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Guias e Dicas
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Historiografia Pagã e Cristã no Século IV: Mendes e o Colapso do Império Romano, Notas de estudo de Cultura

Uma análise sobre a produção historiográfica pagã e cristã no século iv d.c., com ênfase no livro 'sistema político do ocidente' de n.m. Mendes. O autor discute os textos produzidos por autores pagãos e cristãos, as relações entre a igreja e o estado, e a identificação de pagãos e politeísmo. Além disso, são citados estudos sobre a assimilação da cultura greco-romana, o monacato, os problemas do império romano no século iv d.c., e a demonologia na vida de alguns ascetas.

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

Jorginho86
Jorginho86 🇧🇷

4.6

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MÁRCIA
SANTOS
LEMOS
CRISTÃOS, PAGÃOS E CULTURA ESCRITA: AS REPRESENTAÇÕES DO PODER NO
IMPÉRIO ROMANO DOS SÉCULOS IV E V D.C.
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção
do grau de Doutor em História, área de concentração
em História Social.
Orientadora: Profª. Drª. SÔNIA REGINA REBEL
DE ARAÚJO.
Niterói
2009
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MÁRCIA SANTOS LEMOS

CRISTÃOS, PAGÃOS E CULTURA ESCRITA: AS REPRESENTAÇÕES DO PODER NO

IMPÉRIO ROMANO DOS SÉCULOS IV E V D.C.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em História, área de concentração em História Social. Orientadora: Profª. Drª. SÔNIA REGINA REBEL DE ARAÚJO.

Niterói 2009

MÁRCIA SANTOS LEMOS

CRISTÃOS, PAGÃOS E CULTURA ESCRITA: AS REPRESENTAÇÕES DO PODER NO

IMPÉRIO ROMANO DOS SÉCULOS IV E V D.C.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em História, área de concentração em História Social.

Aprovada em

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Sônia Regina Rebel de Araújo – Orientadora Universidade Federal Fluminense


Prof.ª Dr. Ciro Flamarion S. Cardoso Universidade Federal Fluminense


Prof.ª Dr.ª Claudia Beltrão da Rosa Universidade do Rio de janeiro


Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva Universidade Federal do Espírito Santo


Prof.ª Dr.ª Regina Maria da Cunha Bustamante Universidade Federal do Rio de Janeiro

Niterói 2009

AGRADECIMENTOS

Ao meu “pequeno” Ariel, pelo amor incondicional, pelos afagos e beijos que me ajudaram a sobreviver a essa “epopéia”. Ao meu “grande” Iago, pela paciência atípica num adolescente e pelas demonstrações de afeto tão caras para uma mãe. A minha querida “mainha”, sempre amorosa, uma grande aliada na superação de todos os obstáculos que a vida me impôs. Aos meus queridos irmãos, pelo apoio constante, em especial Antônio e minha queridinha Aline, tão doce e amável. Aos amigos e companheiros de todos os momentos, das farras que “desopilam o cotidiano” às durezas da vida, Luiz Otávio e Rita; Selma e Cal; Espedito e Meire; Avaldo e Aldair e Alexandre e Claudia. À professora Dr.ª Zélia Chequer e a Dr.ª Rita de Cássia Mendes Pereira, pela revisão do trabalho, paciência e amizade. Aos colegas imprescindíveis no trabalho de traduzir e cotejar as fontes, Claudia, Edileuza e o competente e amável Carlos. Às professoras Drª Claudia Beltrão e Dr.ª Regina Bustamante, pela generosidade no empréstimo e indicação de livros, pelas preciosas orientações na qualificação, que em muito contribuíram para a realização desta pesquisa. Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, especialmente o Prof. Dr. Ciro Flamarion Cardoso e a Prof.ª Dr.ª Vânia Fróes, que contribuíram de modo significativo para a minha formação. À Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e à Fapesb, pela concessão da Bolsa de Doutorado, sem a qual teria ficado inviável a realização desta pesquisa. .

“Aunque pusieron silencio a las lenguas, no le pudieron poner a las plumas, las cuales, con más libertad que las lenguas, suelen dar a entender a quien quieren lo que en el alma está encerrado.” (Cervantes, Quixote, I, XXIV).

ABSTRACT

This work aims to make clear how the written culture, in the Roman Empire in the 4th and 5th centuries A.D., was used by both the Christian episcopate and the authors linked to the pagan Roman senatorial elite to convey a set of moral and political ideas of their respective groups. With this purpose, we select two corpora consisting of texts produced by pagan and Christian writers and organize the documentation analysis according to the theoretical and methodological perspective of Lucien Goldmann’s Genetic Structuralism and of a semiotic technique, the “isotopic reading”. The first part of the work performs the role of presenting the structures from which the texts were produced and the second one seeks to reveal the significant structure of the discourses, with the aid of the isotopic reading, as established by Greimas and Courtés. We aim to carry out a dialectical analysis that allows us to find the interactions between the texts and the worldviews inherent to the leading Roman elite of the period. With this aim, we organize the thesis in four chapters: The Empire and the Church ; Written culture and collective memory ; The mos maiorum and the representations of the roman emperor ; and, finally, Christianity and the image of monarchy in the episcopal literature. When articulated, these parts will enable us to verify the power of writing in preserving the memory of the studied groups and its limits and effectiveness in selecting and setting values which mark out the representations of the imperial power.

Key-words: Pagan. Christian. Written culture. Power and Roman Empire.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Hartog, em 1982, ao escrever a introdução para um “número especial” da revista Annales^1 , dedicado à Antiguidade, pautou como temas para a edição “os usos” e a “natureza diversa” dos documentos. Sugere que os historiadores interessados no período deveriam procurar seu vigor nos limites da história antiga:

Pois que ele deva trabalhar sem nenhum texto ou, ao contrário, em outro momento, sobre um único texto, não impede, de toda maneira, que considere criteriosamente essa ausência ou essa presença e, se houver, que reflita sobre sua natureza. Tanto mais que ele não pode dispensar esses textos singulares por excelência que são os textos “literários” (épico, trágico, cômico, filosófico, histórico, etc.).^2

Ao pensar na documentação disponível ao estudo do “mundo antigo” e o “delicado” trabalho do pesquisador, a pluridimensionalidade do texto tornou-se central nas reflexões de Hartog. Para o autor, “o texto apresenta-se antes de tudo como uma narrativa, com sua arquitetura e sua lógica; organiza-se entre um narrador e um destinatário e articula-se diante de outros textos, contemporâneos ou não, diante de um gênero ou de um saber compartilhado”.^3 Conforme Burke, “uma das formas mais populares da história das práticas é a história da leitura”, que ganhou uma nova abordagem com Michel de Certeau e Roger Chartier. O primeiro “enfatizou o papel do leitor, as mudanças nas práticas de leitura e nos usos culturais

(^1) HARTOG, F. Histoire ancienne et histoire (Introduction). Annales. E.S.C, Paris, n. 5-6, p.687-696, 1982. (^2) Id. História antiga e história. In: ______. Os antigos, o passado e o presente. Organizado por J. O. Guimarães. Brasília: UnB, 2003. p. 200-201 3 Ibid., p. 201

da imprensa”; o segundo “estava preocupado com a recepção das obras”.^4 Ambos abriram espaço para o estudo sobre os leitores e a diversidade de leituras que um texto poderia propiciar.^5 Certeau e Chartier, por mais controversos que sejam, renovaram o interesse dos historiadores pela cultura escrita como objeto de estudo. Sob a influência da Nova História Cultural, há uma produção historiográfica que tem destacado a capacidade de as pessoas reinterpretarem as mensagens transmitidas, ou seja, “o modo pelo qual um grupo adota, adapta, ou converte, inverte e subverte o vocabulário do outro”.^6 A relação entre a linguagem e o mundo passou a ser amplamente discutida. Todavia, o estudo da cultura escrita e dos seus usos não é um domínio exclusivo da Nova História Cultural. Teóricos marxistas, principalmente os gramscianos, desenvolveram análises sobre a escrita e os modos de comunicação como instrumentos de controle social ou de hegemonia das classes dominantes. Enfim, este não é um novo objeto, a novidade está nas abordagens, no enfoque, nos temas correlatos e num profícuo diálogo entre historiadores, sociólogos, linguistas e antropólogos. Em busca do diálogo entre a cultura escrita e o poder, entre a memória coletiva e a linguagem, passamos a interrogar a produção textual dos membros do episcopado e dos autores vinculados à elite senatorial no Império Romano dos séculos IV e V d.C. Verificamos nesta primeira incursão que, entre os bispos, os discursos apresentavam a necessidade de afirmar um sistema de valores, de separar os cristãos daqueles que eles denominavam “ímpios”^7 – pagãos, judeus e heréticos –, de criar um Império e um modelo de imperador em conformidade com os paradigmas do novo credo. Observamos que vários textos elogiavam ou criticavam a atuação de determinados monarcas. Dessas observações, surgiu o questionamento em torno da capacidade de esses bispos utilizarem a escrita como um meio para fixar suas ideias morais e políticas e afirmar as prerrogativas da Igreja no Império. Neste ínterim, ocorreu-nos que, provavelmente, a elite senatorial romana, não convertida ao cristianismo, a partir do Dominato , também tivesse recorrido à cultura escrita para preservar seu sistema de valores. Perscrutando alguns textos produzidos por autores pagãos do século IV d.C. e a obra de Mendes sobre o colapso do Império Romano do Ocidente, verificamos que os discursos, influenciados por um conjunto de ideias oriundas do

(^4) BURKE, P. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 82. (^5) Cf. CHARTIER, R.; ROCHE, D. O livro: uma mudança de perspectiva. In: LE GOFF, J.; NORA, P.(Org.). História: novos objetos 6. Rio de janeiro: Francisco Alves, 1995. p. 99-115. 7 BURKE, op. cit., p. 137. Entre os clérigos que redigiam em grego, era comum o uso dos termos átheos, anósios, asebés, dyssebés e dýstheos para denominar o “ímpio”.

surgimento do livro produziram no Ocidente posturas etnocêntricas. O livro foi adotado como parâmetro de civilização e superioridade, e os povos foram divididos entre os que conheciam a escrita e os que a desconheciam. Os primeiros possuíam uma história e constituíam as “altas culturas”; os demais eram povos sem história e compunham as “culturas primitivas”. Esta percepção começou a ser modificada com o trabalho dos estudiosos da história oral e com Malinowski. Para estes pesquisadores, “não há etnia sem história e o livro é somente um dos veículos através dos quais a história é transmitida”.^12 Nola construiu suas reflexões sobre os escritos sagrados com base no estudo de três “territórios religiosos” – o hebraico, o cristão e o islâmico – e apresentou conclusões similares às de García-Pelayo, que em muito contribuem para a discussão do status da escrita nas comunidades cristãs. Já Cascajero, em artigo publicado pela Gerión em 1993, propõe uma análise sobre os instrumentos disponíveis para o estudo do mundo antigo. Em suma, ao apresentar uma reflexão sobre as fontes disponíveis para o estudo da Antiguidade, Cascajero elaborou uma ampla discussão acerca da posse e finalidade da cultura escrita no período. O autor, assim como Nola, não vacilou em apresentar argumentos para demonstrar que, nas diversas sociedades do mundo antigo, a escrita esteve sob o domínio de uma elite e o saber formal sempre funcionou como um mecanismo de reprodução social.^13 Uma reflexão que permite pensar os limites da cultura escrita para fixar e propagar um ideário entre os séculos IV e V d.C. Em 1994, Bowman e Woolf sistematizaram um conjunto de estudos e organizaram um livro intitulado Literacy and power in the ancient world. Este título foi traduzido e divulgado no Brasil em 1998. A obra reúne diversos artigos que versam sobre a relação da cultura escrita com o poder nas distintas sociedades do mundo antigo. Para os organizadores desse livro, o uso da escrita e sua difusão não provocaram uma “revolução social” nem produziram uma rígida distinção entre as comunidades leitoras e as não leitoras. Não há, nesse trabalho, a preocupação em definir o uso exclusivo de um conceito de poder ou de cultura escrita; em alguns artigos, nem mesmo aparece esse aspecto. Comum aos autores é o objetivo de discutir, diretamente ou não, o poder que determinados grupos exercem sobre os textos e como estes são utilizados para o exercício do poder. 14

(^12) NOLA. A. Livro. In : ROMANO, R. (Dir.). Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1987, v. 12. p. 215. 13 CASCAJERO, J. Escritura, oralidad e ideologia: hacia uma reubicación de las fuentes escritas para la Historia Antiga, 14 Gerión , Madrid, n.º 11, p. 95-144, 1993. BOWMAN, A. K.; WOOLF, G. (Org.). Cultura escrita e poder no mundo antigo. São Paulo: Ática, 1998. p.7-10.

Do livro citado, selecionamos os artigos de G. Woolf, A. Bowman, R. L. Fox, C. M. Kelly e P. Heather porque se referem ao Império Romano e aos períodos que interessam à pesquisa que ora estamos desenvolvendo. Os autores desses trabalhos refletem sobre a produção, a conservação, a transmissão da escrita e suas funções. Hidalgo de La Vega, em 1995, publicou um estudo sobre a função que os intelectuais desempenhavam na sociedade romana e como se posicionaram sobre a realeza. O autor propõe-se a demonstrar que o desenvolvimento do pensamento político romano que fomentou as reflexões teóricas sobre a realeza está vinculado à conjuntura dos séculos III e I a.C. Este período é marcado pela existência das monarquias herdeiras do Império de Alexandre Magno, pela expansão territorial de Roma, ainda governada pelo regime republicano, e pelas concepções helenísticas. É, portanto, objetivo do autor, “relacionar e confrontar” a elaboração intelectual com a realidade.^15 Já Blázquez reuniu em um livro, publicado em 1998, um conjunto de trabalhos que analisa textos escritos por autores cristãos, a maior parte do final da Antiguidade. Há estudos sobre a “assimilação da cultura greco-romana”, o monacato, os problemas do Império Romano no século IV d.C. e a demonologia na vida de alguns ascetas. Nessa obra, o autor demonstra que a produção textual cristã, assim como a pagã, se ocupou de variados aspectos da sociedade da época. A escrita foi um recurso utilizado pelos seguidores de Jesus para formular e divulgar suas ideias sobre a fé e o mundo em que viviam.^16 Blázquez trabalha com a ideia da eficácia da escrita num campo que envolve disputas políticas e religiosas. Naturalmente trabalhos sobre cultura escrita e poder existem vários. Assim, priorizamos os autores que vêm pesquisando sobre os usos da escrita por grupos sociais na elaboração e afirmação de seus ideários. Outras referências que nos ajudaram a refletir sobre o convívio entre pagãos e cristãos no Império Romano dos séculos IV e V d.C. aparecerão no decorrer da tese. O livro organizado por J. Huskinson, Experiencing Rome: culture, identity and power in the Roman Empire , publicado em 2000, traz uma discussão salutar para a nossa pesquisa, pois aborda a relação entre identidade e religião em Roma, a imbricação entre identidade cívica e religiosa.^17 O trabalho de L. Canfora^18 , divulgado pela primeira vez em

(^15) HIDALGO DE LA VEGA, M. J. El intelectual, la realeza y el poder político en el Imperio Romano. Salamanca: Universidad de Salamanca, 1986. p. 19-20. 16 BLÁZQUEZ, J. M. Intelectuales, ascetas y demonios al final da la Antiguedad. Madrid: Cátedra, 1998. p. 3-37. 17 HUSKINSON, J. (Ed.). Experiencing Rome. Culture, identity and power in the Roman Empire. Londres: Routledge, 2000. 18 CANFORA, L. Livro e liberdade. Rio de janeiro: Casa da Palavra; São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

pesquisadores do país na área e em muito tem nos auxiliado, em especial no que se refere ao século IV d.C. e às relações da Igreja com o Estado. 25 Além da organização de Repensando o Império Romano , entre os trabalhos de Silva há dois artigos que interessam a este balanço historiográfico: “Política, ideologia e arte poética em Roma: Horácio e a criação do Principado”, publicado pela revista Politeia em 2001, e “A construção da imagem heróica de Constâncio II na Oratio III de Juliano”, divulgado pela Phoînix em 2005.^26 Os dois textos discutem a construção da imagem do imperador romano, o primeiro sob o Principado, o segundo sob o Dominato. Do mesmo autor, G. V. Silva, Reis, Santos e Feiticeiros é uma valiosa contribuição para o debate que ora nos propomos a realizar porque coloca em foco a construção da basileia e, nesse sentido, dialoga com inúmeras fontes e mostra como a imagem da realeza romana a partir de Constâncio II aparece nessa documentação. Constituem indícios importantes para o pesquisador que busca compreender a relação entre a escrita e o poder no período.^27 E para finalizar, o livro I ntelectuais, poder e política no mundo romano , ainda não publicado e gentilmente cedido por seus organizadores, foi essencial a nossas reflexões, porque apresenta uma profícua discussão sobre a relação dos homens “letrados” com os poderes instituídos e em muito reforça a nossa tese sobre a utilização da cultura escrita para representar o poder e se posicionar sobre ele.^28 Após inquirir a historiografia sobre o assunto, que naturalmente não se esgota nos títulos aqui mencionados, percebemos que havia espaço para um trabalho que pusesse em foco a força da escrita no Império Romano, que era possível fazer uma pesquisa que discutisse a relação entre sistema de valores e a representação do soberano a fim de demonstrar que a cultura escrita serviu ao propósito de preservar a memória coletiva, discutir o poder e afirmar posições na sociedade da época. Com base nessas reflexões, consideramos que a cultura escrita foi utilizada nos séculos IV e V d.C., tanto pelo episcopado quanto pelos autores vinculados ao paganismo da elite senatorial romana tradicional, para preservar e afirmar um conjunto de noções éticas,

(^25) SILVA, V. S.; MENDES, N. M. (Org.). Repensando o Império Romano. Perspectiva socioeconômica, política e cultural. Rio de Janeiro: Mauad; Vitória do Espírito Santo: Edufes, 2006. 26 SILVA, G. V. Política, ideologia e arte poética em Roma: Horácio e a criação do Principado. Politeia – História e Sociedade, Vitória da Conquista, v. 1, n. 1, p. 29-51, 2001; Id. A construção da imagem heróica de Constâncio II na 27 Oratio III de Juliano. Phoînix , Rio de Janeiro, ano 11, p. 71-89, 2005. Id. Reis, santos e feiticeiros. Constâncio II e os fundamentos místicos da basileia (337-361). Vitória: Edufes,

  1. 28 ARAÚJO, S. R. R.; ROSA, C. B.; JOLY, F. D. (Org.). I ntelectuais, poder e política no mundo romano. (Obra inédita gentilmente cedida pelos organizadores).

práticas, representações e concepções que estavam presentes na memória coletiva dos dois grupos. Para nós, são essas memórias sobre os valores morais, associadas à tradição literária sobre o poder monárquico e ao grupo social ao qual os autores estavam vinculados, que balizam a representação que construíram do soberano. Essas ideias constituem um sistema de valores que influenciou na definição de critérios para identificar o mau e o bom governante, o rex iustus e o tirano injusto. Neste sentido, considera-se que a escrita serviu a cristãos e pagãos para firmar uma posição sobre o soberano e a relação com ele. Elegemos, então, dois corpora que foram redigidos entre o século IV e início do V d.C., que pertencem a gêneros literários distintos, mas abordam temas comuns, dialogam entre si e permitem estabelecer comparações entre valores, práticas e representações. O primeiro corpus é constituído por discursos elaborados por autores pagãos do século IV d.C., que expressam o desejo de preservar o pensamento sociopolítico da elite senatorial romana tradicional e apresentam um paradigma de imperador ideal:

  1. Livro dos Césares^29 de Aurélio Victor; Compêndio de História Romana (Breviário)^30 de Flávio Eutrópio (369) – breviários
  2. Sobre a realeza^31 de Juliano – panegírico
  3. Sobre os professores^32 , edito de Juliano (Cod. Theodos. XIII 3, 5) – texto legislativo
  4. Relatio 3^33 , petição de Símaco, em que solicita, ao imperador Valentiniano II, a reposição do altar da deusa Vitória ao edifício do Senado. Relatio é o termo utilizado por Símaco para designar suas cartas oficiais. Significa a ação de relatar, narrar, expor e relacionar
  5. História^34 de Amiano Marcelino – discurso histórico

(^29) Assunto: versões do Livro dos Césares que faremos uso são as seguintes: uma edição em espanhol, produzida por Emma Falque a partir do texto de Aurelio Víctor establecido por F. Pichlmayr e corrigido por R. Gruendel ( Libro de los Césares. Madrid: Gredos, 1999), cotejada com as traduções de P. Dufraigne ( Livre des Césars. París, Les Belles Lettres, 1975) e de H. W. Bird ( 30 De Caesaribus. Liverpool University Press, 1994). Faremos uso de três edições do Breviário : uma em espanhol, elaborada por Emma Falque, baseada no texto de C. Santini ( Breviario. Madrid: Gredos, 1999); a recente tradução inglesa e o comentário que a acompanha, de H. W. Bird ( Breviarium , Liverpool University Press, 1993) e uma reconhecida versão bilíngue de Maurice Rat ( 31 Abrégé de l’histoire romaine. Paris: Garnier, s/d). Utilizaremos a tradução espanhola de José García Blanco: JULIANO. Sobre a realeza. In: Discursos I – V. Madrid: Editorial Gredos. 1979. p. 205-280. 32 Para o edito, a tradução de J. G. Blanco e Pilar Jiménez Gazapo: JULIANO. Leyes. Extratos de los códigos de Teodosio y Justiniano. Madrid: Editorial Gredos. 1982. p. 280-281 e o Código Teodosiano em latim disponibilizado na internete: < http://ancientrome.ru/ius/library/codex/theod/liber16.htm#1> 33 SÍMACO. Informes. Introducciones, traducción y notas de José Antonio Valdés Gallego. Madrid: Editorial Gredos, 2003. Carta III, p. 36-47. Esta edição foi cotejada com a carta publicada na obra de Ambrósio de Milão: Discorsi e lettere. In: Opera Omnia di Sant’Ambrogio. Introduzione, traduzione, note e indici di Gabriele Banterle. Roma: Cittá Nuova Editrice, 1988. 3v, 72a – Maur. 17a. 34 Utilizaremos uma tradução de História feita por Maria Luisa Harto Trujillo ( Historia. Madrid: Akál, 2002), uma experiente professora de Filologia latina da Universidade de Extremadura. Ela conhece com profundidade o

variações dos discursos elaborados entre a legalização do cristianismo e a sua vivência como culto oficial; entre a construção da basileia e a sua afirmação. Ao definir as fontes, nos deparamos com a necessidade de fazer algumas considerações sobre os “cristianismos” e os “paganismos” que conviviam no Império Romano. De acordo com Frangiotti, o “cristianismo primitivo era complexo” e estava dividido pelo menos em quatro tendências distintas: a judaizante radical, representada pelos judeus que acreditavam em Jesus de Nazaré como o Messias, mas não abriam mão das tradições judaicas e consideravam a circuncisão imprescindível, “um sinal de pertença ao povo eleito”, inclusive para os convertidos do paganismo; a judaizante moderada, formada pelo grupo de judeus que reproduzia os costumes dos seus ancestrais, todavia era mais “tolerante” com os recém- convertidos e não exigia a circuncisão; a helenista, composta pelos judeus-cristãos helenizados que defendiam “a liberdade frente a Lei de Moisés e às tradições judaicas”, acreditavam que a salvação viria pela fé em Cristo e não incomodavam os pagãos conversos com interdições, mas prescreviam o monoteísmo, a obediência aos mandamentos e algumas normas alimentares, como evitar as carnes imoladas aos “ídolos”; e a quarta tendência, a dos helenistas radicais, que era completamente hostil ao judaísmo e pregava a total liberdade em relação à lei.^40 O cristianismo, portanto, desde a sua origem é controverso, plural e, nos séculos IV e V d.C., também está marcado por divergências doutrinárias, disciplinares e regionais, que ficam bem explícitas no Concílio de Nicéia. Este concílio, celebrado em 325, organizado por Constantino, visava fundamentalmente resolver a questão ariana. O bispo Ário defendia que Cristo, por ter sido criado pelo Pai, não era da mesma substância Dele, era inferior.^41 Esta tese dividiu a Igreja e deu origem a vários concílios. Em Nicéia, as ideias de Ário foram rejeitadas e foi imposta a fórmula de fé, conhecida como o Credo de Nicéia, que ressalta a unidade de Cristo com o Pai (a consubstancialidade = homoousios ) e nega a doutrina das três hipóstases trinitárias que prevalecia no Oriente.^42 Como consequência dos embates travados em Nicéia, a Igreja ficou dividia entre partidários do credo niceno e do credo ariano. Citamos essa cisão

(^40) FRANGIOTTI, R. História das heresias (séculos I-VIII). Conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995. p. 7-12. 41 De acordo com Simonetti, “Ario está convencido de que, se o Filho é coeterno ao Pai, deve ser não-gerado como Ele. Pela razão de não poder haver dois não-gerados, o Filho, embora anterior a todos os tempos e a toda criação, é posterior ao Pai, do qual recebeu o ser: houve um momento em que o Filho não existia. Ario não aceita sequer que o filho tenha sido gerado pela substância do Pai, porque implicaria a divisão da mônade divina: num primeiro momento, ele afirmou que o Filho foi criado do nada por obra do Pai (Ario – Arianismo. In: DI BERARDINO, A. (Org.). 42 Dicionário patrístico e de antiguidades cristãs. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 150).” Ibid., p. 149-153 e RÉMONDON, R. La crisis del Imperio Romano. 2. ed. Barcelona: Labor, 1967. p. 77-

porque ela atinge todo o universo cristão, mas várias outras fazem parte da história da Igreja e da definição da ortodoxia. Enfim, definir uma identidade para o cristão nesse período, diante da diversidade de pensamentos, não é uma tarefa simples. Todavia, para o nosso trabalho, é suficiente ter clareza que, entre os autores dos discursos selecionados, o cristão verdadeiro é a antítese do judeu, do pagão e do herético^43. Quanto ao herético, dependendo da tendência do clérigo, poderia ser o seguidor dos cânones de Nicéia ou das idéias de Ário. Sobre o paganismo, é imprescindível definir a origem do termo paganus. Segundo Brown, é um vocábulo latino utilizado para designar aquilo que é rústico, do campo, da aldeia; muitas vezes servia para tratar de modo pejorativo pessoas sem instrução, “iletradas”, “subalternos em relação aos oficiais”.^44 É difícil determinar com precisão como essa palavra ganhou um significado religioso, mas há algumas inferências sobre o assunto. A resistência dos homens que viviam no campo em abandonar suas antigas crenças e se converterem ao cristianismo, segundo Hilário Franco Jr, teria levado à associação entre paganus e a pertença ao antigo politeísmo.^45 Siniscalco não discute o motivo da identificação, mas indica que o uso do termo com o significado de “idólatra” passa a ser comum a partir do século IV d.C. e afirma que esta noção é absolutamente inútil para compreender o sistema religioso dos antigos romanos, porque era uma forma de os cristãos denominarem aqueles que não eram judeus nem professavam a fé em Cristo.^46 A necessidade de construir uma identidade para o grupo cristão, que o separasse da cultura helênica e da tradição judaica, de defender a originalidade do cristianismo, talvez tenha levado os eruditos da Igreja a se apropriarem de um termo que já possuía um tom negativo, para denominar aqueles que eles consideravam “ímpios”, palavra que também se repete na literatura cristã para nomear os adeptos do politeísmo, inclusive nos documentos que selecionamos. Entre os autores cristãos que escreveram em grego no século IV d.C., os termos utilizados para designar aqueles que praticavam o politeísmo eram ethnos, helenos e anomos como sinônimos para injusto e ímpio; entre os latinos, é comum gentils, impius e sacrilegus. Dos discursos analisados, apenas Agostinho de Hipona, que escreveu na primeira metade do V d.C., emprega o termo paganus. Portanto, paganismo foi um termo que começou a aparecer nos textos cristãos com maior frequência a partir do século V d.C. para designar “crença nos falsos deuses e a prática de ritos e costumes condenáveis”.

(^43) Herético, termo oriundo do grego airetikós, empregado no sentido de sectário, partidário. Para a Igreja cristã, aquele que se desvia da “verdadeira religião”, ou seja, do estabelecido como dogma nos escritos apostólicos e confirmado pelos bispos nos Concílios. 44 45 BROWN, P.^ A ascensão do cristianismo no Ocidente.^ 1. ed. Lisboa: Presença, 1999.p. 53. 46 FRANCO JR., H.^ A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 112. SINISCALCO, P. Pagão – Paganismo. In: DI BERARDINO, op.cit., p. 1059.