável no sentido de influir visivelmente na época imediatamente posterior, até bem entrada a XIXa^ dinastia: as modificações introduzidas na arte. Com efeito, se alguma influência dos escritos religiosos de Amarna aparece nas décadas seguintes, em filigrana, perceptível em certos aspectos do fraseado de textos de orientação teológica bem diferente, a arte raméssida inicial mostra maior e mais evidente continuidade com o estilo da parte final do período amarniano; e, não, ruptura em relação a ele. O mesmo não se pode afirmar, obviamente, a respeito do repertório das figuras e cenas representadas. Este é outro ponto sobre o qual se exagerou muito no passado, ao se falar num abandono da arte canônica tradicional e, mesmo, em “realismo”. Aqui também, como em tantos outros aspectos, as transformações constatáveis tinham precedentes em reinados anteriores da mesma dinastia. Para começar, não houve abandono do modo tradicional de representação no concernente aos seus princípios básicos. Quando muito, um relaxamento de certas regras; aliás, perceptível só em algumas realizações minoritárias, nas quais se notam relações novas com a construção do espaço. Assim, as mãos e os pés das pessoas da família real são por vezes representados de um modo que se aproxima dos princípios da perspectiva, técnica com a qual se experimentou, como se nota também em algumas outras cenas (ver a Figura 1 ). Ao se representar a intimidade da família real, ocorre em algumas ocasiões uma construção circular do espaço  novidade que enfatiza os vínculos entre as pessoas representadas (outra coisa nova na arte egípcia) e, em conjunto com as formas arredondadas preferidas pelos artistas amarnianos, faz um contraste evidente com a retidão dos raios que partem do disco solar (ver a Figura 2 ).

Figura 1: A mão do rei num fragmento de relevo amarniano Neste fragmento de relevo, que mostra a mão do faraó Akhenaton fazendo oferenda de um ramo de oliveira carregado de azeitonas  o qual se inclina devido ao peso das frutas  ao Aton, note-se o contraste entre: a mão do rei, representada em forma nova tanto em si mesma quanto em sua relação com o ramo (uma forma próxima das regras da perspectiva); e as mãos que terminam os raios solares, representadas na forma tradicional da arte egípcia anterior. Referência: ALDRED, Cyril. Egyptian art. London: Thames and Hudson, 1980, p. 177. Figura 2: A família real sob os raios do deus Aton Nesta representação de Akhenaton, Nefertiti e três de suas filhas sob os raios do Aton, a construção circular do espaço, estranha à arte egípcia tradicional, relaciona as figuras umas com as outras. Referência: DAVIS, Whitney. The canonical tradition in ancient Egyptian art. Cambridge-New York: Cambridge University Press, 1989, p. 32.

Akhenaton e marido de uma das filhas deste, Ankhesenamon (sendo este seu nome, derivado de Amon, posterior à volta à ortodoxia). Ay era um antigo funcionário e militar a serviço da dinastia, possivelmente pai da rainha Nefertiti; e o general Horemheb, ao tornar-se rei (1323- 1295 a.C. segundo a cronologia curta), casou-se com uma filha de Ay  embora isto tenha sido, ultimamente, posto em dúvida. (VAN DIJK 2000, 293-4) Assim, embora indiretamente, Ay e Horemheb vincularam-se à XVIIIa^ dinastia. O último, sem filhos, adotou como herdeiro um plebeu, Ramsés, casado com mulher igualmente plebéia: teve então início a XIXa^ dinastia, (a qual, em conjunto com a XXa^ dinastia, integra a Era Raméssida). Os documentos mais marcantes do reinado de Horemheb são: aqueles relativos à sua escolha divina para o trono; e o seu decreto de reforma. Num primeiro texto, inscrito no templo de Montu em Karnak, significativamente, o conjunto dos deuses é que ordenou sua ascensão como monarca, decisão que foi “ouvida” e levada a cabo em Karnak, com o efeito de que Amon-Ra proclamasse, dirigindo-se ao novo rei: “Tu és meu filho, que eu estabeleci sobre meu trono”. Assim, o papel de Amon na designação do faraó foi diminuído, por mais que Horemheb, em seu reinado, demolisse os templos ao Aton construídos em Karnak no início do governo de Amenhotep IV/Akhenaton, usando as suas pedras como recheio de um novo pilono, parte dos grandes trabalhos que empreendeu em favor do santuário tebano de Amon. Outro escrito, no pilar dorsal de uma estátua representando Horemheb e sua esposa Mutnedjmet, confirma esta disposição a honrar Amon, tirando-lhe ao mesmo tempo o papel único que havia sido o seu no passado ao tratar-se da legitimação da sucessão real: Horemheb, cujo nome significava “Hórus está em (seu) festival”, declara que o deus Hórus da cidade de Hutnesut fora seu protetor ou guardião desde seu nascimento; e invoca, além de Amon e do próprio Hórus tornado protagonista, Thot, Ra e Ptah, entre outros deuses. Nesse mesmo texto, Horemheb dá a entender que o que agora se fazia era simplesmente oficializar um estado de coisas já antigo, posto que ele anteriormente estava, de facto , “à frente das Duas Terras”. ( apud LALOUETTE 1986, 574-77) Esta afirmação é coerente com o fato de ter decidido incorporar ao seu próprio reinado os períodos no trono de todos os reis posteriores a Amenhotep III, além de ter usurpado sistematicamente os monumentos de Tutankhamon e de Ay. O Decreto da Reforma de Horemheb, inscrito numa grande estela achada em Karnak, chegou-nos com lacunas. Parece indicar que o processo de centralização ocorrido no reinado de Akhenaton, devido à dificuldade de fiscalizar os muito numerosos funcionários do poder central, bem como à marginalizacão dos poderes locais, havia provocado grande quantidade de abusos, não remediados nos primeiros tempos da volta à ortodoxia e às estruturas habituais

da monarquia divina. Agindo como “aquele que combate de acordo com Maat”, a qual “veio e se uniu a ele”, Horemheb enumera exações, requisições abusivas, desvios de impostos, abusos de autoridade, corrupção de funcionários, e trata de dar-lhes solução, incluindo suas medidas castigos severos ou mesmo a pena de morte, ao que parece com uma atenção especial a cada “cidade” que funcionasse como centro de poderes provinciais e locais. Anuncia a manutenção do costume tradicional  representado iconograficamente na arte de Amarna  de que o rei presenteie militares e funcionários atirando-lhes ricos presentes da “janela das aparições”, além de garantir-lhes rações três vezes por mês. (Texto in LALOUETTE 1984, 81-4) O reinado de Horemheb é claramente de transição no quadro da monarquia egípcia: apresenta traços típicos da XVIIIa^ dinastia mas, em outros pontos, prenuncia a dinastia seguinte. Por exemplo, sua tumba do Vale dos Reis inaugurou tendências seguidas durante toda a Era Raméssida: muito mais profunda do que as do passado (seu hipogeu tem mais de cem metros de comprimento), está decorada em relevo e não só pintada como antes se fazia (num estilo misto que tanto lembra a época de Amenhotep III quanto a de Amarna), além de abandonar tal decoração os motivos usuais no passado para inaugurar nova modalidade, o chamado Livro dos Portais. (VANDERSLEYEN 1995, 486-7; HORNUNG 1999.b, 55) E, mais ainda do que já ocorria sob reis como Amenhotep III ou Tutankhamon, residiu em Mênfis, indo a Tebas só ocasionalmente, um padrão que a dinastia seguinte, originária do norte, prolongou e estendeu mediante a inauguração de nova cidade régia, Per-Ramsés. Com Ramsés I, um ex-militar e ex-vizir que ficou menos de dois anos no poder, começou a XIXa^ dinastia. Comparada com a anterior, apresenta  como toda a Era Raméssida (que compreende também a XXa^ dinastia e estende-se de 1295 até 1069 a.C. segundo a cronologia baixa)  alguns pontos comuns, como a busca do prestígio monárquico por meio da atividade militar e da ereção de monumentos às vezes gigantescos, a tendência crescente à divinização do soberano, incluindo o culto do rei em vida, a presença e visibilidade também crescentes do elemento militar (também desta vez, como no caso de Horemheb, um militar é que fora alçado ao poder). Notam-se, entretanto, diferenças consideráveis. A nova dinastia que inaugurou a Era Raméssida carecia de conexões com a família real anterior. Formulava-se, deste modo, uma necessidade de legitimação à qual deram-se respostas originais em comparação com aquelas tentadas no passado: forte afirmação dos laços familiares no tocante às relações entre pais e filhos (as Grandes Esposas Reais, pelo contrário, perderam, no conjunto, estatura, ritual e politicamente, mesmo sendo muito honradas por seus maridos em certos casos), sendo os

que já mencionamos, iniciadas sob a XVIIIa^ dinastia, as quais, com a retomada da ortodoxia após a reforma amarniana, longe de desaparecer, estavam bem presentes: a que afirmava a primazia do deus dinástico Amon-Ra de Tebas; e a que conduzia à divinização e ao culto em vida do faraó. A XIXa^ dinastia apresenta indícios de grande religiosidade, dentro de parâmetros voluntariamente tradicionais, ou de tendências interrompidas pela reforma de Akhenaton mas que se manifestavam há bastante tempo, por exemplo, a solarização da religião funerária que confluía com seu aspecto osiriano. A decoração das tumbas reais raméssidas vai nesse sentido. As tumbas dos particulares, de seu lado, abandonaram as cenas da vida quotidiana (populares no passado) em favor de representações de deuses, do culto templário ou de ritos funerários. Os monarcas multiplicaram as construções de templos a Amon-Ra mas, também, a inúmeras divindades, com ênfase para os outros deuses dinásticos tradicionais  Ra-Harakhty e Ptah , aos quais agora veio somar-se Seth, o patrono da família reinante (provavelmente oriunda da região de Avaris). Fizeram-no, no entanto, associando sua própria pessoa à dos grandes deuses em forma sistemática. Segundo Leonard Lesko, a contradição  representada por textos narrativos extremamente desrespeitosos aos grandes deuses, retratados cheios de taras e limitações (por exemplo na narrativa da Destruição da humanidade e no conto, talvez peça de teatro, As contendas de Hórus e Seth )  explicar-se-ia por uma iniciativa literária favorecida pelos reis no sentido de, pelo rebaixamento dos deuses tradicionais (sendo interessante que se poupou Amon-Ra), ressaltar por contraste a divindade do próprio monarca. (LESKO 1991, 109-111; LESKO 1986) Ramsés I, em seu curto reinado, decidira construir o que veio a ser a grande sala hipóstila do templo de Amon em Karnak. Tal projeto foi levado a cabo nos reinados seguintes, de Séty I e Ramsés II, respectivamente seu filho e seu neto. Séty I (1305-1290 a.C. na cronologia convencional, 1294-1279 a.C. na cronologia baixa preferida atualmente), tendo seu pai reinado por tão pouco tempo  menos de dois anos , viu em si mesmo um fundador de dinastia, iniciador de uma nova era, ao assumir o título de “Repetidor de nascimentos”. (DAVID e DAVID 1992, 135) Desde o início do reinado, procurou legitimar-se, e à nova dinastia, mediante uma política externa agressiva e grandes construções. Um dos indícios de que, ao contrário do que está na moda atualmente afirmar, o Egito perdera posições na Ásia ocidental sob Akhenaton e seus sucessores imediatos é que, apesar das campanhas vitoriosas de Séty I, Amurru e a Síria continuaram perdidos para os egípcios. O novo faraó interrompeu uma campanha asiática para enfrentar uma invasão de líbios 

outra prova de ter ocorrido um declínio na política externa, pois havia séculos tal ameaça não se fazia sentir , voltou a guerrear na Ásia e também levou suas tropas à Núbia. No caso das campanhas asiáticas, muitas vezes é difícil ter certeza acerca das localidades indicadas pelos topônimos tal como aparecem transcritos no texto egípcio. Não nos interessa, aqui, o detalhe das atividades militares do rei. Na Ásia, suas campanhas terminaram com um acordo entre egípcios e hititas: Kadesh e Amurru, momentaneamente tomados, foram perdidos, mas os hititas reconheceram os interesses egípcios na Palestina e na costa que mais tarde viria a ser a Fenícia. (VANDERSLEYEN 1995, 498-504; KITCHEN 1982, 20-36) Interessa-nos, porém, constatar que, em seus monumentos comemorativos, como por exemplo a estela erigida em Beth Shan, Séty I usou a retórica e o tom dos grandes faraós guerreiros da dinastia anterior, como Thotmés III. Eis aqui duas passagens do documento em questão (a numeração remete às linhas do original):

[10] Vieram relatar a Sua Majestade  que ele viva, prospere e tenha

saúde!  que os Hapiru da montanha de Yarmutu, juntamente com os (da tribo

de) Tyr[11]qaiaru (Tayaru?), se haviam sublevado e atacado (lit. penetrado) os

asiáticos de Ruhma. Disse [12] Sua Majestade:  O que estes asiáticos vis acham

que são? (lit.  Eles são como o quê, entre eles, estes asiáticos vis?) (...) [16] (...)

Então Sua Majestade  que ele viva, prospere e tenha saúde!  ordenou que

numerosos homens de seu [17] exército e de seus carros de guerra  uma

multidão (deles)  recebessem a ordem de virar o seu rosto na direção do país

estrangeiro de Djahy. Aconteceu, após o espaço de dois dias, [18] que eles voltaram em paz do país estrangeiro de Yarmutu, carregados de tributos (...) e prisioneiros (lit. massacrados vivos).^7 Já na escolha de seu nome como Rei do Alto e Baixo Egito, Menmaatra (“A Verdade- justiça do Sol permanece”), nota-se a intenção que tinha Séty I de associar-se ao maior construtor da XVIIIa^ dinastia, Amenhotep III (Nebmaatra), e ao seu maior guerreiro, Thotmés III (Menkheperra). Ao seu nome pessoal somou o epíteto Merenptah (Amado de Ptah); e, com freqüência, chamou a si mesmo de “Herdeiro de Ra”, “Imagem de Ra”. Assim, ao mesmo tempo que construía para Amon a imensa sala hipóstila de Karnak (em cujos muros externos representou suas campanhas asiáticas), terminada por seu filho, bem como levava a cabo obras numerosas em Tebas ocidental, indicava mediante as menções a Ptah e a Ra  além de ser seu nome pessoal, Séty, uma alusão ao Seth de Avaris  sua clara preferência pelo Delta. Residiu habitualmente em Mênfis e começou a construir uma residência real em Avaris, primeiro núcleo da cidade de Per-Ramsés, que seu filho Ramsés II iria fundar. Também construiu em Abydos (para si e para seu pai Ramsés I), em Mênfis e em Heliópolis. Sua tumba do Vale dos Reis é a mais magnificamente decorada de todas. Suas “mansões de