Docsity
Docsity

Prepare-se para as provas
Prepare-se para as provas

Estude fácil! Tem muito documento disponível na Docsity


Ganhe pontos para baixar
Ganhe pontos para baixar

Ganhe pontos ajudando outros esrudantes ou compre um plano Premium


Guias e Dicas
Guias e Dicas

Interação entre Criminosos e Mídia: Análise do Programa Se Liga Bocão na Prisão Bahiana, Notas de estudo de Comunicação

Uma análise da interação entre criminosos e o programa se liga bocão na prisão bahiana. O texto discute como os presos utilizam a televisão para se conectar com a vida social fora das paredes da prisão, além de analisar a perspectiva do programa em relação à violência e a justiça social. O documento também aborda a desconfiança dos funcionários da prisão em relação aos visitantes e a importância de combater a exclusão social para reduzir a violência.

O que você vai aprender

  • Como a exclusão social contribui para a violência na Bahia?
  • Como o programa Se Liga Bocão se posiciona diante da violência e da justiça social na Bahia?
  • Quais são as maneiras pelas quais os presos utilizam a televisão para se conectar com a vida social fora da prisão?
  • Quais são as estratégias e configurações das notícias no Se Liga Bocão?
  • Qual é a importância da desconfiança dos funcionários da prisão em relação aos visitantes?

Tipologia: Notas de estudo

2022

Compartilhado em 07/11/2022

usuário desconhecido
usuário desconhecido 🇧🇷

4.5

(402)

853 documentos

1 / 281

Toggle sidebar

Esta página não é visível na pré-visualização

Não perca as partes importantes!

bg1
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE COMUNICAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
COMUNICAÇÃO E CULTURA CONTEMPORÂNEAS
CRIMINALIDADE NA TELEVISÃO BAIANA:
o telejornal policial Se Liga Bocão e os relatos dos
sujeitos privados de liberdade
RODRIGO BARBOSA E SILVA
SALVADOR
2012
pf3
pf4
pf5
pf8
pf9
pfa
pfd
pfe
pff
pf12
pf13
pf14
pf15
pf16
pf17
pf18
pf19
pf1a
pf1b
pf1c
pf1d
pf1e
pf1f
pf20
pf21
pf22
pf23
pf24
pf25
pf26
pf27
pf28
pf29
pf2a
pf2b
pf2c
pf2d
pf2e
pf2f
pf30
pf31
pf32
pf33
pf34
pf35
pf36
pf37
pf38
pf39
pf3a
pf3b
pf3c
pf3d
pf3e
pf3f
pf40
pf41
pf42
pf43
pf44
pf45
pf46
pf47
pf48
pf49
pf4a
pf4b
pf4c
pf4d
pf4e
pf4f
pf50
pf51
pf52
pf53
pf54
pf55
pf56
pf57
pf58
pf59
pf5a
pf5b
pf5c
pf5d
pf5e
pf5f
pf60
pf61
pf62
pf63
pf64

Pré-visualização parcial do texto

Baixe Interação entre Criminosos e Mídia: Análise do Programa Se Liga Bocão na Prisão Bahiana e outras Notas de estudo em PDF para Comunicação, somente na Docsity!

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

COMUNICAÇÃO E CULTURA CONTEMPORÂNEAS

CRIMINALIDADE NA TELEVISÃO BAIANA:

o telejornal policial Se Liga Bocão e os relatos dos sujeitos privados de liberdade

RODRIGO BARBOSA E SILVA

SALVADOR

RODRIGO BARBOSA E SILVA

CRIMINALIDADE NA TELEVISÃO BAIANA:

o telejornal policial Se Liga Bocão e os relatos dos sujeitos privados de liberdade

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas, como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor.

Orientadora: Profa. Dra. Itania Maria Mota Gomes.

SALVADOR

Rodrigo Barbosa e Silva

Criminalidade na Televisão Baiana: o telejornal policial Se Liga Bocão e os relatos dos sujeitos privados de liberdade

Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

_____________________________________________

Profa. Dra. Itania Maria Mota Gomes (Orientadora)

_____________________________________________

Prof. Dr. Mahomed Bamba

_____________________________________________

Prof. Dr. Milton Julio de Carvalho Filho

_____________________________________________

Profa. Dra. Fernanda Maurício da Silva

_____________________________________________

Profa. Dra. Ana Luiza Coiro Moraes

Salvador, dezembro de 2012.

À minha mãezona, Vera Barbosa, que tem me mostrado – na vida, com vida e pela vida – a importância de persistir, afinal...

“O meu pai foi peão, minha mãe solidão Meus irmãos perderam-se na vida Em busca de aventuras Descasei, joguei, investi, desisti Se há sorte eu não sei, nunca vi Me disseram porém que eu viesse aqui Pra pedir de romaria e prece Paz nos desaventos Como eu não sei rezar, só queria mostrar Meu olhar, meu olhar, meu olhar”. RENATO TEIXEIRA

RESUMO

A presente tese propõe investigar a recepção de telejornais com formato popular que trabalham prioritariamente com assuntos ligados à violência, à criminalidade, aos casos de polícia, enfim, à segurança pública dos cidadãos brasileiros, isto é, telejornais com temática policial. O grupo de telespectadores pesquisados foi constituído por sujeitos privados da liberdade, ou seja, homens que possuem histórias de vida vinculadas ao mundo crime, às reportagens veiculadas diariamente pelos referidos programas televisivos.

Primeiramente, é realizada a reflexão dos fenômenos de violência observados na sociedade brasileira, procurando entendê-los como práticas culturais construídas pelos seres humanos ao longo da história. Em seguida, é efetivada a análise, também histórica, da televisão no Brasil, destacando a sua programação popular, em especial, os programas de telejornalismo com esse determinado estilo. Por fim, é apresentado um panorama do sistema penitenciário nacional, considerando as unidades prisionais como instituições de formação humana, apesar da ênfase empregada somente à função punitiva.

Feita a contextualização teórica dos elementos que constituem o corpo científico desta investigação, foram realizadas entrevistas com os presos da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, por sua história e complexidade, para que descobríssemos o entendimento construído em relação ao telejornal popular com temática policial Se Liga Bocão (TV Itapoan/Record), de tal forma que pudéssemos relacioná-lo aos relatos de vida destas pessoas e o poder de alcance diante dos acontecimentos do mundo do crime.

Tendo a referência dos Estudos Culturais na percepção do telejornalismo, situado social e historicamente, e na compreensão da cultura prisional, a partir dos fenômenos de desigualdade observados entre a população brasileira, foi possível perceber qual a real participação dos criminosos na construção e na participação da referida programação. Assim, os sujeitos investigados demonstraram interagir com os programas muito mais para conhecimento das notícias da criminalidade do que para qualquer tipo de ponderação a respeito de suas vidas a essa realidade.

Palavras-chave: Televisão; Telejornalismo Popular; Modo de Endereçamento; Criminalidade; Prisão.

ABSTRACT

The present study investigates the audience reception of news programs in the popular format, which work mainly with subjects regarding violence, crime and police context, in short, issues related to public security of Brazilian citizens, that is, news programs about criminal matters. The audience sample researched was built by individuals deprived of their liberty, in other words, individuals that have life histories linked to crime, to the questions the news programs above- mentioned broadcast.

First, we examine the violence phenomenon observed in Brazilian society. We try to sense them as cultural practices built by human beings along history. Then, we analyze, also historically, television in Brazil, highlighting its popular programs, specially, news ones within the characteristics described earlier. Finally, we account for the National Penitentiary System, considering correctional facilities as human formation institutions, even though they emphasize only the punishment features.

After the theoretical elements that compose the scientific scope of this study are contextualized, we interviewed prisoners in Lemos Brito Penitentiary, in Salvador, capital of Bahia state, due to their history and complexity, in order to find out their understanding related to a news program in the popular format named Se Liga Bocão (Itapoan TV/Record), so that we could compare the life history of these people and the range power before these crime events.

Based on Cultural Studies about news perceptions, socially and historically, and on the comprehension of the prison way of living, from the phenomenon of social inequality observed in Brazilian population, we could notice the criminals real role building and participating on these news programs. Therefore, individuals showed interaction with the news programs aiming more to be aware of the crime news than for any other kind of thinking about their lives or this reality.

Keywords: Cultural Studies; Television; News Broadcasting in the Popular Format; Addressing Mode; Crime; Prison; Life History.

Palabras-llave : Estudios Culturales; Televisión; Tele periodismo Popular; Modo de

Direccionamiento; Criminalidad; Cárcel; Historias de Vida.

  • LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS ..................................................................... SUMÁRIO
  • APRESENTAÇÃO..........................................................................................................
  • CONSIDERAÇÕES INICIAIS .......................................................................................
  • 1.1 Conceituando a violência .......................................................................................... CAPÍTULO I: O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA
  • 1.2 A agressividade humana ............................................................................................
  • 1.3 Atos e estados violentos............................................................................................
  • 1.4 Mapa da criminalidade..............................................................................................
  • 1.5 A violência nas metrópoles e na televisão.................................................................
  • 1.6 Punição aos sujeitos violentos...................................................................................
  • 1.7 O controle social da violência...................................................................................
  • 2.1 A prática sensacionalista........................................................................................... CAPÍTULO II: TELEJORNALISMO POPULAR
  • 2.2 Histórico da programação popular..........................................................................
  • 2.3 A realidade da televisão...........................................................................................
  • 2.4 A cultura popular.....................................................................................................
  • 2.5 Os atuais modelos policiais.....................................................................................
  • 3.1 O surgimento da instituição prisional...................................................................... CAPÍTULO III: O MUNDO PRISIONAL
  • 3.2 A prisão e a perda da identidade..............................................................................
  • 3.3 A prisão e a formação superior no crime.................................................................
  • 3.4 A prisão e o seu modo de vida.................................................................................
  • 3.5 A prisão e a esperança da reabilitação.....................................................................
  • 3.6 A Penitenciária Lemos Brito...................................................................................
  • 4.1 A TV na PLB........................................................................................................... CAPÍTULO IV: O TELEJORNALISMO POLICIAL
  • 4.2 Gênero televisivo.....................................................................................................
  • 4.3 Modo de endereçamento..........................................................................................
  • 4.4 O encontro com os presos na PLB...........................................................................
  • 4.5 O Se Liga Bocão na fala dos presos........................................................................
  • CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................
  • Tabela 1. Número de homicídios na população brasileira............................................... ÍNDICE DE TABELAS:
  • Tabela 2. Os 25 municípios da Bahia com maiores taxas médias de homicídio............
  • Tabela 3. Número de homicídios na população total por capital....................................
  • Tabela 4. Número de homicídios na população total por região metropolitana..............
  • Tabela 5. Número de presos nas unidades prisionais da Bahia.....................................
  • Tabela 6. Operadores de análise (modo de endereçamento).........................................
  • Figura 1. Taxa média de homicídios na população brasileira......................................... ÍNDICE DE FIGURAS:
  • Figura 2. Taxa média de homicídios na população baiana..............................................
  • Figura 3. Diagrama dos operadores de análise em aplicação........................................
  • Figura 4. Logomarca do programa esportivo Galáticos da Rádio Itapoan....................
  • Figura 5. Logomarca do site de notícias Bocão News..................................................
  • Imagem 1. Portão de entrada do Complexo Penitenciário de Salvador........................ ÍNDICE DE IMAGENS:
  • Imagem 2. Início do telejornal Se Liga Bocão da TV Itapoan......................................
  • Imagem 3. Apresentador Zé Eduardo. Escalada............................................................
  • Imagem 4. Vinheta de abertura. Se Liga Bocão............................................................
  • Imagem 5. Homem conduzido à delegacia por policiais militares................................
  • Imagem 6. Mulher conduzida à delegacia por agentes penitenciários..........................
  • Imagem 7. Mulher detida por policiais civis.................................................................
  • Imagem 8. Casal sendo apresentado na delegacia.........................................................
  • Imagem 9. Jovens sendo apresentados na delegacia.....................................................
  • Imagem 10. Mulher concedendo entrevista na delegacia..............................................
  • Imagem 11. Merchan do apresentador Zé Eduardo.......................................................

Itania Maria Mota Gomes, o grupo trabalha com a análise de programas telejornalísticos a partir da perspectiva teórico-metodológica dos cultural studies em associação com os estudos de linguagem, abordagem que implica a consideração de aspectos ao mesmo tempo históricos, sociais, ideológicos e culturais do telejornalismo.

LEP – Lei de Execução Penal. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. De acordo com o art. 1º da referida lei, a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. A LEP sofreu mudanças nos últimos anos por meio das promulgações das seguintes leis: nº 10.713, de 13 de agosto de 2003; nº 10.792, de 01 de dezembro de 2003; nº 11.466, de 28 de março de 2007; nº 11.942, de 28 de maio de 2009; nº 12.313, de 19 de agosto de 2010.

PLB – Penitenciária Lemos Brito. A maior unidade prisional do Estado da Bahia. Localizada no bairro da Mata Escura, em Salvador, foi o local onde desenvolvemos a pesquisa junto aos internos do módulo III.

PUC/SP – Pontifícia Universidade de São Paulo. Universidade onde realizei o curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação:Currículo entre os anos de 2002 e 2004. Tendo pesquisado a educação desenvolvida dentro do cárcere, o título da dissertação foi “A escola pública encarcerada: como o Estado educa seus presos”.

RDD – Regime Disciplinar Diferenciado. É um regime onde os internos, do sexo masculino, têm uma rotina diferente daquela apresentada em outra unidade prisional de regime fechado. No RDD o preso é recolhido em cela individual. Não tem o direito de ter visitas de crianças, além de não ter visitas íntimas. O interno do RDD sai da cela somente por duas horas diárias para banho de sol. O preso não tem acesso à rádio ou televisão. É chamado entre aqueles que vivenciam o mundo prisional de regime fechadíssimo.

SEAP – Secretaria de Estado da Administração Penitenciária e Ressocialização. Órgão do Estado da Bahia responsável pela promoção da melhoria permanente do sistema prisional com ênfase na racionalização da gestão das práticas operacionais, no aprimoramento das condições de segurança e na garantia da humanização do sistema penitenciário baiano. Seu principal objetivo é fortalecer as práticas de ressocialização e reintegração dos presos na sociedade.

UNESP/Mar – Universidade Estadual Paulista, campus de Marília. Universidade em que me graduei no curso de Pedagogia. Fui bolsista de iniciação científica, onde refleti sobre o ensino escolar na prisão, fato que colaborou na construção da monografia de conclusão do curso intitulada “O ensino escolar na Penitenciária de Marília: reflexões sobre a prática educativa em busca da liberdade”.

RMS – Região Metropolitana de Salvador. Também conhecida como Grande Salvador, é composta por treze municípios: Camaçari, Candeias, Dias d’Ávila, Itaparica, Lauro de Freitas, Madre de Deus, Mata de São João, Pojuca, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Simões Filho e Vera Cruz, além da própria capital Salvador. Foi instituída pela Lei Complementar Federal número 14, de 8 de junho de

  1. Segundo dados do IBGE, no ano de 2010, possuía 3.574.804 habitantes. Esse é o cenário que transcorre a maioria das reportagens do telejornal Se Liga Bocão.

APRESENTAÇÃO

Na verdade, a prisão me fez reencontrar uma realidade vivenciada num passado não muito distante, mas que não fazia mais parte de mim. Eu nunca fui preso e também nunca fui bandido. Todavia, eu conhecia o mundo daquelas pessoas que estavam atrás das grades. Nunca me considerei um Zé Povinho, sujeito que não conhece a realidade da periferia, do crime e da prisão. No entanto, esta última faceta era a que me faltava nesta tríplice aliança. Não mais.

O autor

O interesse pela área, na verdade, confunde-se um pouco com minha própria história de vida. Se quem chega à prisão são aqueles que optam pelo mundo do crime, desde a minha infância, ainda em Santos, na Zona Noroeste da cidade, tive proximidade com as pessoas em questão. As ruas da periferia me apresentaram as facetas mundanas da vida. Morando na favela, quase que instintivamente, meu olhar sobre o mundo foi ficando mais apurado, atento àquilo que me circundava. Assim, sempre estive muito ligado aos cenários e acontecimentos que faziam parte do meu cotidiano. E o crime era meu vizinho. Conhecia bem as duas principais quadrilhas da área que, por seguirem caminhos diferentes, mas na mesma direção do mundo do crime, se respeitavam muito entre si, os assaltantes e os traficantes. E era difícil mesmo eu não saber quem era cada um, afinal morávamos todos próximos, convivíamos com a mesma realidade, estudávamos na mesma escola, frequentávamos, em alguns casos, a mesma sala de aula, em se tratando dos integrantes mais novos. Nesse contexto, infelizmente, recordo-me das brigas nos bares, dos confrontos com o pessoal de outras áreas da cidade, dos tiroteios, das mortes, das investidas policiais (averiguações e detenções), do clima tenso, do medo entre a maioria das famílias e tudo mais que envolvia um lugar em que parecia que o bem não transitava por ali.

Muito provavelmente, eu seguiria os mesmos passos dos amigos daquela época, seria mais um na lista daqueles que percorreriam o caminho quase que natural da vida social, ou seja, enveredaria para as aventuras e amarguras da criminalidade. Entretanto, devido às ações de uma senhora de pulso firme , minha mãe, que me direcionou para o mundo do trabalho, e os meus esforços para não interromper os estudos, a trajetória da minha vida seguiu um rumo diferente, na verdade, oposto àquele da maioria dos jovens com quem convivia à época. A escassez de tempo, pois minha vida foi ficando resumida ao trabalho e aos estudos, fez com que me distanciasse da rapaziada , do trocar de ideias diariamente, do conhecimento das notícias sobre o bairro e sobre os corres de cada um. Assim, superficialmente, ficava sabendo que um tinha sido preso aqui, outro assassinato ali, mais um havia desaparecido, outros estavam jurados de morte, alguns estavam foragidos da polícia ou dos próprios criminosos etc.

O vínculo, propriamente dito, com a prisão foi acontecer somente no final da década de 1990, quando iniciei o trabalho docente com turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA), na Penitenciária de Marília, interior do estado de São Paulo, período em que cursava Pedagogia na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Desde

o processo de seleção para contratação de professores, passando por minhas primeiras entradas na referida unidade prisional, até o desenvolvimento da prática pedagógica em sala de aula com os internos, sempre me recordava dos períodos vividos em Santos e, por meio dos semblantes dos meus alunos, avistava os rostos daqueles com quem tinha convivido nos períodos da infância e da adolescência. Foi na prisão que me encontrei profissionalmente. Não pelo fato do exercício da docência simplesmente, ação esta pela qual sou apaixonado até os dias atuais, mas pela possibilidade de efetivá-la com o sentido autêntico de criticidade, de integração, de conscientização, enfim, de libertação. Na verdade, a prisão me fez reencontrar uma realidade vivenciada num passado não muito distante, mas que não fazia mais parte de mim. Eu nunca fui preso e também nunca fui bandido. Todavia, eu conhecia o mundo daquelas pessoas que estavam atrás das grades. Nunca me considerei um Zé Povinho , sujeito que não conhece a realidade da periferia, do crime e da prisão. No entanto, esta última faceta era a que me faltava nesta tríplice aliança. Não mais. Porém, o início da minha vida na Penitenciária de Marília não veio acompanhado do uniforme de calças beges, do vulgo ladrão e de um novo número de documento – o prontuário de detento do sistema penitenciário.

Iniciado o trabalho docente com adultos presos, fui percebendo que a escola era um dos poucos pontos positivos da prisão. Além dela, talvez as atividades religiosas. O espaço escolar, especificamente, é o lugar menos pesado de uma cadeia. É possível perceber semblantes mais tranquilos e até sorrisos entre seus frequentadores. Há respeito, diálogo, entre professores e alunos. Isso pode parecer algo comum, habitual, para aqueles que lecionam em outras instituições educativas, mas no contexto prisional é um fator chamativo, diferenciado dos demais setores. Passei bons momentos na prisão, ricas experiências como professor e, antes, como ser humano. Cheguei até mesmo a reencontrar antigos conhecidos de Santos, presos por causa do tráfico de drogas, fato esse que, informalmente, me ajudou a conquistar mais rapidamente a confiança, se não de toda população da unidade prisional, dos meus alunos, pois as notícias na cadeia se espalham rapidamente, e eu percebi que, tendo uma trajetória de vida semelhante e um proceder cabeça , sua presença confere respeito e ganha confiabilidade no coletivo.

Com o passar dos anos, e foram quatro nesta rotina diária, o desconforto inicial de adentrar diariamente na prisão foi sendo substituído pela percepção da importância socioprofissional na execução das minhas atividades no pavilhão escolar da

Entre as novas leituras, independentemente do momento histórico e do aspecto privilegiado, autores como Joanides (1977), Betto (1978), Torres (1979), Ramos (1980), Obaluaê (1999), Lopes (2000), Mollina (2000), Jocenir (2001), Lima (2001), Mendes (2001, 2005), Ramos (2001), Du Rap (2002), Negrini (2002) e Rodrigues (2002) apresentaram diferentes denúncias às prisões brasileiras. Todas estas obras possuem características semelhantes. São histórias contadas por pessoas que estiveram, ou ainda, estão presas. São relatos de vida sobre como é viver na prisão, contados por quem vivenciou, ou continua vivenciando, a estrutura presidiária nacional. Afinal, só quem passou pela prisão pode contar com detalhes o que se passa ali dentro. É um tipo diferenciado de literatura, escrita por pessoas que, na maioria dos casos, não se imaginavam escritoras, que não cresceram no mundo letrado e que não tiveram muito contado com os livros. Entretanto, com a produção de livros significativos, puderam contribuir com aqueles que têm interesse em conhecer um pouco da biografia de pessoas, cujas vidas foram marcadas por diferentes tipos de exclusão, focalizando, em determinados momentos, a vida por trás das grades.

Esse acolhimento da palavra dos presos não significava rejeição da sabedoria acadêmica, da sua seriedade e rigorosidade. A pura e simples valorização do saber popular, separando-o do saber acadêmico, nega a possibilidade do diálogo entre os diferentes, fazendo com que o discurso das bases populares seja tão autoritário como as palavras da elite. Freire (1991, p.134), refletindo sobre o basismo, afirma que “estar com as bases populares, trabalhar com elas não significa erigi-las em proprietários da verdade e da virtude. Estar com elas significa respeitá-las, aprender com elas para a elas ensinar também”. Desta maneira, a partir das literaturas marginais, destas vozes da prisão, que serviram como estímulo para o aprofundamento dos meus estudos, eu pude perceber que a atenção dada à prática escolar desenvolvida dentro do cárcere era mínima. Surgiu, assim, a ideia de enfocar a escola encarcerada, explorando os discursos dos próprios detentos, e não deixando de valorizar todo o contexto em que ela está inserida, num projeto acadêmico de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

A dissertação “A escola pública encarcerada: como o Estado educa seus presos”, defendida no ano de 2004, preocupou-se em aproximar as falas dos sujeitos envolvidos no processo educativo ocorrido na prisão, ou seja, o discurso dos presidiários, professores, funcionários e diretores, à proposta curricular presente nas

penitenciárias paulistas de tal modo que pudesse perceber como a escola encarcerada colaborava na construção de uma consciência crítica entre os presos. Assim sendo, tive como objetivo analisar a participação dos encarcerados na elaboração curricular do Programa de Educação de Adultos Presos desenvolvido no Estado de São Paulo. Foi possível concluir que a educação predominante na prisão era opressora, controladora e domesticadora. A alienação realmente existe e os funcionários fazem questão de preservá-la. A prisão, com sua rotina e prática institucionais, de forma geral, não contribui em nada para a reabilitação das pessoas que cumprem suas penas privativas de liberdade. Dessa maneira, unicamente por meio da educação escolar, fica praticamente impossível pensar em uma verdadeira libertação daqueles que estão atrás das grades.

Já na Fundação Universidade do Tocantins (Unitins), a partir do ano de 2005, pertencendo ao quadro de docentes da referida universidade, retomei, de maneira institucionalizada, as pesquisas sobre a prisão. Com isso, os eventos em que participava colaboraram no estreitamento das relações não somente com pessoas, mas também com instituições, públicas ou privadas, e organizações, governamentais ou da sociedade civil, que trabalham, pesquisam e debatem temáticas que envolvam a temática prisional e o contexto do encarceramento de pessoas. Foi assim que, por meio do trabalho desenvolvido pelo Grupo de Pesquisa em Educação, Cultura e Transversalidade, do qual faço parte da equipe de pesquisadores na Linha de Pesquisa em Avaliação e Gestão da Educação em Sistemas Prisionais, promovemos diferentes oficinas pedagógicas de educação, comunicação, humanização e direitos humanos no sistema penitenciário do estado do Tocantins. A partir de tais oficinas, promovemos também o curso de pós- graduação lato sensu em Educação e Práticas Pedagógicas no Sistema Prisional onde continuamos com a formação complementar dos profissionais que atuavam no cárcere. Estes contatos, construídos permanentemente a partir da Unitins, aliados à boa repercussão dos trabalhos executados na própria universidade, ou nas secretarias estaduais de Justiça e Direitos Humanos, de Ciência e Tecnologia, de Educação e também de Segurança Pública, fortes parceiras institucionais, colaboraram para a implantação de novos programas e projetos na esfera pública penitenciária tocantinense.

Acompanhando de perto o desenvolvimento institucional da Unitins como membro da Comissão Própria de Avaliação - CPA, avaliando a sua atuação acadêmica e os rumos estratégicos projetados por seus gestores desde o final da década passada, pude perceber que, a partir da oferta de turmas de pós-graduação lato sensu em cursos