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Uma análise de duas canções do rapper criolo: 'convoque seu buda' e 'esquiva da esgrima'. O texto aborda a maneira como criolo denuncia as humilhações sofridas pelo povo trabalhador e o papel da spiritualidade na resistência contra a opressão. Além disso, o autor discute a importância da oralidade na construção da resistência dos marginalizados no brasil.
Tipologia: Notas de estudo
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Jurema Oliveira Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes Wellington A. dos Santos Universidade Federal do Espírito Santo - Ufes RESUMO: O presente trabalho identifica e analisa questões ligadas à espiritualidade e às mazelas sociais brasileiras, a partir das letras de duas canções do rapper Criolo: “Convoque seu Buda” e “Esquiva da esgrima”. É evidenciado o poder de representatividade do rap na resistência dos marginalizados contra as violências historicamente sofridas, na valorização de suas origens e no fortalecimento da sua autoestima. Para tanto, o trabalho traz como fundamentação teórica, pensamentos de estudiosos como Eduardo Marinho, Amadou Hampaté Bâ, Karl Marx e Friedrich Engels, Jorge Nascimento, dentre outros. O trabalho propõe um (^) Pós-Doutorado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora da Fundação de Amparo à Pesquisa e a Inovação do Espírito Santo – Fapes. (^) Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
542 rompimento com as velhas práticas sociais que legitimam os privilégios de pequenos grupos, enquanto marginalizam, exploram e violentam a maior parcela da sociedade. Palavras-chave: Espiritualidade. Rap. Opressão. Resistência. ASTRACT: This paper identifies and analyzes issues related to Brazilian spirituality and social ills, based on the lyrics of two of Criolo's raps: “Convoque seu Buda” and “Esquiva da Esgrima”. Rap's representativeness is evidenced in the resistance of the marginalized against the historically suffered violence, in the valorization of their origins and in the strengthening of their self-esteem. Therefore, the work brings as theoretical foundation ideas from thinkers such as Eduardo Marinho, Amadou Hampaté Bâ, Karl Marx and Friedrich Engels, Jorge Nascimento, among others. The work proposes a break with the old social practices that legitimize the privileges of small groups, while marginalizing, exploiting and violating most of society. Keywords: Spirituality. Rap music. Oppression. Resistance. INTRODUÇÃO Este artigo procura, por meio das letras das canções “Convoque seu Buda” e “Esquiva da esgrima” do rapper Criolo, evidenciar aspectos representativos das inquietações de indivíduos periféricos na voz poética do rap, contra a marginalização e violências sofridas. São destacados e analisados, versos pontuais das canções escolhidas que fazem referência aos descontentamentos das massas menos favorecidas que compõem, basicamente, as populações das periferias, favelas e morros dos grandes centros urbanos do Brasil, levando em conta sua espiritualidade, suas raízes culturais e outras particularidades. Para tanto, é levado em consideração o olhar crítico e familiarizado do rapper Criolo para as questões causadoras do desequilíbrio da nossa formação social. No tópico “Convocando ‘Budas’ para resistir”, é evidenciada a maneira como Criolo denuncia as humilhações sofridas pelo povo trabalhador das camadas menos favorecidas, sugerindo que estes, o povo, vítimas dos jogos de poder orquestrados para garantir os privilégios de uma pequena parcela da nossa sociedade, busquem pela sua espiritualidade, equilíbrio e sagacidade para suportar e combater a dominação e as práticas exploratórias mantenedoras do bem estar dos que controlam a economia, a cultura, os discursos, as tendências e a sociedade como um todo, sempre em seu favor. O tópico “Esquivando-se da
544 ao passo que criminalizam e demonizam determinadas camadas da sociedade; promovendo assim, a marginalização daqueles que não se enquadram nos preceitos estabelecidos em benefício dos grupos hegemônicos. Nessa lógica, é desenvolvido no povo, afetado por essas manobras, o sentimento de uma culpa contraditória (MARINHO, 2018^2 ). No rap “Convoque seu Buda’, Criolo demonstra aparente compreensão da dominação, controle e alienação presentes nas doutrinas dos segmentos religiosos mais difundidos no Brasil, ao propor, nos primeiros versos: “Convoque seu Buda! / O clima tá tenso”. Ao aconselhar a convocação do próprio “Buda”, o rapper sugere que se busque na crença inerente a cada um, as forças espirituais para confrontar as adversidades. Criolo (2014), ao ser indagado numa entrevista, sobre a representatividade da convocação do “Buda” proposta por ele, responde: É uma paz interior. Procurar o equilíbrio, algo positivo dentro de você. Porque, se a gente for deixar se levar por tudo que está acontecendo todos os dias, só vai fortalecer as coisas negativas. A gente vai perder totalmente a esperança na humanidade (CRIOLO, 2014^3 ). Nessa perspectiva, buscar a positividade dentro de si para alcançar o equilíbrio, como sugerido pelo rapper, implicaria em rupturas com as doutrinas sociais e religiosas vigentes na nossa sociedade, que ao longo de todo o processo de desenvolvimento social no Brasil, legitimam os privilégios dos “escolhidos” e naturalizam as agruras dos desfavorecidos. Estes últimos, vítimas da ignorância tendenciosamente imposta, são facilmente manipulados para contribuir cordialmente com as manobras de manutenção do bem-estar dos seus malfeitores. As ideias da classe dominante são também as ideias dominantes de cada época. Ou, por outras palavras, a classe que é a potência material (^2) https://www.youtube.com/watch?v=iqFOmq_9TR8. (^3) https://musica.uol.com.br/noticias/redacao/2014/10/29/em-busca-do-equilibrio-criolo-lanca-single-e- se-diz-feliz-por-estar-vivo.htm#fotoNav=5.
545 dominante da sociedade é também a potência espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção intelectual, de maneira que, em média, as ideias daqueles a quem são recusados os meios de produção intelectual estão desde logo submetidas a essa classe dominante (MARX; ENGELS, 1974, p. 22). De acordo com Christopher Hitchens (2009), as religiões hegemônicas desenvolvem nas pessoas um sentimento de uma culpa que os persegue por toda parte, encarando-os sempre como pecadores; pondo-os sempre em estado de medo e em posição suplicante, diante de um deus furioso: There is a paradox at the core of religion. The three great monotheisms teach people to think abjectly of themselves, as miserable and guilty sinners prostrate before an angry and jealous god who, according to discrepant accounts, fashioned them either out of dust and clay or a clot of blood. The positions for prayer are usually emulations of the supplicant serf before an ill-tempered monarch. The message is one of the continual submission, gratitude, and fear (HITCHENS, 2009, p. 73- 74). Os ideais religiosos acima citados, sempre atuaram poderosamente no controle, criminalização, silenciamento e marginalização das massas. No verso “Mandaram avisar que vão torrar o centro”, do rap “Convoque seu Buda”, Criolo aponta para uma questão que tem levado terror e desalojamento para várias famílias marginalizadas na Grande São Paulo nos últimos anos. Trata-se, pois, de incêndios provocados em favelas da cidade. Na maioria dos casos, tratados como criminosos; tentativas de promover a desocupação de áreas estratégicas para o lucro das especulações imobiliárias, como os incêndios ocorridos na favela do Piolho no Campo Belo, região Centro-Sul da cidade de São Paulo, em 2012 e 2014. No último, cerca de oitenta por cento dos barracos foram consumidos pelas chamas (BARCELOS, 2017^4 ). (^4) https://exame.abril.com.br/brasil/incendios-em-favelas-atingem-terrenos-de-maior-valor-em-sao- paulo/.
547 É possível afirmar que as ações de resistência entre indivíduos periféricos, como percebido acima, sejam um reflexo da apropriação, por parte destes, das reflexões de conscientização proporcionadas pelos discursos das manifestações culturais desenvolvidas nas periferias do país. Nesta seara, o rap se destaca por seu potencial performático/pedagógico de transmitir informações esclarecedoras acerca das mazelas e degradações sociais, dos posicionamentos políticos, e do fortalecimento da resistência e da autoestima dos marginalizados, confrontando a “ordem” estabelecida. As vozes performáticas vêm dizer então que os conflitos sociais já foram descobertos e deglutidos, que essas vozes têm poder de perturbar a “ordem pública” de uma falsa conformação social. Daí, temas como estigmatização, criminalidade, racismo, guetização, miséria, e a busca pedagógica de saídas através de caminhos que levem à autovalorização sejam constantes nos longos épicos poemas trazidos pelos rappers (NASCIMENTO, 2011, p. 224). Esse poder de reflexão que visa conscientizar as camadas sociais menos favorecidas, marcante na voz da maioria dos rappers provindos dos guetos brasileiros, pode ser percebido em “Convoque seu Buda” de Criolo: “Sonho em corrosão, migalhas são / Como assim bala perdida? O corpo caiu no chão! / Num trago pra morte cirrose de depressão / Se o pensamento nasce livre aqui ele não é não”. Nessa sequência de versos, o rapper Criolo faz inicialmente referência aos sonhos frustrados de muitos jovens, capturados pela fábrica de sonhos do consumo e pela perspectiva de possibilidades enganosas, que lhes são diariamente negadas, por serem reservadas para os filhos dos privilégios, restando para os marginalizados, quando sobram, apenas as “migalhas”. No segundo verso, o rapper questiona a validade da expressão “bala perdida”, muito comum em grandes centros urbanos brasileiros, onde o desequilíbrio e conflitos sociais são flagrantes. Seguindo o raciocínio de Criolo, se uma bala disparada de um determinado ponto, faz uma vítima, e nesses casos é sempre uma pessoa inocente, não pode ser chamada de “bala perdida”. No último verso, o rapper critica as práticas de controle do pensamento via indústria cultural e mídias de grande alcance, orquestradas para a manutenção do status quo que legitima os privilégios das elites.
548 Em “Convoque seu Buda”, também é marcante a exaltação da beleza dos povos periféricos e da herança ancestral destes, compostos em sua maioria, por afrodescendentes, como é possível ver nos seguintes versos da canção: A beleza de um povo, favela não sucumbi Meu lado África, aflorar, me redimir O anjo do mal alicia o meninin Toda noite alguém morre Preto ou pobre por aqui. Além de reverenciar a força dos elementos da herança africana como fatores de fortalecimento das lutas dos historicamente marginalizados no Brasil, Criolo critica a ação do crime organizado de seduzir e aliciar crianças para suas arriscadas práticas. O rapper denuncia também, a frequência da violência que todos os dias, promove violação de direitos e supressão da vida de negros nas “quebradas”. Do ponto de vista legal, a violação das leis sociais, que estabelecem os direitos e deveres do cidadão, ocorre a partir de uma violência simbólica e/ ou concreta que implica muitas vezes danos psíquicos ou a morte propriamente dita (OLIVEIRA, 2007, p. 21). Por aqui, as práticas de violência simbólicas e concretas, encarregam-se de garantir uma “normalidade” favorável aos grupos sociais “hegemônicos”, que não medem esforços para legitimarem sua efetividade e medidas ostensivas, seja pelo sensacionalismo midiático, seja por ideais religiosos, truculência policial, criminalização das camadas menos favorecidas, dentre outras ações. Um dos pontos cruciais de “Convoque seu Buda” é o respeito à diversidade religiosa; ficando isso evidente, nos versos que compõem seu refrão: Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu Shiva, Ganesh, Zé Pilin, dai equilíbrio Ao trabalhador que corre atrás do pão É humilhação demais que não cabe nesse refrão. Ao invocar os nomes de diferentes entidades religiosas e de lutas como a capoeira, Criolo reclama forças para os trabalhadores brasileiros, que na sua maioria, são periféricos e, sofrem muitas vezes com os baixos salários e péssimas condições de trabalho, para garantir o lucro e o luxo dos seus
550 Perrenoud, Piaget, Sabotá, Enchanté. O “Grajaú”, bairro periférico situado na Zona Sul de São Paulo, é o local de nascimento do rapper Criolo, enquanto que “Curuzu”, trata-se de um bairro de maioria populacional negra na cidade de Salvador. Na lógica dos deslocamentos, ao taxar seu povo de “mula”, Criolo ataca o fato de, essas pessoas, em busca de meios de subsistência e supressão da miséria destinada para si e para os seus, serem facilmente cooptadas por criminosos para o transporte e venda de drogas. Há ainda nessa sequência de versos, menção aos trabalhos inspiradores para as pessoas periféricas, segundo a visão de Criolo, do rapper Black Alien^7 e do escritor Ferréz^8 , como contrapontos às inspirações proporcionadas pela “Tia Augusta^9 ”. Há também referência aos conhecimentos adquiridos nas ruas, a partir de suas vivências, suas lutas e descobertas, pelos marginalizados. Dizer que todo “maloqueiro tem um saber empírico”, pode, em certa medida, ser considerada uma alusão ao pensamento cartesiano de aquisição do conhecimento pelas próprias experiências de vida. A valorização da grandiosidade das expressões do rap fica flagrante no último verso da sequência acima citada, quando da aparição do nome “Sabotá” (contração do nome do rapper Sabotage), num mesmo nível de pensadores importantes como Philippe Perrenoud e Jean Piaget. A sagacidade evidenciada na voz poética de Criolo, articulada em defesa e valorização dos marginalizados e da comunidade à qual o rapper é residente, pode ser comparada às noções de sabedoria defendidas pelo pensamento (^7) Gustavo Black Alien é um rapper da cidade de Niterói. Ele foi um dos integrantes da banda Planet Hemp. (^8) Reginaldo Ferreira da Silva, Ferréz, é um romancista, poeta, contista e empreendedor que utiliza temáticas e linguagem periféricas nas suas produções. (^9) Agência de viagens de São Paulo, famosa por conduzir grupos de crianças para a Disney. A empresa faliu em 2011.
551 filosófico africano, partindo das considerações de Kibujjo M. Kalumba (2004) sobre as asseverações de Henry Odera Oruka: A maioria das pessoas concorda que um sábio é uma pessoa excepcionalmente inteligente. Além dessa sabedoria, Henry Odera Oruka sugere um segundo critério sobre a sagacidade. Um verdadeiro sábio, ele diz, deve usar habitualmente o dom da sabedoria para o aperfeiçoamento ético de sua comunidade. Por isso, ele ou ela tem que ser constantemente preocupado com os problemas éticos e empíricos provenientes de sua comunidade, com a intenção de encontrar soluções interessantes para elas (KALUMBA, 2004, p. 274). Criolo exalta a força e resistência dos nordestinos e seus descendentes, vítimas da escassez de recursos naturais, sociais e econômicos, nos versos: “É que eu sou fi de cearense / A caatinga castiga e meu povo tem sangue quente”. Essa exaltação de símbolos que caracterizam as qualidades e a relação de proximidade com a terra natal de seus ancestrais, dialoga com os ideais pan- africanistas de ancestralidade e relação de pertencimento com a terra progenitora dos povos africanos, numa associação à figura da mulher, enquanto símbolo de fertilidade (SANTOS, 2007, p. 27). Essa temática foi elemento forte nos movimentos de libertação de Angola dos domínios portugueses. A configuração do símbolo angolano da Mãe-África é igual à ocorrida no restante do continente africano e na diáspora negra, pois assenta-se sobre a mesma base ideológica (e mitológica) pan-africanista. Angola e toda a África subsaariana possuem algumas características histórico- sócio-culturais que reforçam a ligação simbólica envolvendo a mulher (mãe) e terra (nação e continente), associadas à ancestralidade africana. Dentre essas características, a principal delas é o “sistema político-social matrilinear” que predominava entre as civilizações africanas pré-coloniais (SANTOS, 2007, p. 29). Uma alusão à espiritualidade dos nordestinos, em “Esquiva da esgrima”, está presente no verso: “Nas bença de Padim Ciço às letra de Edi Rock”. Cícero Romão Batista, ou Padim Ciço, como ficou popularmente conhecido, foi um religioso do nordeste brasileiro de origem cearense, que viveu entre 1844 e 1934 e exerceu grande influência na vida religiosa, política e social do povo Nordeste, sendo muito respeitado e prestigiado por seus feitos. Edi Rock, por sua vez, é o nome artístico do rapper Edivaldo Pereira Alves, um dos integrantes do consagrado grupo de rap Racionais MC’s. Edi Rock é, do mesmo modo que Criolo, filho de nordestinos radicados em São Paulo, filhos da escassez que os
553 pessoas se fecham em vivências desprovidas de sentidos proveitosos para uma existência prazerosa, perseguindo com total afinco, apenas os lucros financeiros, conquistados na maioria das vezes, pela exploração do trabalho de pessoas humildes. A crítica em questão é desenvolvida num interessante jogo de palavras: Hoje não tem boca pra se beijar Não tem alma pra se lavar Não tem vida pra se viver Mas tem dinheiro pra se contar De terno e gravata teu pai agradar Levar tua filha pro mundo perder É o céu da boca do inferno esperando você É o céu da boca do inferno esperando. Ao afirmar: “Não tem alma pra se lavar”, o rapper faz alusão à expressão “alma lavada”, muito utilizada no Brasil para exprimir paz de espírito, tranquilidade, boa intenção para com o próximo, dentre outros sentimentos positivos; porém, na sua visão, considerando a maneira como muitas pessoas têm vivido suas vidas, torna-se difícil encontrar “almas lavadas”. Para o verso: “Não tem vida pra se viver” são possíveis duas leituras, de acordo com as análises aqui pretendidas: na primeira, essa “vida” que não se vive, pode ser representada na vida permeada pela busca ferrenha e gananciosa do lucro a qualquer custo. A segunda leitura possível está relacionada com a condição de “não existência” dos marginalizados, que são silenciados e invizibilizados no âmbito da nossa sociedade, impedidos de levar uma vida com dignidade; assim, seguindo o pensamento de Criolo, não “tem vida pra se viver”. Na perspectiva de lutar contra essa “não existência” que agride diariamente os marginalizados, o rap, com sua potente voz poética, tem si tornado um eficaz elemento de resistência e produção de autoestima desse povo degradado socialmente e economicamente no nosso país.
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Conclui-se que, para que haja mais equilíbrio social, respeito às diversidades raciais, religiosas e de toda sorte, é necessário o surgimento de políticas educacionais que possibilitem o rompimento com as velhas práticas sociais estabelecidas para o favorecimento das elites hegemônicas e marginalização dos pretos, pobres e de todos aqueles que não correspondem às ordens sacralizadas. Romper com as normas sociais vigentes, internalizadas no imaginário popular de todas as maneiras pelos donos do poder, para legitimar seu domínio e exploração, implica na violação da vida desprovida de sentidos proporcionada na modernidade. Nessa lógica, as massas desenvolvem uma visão de mundo genérica, destoante da criada a partir das suas vivências, da realidade do seu povo, das suas raízes ancestrais; a naturalização de uma percepção distorcida. “Esse ‘sentido de mundo’ nos parece, então, ‘natural’, dado que nascemos sob a influência dele, e são pessoas amadas e admiradas, em casa, na escola ou na televisão, que nos apresentam a ele” (SOUZA, 2017, p. 8). Como então, promover as políticas necessárias para o afloramento da justiça social, racial, contra a intolerância religiosa e outras questões sérias em debate nos últimos anos, como aborto e sexualidade? O rap, ao seu modo, como as canções do rapper Criolo aqui analisadas, com o alcance e impacto da sua voz político-poético-pedagógica tem proporcionado, entre os marginalizados nas últimas décadas, diferentes olhares e comportamentos frente aos questionáveis dogmas sociais naturalizados no Brasil; sendo, portanto, uma resposta consistente ao questionamento feito acima.
556 Humanas, Educação e Letras da Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon.
VERGUEIRO, Marina. Arte sempre existiu na periferia, mas o preconceito cegou as pessoas, diz rapper Criolo. Disponível em: https://musica.uol.com.br/ultnot/2011/06/01/arte-sempre-existiu-na-periferia-mas- o-preconceito-deixou-as-pessoas-cegas-diz-rapper-criolo.htm. Acesso em: 11/11/2019. DISCOGRAFIA CRIOLO. Convoque seu Buda. São Paulo: Oloko Records, 2014. Recebido em: 30 de julho de 2019. Aprovado em: 15 de outubro de 2019.
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Convoque seu Buda O clima tá tenso! Mandaram avisar que vão torrar o centro Já diz o ditado, apressado come cru Aqui não é GTA, é pior, é Grajaú Sem pedigree, bem loco Machado de Xangô fazer honrar teu choro De UZI na mão, soldado do morro Sem alma, sem perdão Sem Jão, sem apavoro Cidade podre, solidão é um veneno O Umbral quer mais Chandon, heróis crack no centro Na tribo da folha favela desenvolvendo No Jutso secreto Naruto é só um desenho Uns cara que cola pra ver se cata mina Umas mina que cola e atrapalha ativista Mudar o mundo do sofá da sala, postar no Insta E se a maconha for da boa que se foda a ideologia Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu Shiva, Ganesh, Zé Pilin, dai equilíbrio Ao trabalhador que corre atrás do pão É humilhação demais que não cabe nesse refrão Nin Jitsu, Oxalá, capoeira, jiu jitsu Shiva, Ganesh, Zé Pilin, dai equilíbrio Ao trabalhador que corre atrás do pão É humilhação demais que não cabe nesse refrão E se não resistir E desocupar Entregar tudo pra ele então O que será? E se não resistir
559 Antigamente resolvia na palavra Uma ideia que se trocava O respeito que se bastava Dinheiro é vil, tio geriu, instinto viril AR-15 é mato e os moleque tão de fuzil Do Grajaú ao Curuzu, pra imigração meu povo é mula Inspiração é Black Alien, é Ferréz, não é Tia Augusta Verso mínimo, lírico de um universo onírico Cada maloqueiro tem um saber empírico Rap é forte, pode crê, "oui, monsiuer" Perrenoud, Piaget, Sabotá, Enchanté É que eu sou fi de cearense A caatinga castiga e meu povo tem sangue quente Naufragar, seguir pela estrela do norte Nas bença de Padim Ciço às letra de Edi Rock Calar a boca dos lóki Pois quem toma banho de ódio exala o aroma da morte Hoje não tem boca pra se beijar Não tem alma pra se lavar Não tem vida pra se viver Mas tem dinheiro pra se contar De terno e gravata teu pai agradar Levar tua filha pro mundo perder É o céu da boca do inferno esperando você É o céu da boca do inferno esperando Hoje não tem boca pra se beijar Não tem alma pra se lavar Não tem vida pra se viver Mas tem dinheiro pra se contar De terno e gravata teu pai agradar Levar o teu filho pro mundo perder É o céu da boca do inferno esperando você É o céu da boca do inferno esperando Uma bola pra chutar, país pra afundar Geração que não só quer maconha pra fumar Milianos, mal cheiro e desengano Cada cassetete é um chicote para um tronco Alqueires, latifúndios brasileiros Numa chuva de fumaça só vinagre mata a sede Novas embalagens pra antigos interesses É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe
560 Osíris olhe por mim, me afaste de Diabolyn Quem não tem moto não sai na foto Mobiletes com motor de dream Tentou fugir, foi lá que eu vi Sem capacete, levou róla, Deus acode e vamo aí É a esquiva da esgrima, a lágrima esquecida A cor da minha pele, eu sei, tem quem critica Por que a serpente é pra maçã É o que a maçã reflete pra mídia É que Abel tinha um irmão Mas Caim tinha a malícia Hoje não tem boca pra se beijar Não tem alma pra se lavar Não tem vida pra se viver Mas tem dinheiro pra se contar De terno e gravata teu pai agradar Levar tua filha pro mundo perder É o céu da boca do inferno esperando você É o céu da boca do inferno esperando Hoje não tem boca pra se beijar Não tem alma pra se lavar Não tem vida pra se viver Mas tem dinheiro pra se contar De terno e gravata teu pai agradar Levar o teu filho pro mundo perder É o céu da boca do inferno esperando você É o céu da boca do inferno esperando.