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Este texto discute a justiça restaurativa, um movimento que busca resolver conflitos de forma restituiva e transformadora, em vez de punitiva. O autor destaca a importância de entendermos os princípios fundamentais dessa abordagem, como a conscientização crítica, a transformação institucional e social, e a importância da vítima no processo. Além disso, ele enfatiza a necessidade de se aproximar dessa abordagem com a perspectiva de uma cultura de paz, de responsabilidade e convivência.
Tipologia: Notas de aula
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Egberto de Almeida Penido – Juiz Titular da 1a. Vara Especial da Infância e Juventude da Capital/SP; Juiz membro da Coordenadoria do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, responsável pela área da Justiça Restaurativa. Juiz Coordenador do Núcleo de Estudos de Justiça Restaurativa da Escola Paulista da Magistratura.
Numa passagem do filme “Quem somos nós?”^1 narra-se a seguinte história: quando as caravelas de Cristóvão Colombo se aproximaram das ilhas caribenhas os integrantes das comunidades nativas não foram capazes de enxerga-las, pois elas não eram parecidas com nada que tivessem visto antes, inexistindo em seus cérebros até aquele momento a “experiência de que os navios existiam”. Consta, que um xamã percebeu as ondulações provocadas pela flutuação das embarcações nas águas do mar e ao buscar entender a causa delas conseguiu ver as naus e passou a contar aos demais. Estes, aos poucos, confiando no que dizia, foram desvelando o “véu da cegueira” e acabaram também visualizando-as.
Para além da controvérsia que envolve este relato^2 ; seja pelos processos químicos e físicos de funcionamento de nossos cérebros; seja pelo aspecto emocional “do medo”, que muitas vezes “nos turva a visão” ao entrar em contato com “o novo” e/ou com “o diferente”, o que esta passagem aponta e cada vez mais diversas ciências demonstram é que criamos nossa realidade (como é dito no mencionado filme em passagem diversa: “Sempre perseguimos algo refletido no espelho da memória. Se estamos ou não vivendo em um grande mundo virtual, é uma pergunta sem uma boa resposta; é uma grande questão filosófica. E temos que lidar com ele conforme o que a ciência diz do nosso mundo.”).
E se assim é, ao criamos nossa realidade e ao mesmo tempo sermos influenciado por ela, nossas ações serão pautadas de acordo com as percepções condicionadas por elas – condicionamento este formatado de acordo com nossas crenças; de acordo com o que a ciência de nossa época “nos diz”. De modo bastante simplificado, pode-se exemplificar da seguinte forma: se entendemos que “é de pequenininho que se torce o pepino”; ou “que pau que nasce torto morre torto”, nos comportaremos em conformidade com estas crenças. Importa perceber que somos seres relacionais vivos, inseridos dentro de uma cultura que é determinada por visões de mundo construídas socialmente, que muitas vezes nos distanciam de valores fundamentais para a convivência conosco mesmo, com o outro e com a ambiência em que estamos inseridos. E assim procedendo, talvez, aumentemos a probabilidade de não ficarmos estagnados e cegos; vagando pelo mundo como mortos em vida; apegados e
(^1) What The Bleep do we Know!?”, de William Arntz, EUA, 2004 (^2) Questiona-se a inexistência de registro histórico deste relato. Uma outra versão aponta que nesta passagem
estaria sendo feita referencia ao descrito na série “Cosmos” do astrônomo norte-americano Carl Sagan (“episódio 13”) onde é descrita uma tradição oral, referente a forma que os “Tlingit” encontraram a expedição de “La Pérouse” nos anos 1780. “O povo Tlingit teve medo no início de olhar diretamente os navios, porque imaginavam que a nave e suas velas fossem manifestações do "Corvo", o qual poderia transformá-los em pedra. Um dos membros da tribo, um velho quase cego, teria decidido pegar uma canoa e remar até perto, e finalmente teria compreendido as embarcações e suas tripulações como elas eram. – in Wikipédia; http://pt.wikipedia.org/wiki/What_the_Bleep_Do_We_Know!%3F, acesso em 10 de abril de 2015.
cristalizados em crenças tidas como imutáveis (muitas delas construídas em contextos culturais e históricos diversos e que não existem mais; ou foram firmadas de modo equivocado) que não se mostram eficazes em tornar este mundo melhor ou mais maravilhoso, e acabam, em última instância, retroalimentando um circuito de violência e dominação – calcado no poder sobre o outro e não com o outro - que nos mantem presos e cumplices, ainda que de modo inconsciente, a ele.
É no mínimo recomendável que permanentemente, com humildade, revisitemos nossas crenças; nossa visões de mundo, refletindo como estamos respondendo a tudo que nos afeta no mundo; quais necessidades nossas ou dos outros estas crenças e ações atendem; e quais elas criam. Ter presente, como já dito, que a maneira como nos relacionamos uns com os outros e com a natureza depende de nossos conceitos sobre a natureza e a vida. E como consta na antológica citação do Ato constitutivo da Unesco: “se as guerras nascem na mente dos homens, é na mente dos homens que devem ser erguidas as defesas da paz”.
Diversas tradições espirituais apontam na mesma direção, como vemos, por exemplo, no Dhammapada: “ Nós somos o que pensamos, e o que nós somos depende do estado de nosso espirito, do estado de nossa consciência. Nossos pensamentos fazem o mundo no qual vivemos; aquele que fala e age com um espirito doentio, o sofrimento o segue como a roda segue o casco do boi que puxa a carroça ”.^3
Do mesmo modo a nossa visão daquilo que entendemos como Justiça e o modo de implementa-la não está imune a tal condicionamento.
A influencia cultural sobre o nosso entendimento sobre o que Justiça é referida com muita sensibilidade por Robert Solomon: “Nosso conhecimento de Justiça começa com a experiência do nosso lugar no mundo. Nosso senso de justiça é antes de tudo a nossa resposta emocional para o mundo que nem sempre correspondente às nossas necessidades e expectativas. Nosso senso de justiça, em outras palavras, tem suas origens em emoções tais como ressentimento, inveja, indignação, vingança, como também com o que você se importa e, sobretudo com a compaixão_._ ” 4 Não por outro motivo, um dos principais livros sobre a Justiça Restaurativa tem o sugestivo título: “Trocando as lentes”^5. Seu magistral autor (Howard Zehr) nos aponta o caminho: trocar as lentes através dais quais nossos olhos “enxergam” a realidade; perceber outras perspectivas; formular novas perguntas; reconhecer novas respostas e agir de acordo com elas, de modo transformado e sempre refletindo.
Se assim é, para além da técnica de resolução e transformação de conflito que venha a ser adotada, devemos nos debruçar com mais vagar sobre o contexto cultural dentro do qual aquilo que entendemos como “Justiça” é definida e materializada no dia-a-dia, olhando para nós mesmo e para a ambiência onde estamos inseridos, para que as ações que visam a sua implementação tenham uma probabilidade maior de se tornarem efetivas e não serem cooptadas por sistemas institucionais que não estejam em sintonia com seus princípios. Como nos alerta o próprio Howard Zehr: “Como toda tentativa de mudança, a Justiça Restaurativa muitas vezes se desencaminhou no curso de seu desenvolvimento e disseminação. Na presença de cada vez mais programas que se intitulam ‘ Justiça Restaurativa´, não raro o
(^3) “O Dhammapada , Darmapada ou Caminho do Dharma (em páli: Dhammapada ; em sânscrito: Dharmapada ) é
um escrito budista tradicionalmente considerado como tendo sido composto pelo próprio Buda. Está contido no cânon páli Teravada. É o mais conhecido e traduzido texto budista. Compõe-se de máximas em forma de versos agrupados em 423 estrofes. Apesar de sua popularidade, seus méritos literários são motivo de polêmica” - Wikipedia - http://pt.wikipedia.org/wiki/Dhammapada, acesso em 10 de abril de 2015. (^4) Solomon, Robert C.; in “A Passion for Justice”; Rowman & Littlefield, 1995; EUA. (^5) Zehr, Roward. “Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça restaurativa. São Paulo. Ed. Palas
Athena. 2008.
procedimentos pontuais de resolução de conflitos, então não basta “a escola” realizar práticas restaurativas ou realizar apenas procedimentos de resolução de conflito por metodologias restaurativas, se ela (“escola”) não olhar para o seu projeto pedagógico; para o seu “Regimento Interno”; para a dinâmica de aula; se não refletir sobre o que, porventura, vinha até então fazendo para tornar efetiva uma “Cultura de Paz” na comunidade escolar. Enfim, promover uma série de reflexões e realizar um feixe de ações complementares concomitantes que “joguem luz” na ambiência institucional onde a situação danosa ocorreu e efetivem ações de transformação da mesma. Se de fato a intenção é ir a fundo e tornar efetiva a transformação das causas de violência, tornando a “escola” numa ambiência de “Justiça”, tais ações complementares devem necessariamente ser realizadas quando da implementação dos projetos de Justiça Restaurativa.
No outro eixo “de sua missão”, a “Cultura de Paz” busca ser propositiva na lida com o conflito e nas respostas às situações de violência, promovendo o diálogo, eventualmente o consenso, a comunicação não violência etc. Entendendo que o conflito – como diversos especialistas da psicologia, pedagogia, sociologia, antropologia e do Direito vem propagando
De fato, a desconstrução do modus operandi punitivo na lida com situações de conflito e violência é uma tarefa hercúlea pois na sociedade em que estamos inseridos atualmente prepondera uma “Cultura” que se pode chamar de “Guerra” ou do “Medo”; calcada em crenças como: que “a violência é inevitável”; “há algo de errado com o ser humano”; “sem castigo e punição não haverá respeito à ordem”; “existem pessoas boas e más”; “os maus merecem ser punidos” etc. Não aprendemos cuidar das necessidades que precisam ser cuidadas de outra forma que não seja através do castigo; da ameaça; do constrangimento; e da vergonha. Desde pequenininho em muitas família, em muitas escolas, na forma de comunicação de muitas mídias e em exemplos de muitos governantes, a noção de Justiça transmitida acaba sendo associada à retaliação; a resposta ao “mal feito” acaba por se basear na culpa e, quase que invariavelmente, imputando a responsabilidade no outro ou em algo externo. E desta forma vamos sendo formado; e agora que estamos crescidos reproduzimos o que aprendemos. Como romper este ciclo?.
Como transitar para a uma Cultura de Paz? Como ancorar uma cultura que se funda em assertivas como: “que a violência é evitável”; “que é possível lidar com a violência sem violência”; “que a paz se aprender” entre tantas outras. Assertivas e crenças que vem sendo respaldas cada vez mais por diversas ciências como se vê na “Declaração de Sevilha sobre a violência”, oriunda do evento promovido pela Unesco, em 1986, em Sevilha, onde diversos cientistas, de diferentes disciplinas, concluíram: “ É cientificamente incorreto dizer que a guerra, ou qualquer outro comportamento violento, é geneticamente programado na natureza humana.”
(^8) “Na nossa vida quotidiana, as coisas são o que elas são; é a maneira com que as vemos que faz com que
sejamos felizes ou infelizes. Do mesmo modo, as pessoas são o que são, é a maneira com que as vemos que faz com que sejamos felizes ou infelizes. Do mesmo modo, as pessoas são o que elas são, é a maneira cm que nós as olhamos que nos causa sofrimento ou, pelo contrário, provoca uma melhora, uma transformação” – “A montanha no oceano” – Leloup, Jean-Yves; Editora Vozes; Petrópoles/RJ, 2002; p. 58.
Como visto, dois aspectos são fundamentais para que haja uma efetiva implementação de uma “Cultura da Paz” por meio da Justiça Restaurativa, além do aprendizado da técnica de resolução de conflitos: o interno (a conscientização crítica sobre nossas crenças e nossa forma de estar no mundo e se relacionar) e o externo (a transformações nas dinâmicas institucionais e sociais já referidas).
E é nesta transição de uma “Cultura de Medo” para uma “Cultura de Paz” que a Justiça vem se expandindo e firmando sua identidade desde do final da década de 1960.
Oportuno as observações de Marcos Rolim sobre este contexto que gestou a retomada de práticas restaurativas em décadas recentes em nossa sociedade, pontuando, ao trazer os entendimento de Howard Zehr, o desafio desta transição diante do contexto cultural:
“(...) reconhece-se que as práticas restaurativas são muitos antigas e estão alicerçadas nas tradições de muitos povos no oriente e no ocidente. Princípios restaurativos teriam mesmo caracterizado os procedimentos de justiça comunitária na maior parte da história dos povos do mundo. Essas tradições foram sobrepujadas pelo modelo dominante de Justiça Criminal tal como o conhecemos hoje em praticamente todas as nações modernas o que torna especialmente difícil imaginar a transposição de seu paradigma. De fato a ideia de Justiça Criminal como o equivalente de “punição” parece já assentada no senso comum o que é o mesmo que reconhecer que ela tornou cultura. Zehr (1990) descreve o problema afirmando que: ‘ É muito difícil compreender o paradigma que consideramos tão natural, tão lógico, tem, de fato, governado nosso entendimento sobre o crime e justiça por apenas alguns poucos séculos. Nós não fizemos sempre da mesma forma e, ao invés desse modelo, as práticas de Justiça Comunitária acompanharam a maior parte de nossa história. Por todo esse tempo, técnicas não-judiciais e forma não-legais de resolução de conflitos foram amplamente empregadas. As pessoas, tradicionalmente, eram muito relutantes em apelar para o Estado, mesmo quando o Estado pretendia intervir. De fato, quem apelasse ao Estado para a persecução penal poderia ser estigmatizado por isso. Por séculos, a intervenção do Estado na área de persecução criminal foi mínima. Ato contínuo, era considerado um dever das comunidades resolver suas próprias disputas internas ’. Todo este largo período da história da civilização aparece para a noção de direito como que subsumido pela extensão das práticas de vingança pessoal e pela imposição de medidas violentas e arbitrárias. Por certo, poderemos selecionar um conjunto de práticas com essas características e concluir que as tradições que antecedem o direito penal moderno foram, tão somente, um sinônimo para a vontade do mais forte. O que os autores como Zehr pretendem demonstrar é que conclusões do tipo desconsideram a concomitância de outras práticas pelas quais valores importantes e não- violentos foram afirmados.^9
E em outra passagem:
“Qualquer que seja o olhar sobre o funcionamento do Sistema de Justiça Criminal em todo o mundo haverá de recolher, pelo menos, dúvidas muito consistentes a respeito de sua eficácia. Pode-se, com razão, argumentar que a experiência concreta realizada com a justiça criminal na modernidade está marcada por um conjunto de promessas não cumpridas que vão desde a alegada função dissuasória ou intimidatória das penas até a perspectiva de ressocialização.
(^9) Rolim, Marcos; Scuro Neto; Pedro; De Vitto, Renato Campos Pinto; e Pinto, Renato Sócrates Gomes; Justiça
Restaurativa- um caminho para os Direitos Humanos? Textos para debates; p. 10; Ed. IAJ – Instituto de Acesso à Justiça; Porto Alegre.
autor do ato, seus apoios, a comunidade em geral e a vítima se encontram voluntariamente, por meio de práticas restaurativas dialógicas^12 , investigando – sempre com o olhar ampliado para a corresponsabilidade - seus sentimentos e necessidades, as causas que geram a situação e como lidar com as consequências delas, inclusive como evitar nova recidiva, elaborando um plano de ação ao final.
Importante ressaltar que não se visa “qualificar melhor” a “culpa” do autor do ato – lamentável equivoco que diversas práticas vem incorrendo -, mas “qualificar melhor” o entendimento do ocorrido, as corresponsabilidades e a resposta coletiva e institucional ao mal feito, de modo ativo e participativo, baseado no diálogo. Neste sentido, a Justiça Restaurativa não se confunde com a mediação vítima-ofensor (sem deixar de reconhecer e legitimar o valor de tal prática), indo em muito além.
Para tanto, é necessário estabelecer fluxos e procedimentos em sintonia com a técnica desenvolvida que dê conta das três dimensões do conflito acima expostas; bem como espaços apropriados para tanto, estruturados ou ajustados para a particularidade de sua potencia transformadora. Se insistirmos – por questões racionais das mais diversas ordem – em inserir à força a Justiça Restaurativa em espaço estruturados apenas para a conciliação e/ou mediação, seria o mesmo que realizar um bonsai mal feito da Justiça Restaurativa, atrofiando e desvirtuando seus princípios e comprometendo a sua grandiosidade, ou seja: encarcerando ou desfigurando sua alma.
Na dimensão institucional se busca cuidar daqueles aspectos culturais que são mantidos e reproduzidos por nossas instituições como pontuado com ênfase nos parágrafos anteriores. Objetiva-se que cada instituição não seja mera hospedeira de práticas restaurativas, mas que a própria instituição rume em direção a uma instituição restaurativa e crie no seu espaço ambiências de Justiça. Para isso é necessário um conjunto de ações complementares que promovam a reestruturação destas instituições. É necessário que as formações foquem os desafios destas mudanças e preparem as pessoas que assim se disponibilizem a terem a competência para tanto.
Quanto à dimensão social, se busca envolver outras instituições públicas e privadas, para além do Poder Judiciário, numa visão interdisciplinar e sistêmica, para que na lida com
desafios de “tempo”, e de deslocamento são também imensuráveis, havendo grandes avanços tecnológicos que devem ser considerados como ferramentas nas formações. Além disso, tem-se a urgência de se dar respostas em curto tempo, diante da gravidade destas situações. Contudo, ceder a este contexto (realizando formações à distancia, de poucas horas, sem supervisão etc) sem cuidar da qualidade da formação será mais uma vez promover práticas desqualificadas por meio de formações “fast food”, que só se prestam para atenderem demandas politicas institucionais e banalizarem o termo Justiça Restaurativa; ou, pior, desvirtuarem seus princípios e suas finalidades. Não há dúvida que temos que olhar de frente os desafios de tempo, bem como as possibilidades tecnológicas; mas ao mesmo tempo cuidar para manter a qualidade. Muitas vezes as respostas para estes desafios não são fáceis e demoram a serem construídas. A tendência, então, é rapidamente abrir mão da qualidade e lançar mão daquilo que já conhecemos, numa manifesta concessão à lógica “do Sistema”. Em São Paulo, com muito custo, temos buscado lidar com esta situação, havendo acertos e erros, sendo que não temos resposta para tudo. Atualmente se tem desenvolvido uma formação elaborada de modo estruturado pela especialista Monica Mumme, por meio de metodologia que sistematizou denominada “Polos Irradiadores”. Busca-se criar uma sensibilização básica para gestores (representantes do Sistema de Justiça e outras instituições), a fim de que entendam os conceitos básicos da Justiça Restaurativa e seus desafios, elaboram um projeto básico de implementação em suas instituições e identifiquem os possíveis facilitadores. Em seguida se realiza um curso para facilitadores (podem uma parte ser ministrada à distancia e outra presencial). Estabelece-se uma dinâmica de supervisão das práticas que vão sendo implementadas em diversas instituições (com fluxos entre si) e, por fim, se faz um curso de multiplicadores de Justiça Restaurativa. (^12) Em São Paulo se tem utilizado a metodologia dos processos circulares desenvolvida por Kay Pranis, bem
explicada no seu livro “Processos Circulares”, ed. Palas Athena, São Paulo, 2010.
as situações de violência, para além de uma lógica de encaminhamento, se possa cuidar dos aspectos diversos que levam à tais situações.^13
Para a implementação da Justiça Restaurativa em suas dimensões relacionais, institucionais e sociais – a fim de efetivamente dar conta da transformação cultural produtora de violência – a metodologia de “Polos Irradiadores” de Justiça Restaurativa tem sido um dos caminhos eficazes para desenvolver uma expansão sustentável da Justiça Restaurativa. Em verdade, trata-se de uma metodologia de implementação de politicas públicas de Justiça Restaurativa.
Por meio dos Polos Irradiadores, são criados espaços qualificados para além dos ambientes forenses (mas também nestes), com fluxos e procedimentos interinstitucionais, envolvendo instituições diversas, a sociedade e a própria comunidade. A implementação e o acompanhamento destes fluxos – sempre com a participação do Poder Judiciário – se faz por meio de grupos gestores locais e regionais.^14
Vemos assim que a Justiça Restaurativa promove a materialização do valor Justiça por meio de uma diversidade de ações e contextos, que extrapolam as ambiência dos fórum.
Esta questão também deve ser vista com cuidado e coragem, pois se discute muito se a Justiça Restaurativa deve estar apenas na ambiência do Poder Judiciário ou se ela está também nas demais instituições e na comunidade. De modo singelo, pode-se dizer que há aqueles que advogam que ela deve estar apenas na ambiência forense (nos demais lugares haveria práticas restaurativas), sob pena de não ser respeitado o Estado Democrático de Direito (o devido processo legal),com suas garantias processuais tão arduamente conquistadas; havendo, inclusive, o risco de ocorrerem sérias violações de direitos; e, até mesmo, dinâmicas que impõe a “ditatura da maioria” e o controle moral e social disfarçado. Outros, entendem que a Justiça Restaurativa nasceu nas comunidades e ao serem inseridas nas instituições que se prestam ao controle social são manipuladas para manterem as relações de poder de dominação.
Trata-se de discussões pertinentes, séries e profundas que devem ser consideradas permanentemente neste momento histórico de implementação da Justiça Restaurativa.
Particularmente, como é fácil perceber de tudo até aqui dito, entendo que a Justiça Restaurativa está tanto no Sistema de Justiça como na sociedade e na comunidade. Os desafios de sua implementação na comunidade (devolvendo o poder de cada um para saber,
(^13) Neste sentido: “Um segundo eixo tem seu foco na mudança institucional. Aqui também se cuida de uma
formação – mas uma formação diferenciada – que tem seu foco na preparação das pessoas que dizem “sim” ao projeto, para que elas se tornem agentes de mudança institucional; ou seja, para que pessoas afetas à instituição onde as técnicas restaurativas se fazem possam cuidar da efetiva transformação da ambiência institucional, a fim de que a própria estrutura e cultura reinante (invariavelmente hierárquica e excludente) não retroalimente a situação de violência, bem como não manipule os procedimentos restaurativos para manter as relações de poder na instituição; e, ainda, para que a proposta não seja esvaziada e extinta. Por fim, o terceiro eixo se ocupa da criação e/ ou do fortalecimento da “Rede de Apoio”; ou seja, a articulação entre as “entidades de atendimento” local ou regional à proposta de implementação, estabelecendo fluxos e procedimentos que respondam às violações aos direitos fundamentais detectadas nos procedimentos restaurativos, viabilizando encaminhamentos efetivos que deem conta das necessidades desveladas nos referidos procedimentos (sejam das vítimas, dos ofensores ou da comunidade, etc.).O que se busca é a transcendência dos limites relacionais e institucionais, que recoloca o indivíduo e o coletivo como corresponsáveis pelo estabelecimento de uma lógica justa na convivência entre as pessoas.” (Penido, Egberto de Almeida e Monica Mumme; “Justiça Restaurativa e suas dimensões empoderadoras – Como São Paulo vem respondendo ao desafio de sua implementação”; Revista do Advogado – AASP; ano XXXIV; vol. 123, p. 79, São Paulo, 2014.
(^14) Para um aprofundamento da metodologia do “Polo Irradiador” acesse:
http://www.tjsp.jus.br/EGov/InfanciaJuventude/Coordenadoria/JusticaRestaurativa/Default.aspx
O ex-ministro presidente do Supremo Tribunal Federal e também do Conselho Nacional de Justiça, quando da premiação de dois projetos de Justiça Restaurativa oriundos do Estado de São Paulo, em 2012, com sua sensibilidade profunda, ressaltou que neste caminho devemos trabalhar em conjunto pois muitos são os desafios; e ressaltou: para tanto devemos fazer uma viagem de alma e não de ego; por meio da qual nossas instituições são tonificadas e revitalizadas.
Inúmeros são os desafios para a implementação da Justiça Restaurativa como visto. As matrizes de violência culturais estão fortemente arraigadas em nossas instituições (muitas vezes de modo sutil, sofisticado e não perceptível) e são notórios que diversos contra- movimentos surgem para que não sejam transformadas; especialmente para que as novas práticas sejam incorporadas ao Sistema já posto – inclusive é muito comum que de “tempo em tempo” surja alguma “novidade” para ser cooptada pelo Sistema, a fim se continuar fazendo a mesma coisa com uma nova roupagem.
Para que a Justiça Restaurativa enraíze em sua potencia no Brasil e seja um caminho efetivo para a materialização do valor Justiça de forma viva, é necessário uma ação coletiva para além dos egos, que não se limite na disseminação de uma técnica de resolução de conflito; mas que esteja de fato comprometida com a implementação de uma Cultura de Paz, promovendo ações complementares – tão importante como o aprendizado da técnica – que busquem de modo efetivo transformar ambiências institucionais e sociais que criam e retroalimentam visões e dinâmicas que estejam mantendo um sistema de violência; e que promovam a transformação consciente de cada um que escolha seguir e contribuir com este caminho.