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Este texto aborda o tratamento behaviorista da reeducação social, com ênfase na perspectiva criminológica, explorando as estruturas teóricas em torno de três eixos polares: definição de personalidade criminosa, abordagem psicológica e funcionalidade da violência. O autor também analisa a criatividade de alex, sua devoção pela música clássica e a formação de gangues. O texto questiona a capacidade de decisão de alex e sua relação com a violência.
O que você vai aprender
Tipologia: Slides
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1.Introdução A Laranja Mecânica [A Clockwork Orange] (1962), de Anthony Burgess, mostra-
Dossier Citação Isabella Roberto, “Crime e Castigo em A Laranja Mecânica , de Anthony Burgess: Abordagem Crinimológica dos Usos da Violência.” Via Panorâmica : Revista Electrónica de Estudos Anglo- Americanos /An Anglo-American Studies Journal 2.” ser. 1(2008): 59-
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia clara aproximação entre ambos, identificando-se a acção isolada da criminalidade convencional enquanto tradução da ideia de violência. É precisamente este tipo de pensamento redutor que conduz à sustentação do sistema penal como um produto hábil em fornecer à sociedade a protecção e segurança desejadas, desviando, dessa forma, a atenção de factos mais danosos e permitindo o terrorismo oficial, perpetuador da injustiça, da desigualdade e da exclusão. Numa mesma linha de raciocínio, abarcaremos o tratamento behaviorista da reeducação social, balizado pela perspectiva da doutrina criminológica, pelo que se entende a estruturação do presente texto em torno de três eixos polares que enformam o respectivo enquadramento teórico: a definição de personalidade criminosa, segundo uma perspectiva sociológica; a adopção de uma abordagem psicológica que equaciona, conjuntamente, Behaviorismo e Criminologia; a funcionalidade da violência e a formação de gangues como validação de comportamentos socialmente desviantes. Optámos ainda pela exposição breve das questões-chave da obra, a saber, “violência juvenil”, “técnicas de modificação do comportamento”, “livre arbítrio/pecado original”, “repressão do estado socialista” e “imaturidade da juventude”. Já na reflexão final, faremos referência a alguns aspectos conclusivos da obra, nomeadamente o facto de esta poder ser lida como uma distopia envolta numa nota de “utopia”, tomando em linha de conta, também, o seu alcance e pertinência para um entendimento integrante da actualidade.
2. A Obra A acção de A Laranja Mecânica decorre na Londres do século XXI, tendo o primeiro capítulo como pano de fundo o “korova Milkbar”, um dos muitos bares onde são servidas bebidas de leite com aditivos, os “milkplus” – desde logo sinal da manipulação óbvia de um símbolo da inocência, o leite, aqui pervertido ao ser consumido com drogas e por marginais, para aguçar o apetite pela violência. A frase de abertura “what’s it going to be then, eh?”, repetida quatro vezes ao longo deste capítulo e iniciando cada uma das partes da obra, enfatiza a rotina de vida de Alex e o círculo vicioso para o qual a sociedade o empurrou, mas coloca também em aberto a possibilidade de liberdade de escolha, a capacidade de se optar por um determinado percurso de vida. É, aliás, a importância da liberdade de escolha o tema principal da obra, embora Burgess se refira, posteriormente, a uma série de argumentos que sugerem que essa mesma liberdade, sobretudo se ilimitada, pode ser perigosa. A obra retrata, pois, um mundo onde os jovens dominam na noite, mantendo as pessoas em casa, com medo. O protagonista é uma personagem
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia cidadania é praticamente nulo. O governo serve-se dos media para fazer propaganda, comparada na obra à “Técnica de Ludovico”: ambas constituem formas de lavagem cerebral perpetrada em vítimas indefesas, algumas com consentimento (Alex), algumas indirectamente forçadas a isso (povo), ou seja, levadas a ver filmes que as induzem a obedecer ao Estado. É um tipo de governo que transforma os cidadãos em máquinas e em simples ferramentas do Estado. O termo “soviet”, que é utilizado para significar ordem, serve também para aludir ao comunismo soviético e às rígidas hierarquias de poder que corrompem o sistema, apesar da manutenção de uma fachada de igualdade democrática. Criticando o capitalismo (abundância ostensiva de livre-arbítrio num ostensivo mercado livre), Burgess despreza mais ainda a falta de liberdade nas sociedades extensivamente controladas pelos governos, sobretudo a opressão comunista, de tal forma que quando Alex é preso a violência utilizada pela polícia, através do espancamento, é elucidativa do nível de corrupção a que o próprio Estado chegara. Burgess complica mais as coisas, sugerindo que a inclinação de Alex para o mal é inata, algo mecanicista, porque apesar de extrair satisfação da prática de actos violentos, estes são concretizados de um modo reflexivo. Assim, através de Alex, Burgess manifesta a sua crença no pecado original, na ideia bíblica de que o mal é natural no homem e não um produto do ambiente e essa condição implica uma ausência de escolha (para o bem, entenda-se): “Badness is of the self... and that self is made by old Bog or God” (34). A marca do pecado original está patente, sobretudo, na forma de governo – os médicos e outros representantes oficiais são capazes do mesmo sadismo e das mesmas práticas de violência que Alex e o seu gang. Para além disso, Alex insiste em afirmar que pratica o mal porque gosta: “What I do I do because I like to do” (34) e que a história moderna é a história dos que combatem a sociedade repressiva. No entanto, mesmo o indivíduo maculado pelo pecado original possui, certamente, maior capacidade de livre escolha do que alguém submetido à “Técnica de Ludovico”, numa proclamação nietzscheana da vida e da acção, o Eu individual destacando-se na singularidade da existência pessoal, uma existência não passiva, mas aberta ao risco, à incerteza e à angústia provenientes da possibilidade de liberdade. Por seu turno, P. R. Deltoid, o instrutor de Alex, (e também o resto da sociedade) acredita que o meio ambiente é, em certa forma, responsável pela imoralidade da juventude londrina, partilhando a crença de que, através de uma disciplina familiar e académica adequada, a par de uma reforçada vigilância policial, a juventude poderá comportar-se de forma mais aceitável. Mas Alex não culpabiliza o meio pelos seus actos malévolos, pelo contrário, foram esses actos que deram origem ao ambiente quase apocalíptico que se vivia em Londres. Alex
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia não sente remorsos pelos crimes de homicídio que praticou, já que há algo de mecânico nas suas acções, apesar de ter optado por elas. O próprio Ministro da Justiça, ao visitar Alex no presídio, refere-se ao impulso criminal como um reflexo que precisa de ser regulado, ou seja, os prisioneiros não exercem uma livre escolha quando optam pela via da imoralidade, fazem-no antes inconscientemente, como se estivessem predeterminados; nesse caso, a ameaça de castigo não serve de factor dissuasor: Common criminals like this unsavoury crowd... can best be dealt with on a puraly curative basis. Kill the criminal reflex, that’s all. Full implementation in a year’s time. Punishment means nothing to them. They enjoy their so-called punishment. They start murdering eachother. (73, 74) Assim, e ainda na prisão, Alex assina um documento para o seu “Reclamation Treatment” que pretendia recuperar os marginais e criminosos, devolvendo-os saudáveis à sociedade, ao mesmo tempo que contribuía para a redução da sobrelotação dos presídios. O capelão mostra-se, contudo, avesso ao tratamento que eliminará o desejo de Alex de cometer actos de violência ou de perturbar, seja de que maneira for, a ordem estabelecida, e apesar de Alex afirmar que será agradável ser bom – embora não acredite verdadeiramente nisso – o capelão considera que a capacidade de escolha é o mais importante a preservar: What does God want? Does God want goodness or the choice of goodness? Is a man who chooses the bad perhaps in some way better than a man who has the good imposed upon him?... And yet, in a sense, in choosing to be deprived of the ability to make an ethical choice, you have in a sense really chosen the good. So I shall like to think. (76) A “Técnica de Ludovico” tenta forçar criminosos incorrigíveis a serem bons, fazendo associar violência e criminalidade a sensações físicas desagradáveis. Os próprios médicos são sádicos e violentos: preso num colete de forças, com fios ligados ao corpo e sob o efeito de substâncias químicas, Alex é forçado a manter os olhos abertos através de duas pinças, uma situação que espelha o seu acto anterior quando obrigara F. Alexander a assistir ao assassínio da mulher. O método de controlo de pensamento é efectuado através do visionamento de filmes (estatais), a TV e o cinema funcionando como técnicas sofisticadas de lavagem cerebral. Em última instância, é o próprio governo que parece penetrar na mente das pessoas, eliminando o seu livre-arbítrio. É o que acontece com Alex: vítima do Estado repressivo, Alex ainda reage à violência, só que em vez de a mesma causar prazer, gera agonia. Na verdade, Alex perde a sua
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia Alex, subjaz o desejo de o jovem manter relações com a sua própria mãe. O facto de Alex decidir ter um filho pode também ser indicativo de que já terá ultrapassado o fascínio edipiano pela violência, por seios femininos e pelo leite (símbolos do nascimento e da infância e, de um modo mais geral, da imaturidade, fonte de todos os actos violentos irreflectidos). A juventude é tida como mecânica e determinista, agindo de acordo com a vontade de Deus, que faz girar a laranja, que é a terra e, enquanto assim for, os jovens continuarão a agir de modo irracional. Apenas aqueles que já viveram o suficiente para tomarem decisões acertadas podem reclamar possuir capacidade de escolha e possibilidade de escapar a um destino mecanicista, marcado pelo pecado original, bem como de escapar ao controlo de Deus sobre a terra. Provavelmente, pensa Alex, também o seu filho praticará o mal durante a adolescência, o pecado original não desaparecerá, mas, com o tempo e em algumas ocasiões, a capacidade de escolha poderá ser fortalecida, reduzindo-se mesmo os efeitos da marca do pecado original. O livro encerra, desta feita, com uma nota de esperança na regeneração da humanidade e na redenção cristã.
3. Enquadramento Teórico 3.1. Definição da Personalidade Criminosa: Perspectiva Sociológica A criminalidade mais recente tem-se traduzido em transgressões cada vez mais peculiares da lei pela prática de delitos presente num número maior de pessoas ditas “normais” e em faixas etárias cada vez mais baixas, traduzindo-se também em violações da moral e da ética motivadas por questões cada vez mais de difícil compreensão. Tudo isto exige novas reflexões acerca das relações entre a psicopatologia e o acto delituoso. Especular acerca da existência de uma personalidade propensa ao crime e ao delito sempre foi uma preocupação de muitos autores da Sociologia, da Psiquiatria e da Antropologia, que têm vindo a identificar alguns indivíduos como sendo “naturalmente maus”, portadores de “transtorno anti-social da personalidade” ou possuindo sintomas de sociopatia ou psicopatia. No entanto, a discussão produzida em torno da conduta humana resume-se, essencialmente, a dois argumentos causais: o livre-arbítrio, que implica uma consequência e eventual punição dos actos praticados, e a constituição biológica como uma fatalidade orgânica que leva o indivíduo a agir dessa ou daquela forma. A Sociologia, sobretudo, tem produzido várias teorias que procuram explicar o problema do crime. A “Monomania Homicida” foi uma designação proposta por Esquirol, em 1838, para identificar certas expressões de loucura cujo único sintoma evidente seria uma desordem ética e moral propensa à
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia prática de crimes. Tratar-se-ia de uma exigência mais social do que médica, numa tentativa de a sociedade segregar as duas figuras mais temidas do desvio da conduta humana: o louco alienado e o criminoso cruel. Em 1857, Morel avançou com a “Teoria da Degenerescência”, a partir da qual se desenvolveram as mais variadas teorias biológicas, psicológicas e sociológicas sobre o crime, a criminalidade e o criminoso. Com Lombroso distinguiram-se, apenas, dois tipos de criminosos: o “criminoso ocasional”, representado por uma pessoa normal e fortuitamente criminosa por influência de diversas circunstâncias, e o “criminoso nato”, de natureza mais próxima dos animais, instintivo, e cuja inclinação para o crime resultaria de uma organização própria da sua biologia. Seria uma pessoa agressiva, violenta, amoral. Segundo uma óptica médica, lombrosiana, as formas usadas para combater o crime seriam a esterilização e o extermínio. Na realidade, ao longo de mais de um século houve apenas um deslocamento das teorias deterministas: inicialmente, falava-se num determinismo biológico, em que a constituição genética e hereditária eram determinantes absolutos. Posteriormente, foi a vez do determinismo moral, em que o indivíduo nascia já, ou degenerado ou normal. O determinismo psicológico postulava que as diferentes maneiras de a pessoa reagir psicologicamente às contrariedades da vida eram inatas, absolutas e invariáveis. Finalmente, o determinismo social veio reconhecer a importância das circunstâncias sociais que empurravam, invariavelmente, a pessoa para o crime. De Greef (1946), sobretudo, chamou a atenção para a necessidade de se encarar o delinquente como qualquer outra pessoa, possuidor de uma história particular e com opções realizadas em função dessa história. Tal posição atenua, sobremaneira, a hipótese de uma incontrolável predeterminação biológica, psicológica e social para a criminalidade, uma fenomenologia que valorizava a conduta geral da pessoa, o seu carácter, os seus motivos, os seus instintos, afectos e antecedentes pessoais. A partir de então há a necessidade de se conhecer profundamente o criminoso naquilo que ele tem de mais específico: a sua personalidade própria, ao invés de se tentar definir uma personalidade geral, característica dos criminosos. Contudo, livrar-se da ideia de personalidade criminosa não seria tão simples quanto poderia parecer. Surge, então, o conceito de “perigosidade”, proposto por Debuyst (1977), e que incluía três elementos: a personalidade criminosa , a situação perigosa e a importância socio-cultural do acto perpetrado. Seria, assim, possível fazer um diagnóstico dos traços de personalidade e definir as medidas adequadas de intervenção. Pinatel (1991), por exemplo, defende a criminologia clínica como meio de se estudar os factores que conduzem ao acto delinquente e de identificar os traços psicológicos subjacentes a este. Podemos
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia de factores sociais e vivenciais, encontrando-se esta última questão directamente relacionada com as noções de livre arbítrio, de juízo, e da punibilidade do infractor.
3. 2. Comportamento e Criminologia: Perspectiva Psicológica O “Behaviorismo” é um movimento da Psicologia do Comportamento influenciado pelo avanço filosófico objectivista e mecanicista, pelo funcionalismo e sobretudo pela psicologia animal de Thorndike e Pavlov. Surge no início do século XX, nos Estados Unidos, com a obra de Watson e atinge o apogeu na década de 70 com os estudos de Skinner. A Psicologia à luz do “behaviorismo” é uma ciência do comportamento que se ocupa unicamente de actos observáveis de conduta, objectivamente descritos em termos de estímulo e resposta. Aplicado à Criminologia, pretende modificar o comportamento criminoso a partir de esquemas de reforço positivo. Skinner realizou diversas pesquisas sobre problemas de aprendizagem. Os seus estudos incluíam, entre outros temas, o papel da punição na aquisição de respostas, o efeito de diferentes esquemas de reforço, a extinção de resposta operante (resposta espontânea não dependendo de qualquer estímulo observável), o reforço secundário e a generalização. Assim, numa visão mecanicista e determinista, por oposição à ideia de livre-arbítrio e desenvolvendo uma “tecnologia do comportamento” traduzida num modelo de sociedade culturalmente livre de punições ( Beyond Freedom and Dignity , 1968), Skinner tentou transpor os resultados obtidos em laboratório (seguindo a abordagem do seu “aparelho de condicionamento operante”) para a sociedade, no intuito de transformar comportamentos desviantes em actos socialmente aceitáveis: já em 1948 Skinner havia publicado Walden II , descrevendo uma comunidade rural de 1000 pessoas, onde todos os aspectos da vida, desde o nascimento à morte, são “controlados” pelo reforço. Tal utopia poderá existir apenas na ficção, mas o controlo ou modificação do comportamento de pessoas e pequenos grupos continua a ser prática usual, sobretudo em escolas e estabelecimentos prisionais. Sabe-se que, ao longo dos tempos, instrumentos variados têm sido empregues no intuito da modificação, do controlo ou da alteração comportamental do homem. Primordialmente, a força física; num segundo estádio, o recurso, talvez, a apelos emocionais, ao diálogo ou aos argumentos lógicos. À medida que a complexidade das relações humanas se expande, a modificação do comportamento passa a ser institucionalizada através de sistemas legislativos, de governos políticos, da religião e da educação. Não
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia obstante, e em última análise, quando todas as instâncias parecem falhar, o controlo do comportamento permanece vinculado ao emprego da força, por meio da punição. Robert Geiser expõe a propósito: Quando tudo o mais fracassa, os homens ameaçam, condenam, castigam, batem, torturam, impõem penalidades, matam e justificam-se, alegando agir no interesse de pessoas obstinadas, que não querem modificar o seu comportamento para adequá-lo ao que a sociedade delas exige. Embora a humanidade tenha sido coberta por um verniz de civilização, conservamos vários traços do nosso passado primitivo. (10) A partir das concepções de Skinner o “behaviorismo” vai, pois, libertar-se das demonstrações empíricas de laboratório, lançando-se no sentido de modificar o comportamento social. Verifica-se então, sobretudo na prática do sistema penitenciário dos Estados Unidos, uma crescente aplicação da “Tecnologia Científica” skinneriana no campo da modificação do comportamento de criminosos violentos: técnicas que agem directamente sobre o sistema nervoso, geralmente com consequências irreversíveis, como a psicocirurgia, o uso de drogas hormonais (antitestosterona), de tranquilizantes ( prolixin) ou de venenos ( anectina ) que bloqueiam a transmissão neural para os músculos do corpo, inclusive os do diafragma – o intervalo de 30 a 60 segundos em que a pessoa fica sem respirar, provoca uma sensação de sufoco e afogamento – , mas também o recurso à estimulação eléctrica do cérebro exigem, no seu conjunto, pouca ou nenhuma participação activa do sujeito, este sentindo-se mecanicamente controlado. Impotente, a pessoa ouve uma prelecção acerca do seu comportamento violento com sugestões de que, se o mesmo persistir, ela será submetida a nova dose; o método é, pois, resultado da combinação entre a ideia de condicionamento clássico e o uso da punição. Os programas de controlo de comportamento, sobretudo da forma como foram empreendidos nos Estados Unidos, passaram a ser questionados sistematicamente pela opinião pública e inclusive judicialmente, por associações defensoras dos direitos humanos que encaravam os programas oficiais como uma forma de “controlo mental” ou mesmo como uma espécie de “psicogenocídio”, cuja função era “acalmar” prisioneiros violentos através de técnicas psicológicas baseadas, com alguma reserva, nos princípios da teoria skinneriana e algo parecidas com a lavagem cerebral: esta corresponderia, na sua essência, a um conjunto de aplicações variadas que poderiam, eventualmente, recorrer ao reforço positivo como forma de moldar o comportamento, podendo, contudo, envolver também privação sensorial e social, seguida de reforço para a obtenção do comportamento desejado ou envolver, ainda, dolorosa super-estimulação sensorial, a cessação do estímulo
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia uso de choques eléctricos, drogas que produzem náuseas ou vómitos ou o recurso à psicocirurgia. Preocupo-me com o ambiente das prisões e, mesmo assim, apenas com os seus aspectos compensadores. (qtd. in Geiser 77) Ainda hoje, embora recorrendo a mecanismos diferentes, a abordagem comportamentalista permanece como referencial para os programas de recuperação de criminosos, a par das mais recentes teorias da aprendizagem social (ou socio-comportamentalistas – Albert Bandura e Julian Rotter) em que se nota uma ênfase mais destacada nos processos cognitivos. Contudo, são inúmeras as questões que permanecem pertinentes: qual a extensão dos direitos à igualdade, à privacidade e à dignidade em relação aos presos? Até que ponto pode o programa institucional forçar um detido a modificar o seu comportamento sem o seu consentimento ou cooperação? O que significa recuperar, tornar mais dócil? E recuperar para que tipo de sociedade? A modificação do comportamento encontra a sua limitação na própria estreiteza do método “behaviorista”: a visão mecanicista do homem como uma máquina que interage em termos de estímulo-resposta, a ignorância da reciprocidade entre o homem e o sistema social em que se insere, a sua incapacidade, enfim, para controlar a multiplicidade de factores externos que actuam sobre o indivíduo numa sociedade aberta, além da não inclusão de factores psicológicos, mas sobretudo das questões éticas ligadas às técnicas de modificação do comportamento revelam a limitação do “behaviorismo” como ferramenta conceptual da Criminologia. E é bem possível que a revolta e a violência na sociedade sejam menos o resultado da acção de criminosos violentos do que reacções a um sistema violento. Punição gera frustração, que por sua vez conduz, sobretudo num ambiente de encarceramento, a um tipo de comportamento anti-social e a reacções violentas. Independentemente do modo como se encare as intenções de Skinner, quer este seja considerado um salvador ou um escravizador de seres humanos, não se pode negar o alcance da sua influência sobre a Psicologia e suas implicações nas diversas áreas do conhecimento, como é o caso da Criminologia. A grande questão que se coloca continua a ser mais de ordem deontológica do que científica reportando-se, sobretudo, às limitações éticas para a aplicação do conhecimento. Assim como não podemos responsabilizar Einstein pelo lançamento de bombas atómicas contra vítimas indefesas, não podemos condenar Skinner pelos excessos cometidos pelos modificadores do comportamento: afinal, quem controla os controladores? J. V. McConnell, psicólogo experimental, deixa-nos o seguinte alerta, em “Criminals Can Be Brainwashed – Now” (1970):
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia Podemos combinar privação sensorial com o uso de drogas, a hipnose e a hábil manipulação de recompensas e punições para obter o controlo quase absoluto sobre o comportamento do indivíduo. Prevejo o dia em que conseguiremos converter o pior dos criminosos num cidadão decente, respeitável, em questão de meses – ou talvez menos. O perigo é que poderemos, também, fazer o oposto, naturalmente: transformar qualquer cidadão decente, respeitável, num criminoso. ( 74 )
3. 3. A Violência Juvenil e a Formação de Gangues Uma primeira constatação leva-nos, de imediato, ao confronto com a utilidade e funcionalidade da violência para a vida em sociedade, enquanto estrutura marcante do próprio fenómeno humano. Émile Durkheim reporta-se a essa concepção utilitária de todos os factos sociais: Classificar o crime como um fenómeno comum da Sociologia não é apenas dizer que constitui um fenómeno inevitável, embora lastimável e originado pela maldade incorrigível dos homens; é afirmar que é um factor de saúde pública, uma parte integrante de toda a sociedade sã. Este resultado é, à primeira vista, tão surpreendente, que nos desconcertou durante muito tempo.... O crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele. (58) Mais recentemente, Michel Maffesoli, em Dinâmica da Violência , expôs: A violência, a crueldade, a desordem, a perda são apenas aspectos da vida quotidiana levados ao seu extremo, e esse limite é a condição de um reabastecimento dessa mesma vida quotidiana. O “reabastecimento” de que acabamos de falar exprime, aos nossos olhos, esse processo lógico, orgânico que une a monotonia à intensidade, a partir do momento em que cada um é aceite enquanto tal, como elemento de um conjunto. (55) Por outras palavras, também a violência ocupa um status de normalidade no nosso contexto civilizacional. Logo, a violência é funcional, exerce uma função na sociedade, é uma violência não centrada no indivíduo, mas inserida numa visão macrossocial. Relancemos agora sobre o discurso uma outra perspectiva: se a heterogeneidade gera a violência, a homogeneidade gera a passividade, mas é também potencialmente mortífera. Atente-se, por exemplo, na aparente congruência dos quatro jovens que compõem o gang de Alex: são visualmente idênticos nas roupas que usam, partilham o mesmo calão linguístico e unem-se numa prática quotidiana de delitos. Contudo, esse comportamento de homogeneização acarreta também em si a heterogeneidade em relação a todos
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia de cabeça para não ir à escola. Esse dado é importante, uma vez que a escola espelha a ideologia democratizante e meritocrática da sociedade global. Também Talcott Parsons, em Essays in Sociological Theory (1964), se refere ao aparecimento de uma “youth culture”, caracterizada pela irresponsabilidade e surgida no epicentro das tensões relacionais entre jovens e adultos, por decorrência dos comportamentos, dos valores e das exigências da sociedade industrial. Chamando a atenção para a facilidade com que um jovem, mesmo antes de completar dezoito anos, se integrava no mercado de trabalho, nas primeiras décadas do século XX, Parsons destaca a importância de uma inserção sem traumas na vida adulta e na cultura dominante. Já na década de 50/60 – época em que foi escrito e filmado Laranja Mecânica – era imprescindível a qualificação técnica mais especializada para a integração no sistema socio-económico. Dessa forma, transferiu-se da idade média de dezassete para vinte e quatro anos a entrada no mercado de trabalho, o que alterou significativamente as fronteiras de valores e de relacionamento entre gerações. Ora, esse distanciamento temporal acarretou consigo um vazio na vida desses jovens, que ficaram sem definição social clara, emergindo, então, uma “teenager culture”. Como se não bastasse (e vemos isso no livro e no filme), a estrutura familiar apresenta-se em contínua desregulação, com reflexos evidentes na formação moral e educacional dos jovens, sobretudo de classe média. Os pais de Alex, por exemplo, são desvinculados da sua vida social, não sabendo sequer se o filho “trabalha” à noite, nem tão pouco se esforçando por o saber. Surgem as crises de identidade, cuja superação encontra terreno fértil dentro das subculturas juvenis, meio onde buscam o prestígio, o status , a dominação, mesmo sendo no interior do seu universo jovem. A partir desse desenho macrossocial, é possível alcançar-se certo grau de solidariedade numa lógica grupal, que conduz à prática colectiva de violência e ilegalidade: vandalismo, consumo de drogas, roubo, estupro, infracções às normas ou padrões sociais. Tudo em contraste frontal com a cultura dominante. Já em 1939 Frank Tannenbaum, em Crime and the Community , havia sugerido que o gang não se forma apenas por uma questão de sedução em si, mas porque as forças socioculturais positivas, como a família, a escola e a Igreja, que deveriam condicionar o indivíduo para comportamentos socialmente aceitáveis, são frágeis ou quase ausentes (cf. Huesman 77), mas foi W. B. Miller, em Crime by Youth Gangs and Groups in the United States (1982), que nos ofereceu uma perspectiva mais inclusiva, que melhor parece captar os determinantes complexos da formação de um gang:
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia Youth gangs persist because they are a product of conditions basic to our social order. Among these are a division of labor between the family and the peer group in the socialisation of adolescents, and emphasis on masculinity and collective action in the male subculture; a stress on excitement, congregation, and mating in the adolescent subculture; the importance of toughness and smartness in the subcultures of lower status populations; and the density conditions and territoriality patterns affecting the subcultures of urban and urbanized locales. (qtd. in Huesman 77) Na sua grande maioria, os jovens juntam-se a gangues para obterem o que todos os adolescentes procuram – amizade, camaradagem, orgulho, desenvolvimento da identidade própria, reforço da auto-estima, variedade de estímulos, aquisição de recursos, e como contra-resposta à tradição familiar e comunitária. Estes recursos, infelizmente, nem sempre estão ao alcance dos jovens através dos meios legítimos. E o que fazem os gangues? A maior parte diverte-se apenas com actividades inter-relacionais características de quase todos os adolescentes. Podem reclamar e definir para si um território geográfico, recorrendo ao uso exaustivo do graffiti , desafiando os gangues rivais, adoptando cores distintas nos seus vestuários ou outros acessórios identificativos ou mesmo tatuando o corpo. Frequentemente, praticam actos delinquentes, envolvendo-se em diferentes formas e níveis de comportamento agressivo. Desta feita, a resposta à pergunta “o que é um gang?” tem evoluído cronologicamente de um grupo de amigos com pressupostos estratégicos sediados em estímulos inconscientes e necessidades instintivas (J. A. Puffer, 1912), para um grupo originado por conflitos com os outros (F. M. Thrasher, 1927 - 1963), para uma agregação denominada de “gang” através de processos de auto-rotulação e de discriminação comunitária (M. W. Klein, 1971), para uma definição única de comportamento territorial e delinquente (S. Gardner, 1985) evidenciando, mais recentemente, um enfoque particular na violência e no consumo de drogas (I. A. Spergel et al., Youth Gangs: Problem and Response,
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia perceptível, de negação, de resistência e de insubmissão. O preso rebela-se porque se recusa a receber determinado tratamento penitenciário, o povo revolta-se porque não lhe é prestada a devida assistência, a violência existe porque é a forma de se exteriorizar algum tipo de inconformismo. Falamos do desejo de viver fora dos parâmetros impostos, falamos de resistência ao comportamento social-padrão. A marginalidade, portanto, é supostamente anti-social, mas trata-se, de facto, de uma para-sociedade avalista do bom funcionamento do conjunto social. Daí a conclusão: a ultra-violência dos “droogs” é lógica e serve de equilíbrio social, os seus membros são cúmplices do sistema que os oprime e do qual, por outro lado, se desejam libertar. E é necessário que alguém desempenhe esse papel para que o sistema continue coeso. Assim, é quase certo que o processo final do novo mecanismo utilizado pelo Estado contra o delinquente seja um processo de conter o indivíduo, visando o estabelecimento e a manutenção do equilíbrio social como um todo. Em oposição directa à duplicidade do mundo de P. R. Deltoid, por exemplo, que condena a violência dos mais jovens, mas desce ao mesmo nível para combatê-la, a individualidade de Alex revela-nos, quiçá , uma insatisfação com a sua própria vida, procurando o prazer no desvio ao máximo do padrão a que é suposto se adequar. Alex não aceita. Foge, luta, revolta-se, agride a sociedade de todas as formas. Levado ao limite pela repressão do governo e sendo-lhe negados outros meios de expressão, os ataques brutais surgem como “veículo de comunicação” para este “poeta da violência”: os seus actos de sadismo são “graciosos”, assemelhando-se quase a uma dança, são “obras-de-arte” planeadas com cuidado extremo e atenção ao pormenor. Qual o objectivo da sua violência? Ferir a sociedade de morte, é um facto, mas, dessa forma, acaba por ser co-réu do sistema. Ele é meio, fim e causa do sistema excludente. A violência de Alex parte da sociedade, ganha reforço individualista pela sua auto-concepção de pessoa na sociedade e, em última instância, acaba sendo útil à mesma. O círculo fecha-se. Alex foi adaptado a uma situação em que, se não tivesse cometido actos de ultra-violência, não seria possível a aplicação do novo modo de reinserção social. Eis o aspecto utilitário, social, planificado, “adaptável” da violência individual de Alex, gerando-se como que um ciclo de violência: Alex contra a sociedade e a sociedade contra Alex, embora persista uma apologia dos valores sociais contra os do jovem. Não obstante, será à custa (ou por intermédio) do próprio que se vai operar uma renovação (ou inovação) no mecanismo de “domesticação” do criminoso. A violência é ambígua, ela cria e ao mesmo tempo destrói. De qualquer forma,
Isabella Roberto 1 (2008) Dossier :^ Em Defesa da Utopia acreditamos que o caminho para a paz vai ao encontro do que afirma Marshall B. Clinard, em “Criminological Research”: Studies of such delinquent groups in middle-class communities, suburban areas, and cities and rural areas of various sizes and types are needed. With this information, sociologists could move far beyond mere generalities to specific knowledge of the effect of gangs on members. Undoubtedly it will be found that gang can be typed according to differences in structure and function. Moreover, more detailed research on gangs may help us to integrate some psychiatric thinking with sociology. (qtd. in Belo: n.pag.)
4. Reflexão Final: A Laranja Mecânica como “Utopia”, ou pelo contrário? A Laranja Mecânica expõe uma visão terrífica do futuro, uma distopia rotulada como um pesadelo proléptico orwelliano, muito próxima também do Brave New World , de Huxley. Burgess descreve uma Inglaterra socialista combalida, que anestesia a mente dos indivíduos através de filmes estatais, retirando-lhes a sua individualidade e livre-arbítrio. O governo dessa nação sonâmbula sujeita as massas a uma vida mecanizada, desumanizada, em que todos são obrigados a ter um trabalho. O Estado governa com punho de aço e o próprio partido do poder instiga o crime como modo de controlar os indivíduos. Como as leis parecem não funcionar, o governo busca novas formas de reintegrar o homem “mau”, na sociedade, tornando-o “bom” – para tal recorre a mecanismos técnicos e psicológicos, testados, por exemplo, na indução do comportamento de Alex: o novo indivíduo daí resultante é como uma “laranja mecânica”, “something which was capable of taste, colour, richness and sweetness like an orange could be turned into a robot or an automaton that obeyed purely mechanical or reflex driven laws” (Burgess 22). À luz dos nossos dias, Alex é um exemplo óbvio de um “cyborg” (cf. Donna Haraway, Manifest for Cyborgs , 1989), um organismo em que não há necessariamente a fusão entre máquina e carne, mas, e neste caso, uma absorção dos media pelo corpo do jovem e sua consequente alienação, uma alienação, apesar de tudo, superficial, uma vez que o inconsciente de Alex permanece imbuído da mesma violência que fazia explodir quando saía às ruas mascarado, acompanhado dos seus “droogs”, assaltando, espancando, estuprando, matando. E é durante a sujeição à técnica de Ludovico que Alex é obrigado a assistir a um filme acerca do nazismo, ao som da 9.ª sinfonia de seu amado Beethoven. Alex sente náuseas. Como seria possível estar a ouvir a música de que mais gostava acompanhada de imagens tão cruéis? É o paradoxo. Eis, justamente, uma das características da “cyborgisação”, a hibridização que corresponde a um organismo de identidade cambaleante, metade máquina, metade humano, que rompe com a fronteira entre o orgânico e o inorgânico, o